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Revista Brasileira de Ciências Sociais ISSN: 0102-6909 [email protected] Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil Araújo, Cícero ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, núm. 49, febrero, 2002 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo, Brasil Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10704904 How to cite Complete issue More information about this article Journal's homepage in redalyc.org Scientific Information System Network of Scientific Journals from Latin America, the Caribbean, Spain and Portugal Non-profit academic project, developed under the open access initiative

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Revista Brasileira de Ciências Sociais

ISSN: 0102-6909

[email protected]

Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Ciências Sociais

Brasil

Araújo, Cícero

ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO

Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, núm. 49, febrero, 2002

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

São Paulo, Brasil

Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10704904

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É típico de democratas que vivem em países gover-nados por regimes autoritários uma fervorosaesperança de que um dia seus países atingirão olimiar da poliarquia. É típico de democratas quevivem em países por longo tempo governados pelapoliarquia uma crença de que a poliarquia éinsuficientemente democrática e deveria tornar-semais democrática.

(R. Dahl, 1989, p. 222).

Na onda recente de recuperação da chama-da “tradição republicana”, costuma-se tratar o ter-

mo democracia como se fosse um herdeiro natu-ral de república. Supostamente intercambiáveis ederivados de uma mesma forma de pensar a polí-tica, eles são empregados para fazer um contrastecom a “tradição liberal”. O republican reviva,1

ademais, associa-se a um diagnóstico de crise dasinstituições tradicionais de representação (parti-dos, sindicatos), algo que, aliás, também vinhasendo tematizado por um pensamento liberal re-vigorado a partir da década de 1970. Ambos lan-çam um olhar bastante crítico à intromissão doEstado e das burocracias públicas, no decorrer doséculo XX, em quase todos os aspectos da vidasocial. Porém, enquanto o liberalismo se preocu-pa com seus efeitos negativos na iniciativa priva-da ou individual, seus oponentes republicanosacentuam o entorpecimento do “viver civil” e acrescente indiferença da cidadania para com a respublica. Para esses últimos, resgatar as institui-ções de representação dessa crise implica resgatar

ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO*

Cícero Araújo

* Este artigo é a versão condensada de seções deuma pesquisa mais extensa, ainda em elaboração.Partes do presente texto foram inseridas num ou-tro trabalho de nossa autoria, a ser publicado nacoletânea intitulada Teoria y Filosofía Política. LaRecuperación de los Clássicos en el Debate Lati-noamericano (A. Boron e A. de Vita (orgs.), Bue-nos Aires, Clacso, 2002). Agradecemos a Fapesppelo apoio a esta pesquisa.

RBCS Vol. 17 no 49 junho/2002

ideais de participação que estariam implícitos nopróprio fazer democrático.

Sem questionar outros laços que possamexistir entre república e democracia, nosso obje-tivo neste artigo é registrar um distanciamentoconceitual entre as combinações de ideais nor-mativos que ambos encerram, e assim chamar aatenção para as dificuldades em fazer deles ter-mos intercambiáveis. Salvo algumas exceções(duas das quais serão registradas no final destetrabalho), os autores que procuram resgatar opensamento republicano dão pouca ou nenhumaatenção a essas dificuldades, por assumirem ime-diatamente a continuidade entre o que chamam“democracia” e o que chamam “república”. E issoexige um exame crítico, até para que possamosdimensionar melhor o quanto a temática republi-cana clássica ainda pode nos ajudar a iluminar, equem sabe renovar, o pensamento e a experiên-cia democrática contemporânea.

Para fazer esse exame, vamos sugerir umcontraste entre três diferentes ideais de cidadania.O primeiro, que chamaremos de civismo, é umideal de excelência da participação do cidadão,que vamos tomar aqui como o campo de temasnormativos privilegiado pela tradição republicanaclássica, antiga e moderna;2 o segundo, plebeísmo,é um ideal de universalização da participação; e oterceiro, pluralismo, é um ideal de tolerância paracom diferentes, e às vezes contrários, estilos devida e crenças religiosas e filosóficas dos cida-dãos. Vamos considerar “democracia” um tipo dearranjo institucional que visa a esses três ideais.3

Todavia, como há tensões fundamentais entreplebeísmo e civismo4 – como procurarei mostraraqui –, a democracia é, no plano normativo, arealização de um determinado equilíbrio entreeles, no qual o plebeísmo é o componente dinâ-mico e preponderante, enquanto o outro, embo-ra indispensável, é um ideal subordinado. Paramarcar o que é distintivo na democracia, vamoscompará-la com três outros arranjos – a “Repú-blica”, a “Revolução” e o “Estado” – e sugerirafinidades e incompatibilidades entre esses eaquela, na medida em que possibilitem, ou não,o equilíbrio entre os três ideais.

