herreraflores_direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência

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    DIREITOS H U M A N OS, I NTER C ULTUR ALI DADEE RACI O NALIDADE DE RESISTN CIA

    *

    Joaquin Herrera Flores **

    Sumrio: Introduo; 1. Trs vises a respeito dos direitos humanos;Consideraes finais: para uma racionalidade de resistncia; Refern-cias bibliogrficas.

    I n t rodu o

    Falar de direitos humanos, no mundo contemporneo, supe enfrentar-se desafios completamente diferentes dos que enfrentaram os redatoresda Declarao Universal de 1948. Enquanto em dcadas posteriores nos-sa Declarao, os economistas e polticos keynesianos reformulavam osmbitos produtivos e geoestratgicos, nas bases de uma geopoltica de

    acumulao capitalista baseada na incluso, poltica que assentou as basesdo chamado Estado de bem-estar (pactos entre capital e trabalho com oEstado servindo de garantidor e rbitro da distribuio da riqueza). Desdeo princpios dos anos 70 at os dias de hoje grande parte desse edifciodesmoronou, em razo da extenso global de uma geopoltica de acumu-lao capitalista baseada na excluso e que recebe o nome de neoliberalismo desregulamentao dos mercados, dos fluxos financeiros e da organiza-o do trabalho, com a conseguinte eroso das funes do Estado. Se nafase de incluso, os direitos significavam barreiras contra os desastres efeitos no intencionais da ao intencional que produzia o mercado; na

    fase de excluso, o mercado quem dita as normas permitindo, principal-mente s grandes corporaes transnacionais, superar as externalidades

    * Traduo por Carol Proner, professora de direitos humanos das Faculdades do Brasil.** Doutor em Direito. Diretor do Programa de Doutorado Derechos Humanos y Desarrollo da

    Universidad Pablo de Olavide (Sevilha-Espanha). Autor dos livros:Los Derechos Humanos desdela Escuela de Budapeste . Madrid: Tecnos, 1989; eEl Vuelo del Anteo: Derechos Humanos y Crticada la Razn Liberal. Bilbao: Descle, 1998.

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    e os obstculos que os direitos e instituies democrticas opem ao desen-volvimento global e total do mercado capitalista.

    Vivemos, pois, na poca da excluso generalizada. Um mundo onde4/5 dos habitantes sobrevivem no umbral da misria; onde, segundo o in-forme do Banco Mundial de 1998, pobreza somam-se 400 milhes de pes-soas por ano, significando que, atualmente, 30% da populao mundial vive(sobrevive) com menos de um dlar por dia afetando de modo especial asmulheres e 20 % da populao mais pobre recebe menos de 2% da rique-

    za, ao passo que os 20% mais ricos reservam 80% da riqueza mundial. Ummundo onde, em razo dos planos de (des)ajuste estrutural, impe-se odesaparecimento das mnimas garantias sociais: mais de 1 milho de traba-lhadoras e trabalhadores morrem de acidente de trabalho, 840 milhes depessoas passam fome, 1 bilho de seres humanos no tm acesso guapotvel e so analfabetos (PNUD, 1996). Um mundo onde as mortes devi-do fome e s doenas evitveis chegam por ano a cifras iguais s mortesocorridas nas Torres Gmeas multiplicadas por 6.000. Resta evidente queno importam as pessoas, mas unicamente a rentabilidade.

    Essas so as cifras do fim da histria, do final da bipolarizao e dotriunfo do pensamento e do poder nicos. Cifras que demonstram o desa-parecimento de milhares de pessoas, condenadas pobreza mais lacerante,e que contemplam, assombradas e indignadas, a ostentao dos Pases en-riquecidos a suas custas. Cifras, pois, que esto na base do que se tem cha-mado de surgimento dos tribalismos e dos localismos: em definitivo, dosfundamentalismos. O Norte recebe com surpresa e indignao as demons-traes de raiva e clera do Sul, encerrado na desesperana. Como res-ponder? Fechando as fronteiras, construindo fortalezas jurdicas e policiaisque impeam a invaso dos desesperados e famintos. Os debates polticoe terico sobre o multiculturalismo, que ocorre nos Pases enriquecidos pelaordem global, ao contrrio de estarem concentrados nas cifras da misria enos efeitos produzidos pela globalizao das lutas de classe, dedicam-sea bramar contra os perigos culturais que supem os diferentes, principal-mente aqueles que se vem obrigados a emigrar para melhorar, medidado possvel, suas precrias condies de vida. J no h luta de classes.Conforme afirma Huntington, h somente choque de civilizaes. Asprofecias desse autor so reconhecidas e amplificadas pela trama

    situao dos palestinosem Israel

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    meditica comprometida com a manuteno dostatus quo genocida e, apa-rentemente, imutvel.

    H 110 anos, o poeta de nossa Amrica, Jos Mart, dizia na pri-meira Conferncia Monetria Internacional Americana: Quem diz unioeconmica diz unio poltica. O povo que compra manda, o povo quevende serve; preciso equilibrar o comrcio para assegurar a liberdade.Quem pode negar que essas palavras, ditadas com o objetivo de cortar opasso aos aterradores abraos do Big Brother, possam aplicar-se si-

    tuao atual pela qual transcorre a ancestral problemtica das migraese a milenar realidade da convivncia e/ou confrontao entre diferentesformas de explicar, interpretar e intervir no mundo. O pas que recepcionamanda; o imigrante, diferente/desigual, serve: estamos ante a lei de ofer-ta e demanda aplicada, neste caso, tragdia pessoal de milhes de pes-soas que fogem do empobrecimento de seus Pases, em razo da rapinaindiscriminada do capitalismo globalizado. Vejamos os enfoques domi-nantes nessa matria: em primeiro lugar, a insistncia por parte das auto-ridades da Unio Europia, de fazer frente guerra de imigrao ile-gal, adotando medidas puramente policiais tendentes construo de

    uma Europa-fortaleza que ambiciona, novamente, proteger seu bem-es-tar s custas de suas antigas colnias; em segundo lugar, veja-se a genera-lizao de clichs e esteretipos vertidos sobre os imigrantes, ideolgica einteressantemente conhecidos como ilegais, ou frases como: eles vmretirar nossos postos de trabalho e depois no querem trabalhar, e simprotestar; em terceiro lugar, vejamos a falta de viso global do fen-meno migratrio e da realidade de multiplicidade de formas de vida ao reduzi-lo a temas como os de identidades culturais reduo que reti-ra a dimenso poltica ou de cupos (nmero de imigrantes por anoque podem regularizar-se e viver nos Pases de recepo), que faz comque vejamos a imigrao como um problema de simples necessidade demo-de-obra em pocas determinadas, e no como um fenmeno causa-do pelas injustias da globalizao neoliberal selvagem que vemaprofundando o abismo entre os Pases ricos e os Pases pobres. Essesenfoques so as notas que definem a tendncia das atuais polticas euro-pias ante a realidade da imigrao; notas que seguem o papel pautadode imposio de uma ordem global, cuja premissa ideolgica explcita constituda pela excluso e pelo abandono de 4/5 da populao mundial.

