o eu, o outro e o entrelugar: captando a interculturalidade na tradução - gisele d. silva - parte...

Upload: amanda-valentin

Post on 08-Apr-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/6/2019 O eu, o outro e o entrelugar: Captando a interculturalidade na traduo - Gisele D. Silva - Parte 2

    1/6

    sua 'traducao, Merrdespropoe "E perfumes conheco em que acho maisdeleite/Que no halite que exala a minha doceamada'l-palavras cujo efei-to e suavizado pelo verbo "exala'lque remere a flares: J a na opcao 'deWan derl ey , e m virtudeda forma verbal "desprendem't-percebe-se umacarga mais pejorativa: -"E ha muita essencia berrimais perfumosa/Queoshalitos que dela se desprendem" ' " ., cOutro foco de interesse' cone erne ao verso 11~no qual 0 eu Iiricoopoe 0 andar de uma deus a, flutuante e suave, ao de sua amada, que pisaforternente no chao. Seinelhante e a-visao .deMendes, em que ela "pisabern no chao, c

  • 8/6/2019 O eu, o outro e o entrelugar: Captando a interculturalidade na traduo - Gisele D. Silva - Parte 2

    2/6

    sita fluir, "de tal modo que seu musculo tense nao transpareca na levezada danca" Assim, se 0soneto shakespeariano possui uma natureza for-ternente musical no pentametro iambico, entao a traducao deve mante-la tambern, apos uma fase de negociacao em que 0tradutor adapta eajusta elementos entre-as linguas. Em meio a essas disparidades, ambosos tradutores mencionam, de modos diversos, os processes de perdas ecornpensacoes, supressoes e acrescimos, Esse fato reside em uma con-tradicao assinalada por Arrojo (1993), segundo a qual a visao tradicio-nal da fidelidade e urn disfarce que oferece ao tradutor refugio do sen-timento de culpa em face da inapagavel presencya autoral que instala emseu trabalho.

    Wanderley (1994, p. 23) conclui sintomaticamente: "a traducaoe urn ser perrnanenternente emcurso" Assim como ha producces an-tecedentes' surgirao tambem as posteriores, e a traducao, inserida nomovimento da differance, norteia-se por urn jogo de rernissoesque con-duzem, em urn processo intertextual infinito, ao dialogo filosoficamenteirnpossivel, porem necessario, entre individuos, Hnguas e culturas.

    CONSIDERAGOES FINAlS .o presente trabalho teve como meta primeira tecer uma reflexao

    - de certa forma comparativa, mas nem por isso excludente e unila-teral - em torno das relevantes contribuicoes oferecidas pelos projetosfilosoficos de Gadamer eDerrida. Com essa reflexao se constataram aimportancia e a recorrencia da dicotomia familiar/estranho para a con-solidacao de relacoes e conversacoes humanas. Longe de manifestar umaseparabiiidade completa de ambas as faces dessa oposicao - como. pregaa filosofia Iogocentrica tradicional -, a relacao binaria em pauta reve-la a interdependencia e conjuncao entre. os termos, havendo urn jogoentre' ambos que propagao surgimento de novos questionamentos, aredefinicao de conceitos preestabelecidos e a possibilidade de traducao,Segundo Gadamer (1999, p. 563), a traducao e uma interpretacao, em-bora aSsocie-se a uma "situacao de tensao e obrigatoriedade" que frustrao tradutor. quando este percebe que sua busca de cornpensacoes deixalacunas no "transporte" textual. Por sua vez, Derrida (1988, p. 156) ereque 0movimento diferido entre linguas e signos inviabiliza a possibili-l 6 l )

  • 8/6/2019 O eu, o outro e o entrelugar: Captando a interculturalidade na traduo - Gisele D. Silva - Parte 2

    3/6

    dade de algo ser dito novamente e da mesma maneira, pois para ele "urntexto [...] nao volta" A partir dessa perspectiva, 0 tradutor, conscientedas diferencas instauradas entre ele ea producao autoral, encarrega-sede' construir a. traducao como releitura, visando a continuacao futurado processo -de compreensao .e interpretacao, e nao como resgate, al-mejando a infrutrifera recuperacao de algo passado. Derrida (1988, p.122}sintetiza essa visao assinalando: '~ traducao aumenta e modifica 0original, 0 qual, 'enquanto sobrevive, nunea cessade ser transformado ede crescer. Ela modificao original mesmo enquanto modifica tambern