I

Como estamos falando de ideais de cidada-nia, a entidade que consideramos fundamentalneste trabalho é a civitas. A Civita é uma agênciacoletiva (a comunidade de cidadãos) que reinvidi-ca autoridade sobre um espaço jurídico-moral –que pode ser um território contínuo, mas não ne-cessariamente – no qual estão situados os súditos.Este espaço é a jurisdição, e a autoridade da civi-tas sobre ele implica a obrigação de observar epriorizar suas decisões sobre as de qualquer outraagência concorrente. Como se pode ver, nem to-dos os que pertencem àquele espaço pertencem àcivitas, mas todos os que estão na Civita (os cida-dãos) são ao mesmo tempo súditos. A civitas tam-bém possui governo, que é uma agência que medeiaas relações da civitas com seus próprios súditos ecom as agências externas à sua jurisdição.

Nossa primeira tarefa é analisar como essaentidade e seu espaço de jurisdição transformam-se quando o civismo e o plebeísmo interagem. Oargumento central é que esses ideais podem secombinar para conformar arranjos institucionaisestáveis, porém há uma tensão potencial entreexigir a excelência no exercício da cidadania eexigir a sua virtual universalização. Quando ocor-re uma combinação de alta exigência de civismoe alta de plebeísmo, então a civitas desemboca naRevolução, que será considerado um arranjo volá-til, instável, como vamos explicar daqui a pouco.Já a República e a Democracia são arranjos insti-tucionais estáveis: na primeira, a combinação temcomo elemento predominante ou dinâmico o ci-vismo, e na segunda o elemento dinâmico é o ple-beísmo. Mas quando o plebeísmo predomina, emdetrimento do civismo, a civitas sofre outro tipode transformação. Ela é, digamos assim, sublimadae no lugar dela (e falando em nome dela) deve apa-recer o Estado, que pode ou não se mover na dire-ção de um Estado democrático. Para que haja essatransformação, um ideal de tolerância, o pluralismo,deve aparecer quando o plebeísmo predomina, epode até se tornar mais importante que o civismo.No entanto, quando há Estado democrático, o ple-beísmo é sempre o elemento dinâmico fundamen-tal, ao qual mesmo o pluralismo está subordinado.

40 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 No 49

Para fazer a descrição básica e o cotejo dos ar-ranjos República, Revolução, Estado e Democracia,vamos nos valer da tradição contratualista moderna,assim como da tradição do pensamento revolucio-nário. Os autores que vamos resgatar aqui pensa-ram em instituições para o mundo real, sem dúvida,mas, para tanto, todos eles tiveram de se orientarpor idealizações de arranjos institucionais. São essasidealizações que vão nos interessar no argumentoque segue.

Da tradição contratualista moderna, vamostomar a concepção rousseauniana como uma jus-tificativa do arranjo mais simples da República: oarranjo civitas/governo.5 Para Rousseau, o gover-no não é “nada senão uma comissão, uma funçãona qual, como simples servidores do soberano,exercem em seu nome o poder a eles confiadopelo soberano”, o qual pode “limitar, modificar etomar de volta quando quiser” (Rousseau, 1979, p.79). Quem é o soberano? A comunidade de cida-dãos, que é formada por um “ato de associação”que “produz um corpo coletivo e moral, compostode tantos membros quanto são as vozes na assem-bléia, a qual recebe deste mesmo ato sua unidade,sua identidade comum, sua vida e sua vontade”(Idem, p. 53, grifo do autor). É verdade que Rous-seau, além de denominar essa associação “Cida-de”, “República” ou “Corpo Político”, também achama de “Estado”. Mas “Estado” é uma entidadeperfeitamente idêntica ao conjunto dos cidadãos,a diferença residindo apenas no fato de que esseconjunto se chama “Estado” quando “passivo”, aoobedecer as leis, e “República” quando “ativo”, aofazer as leis. O que significa que todo cidadão é au-tomaticamente um súdito da comunidade política,embora, como veremos, Rousseau esteja preparadopara aceitar que muitos súditos não sejam cidadãos.Não há nada no Contrato Social que sugira a sepa-ração entre a noção de comunidade política e a deEstado. E, portanto, nada que sugira o conceito deEstado tal como o estamos empregando aqui.