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    Muitos dos que perdemos algum familiar, em seu particular priplo,buscando emprego nos Estados de bem-estar do continente europeu, sabe-mos da tragdia pessoal que supe o abandono do pas de origem, a fim debuscar sadas econmicas para a pobreza. E tambm conhecemos todas asseqelas da aculturao e de submisso a condies laborais e de vida in-dignas, que o prprio imigrante se impe para no chocar com o cidadodo pas acolhedor. A imigrao um problema de claras conotaes cultu-rais, mas, sobretudo, de desequilbrio na distribuio de riqueza. Se uma s

    empresa transnacional possuidora de um produto interno bruto superior,ao de todas as reas de Pases subsaarianos; se os povos do Sul sofrem blo-queio em seu desenvolvimento por conta da existncia de uma dvida in- justa, cujo pagamento est assegurado pelas instituies globais e multi-laterais estranhas ao mnimo controle democrtico; e se sobre os Pasesempobrecidos pela rapina das grandes corporaes sobrevoam com maiorintensidade os verdadeiros problemas meio-ambientais, populacionais e desade, est claro que as migraes e as diferenas culturais tm muito maisa ver com a desigualdade social e com os desequilbrios econmicos entrePases, do que com as questes bizantinas sobre o reconhecimento dos ou-

    tros: os Pases que compram, mandam, dizia Mart.Se queremos refletir, a partir desse reconhecimento das especificidadesdos outros, devemos comear pela convico expressada nos pargrafosanteriores: os problemas culturais esto estritamente interconectados comos problemas polticos e econmicos. A cultura no uma entidade alheiaou separada das estratgias de ao social; ao contrrio, uma resposta,uma reao forma como se constituem e se desenvolvem as relaes soci-ais, econmicas e polticas em um tempo e um espao determinados.

    Por essa razo, as vises tradicionais do multiculturalismo no acres-centam muito aos problemas concretos que enfrentamos hoje em dia veja-se o caso da imigrao e suas conseqncias sociais e culturais. Porum lado, temos as propostas multiculturalistas de tendncia conservado-ra propiciar polticas de ao afirmativa ou discriminao positiva queaproximem, o mximo possvel, os diferentes (e no os desiguais, aindaquando na maioria dos casos uma classe leva outra) do padro ouro doque se considera normal. De diferentes modos, uma impe-se outra, eambas as posies compartem um ponto de vista universalista abstrato

    Isso fica evidenteno documentrio O que CULTURA

    Crtica ao

    multiculturalismo

    o resolveria conversae surdos entre rabesisraelenses

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    que, como tal, no pode ser questionado, apesar das enormes falhas e dasconseqncias desastrosas que esto provocando para a maioria da hu-manidade. Da mesma forma, as posies multiculturalistas holistas ou,para dizer de outro modo, nativistas ou localistas, tampouco acrescentama nosso debate, dado o radicalismo na esfera das razes identitrias oudos parmetros religiosos totalizados. Essas posies tambm terminamdefendendo, como veremos mais adiante, algum tipo de universalismoabstrato: se, na idia, o que prima a identidade o que nos separa ,

    na prtica, imperam o contrato mtuo e a necessidade de convivncia,que podem aportar estas posies na hora de abordar a realidade pluralna qual vivemos? No dificultariam ainda mais a exigncia cultural dodilogo e a prtica social intercultural? Para refletir sobre esses proble-mas, desde uma teoria comprometida com os direitos humanos, devemosfazer uma srie de precises.

    1 . Tr s vis e s a re s pe ito do s d ire ito s humano s

    A polmica sobre os direitos humanos, no mundo contemporneo,centra-se, atualmente, em duas vises, duas racionalidades e duas prticas.Em primeiro lugar, uma visoabstrata , vazia de contedo, referenciada nascircunstncias reais das pessoas e centrada na concepo ocidental de direi-to e do valor da identidade. E, em segundo lugar, uma visolocalista, naqual predomina o prprio, o nosso, com respeito ao dos outros, e centradana idia particular de cultura e de valor da diferena. Cada uma dessasvises dos direitos prope um determinado tipo de racionalidade e umamaneira de como coloc-los em prtica.

    Viso abstrata

    racionalidade jurdico/formal prticas universalistasViso localista racionalidade material/cultural prticas particularistas

    As duas vises contm razes de peso para serem defendidas. O direi-to, visto a partir de sua aparente neutralidade, pretende garantir a todos,e no a uns perante outros, um marco de convivncia comum. A cultura,vista do seu aparente encerramento local, pretende garantir a sobrevivn-

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    cia de smbolos, de uma forma de conhecimento e de valorao que orientea ao do grupo para fins preferidos por seus membros. O problema surge,quando cada uma dessas vises passa a ser defendida apenas por seu lado,e tende a considerar inferior as demais, desdenhando outras propostas. Odireito acima do cultural, e vice-versa. A identidade, como algo prvio diferena, ou vice-versa. Nem o direito, garantia de identidade comum, neutral; nem a cultura, garantia da diferena, algo fechado. Torna-se rele-vante construir umacultura dos direitos que recorra, em seu seio, universa-

    lidade das garantias e ao respeito pelo diferente. Mas, isso supe uma outraviso, que assuma a complexidade do tema que abordamos. Essa visocom- plexa dos direitos humanos a que queremos desenvolver nestas pginas.Seu esquema respeita a seguinte estrutura:

    Viso complexa racionalidade de resistncia prtica intercultural

    Com essa viso queremos superar a polmica entre o pretensouniversalismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas. Ambasas afirmaes so produtos de vises reducionistas da realidade. Ambasacabam por ontologizar e dogmatizar seus pontos de vista, ao no relacio-narem suas propostas com os contextos reais. Vejamos, um pouco maisdetidamente, as diferenas entre essas trs vises dos direitos.