    1, dutc . ))a mgua tra utona.Ern seguida, foi possivel observar como essa tensao entre 0 familiar

    e 0 estranho, entre 0 eu e 0 outro, e determinada pelas coercoes impostaspelas culturas.verdadeiras fronteiras erigidas por visoes de.mundo que osindividuos julgarn naturais e incontestaveis, Adotadas pela comunidadeinterpretativa, tais exigencias restringem os significados possiveis para aconstrucao de interpretacoes, fato que direciona as escolhas dos sujeitos,entre eles 0 tradutor. Apos a breve analise exposta acima, foram consta-tadas, entre as traducoes de Oscar Mendes e Jorge Wanderley, diversasdiscrepancias vinculadas a concepcoes - manifestas ou nao em suas notasintrodutorias - referentes a literariedade, poesia e traducao, Todavia, essasdiferencas pertencem ao mesmo leque de opcoes oferecidas pela institui-cao.literaria. e . pelacultura abrangente, sendo certas escolhas mais privi-legiadas do -que outras mediante as nocoes de maior aceitacao em dadomemento. 0 fator cultural incide tambem sobre a propria consideracaoda .obra de.Shakespeare - consolidada por tradutores, criticos e leitores.em' geral=, a qual. e atribuida uma supremacia Iiteraria associada a sobe-rania cultural da Inglaterra. Essa consideracao, que ve 0Bardo como "urnautorde umaelite.cultural" .(VOLLET, 1998, p.82), manifesta apenas osaspectos.pertinentes it perscrutacao academica, deixando a margem ele-mentos 'que ponham em xeque a integridade do poeta, como e 0caso dascontroversiasespecificas aos Sonetos ..

    . . A pesquisa pautou-se pelo entendimento de que a traducao.con-siste emuma leiturahist6rica e culturalrnente delimitada, produzidapor urn sujeito que, it maneira de, todos os individuos, nao conseguedesvincular-se do conhecimento e das perspectivas que possui peran-teoo.mundo. 0 paradoxo que, numa traducao, adere ao mesmo tempo.0 ! )

  • 8/6/2019 O eu, o outro e o entrelugar: Captando a interculturalidade na traduo - Gisele D. Silva - Parte 2

    4/6

    necessidade e impossibilidade torna possivel 0 conhecimento de outrasculturas por meio de constante interacao com a cultura do tradutor. Aproposito, em pleno seculo XXI, era em que a globalizacao facilita aaproximacao eo contato entre os povos tornam-se, de fato, imprescin-diveis e inegaveis a aceitacao e a valorizacao das diferencas culturais,etnicas, Iinguisticas etc. E a partir da rica multiplicidade de ideias e con-cepcoes de mundo que novos horizontes sao vislumbrados e novas re-lacoes humanas possibilitadas. Como supoemGadamer e Derrida emuma especie de sintonia em meio as divergencias de seus projetos, aalteridade e a estranheza propiciam 0 saber e 0 renovam quando elese en contra estagnado. Sao, na verdade, urn atraente desafio ao sujeitointerpretante, que esta em constante busca de um.entrelugar, de urn ter-ceiro plano que inter-relacione e complemente 0 familiar e 0 estranho .

    . 'No ambito da traducao, estimulada pela diferenca e nao pela identidade,o contato entre linguas e culturas amplia e enriquece horizontes e pos-sibilita releituras de urn mundo que, em seus deslocamentos, jamais sealia a estagnacao e ~ hornogeneidade.REFERENCIASARROJO, Rosemary (Org.). 0 signa desconstruido: impllcacoes para a traducao, a leitu-ra e 0 ensino. Campinas: Pontes, 1992.J\RROJO, Rosemary. Traducao, desconstruciio e psicanalise. Rio de Janeiro:. Imago,1993.

    BURGESS, Anthony. Os sonetos sao a chave para a poesia inglesa. Traducao AnastasiaCampanerut. Folha de Sao Paulo, Sao Paulo, 7 dez. 1991.DERRIDA, Jacques. The ear of the other: otobiography, transference, translation.Traducao Peggy Kamuf. Lincoln/London: Bison Books, 1988.DERRIDA. Jacques. Carta a urn amigo japones. Traducao Erica Lima. In: OTTONI, Paulo(Org.). Traducao: a pratica da diferenca. Campinas: Ed. da Unicamp: FAPESp, 1998. p. 19-25.DERRIDA, Jacques. Posicoes . Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autentica,2001.

    DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Traducao Junia Barreto. Belo Horizonte: Ed. daUFMG,2002.