A prova cabal disso é a tese da inalienabili-dade da soberania da República. A soberania dacomunidade dos cidadãos consiste numa “vonta-de”, a “vontade geral”, e como tal ela não podeser transferida para nenhuma outra entidade. “OPoder pode perfeitamente ser transferido, masnão a vontade”. Para Rousseau, o soberano é uni-

camente um “ser coletivo” e, portanto, só podeser representado por si mesmo, isto é, através dareunião de seus cidadãos, e não por um ato par-ticular (Idem, p. 59). Como a vontade geral deveser interpretada por atos particulares, estes últi-mos são necessariamente realizados por meio deuma instituição distinta, que é o “governo”, o qualé o produto de uma transferência de poder, nãode vontade. Essa distinção é fundamental paraRousseau. Pois quando a civitas transfere poderpara uma mera “comissão” agir em seu nome, elasimplesmente está instruindo essa agência a fazeralgo que ela não pode fazer coletivamente: o go-verno precisa existir porque o soberano não poderealizar atos particulares (Idem, p. 78). Mas um si-nal definitivo de que está apenas transferindo po-der, e não vontade, é que ela pode “limitar, modifi-car e tomar de volta” este poder no instante quequiser. Se não pudesse fazê-lo, em vez de transferirpoder, estaria “alienando” a soberania.

Este é o argumento formal, puramente lógi-co. A idéia substantiva por trás deste argumento éa clássica rejeição republicana da divisão de traba-lho entre cidadãos única ou principalmente dedi-cados à vida produtiva, ao trabalho e à aquisiçãomaterial, e cidadãos dedicados exclusivamente àatividade política e à defesa da pátria. É isso queo faz rejeitar a idéia moderna de “representação”.Assim, no mesmo capítulo em que afirma que a“soberania não pode ser representada pela mesmarazão que não pode ser alienada”, ele vai dizerque tal alienação vai ocorrer sempre que “o servi-ço público cessa de ser o principal assunto dos ci-dadãos, e eles preferem servir com seus bolsos enão com suas pessoas”:

É necessário marchar para a batalha? Eles pagamtropas e permanecem em casa. É necessárioatender à assembléia? Eles nomeiam deputados epermanecem em casa. Por força da preguiça edo dinheiro, eles finalmente têm soldados paraescravizar o país e representantes para vendê-lo(Rousseau, 1979, pp. 101-102).

O ataque de Rousseau à representação, por-tanto, tem um significado muito mais importantedo que a mera rejeição da eleição de delegadosque falem em nome da civitas. Pois, na medida

ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO 41

em que o conjunto dos cidadãos está sintonizadocom os assuntos políticos comuns, esses delega-dos não passam de uma simples comissão, ouseja, “governo”, o que é perfeitamente admissívelna sua visão de soberania. O problema do moder-no instituto da representação é que ela é o resul-tado, não da necessidade de governo, mas docada vez maior envolvimento dos cidadãos “nocomércio e nas artes, o ávido interesse em lu-cros... o amor aos confortos”, o que leva à substi-tuição “dos serviços em pessoa por dinheiro”. Equando o cidadão deixa de colaborar pessoal-mente na defesa da pátria e paga impostos paraque militares profissionais o façam em seu lugar,ou deixa de “acorrer à assembléia” para que umaclasse de políticos e burocratas administre o bemcomum em seu lugar, o que ele está possibilitan-do é a edificação de uma entidade que pouco apouco se separa da comunidade política e, no fimdas contas, a submete, levando, na prática, ao seudesaparecimento.

Quando Rousseau rejeita a representação,no fundo está rejeitando aquilo que revolucioná-rios como Marx e Lenin chamam de “Estado”, eque é precisamente a noção de Estado que predo-minou no pensamento político moderno, comolembra Skinner.6 A forma institucional da repúbli-ca rousseauniana é, neste plano, idêntica àquelapensada por Marx durante a Comuna de 1871 epor Lenin em abril de 1917.