    As vises abstrata e localista dos direitos humanos supem, sempre,situar-se em umcentro, a partir de onde se passa a interpretar todo o restan-te. Nesse sentido, torna-se a mesma coisa analisar uma forma de vida con-creta ou uma ideologia jurdica e social. Ambas funcionam como um pa-dro de medidas e de excluso. Dessas vises deriva um mundo desinte-grado. Toda centralizao implica automatizao. Sempre haver algo que

    no esteja submetido lei da gravidade dominante e que deve ficar margi-nalizado da anlise e da prtica. sutil recordar, aqui, aquela imagem coma qual Robert Nozick justificava, metodologicamente seu Estado mnimo:fazer uma foto da realidade, elegendo o plano que queremos ressaltar e, noestudo, recortar por todos os lados at chegar imagem que nos convm. E,pois, o excludo vai ser regido e determinado pelo centro que impusermosao conhecimento e ao.

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    Por essa razo, a viso complexa dos direitos aposta por situar-nos na periferia. Centro h somente um. O que no coincida com ele abandonado marginalidade. Periferias, no entanto, existem muitas. Na realidade, tudo periferia, se aceitamos que no h nada puro e que tudo est relaciona-do.1 Uma viso, a partir da periferia dos fenmenos, indica-nos que deve-mos abandonar a percepo de estar no entorno, como se fssemos algoafastado do que nos rodeia e que deve ser dominado ou reduzido ao centroque inventamos. No estamos no entorno. Somos o entorno. No pode-

    mos nos descrever a ns mesmos sem descrever e entender o que e o quefaz o entorno do qual formamos parte. No entanto, educaram-nos para nosentendermos e vivermos como se fssemos entes isolados de conscinciae de ao, postos em um mundo que no o nosso, que nos estranho, que diferente do que somos e fazemos e, por esta razo, podemos dominar eexplorar. Ver o mundo a partir de um pretenso centro, supe entender arealidade material como algo inerte, passivo, algo a que se necessita darforma desde uma inteligncia alheia a ela. Ver o mundo a partir da perife-ria, implica entendermo-nos como conjuntos de relaes que nos atam, tan-to interna como externamente, a tudo, e a todos os demais. A solido do

    centro supe a dominao e a violncia. A pluralidade das periferias supeo dilogo, a convivncia. Seria o mesmo que comparar a viso panormicae fronteiria deLa mirada de Ulises,de Theo Angelopoulus, com o simplismoviolento e hierarquizador, deRambo.

    Em segundo lugar, as vises abstrata e localista enfrentam um proble-ma comum: o do contexto. Para a primeira, h uma falta absoluta de con-texto, uma vez que se desenvolve no vazio de um existencialismo perigosopor no se considerar como tal, mas fala de fatos e dados da realidade.

    1 Citemos o exemplo das manifestaes expressadas por uma jovem chicana proposta por Renato

    Rasaldo no seu textoCultura y Verdad: Conserta-se uma pessoa, desenvolvemndo uma tolernciaante as contradies, uma tolerncia ante as ambigidades. Aprender a ser ndica, na cultura mexica-na, a ser mexicana desde um ponto de vista anglosaxo. Aprender a fazer jogos malabares com asculturas. Possui uma personalidade plural, funciona de modo plural nada desejado, nem o bom,nem o mal, nem o horrvel, nada rejeitado, nada abondonado. No somente vive com as contradi-es, transforma a ambivalncia em algo diferente (apud FEYERABEND, P. Contra la inefabilidadcultural, el objetivismo, el ralativismo y otras quimeras.Archipilago . Cuadernos de crtica de lacultura , 20, 1995). Este texto nos demonstra que, hoje em dia, os pretensos ncleos centrais das cultu-ras nos ensinam muito pouco a seu respeito, so problemas de limites, de periferias que se tocamumas com outras, as que nos ensinam muito mais acerca do que somos e de onde estamos situados.

    preciso se reconhecer

    mo periferia para haverlogo e convivncia

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    Para a segunda, h um excesso de contexto que, ao final, se esfumaa novazio, provocando a excluso de outras perspectivas: outro existencialismoque somente aceita o que inclui, o que incorpora e o que valora, excluindo edesdenhando o que no coincide com ele. Dialtica abstrato/local que tomagnificamente se expressa nos personagens sombrios e atormentados dasnovelas de Joseph Conrad.

    Em sentido contrrio, para a viso complexa o contexto no um pro-blema. , precisamente, seu contedo: a incorporao dos diferentes con-

    textos fsicos e simblicos na experincia do mundo. Quanto no aprende-ramos sobre direitos humanos, escutando as histrias e narraes sobre oespao que habitamos, expressadas por vozes precedentes de diferentescontextos culturais! Da viso fechada de Conrad, chegaramos participa-o carnavalesca e rabailesiana da realidade proposta por Mihail Bajtin.

    Por ltimo, as vises abstratas e localistas do mundo e dos direitosconduzem-nos aceitao cega de discursos especializados. Provenha deuma philosophe ou de umchamn, o conhecimento estar relegado a umacasta que sabe que o universal que estabelece os limites do particular.

    A viso complexa, em sentido oposto, assume a realidade e a presenade mltiplas vozes, todas com o mesmo direito a expressar-se, a denunciar,a exigir e a lutar. Seria como passar de uma concepo representativa domundo a uma concepo democrtica que prima pela participao e pelasdecises coletivas.

    Nesse sentido, que tipo de racionalidade e de prticas sociais surgemde cada uma dessas vises sobre direitos?