  • 8/6/2019 O eu, o outro e o entrelugar: Captando a interculturalidade na traduo - Gisele D. Silva - Parte 2

    5/6

    DUNCAN-JONES, Katherine. Introduction. In: SHAKESPEARE,William. Shakespeare'ssonnets. London: Arden Shakespeare, 1997. p. 1-105.FISH, Stanley. Is there a text in this class i : the authority of interpretive communities.Cambridge; London: Harvard University Press, 1980.GADAMER, Hans-Georg. Verdade e metoda: tracos fundamentais de uma herrneneuti-. 'ca filos6fica. Traducao Flavio Paulo Meurer. 3. ed. Petropolis: Vozes, 1999.HELIODORA; Barbara. Falando de Skakespeare. Sao Paulo: Perspectiva, 1997.HOUAISS"Ant6nio; VILLAR, Mauro de S. (Org.). Diciondrio Houaiss da lingua portu-guesa. Rio deIaneiro: Objetiva, 2001.. ,

    KRAMSCH, Claire. Language and culture. Oxford: OUP, 1998.MENDES, Oscar. Nota introdut6ria. In: SHAKESPEARE, William. Obra completa. Riode Janeiro: Jose Aguilar, 1969. p. 735-737. v. 3.R1SSER,James. Hermeneutics and the voice of the other: re-reading Gadamer's philo-sophical hermeneutics. Albany: State University of New York Press, 1997.RODRIGUES, Cristina C. Traducao e diferenca. Sao Paulo: Ed. da UNESP, 2000.SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguistica Geral. Traducao Antonio Chelini, JosePaulo Paes e Izidoro Blikstein. 4. ed.Sao Paulo: Cultrix, 1972.SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre os diferentes metodos de traducao, TraducaoMargarete von Miihlen Poll. In: HEIDERMANN, Werner (Org.). Class icos da teoria datraducao. Florianopolis: Ed. da UFSC, Nucleo de Traducao, 2001. v. 1,p. 26-87.SHAKESPEARE; William. Sonetos. Traducao Oscar Mendes. In: SHAKESPEARE,William. Obra completa. Rio de Janeiro: Jose Aguilar, 1969. v. 3, p.'81S-877.SHAKESPEARE,'William.' Sonetos. Traducao Jorge Wanderley. 2 ed. Rio de Janeiro:Civilizacao Brasileira, 1994:SHAKESPEARE, William. Shakespeare's sonnets. Ed. Katherine Duncan-Jones. London:.Arden' Shakespeare, 1997.'VOLLET,Neusa L.R.Nobreza vs obscenidade em traducoes brasileiras de Hamlet: umareflexao sobre as relacoes possiveis entre os tradutores e seu autor. Tradterm, Sao Paulo,v. 5, n. 2, p. 71-96, 1998.

  • 8/6/2019 O eu, o outro e o entrelugar: Captando a interculturalidade na traduo - Gisele D. Silva - Parte 2

    6/6

    WANDERLEY, Jorge. Iritroducao. In: SHAKESPEARE, William. Sonetos. TraducaoJorge Wander1ey. 2."ed, Rio de Janeiro: Crvilizacao Brasileira, 1994. p. 9-23.

    ANEXOS

    A - "Sorieto CXXX': traducao de Oscar Mendes (SHAKESPEARE, 1969, p. 867):Minha amada olhos tern que ao sol nao se assemelham;Bern mais rubro e 0coral que seus Iabios vermelhos;E se branca a neve e , seus peitos sao morenos;Se arames sao cabelo, arame ne-gro'a adorria: ....Rosas vi de Damasco e vermelhas e brancas,Mas em vao procurei tais rosas no seu rosto;E perfumes coriheco em que acho mais deleiteQue no halite que exala a minha doce amada.Gosto de ouvir-Ihe a fala e, contudo, beTh seiQual musica possui bern mais arnavel sorn;Confesso nao ter vista aridar nerihurna deusa,Mas pisa bern no chao, com 'forca, a minha amada.

    Contudo, pelo ceu, tao rara e rnirrha amadaQuefalsas todas sao quaisquer cornparacoes.

    B -"Soneto 130': traducao de Jorge Wanderley (SHA.KESPEARE, 1994, p. 291):o seu olhar nao e0de urn sol puro;Nenhum coral os labios lhe acerideu,Se a neve e branca, os seios tern escuros;-Se sao fioos cabelos.inegro e oseu..-Iavi rosas damasco ..branco-e-rosa, _Porern nenhuma em sua face esplendeE ha muita e~sen:ciabern mais perfurnosa-Que oshalitos que dela se desprenderil.Adoro a . sua voz, ainda quandoSaiba mais doce 0sorn.de uma cancao,Nunca vi urna deusa caminhando;Ja minha amada, andarido esflo~a 0 chao:Mas; 'pelos ceus, eu creio: que e t ao rara

    Quanto- as que em falsa -irnagem ~e cornpararn.

    o-