    Afirma o mestre George Steiner que os que submergem a grandesprofundidades contam que, chegando a certo ponto o crebro humano sev possudo por uma iluso de que novamente possvel a respirao natu-

    ral. Quando isso ocorre, o mergulhador retira o escafandro e se afoga. Tor-na-se bbado com uma narcose fatal chamado devertige des grandes profondeurs ... Da, os intentos sistemticos e legislativos para (chegar a) umafinalidade acordada. O texto, retirado do enigmtico livroPresenciasreales , demonstra o horror que produz a multidimensionalidade do real, eas infinitas possibilidades de interpretao que existem. Tanto as visesabstratas como as localistas abominam o contnuo fluxo de interpretaes e

    rspectiva democrticaluta por direitos

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    re-interpretaes. Cada uma, por seu lado, procura colocar um ponto finalhermenutico que determine a racionalidade, em suas anlises e propostas.

    Por um lado, a viso abstrata sistematiza seu ponto final sob as pre-missas de uma racionalidade formal. Ocupar-se, unicamente, da coernciainterna das regras e sua aplicao geral a diferentes e plurais contextos re-sulta ser uma armadilha conceitual e ideolgica para no nos afundarmos,para no sentirmos a vertigem da pluralidade e a incerteza da realidade e,desta forma, ser um libi bem estruturado para as pretenses universalistas.

    Em ltima instncia, o formalismo um tipo bsico de determinismo. Dadoque a estrutura de nossa linguagem e, supostamente, de nosso pensa-mento est submetida a regras, deduz-se que a realidade est estruturadado mesmo modo. Se a realidade resiste forma, pior para a realidade. Comoconseqncia da concepo isolada do eu com respeito ao mundo e do pr-prio corpo, o formalismo reduz a ao cultural interveno sobre pala-vras e smbolos, nunca sobre a realidade material ou corporal. O mundo e ocorpo so vistos sempre como algo separado, alheio ou, quando menos,problemtico. Palavras sobre palavras. Transformao de palavras, de sm-bolos. Nunca incidindo sobre o transfundo real do qual formamos parte

    essencial. A partir dessa viso abstrata e dessa racionalidade formal, o queparece significativo, unicamente, o que pode ser anotado simblicaou numericamente. No se trata do problema que produz tratar de fatossociais como coisas, e, sim, como fazer para que os fatos sociais cheguema ser coisas. O formalismo supe um endurecimento da realidade, capazde permitir quantificar e representar em um molde prefixado a ri-queza e a mobilidade social. H somente um passo desde a conscincia dacomplexidade statistical objetification. Tudo isso significa que, embo-ra a realidade seja muito mais ampla que a lgica ou a estatstica, estasdeveriam servir quela e no ao contrrio.2

    2 O exemplo que vimos criticando encontra-se na monografia de Salais, Baverez y Reynaud,Lainvencin del paro en Francia . Historia y transformaciones desde 1890 hasta 1980, publicado peloMinisterio de Trabajo, Madrid, 1990. O endurecimento da realidade que supe o formalismo e aquantificao no so casuais e nem esto separados dos interesses de poder: ver Serverein, E.Dela jurisprudence en droit priv: thorie dune practique , Presses Universitaires de Lyon, Lyon,1985, no qual se analisa o trabalho de taxonomia e de classificao abstrata da realidade por parte

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    Ao reduzir a racionalidade coerncia interna de regras e princpios,a viso abstrata dos direitos esquecer algo muito importante para o enten-dimento da sociedade e dos direitos: as regras e princpios reconhecidos juridicamente estaro submetidos s exigncias de coerncia e de falta delacunas internas. Mas, por sua vez, essa racionalizao do real, em termos jurdicos, no ter em considerao a irracionalidade das premissas so-bre as que se sustentam e as quais pretende conformar desde sua lgica esua coerncia. Esse o limite de todo garantismo jurdico, de toda invo-

    cao formal ou neutral do Estado de direito, de toda poltica representati-va. Se a realidade rege-se pelo mercado, e neste no existe mais racionalidadeque a mo invisvel, essa racionalidade irracional no poder ser regidapela racionalidade racional do direito, a menos que esse cumpra a missode garantir, no as liberdades e direitos dos cidados, mas as liberdadese direitos necessrios ao mercado, livre concorrncia e maximizao dosbenefcios; ou seja, todos aquelesa priori do liberalismo econmico e polti-co. Estamos, pois, ante uma racionalidade queuniversaliza umparticularismo: o do modo de produo e de relaes sociais capitalistas,como se fosse o nico modo de relao humana. A racionalidade formal

    culmina em um tipo de prticauniversalista que poderamos qualificar deuniversalismo de partida, a priori , um pr-juzo ao qual deve adaptar-setoda a realidade. Todos temos direito, pelo fato de havermos nascido. Mascom que direitos se nasce; qual sua hierarquia interna e quais so as con-dies sociais de sua aplicao e interpretao, que se constituem em mat-rias que no correspondem viso abstrata ou, o que ele significa,descontextualizado dos direitos. Ao sair do contexto, o formalismo necessi-ta criar uma nova realidade cujos componentes deixam de ser merasabstraes lingsticas para converterem-se em coisas. Alm disso, conver-tem-se em coisas equivalentes que se sustentam entre si: por exemplo, su-

    do poder judicial; e, tambm, DASTON, L. The domestication of risk: mathematical probabilityand insurance, 1650-1830. In: KRUEGER, L., (edit.).The Probabilistic Revolution: Volumen I, Ideasin History. MIT Press, Cambridge MA, em relao funcionalidade das anlises estatsticas com osurgimento e a consolidao das empresas de seguros de vida. Cf. o interessante ensaio deDESROSIRES, Alain. How to make things which hold together: Social Science, Statistcs and theState. In: Wagner, Wittrock y Whitley (edit.).Discourses on Society. The Shaping of the socialscience disciplines, Sociology of the Sciences Yarbook, v. XV, Kluwer, Dordecht, 1990, p. 195-218(existe trad. cast. enArquipilago . Cuadernos de crtica de la cultura , 20, 1995, p. 19-31.

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    posto de fato e conseqncia jurdica. A questo no reside em perguntar-se se esses elementos so ou no equivalentes, e se sustentam ou no entresi (isso significaria cair na armadilha do formalismo), mas em perguntarquem decide tratar esses elementos como equivalentes e com que finalida-des aparecem como objetos que se sustentam entre si sem referncia a seuscontextos sociais, econmicos, polticos ou culturais?

    Essa viso abstrata induz a reduzir os direitos a seus componentes jurdicos como base de seu universalismoa priori. A prtica social por

    direitos dever, pois, reduzir-se luta jurdica. Por muito importante queseja essa luta, dada a funo de garantia que o direito pode e deve cum-prir, reduzir sua prtica a rbitros da norma levar-nos-ia a aceitar comoprincpio essa contradio bsica de todo formalismo: racionalidade in-terna e irracionalidade das premissas. O que ocorre com os que se negama aceitar essas premissas irracionais, essa lgica do mercado que tornahomogneo tudo o que por ela passa? O mercado necessita de uma ordem jurdica formalizada que garanta o bom funcionamento dos direitos depropriedade. Essa ordem jurdica, com todo seu fundamento tico e pol-tico, o que se universaliza a priori, deslocando, da anlise, questes tais

    como o poder, a diversidade ou as desigualdades. o que constitui o ra-cional e o razovel. Nele coincidem o real e o racional. Sntese final. Uni-dade de opostos. O universal.

    Constitui uma sada para esse universalismo abstrato, reivindicar olocal, o particular ? Em princpio, preciso dizer que, em conseqncia desseimperialismo do universala priori, tm surgido vozes que exigem uma vol-ta ao local, como reao compreensvel diante dos desmandos e abusos detal colonialismo conceitual. Entretanto, o localismo tambm se afoga pe-rante a pluralidade de interpretaes e, a seu modo, ainda constri outrouniversalismo, umuniversalismo de retas paralelas que somente se encon-traro no infinito do magma das diferenas culturais. O localismo siste-matiza seu prprio ponto final sob as premissas de uma racionalidadematerial que resiste ao universalismo colonialista, a partir dos pressupos-tos do prprio. Fecha-se sobre si mesmo. Resistindo a uma tendnciauniversalistaa priori de depreciar as distines culturais, com o objetivode impor uma s forma de ver o mundo, o localismo refora a categoria dedistino, de diferena radical, com o que, em ltima instncia, acaba de-

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    fendendo o mesmo que a viso abstrata do mundo: a separao entre ns eeles, o desapreo pelo outro, a ignorncia sobre o que nos faz idnticos arelao com os outros; a contaminao de alteridade. Daquele universalismode ponto de chegada, alcanamos o universalismo de retas paralelas, detomos que somente se encontram quando se chocam entre si. uma reaonatural enfrentar-se a eliminao das diferenas que provocam ouniversalismo abstrato. Mas, contrapor a ele a existncia de essncias dife-renciais que podem rastrear-se, unicamente, por uma arqueologia histri-

    ca, provoca novas distores, ao dedicar-se, no melhor e mais pacfico doscasos, a supor-se, sem inter-relacion-las, formas culturais diferentes.Estamos ante uma postura nativista. Ante, por exemplo, os essencialismosda negritude, do latinoamericano, do feminino, do ocidental ...como formas de absolutizar identidades. Adorar essas identidades essenci-ais, faz-se to perverso como abomin-las. deixar a histria da humani-dade ao arbtrio de essencialidades estranhas experincia e que podemconduzir ao enfrentamento dos seres humanos entre si. Essa racionalidadenativista conduz a uma prtica comumente denominadamulticultural dosdireitos, como concluso necessria de seu universalismo de retas parale-

    las. O termo multicultural ou no diz nada, dada inexistncia de cultu-ras separadas, ou conduz suposio, no estilo de um museu, das diferen-tes culturas e formas de entender os direitos. O multiculturalismo respeitaas diferenas, absolutizando as identidades e esfacelando as relaes hie-rrquicas dominados/dominantes que entre elas ocorrem. Tal como hdefendido, em mltiplas ocasies, Peter McLaren,3 a viso abstrata, no queconcerne polmica sobre as diferenas culturais, conduz-nos a ummulticulturalismo conservador: existem muitas culturas, mas somente umapode considerar-se o padro ouro do universal. Por sua parte, a visolocalista nos conduzir a um multiculturalismo liberal de tendncia pro-

    gressista: todas as culturas so iguais, no h mais que se estabelecer umsistema de quotas ou deafirmative action, para que as inferiores ou pato-lgicas possam aproximar-se hegemonia, mas, ao estilo do politicamen-

    3 Cf. dentre outros muitos textos o autor norte americano discpulo de Paulo Freire, McLAREN, P.Pedagoga crtica y cultura depredadora. Polticas de oposicin en la era postmoderna. Barcelona:Paids, 1997. Ver tambm KELLNER, Douglas.Media Culture: cultural studies, identity and politicsbetween the modern and the postmodern. Routledge, 1995, especialmente cap. 3.

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    te correto, respeitando sempre a hierarquia dominante. Outorgar voz e pre-sena, em razo das diferentes posies sociais, uma forma de ocultar adiferena; em muitas ocasies, no mais que uma conseqncia dasdesigualdades que ocorrem, no incio, ou bem no desenvolvimento do pro-cesso de relaes sociais.

    Deve-se dar um passo a mais. Como defendeu Luckcs, os efeitos maisimportantes da implantao do capitalismo, conceitualmente, so os da frag-mentao e da coisificao do que entendemos separada e isoladamente do

    contexto. Estamos ante a forma mais sutil de hegemonia. A mesma posiops-moderna, com sua insistncia, na falta de discursos globalizadores, no mais que outra forma, qui indireta ou inconsciente, de aceitar essa frag-mentao e essa coisificao das relaes sociais.

    Por isso, nossa viso complexa dos direitos aposta por umaracionalidade de resistncia. Uma racionalidade que no nega que possvelchegar a uma sntese universal das diferentes opes relativas aos direi-tos. E tampouco descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimentodas diferenas tnicas ou de gnero. O que negamos considerar o uni-versal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao uni-versal h de se chegar universalismo de chegada ou de confluncia depois (no antes) de um processo conflitivo, discursivo de dilogo ou deconfrontao no qual cheguem a romper-se os prejuzos e as linhas para-lelas. Falamos do entrecruzamento, e no de uma mera superposio depropostas. O universalismo abstrato mantm uma concepo unvoca dahistria que se apresenta como o padro ouro do tico e do poltico. Aluta pelo local adverte-nos de que esse final da Histria conduz-nos aorenascimento das histrias. Mas no basta rejeitar o universalismo; pre-ciso denunciar, tambm, que, quando o local universaliza-se, o particularinverte-se, e se converte em outra ideologia do universal. Ao converterem universal e necessrio o que no mais que um produto da contingn-cia e da interao cultural, o resultado a verdade absoluta. O universal eo particular esto sempre em tenso, a qual assegura a continuidade tantodo particular como do universal, evitando tanto o particularismo como ouniversalismo. Dizer que o universal no possui contedos prvios nosignifica que seja um conjunto vazio onde todo o particular mescla-se semrazo. Trata-se, em outros termos, de um universalismo que no se inter-

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    pe, de um ou outro modo, existncia e convivncia, mas que se desco-bre no transcorrer da convivncia interpessoal e intercultural.Se a univer-salidade no se impe, a diferena no se inibe;sai luz. Nos encontramos aooutro e aos outros com suas pretenses de reconhecimento e respeito. Enesse processo denominado por alguns como multiculturalismo crticoou de resistncia , ao mesmo tempo em que vamos rejeitando osessencialismos universalistas e particularistas, damos forma ao nicoessencialismo vlido para uma viso complexa do real: o de criar condi-

    es para o desenvolvimento das potencialidades humanas, o de um po-der constituinte difuso que faa a contraposio, no de imposies ouexcluses, mas de generalidades compartidas s que chegamos (de chegada),e no a partir das quais partimos (de sada).

    No vale acusar, por exemplo, os Pases no ocidentais de boicotar asconferncias internacionais de direitos humanos, em fins do sculo XX, por-que estariam apelando para suas culturas, uma vez que no processo detodas essas reunies exige-se, por parte do Ocidente, a incluso de clusu-las de respeito ao livre-comrcio e de regras de instituies internacionaisde comrcio, que so interpostas a todo mundo empobrecido, como se fos-

    sem dogmas fechados e situados fora do debate. Como tampouco, vlidopartir da rejeio a todas as idias ocidentais sobre direitos humanos, comose fossem todas elas produtos do colonialismo e do imperialismo. Negarabsolutamente a viso ocidental dos direitos humanos acaba gerando,por parte das culturas e dos Pases que consideram a sua cultura ocidentala nica que postula e defende direitos humanos, a afirmao do padroouro a partir do qual se identifica a luta pela dignidade humana. Essa pre-tenso ao essencialismo tico provoca o autodesapreo, herdeiro de umalonga tradio no ocidental de luta pelos direitos humanos. Tanto umaquanto a outra posio partem de universalizaes e de excluses; no par-tem de processos que nos permitiriam chegar ao conjunto de generalidadesque todos poderamos compartir.4

    4 A forma de salientar desses atoladeiros buscar rasgos que conecten el interior de un lenguaje ouna teora o una cultura con su exterior, y de este modo reducir la ceguera inducidaconceptualmente a las causas reales de la incomprensin, que son la inercia, el dogmatismo, ladistraccin y la estupidez, habituales, normales, corrientes y molientes.. No se niegan las diferenci-as entre lenguajes, formas de arte, costumbres. Per, (habra que atribuirlas) a accidentes de deubicacin y/o historia, no a essencias culturales claras, inequvocas e inmviles:: potencialmente

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    Nossa racionalidade de resistncia conduz, pois, a umuniversalismode contrastes, de entrecruzamento, de mesclas .5 Um universalismo impuroque prope a inter-relao e no a superposio. Um universalismo que noaceita a viso microscpica que parte de ns mesmos, no universalismo departida ou de retas paralelas. Trata-se de um universalismo que nos sirva deimpulso para abandonar todo tipo de viso fechada, seja cultural ouepistmica, a favor de energias nmades, migratrias, mbiles, que permi-tam deslocarmo-nos pelos diferentes pontos de vista sem a pretenso de ne-

    gar-lhes, nem de negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana.A ltima esperana para o pensamento lembrava-nos Adorno e seuMnima Moralia o olhar que se desvia do caminho trilhado, o dio e abrutalidade, a busca de conceitos novos ainda no acoplados ao esquemageral. Necessitamos de uma racionalidade sem lar, descentrada e exiladado convencional e dominante. O problema no radica na preocupao pelaforma, mas no formalismo. O problema no reside na luta pela identidade,mas no essencialismo do tnico ou da diferena. Ambas as tendncias ou-torgam estabilidade ontolgica e fixam-se a algo que no mais que uma,outra, construo humana.

    Por isso, propomos um tipo de prtica, nem universalista e nemmulticultural, masintercultural . Toda prtica cultural , em primeiro lugar,um sistema desuperposies entrelaadas, no meramente superpostas. Esseentrecruzamento nos conduz at uma prtica dos direitos, inserindo-os emseus contextos, vinculando-os aos espaos e s possibilidades de luta pelahegemonia e em estrita conexo com outras formas culturais, de vida, deao, etc. Em segundo lugar, induz-nos a uma prtica socialnmade, que nobusque pontos finais ao acmulo extenso e plural de interpretaes e nar-raes, e que nos discipline na atitude de mobilidade intelectual absoluta-mente necessria, em uma poca de institucionalizao, regimentao ecooptao globais. E, por ltimo, caminharamos para uma prtica socialh-

    cada cultura es todas las culturas. FEYRABEND, P., op. cit, p. 50. Ao texto de Feyrabend somentefalta fazer uma referncia aos interesses econmicos e de poder, como causa dos retensosenceramentos culturais para nos servirmos por completo de sua anlise.

    5 Nossa proposta coincidente com a de umauniversalidade analgica, histrica e situada, proposta porSCANNONE, J.C.Nuevo punto de partida en la filosofca latinoamericana . Guadalupe, BuenosAires, 1990. Assim mesmo, consultar SANTOS, Milton.Tcnica, Espao, Tempo. Globalizao emeio tcnico-cientfico informacional. So Paulo: Hucitec, 1996, especialmente cap. V, p. 163-188.

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    brida. Nada hoje puramente uma s coisa. Como afirma Edward W. Said,necessitamos de uma prtica hbrida e anti-sistmica que possa construirdescontinuidades renovadas e quase ldicas, carregadas de impurezas in-telectuais e seculares: gneros mesclados, combinaes inesperadas de tradi-o e novidade, experincias polticas baseadas em comunidades de esforose interpretaes (no sentido mais amplo da palavra), mas que em classe ecorporaes de poder, posse e apropriao.6 Uma prtica, pois, criadora ere-criadora de mundos, que esteja atenta s conexes entre as coisas e as for-

    mas de vida e que no nos prive de outros ecos que habitem o jardim.

    Con s idera e s f ina is :

    Diante de tudo isso, a reflexo sobre a interculturalidade conduz-nos auma resistncia ativa contra os roteiros que est tomando esse tema nos de-bates contemporneos. Como exemplo, apliquemos a metodologia exposta,ao caso das migraes, j que esta uma matria na qual se evidenciam asconseqncias dos discursos multiculturalistas conservadores ou liberais.

    Devemosresistir , em primeiro lugar, ao discurso que reduz o temamigratrio luta contra os trficos ilegais, dado que a postura dos gover-nos na hora de fornecer papis no est de acordo com as necessidadesde mo-de-obra necessria (a menos que o que se pretenda seja manter sobcontrole os que no possuem outro remdio, alm de ter de aceitar condi-es escravizadoras de trabalho o que, por sua vez, alimenta e potencializaas redes de trfico ilegal de pessoas).

    Em segundo lugar, devemosresistir a considerar a problemtica quedemonstra as migraes como um problema policial e de controle de fron-teiras. Assistimos a uma generalizao de uma nova ordem global, subs-

    tancialmente diferente da ordem internacional de dcadas passadas. Cadavez nos regemos menos por tratados e convenes internacionais e mais

    6 SAID, E. W.Cultura e imperialismo . Barcelona: Anagrama, 1996, p. 514. Ver, no mesmo sentido, SAN-TOS, Boaventura de Sousa.A crtica da razo indolente. Contra o desperccio da experincia. So Pau-lo: Cortez, 2000; e MENDES, Jos Manuel Oliveira. O desafio das identidades. In: SANTOS, Boaventurade Sousa (Org.).A Globalizao e as Cincias Sociais . So Paulo: Cortez, 2002, p. 503-540.

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    pelas mos bastante invisveis dos mercados, transnacionalmente inter-relacionados, e que servem, em ltima instncia, para assegurar a eficin-cia do sistema ante os desequilbrios econmicos, sociais e culturais que,intencionalmente ou no, geram. Como vem afirmando a teoria social con-tempornea se queremos abordar com realismo os fluxos migratrios e,com eles, os temas suscitados pelo contato entre culturas , devemos enca-rar o fenmeno a partir de trs reconhecimentos: 1) o mundo mostra-secaracterizado por desequilbrios profundos, como pode ser visto no tema

    das liberdades civis e, tambm, nos direitos sociais, econmicos e culturais;2) as fronteiras, sobretudo as fronteiras-fortalezas, so mecanismos essenci-ais para manter as desigualdades entre naes e; 3) o controle das frontei-ras representa a linha crtica de diviso entre o mundo desenvolvido, ocentro e as periferias econmicas, crescentemente subordinadas.

    E, por ltimo, devemosresistir a entender a realidade da imigraoe da multiculturalidade como a principal geradora de problemas sociais dapoca em que vivemos. Torna-se muito fcil, sobretudo aps 11 de setem-bro, justificar a superioridade do valor da segurana sobre o restante dosvalores que inspiram os direitos humanos. E, mais fcil ainda, atribuir, ao

    imigrante ou ao diferente, a responsabilidade, transformando-os em umbode expiatrio no qual situamos nossas frustraes e nossa incapacida-de poltica para resolver os problemas da delinqncia organizada, assimcomo os problemas derivados dos dbeis sistemas de penso (previdncia)que nos asseguram um futuro incerto e problemtico. O populismo de ex-trema direita nutre-se dessas incapacidades do Estado de Direito. Contraessa tendncia, devemos reconhecer, primeiro, o papel benfico que em to-das as pocas histricas supuseram as migraes, as mesclas, as mestiagens.E, segundo, fazer chegar opinio pblica as vantagens laborais, fiscais eculturais que a imigrao capaz de produzir.7

    7 Por essas razes, deve-se ler com cautela asDiez tesis sobre la inmigracin, propostas por AgnesHeller. Segundo a professora da New School for Social Research, h que se estabelecer semforosde comportamento para evitar o choque entre partes distintas; esses semforos estariam baseadosem um princpio geral: a emigrao um direito humano, enquanto que imigrao no . Emoutras palavras, se algum quer sair no se deve opor nenhum problema j que possui o direi-to; mas se quer entrar, j no se trata de direitos, mas de privilgios, os quais devem estarregulados pelos de dentro. O cuidado da leitura, e no a rejeio imediata do que prope Heller,reside na convico da necessidade de aes que prevejam possveis conflitos interculturais einterclassistas. Mas a questo no reside em levantar obstculos ou semforos, mas em construir

    Ou entre comunidades/povos -> palestinos xsraelenses

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    Como nos dizia Mart, a economia deve ser controlada pela poltica.Mas no por qualquer poltica, e sim por uma poltica comprometida nosomente com a livre circulao dos capitais, mas tambm com a livre cir-culao das pessoas; uma poltica afastada de qualquer violao dos di-reitos recorridos nos textos de direitos humanos; uma poltica, enfim, quenos fornea mecanismos para podermos resistir, imigrantes e residentes,a uma ordem global injusta e desigual.8 Os direitos humanos, no mundocontemporneo, necessitam dessa viso complexa, dessa racionalidade de

    resistncia e dessas prticas interculturais, nmades e hbridas, para su-perar os resultados universalistas e particularistas que impedem umaanlise comprometida dos direitos, h muito tempo. Os direitos humanosno so, unicamente, declaraes textuais. Tampouco, so produtosunvocos de uma cultura determinada. Os direitos humanos so os meios

    espaos de mediao no qual possamos transitar, estabelecendo novas relaes sociais, econmicase culturais. Que tipos de relaes so estabelecidas quando todos estamos detidos ante o semfo-ro? No estaramos voltando a justificar o atomismo social que apenas confia em normasheternomas que aparentam impor-se a todos de modo igual? No constituem, os controles adu-aneiros e fronteirios, um semforo unicamente para uns e no para outros? Da, surge o princ-pio geral proposto por Heller: a emigrao um direito e a imigrao no. No estamos ante asduas caras de um mesmo fenmeno? Caso queira, v, ningum lhe impedir, j que possui umdireito individual. Mas se quiser entrar, pea-me permisso e eu decidirei se o autorizo a en-trar, j que o direito de veto meu direito individual e sua pretenso no mais que um privi-lgio coletivo que pode chocar-se com meus interesses individuais. Puderam, os indgenasnorte-americanos, africanos, andinos... controlar os privilgios dos colonizadores que se esta-beleceram em suas terras? Podem os campesinos controlar os privilgios das grandes empre-sas transnacionais empenhadas em apoderar-se, sem precisar parar em semforos de nenhumtipo, de todos seus conhecimentos ancestrais e prop-los em seu prprio benefcio? Precisam oscapitais financeiros parar em algum semforo? No esto sempre no vermelho os semforos queimpedem a mobilidade de milhes de pessoas em busca de sadas para a pobreza?Emigar imi- grar . Ambos so direitos humanos, na medida que supe a construo de relaes de reconheci-mento, de empoderamento e de mediao poltica. Ao invs de colocar semforos, lutemos paraconstruir situaes de justia, de solidariedade de desenvolvimento, de empoderamento. Quan-do as relaes sociais deixarem de ser imposies de hegemonias unilaterais e partirem parauma situao de equilbrio e de igualdade, a comear a assentar-se as bases que evitaro os

    choques entre as partes. A prtica intercultural define-se menos por impor barreiras e mais porconstruir espaos pblicos de mediao, intercmbio e mestiagem. Ver NAR, Samir.Las heridasabiertas. La dos orillas del Mediterrneo. Un destino conflictivo? Madrid: Santillana (Punto deLectura), 2002. Prlogo a cargo de Joaqun Estefana, p. 9 e seg.

    8 Nesse sentido, vejam-se os trabalhos de AMIN, Samir. Las condiciones globales para undesarrollo sostenible; ALONSO, Jorge. La Democracia, base de la lucha contra la pobreza;DIERCKXSENS, Wim. Hacia una alternativa sobre la ciudadana; e SHIVA, Vandana. El movi-mento Democracia Viva. Alternativas a la bancarrota de la globalizacin., publicados recente-mente em espanhol, In:Alternativas Sur , n. 1, v. 1, 2002, dedicado ao tema A la bsqueda dealternativas. Otro mundo es posible?

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    discursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os sereshumanos no circuito de reproduo e manuteno da vida, permitindo-lhes abrir espaos de luta e de reivindicao. So processos dinmicosque permitem a abertura e a conseguinte consolidao e garantia de espa-os de luta, pela particular manifestao da dignidade humana.9 O nicouniversalismo vlido consiste, pois, no respeito e na criao de condiessociais, econmicas e culturais que permitam e potenciem a luta pela dig-nidade: em outras palavras, consiste na generalizao do valor da liber-

    dade, entendida esta como a propriedade dos que nunca existiramna construo das hegemonias. Desde essa caracterizao, necessrioabandonar toda a abstrao seja universalista, seja localista e assumiro dever que nos impe o valor da liberdade: a construo de uma ordemsocial justa (artigo 28 da Declarao de 1948) que permita e garanta atodas e a todos lutar por suas reivindicaes. As violaes ocorrem tantono caso das mulheres, condenadas a viver enclausuradas e apartadas dosprocessos sociais cotidianos, como no caso dos seres humanos, condena-dos, pelas polticas colonialistas de destruio de seus Pases de origem, abuscar trabalho em um ambiente hostil de um Ocidente-fortaleza. Reivin-

    9 FLORES, Joaqun Herrera. Hacia una visin compleja de los derechos humanos; RUBIO, DavidSnchez. Universalismo de confluencia, derechos humanos y proceso de inversin;HINKELAMMERT, Franz. El proceso de globalizacin y los derechos humanos: la vuelta del sujeto;In: FLORES, Joaqun Herrera (ed.).El Vuelo del Anteo: Derechos Humanos y Crtica da la RaznLiberal. Bilbao: Descle, 2001, p. 19-78, 215-244 e 117-128, respectivamente. HINKELAMMERT,Franz. La negativa a los valores de la emancipacin humana y la recuperacin del bien comn.Pasos , 90, 2000. BETANCOURT, Ral Fornet.La transformacin intercultural de la filosofa . Bilbao,Descle, 2000. FRUTOS, Juan Antonio Senent de.Ellacura y los derechos humanos . Bilbao, Descle,1998, especialmente cap. 2; e Los derechos humanos y la tensin entre universalidade ymulticulturalismo. In:Actas del Congreso Internacional en el ciencuentenario de la DeclaracinUniversal de los derechos humanos. Granada: Asociacin Pro Derechos Humanos, 1999.GALLARDO, Helio.Poltica y transformacin social. Discusin sobre derechos humanos. Quito,Tierra Nueva, 2000. ETXEBERRA, Xabier.Imaginario y derechos humanos desde Paul Ricouer .

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    Da a importncia da integrao musicalelo projeto da Fundao Boremboin-Said

    msica (por ser umanguagem quase universal)ermite tal abertura

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    dicar a interculturalidade no se limita, por outro lado, ao necessrio re-conhecimento do outro. preciso, tambm, transferir poder, empoderaraos excludos dos processos de construo de hegemonia. E, assim, traba-lhar para a criao de mediaes polticas, institucionais e jurdicas quegarantam dito reconhecimento e dita transferncia de poder.

    No somos nada sem direitos. Os direitos no so nada sem ns. Nes-se caminho, no fizemos mais que comear.

    R e f ern cia s b ib l iogr f ica s

    BETANCOURT, Ral Fornet.La transformacin intercultural de la filosofa .Bilbao: Descle, 2000.

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    rece ter sidostamente esta a funomsica em relao aos

    lestinos

    preciso construir os direitos!

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