Porém, Rousseau e Marx têm visões muito di-ferentes a respeito dos participantes e das condi-ções que possibilitam essa forma institucional. Opensamento de Rousseau é um exemplo de abso-luta prioridade do civismo em relação ao plebeís-mo. Em outras palavras, sempre que o plebeísmoparece colocar em risco a qualidade da cidadania,seu pensamento está perfeitamente preparadopara restringi-la no nível que torne possível exigirde cada cidadão o cumprimento de seus deverespolíticos. É por isso que Rousseau vai dizer que omelhor ambiente para materializar seu contratosocial são pequenos territórios habitados por sim-ples fazendeiros, dedicados a uma agriculturaauto-suficiente e minimamente envolvidos com ocomércio, produção de mercadorias e aquisiçãomonetária. Pois territórios grandes e muito popu-

losos, além de dificultar a reunião dos cidadãos,inevitavelmente requerem uma estrutura de fun-cionários permanentes e de impostos para pagá-los, cujo peso crescente recai inteiramente sobreos súditos. E o enredar dos cidadãos no comércio,na indústria, nas finanças e mesmo numa vida ex-clusivamente urbana só tende a afastá-los de seusdeveres políticos, induzindo-os a trocar, como vi-mos, sua “liberdade” (consubstanciada no exercí-cio coletivo dos direitos políticos) por dinheiro.

As referências freqüentes aos hábitos cívicosde Roma e Esparta, as repúblicas exemplares daAntigüidade, e os de sua cidade natal, Genebra, arepública moderna exemplar, mostram quão deci-sivo é para Rousseau a manutenção da severidadedos costumes para que a excelência da cidadaniatambém seja preservada. Por outro lado, mostramtambém que ele está disposto a refletir sobre arealização do contrato social em condições abaixodas ideais. Pois ele sabe que nem Esparta, e mui-to menos Roma, satisfazem suas prescrições con-trárias ao militarismo e à guerra de conquista que,ao levarem à expansão territorial e ao uso de es-cravos, tornam cada vez mais difícil manter o altopadrão da “virtude”. Ele também sabe que boaparte da população de Genebra vive atarefadacom o comércio. Mas ainda assim ele elogia aconstituição dessas repúblicas por saberem, mesmonessas condições adversas, ou “separar o joio dotrigo”, como em Esparta e Genebra, ao reconhecerplenos direitos políticos apenas a uma elite de ci-dadãos e negá-los aos habitantes mais propensos acorromper-se, ou, quando isso não é possível,como em Roma, ao providenciar certas distinçõesde status entre os próprios cidadãos, tornando umdos grupos (os patrícios) exemplo de espírito pú-blico para os demais.7

O essencial, para Rousseau, é que a Repúbli-ca seja governada por um grupo de pessoas queestejam moralmente aptas e altamente desejosasde preservar sua própria liberdade. É este o obje-tivo supremo a ser conservado e que, em condi-ções não-ideais, justifica o sacrifício da extensãoda cidadania. Pois é melhor que aqueles com pro-pensão a se furtarem de seus deveres cívicos, porconta de sua própria condição social – na épocade Rousseau, mulheres, gente totalmente destituí-

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da, ou ainda certos tipos “proletários” e certos tipos“burgueses” –, sejam excluídos da comunidade decidadãos, do que permitir que ela seja corrompidapelo seu ingresso. Acrescente-se a isso a necessida-de de preservar um alto grau de consenso entre oscidadãos – pois quanto mais freqüente é a unani-midade, ou algo próximo a ela, maior é o sinal deque todos estão realmente atentos à consideraçãodo bem comum (Rousseau, 1979, p. 108) –, o queé improvável quando vastos contingentes de to-das as classes da população, geralmente muito he-terogêneas e desiguais, são admitidas na civitas.Conseqüentemente, no arranjo institucional rous-seauniano nada impede que uma minoria de cida-dãos, que ao mesmo tempo faz e obedece as leis,governe uma maioria de súditos, que não faz asleis mas apenas as obedece.8

II

Marx certamente qualificaria as restrições àcidadania acima apontadas como preconceitos declasse, ou como expressões disfarçadas dos inte-resses das classes dirigentes. E sua teoria da revo-lução proletária é a maneira que ele encontroupara contornar as dificuldades de Rousseau emcompatibilizar civismo e plebeísmo. A luta irre-conciliável entre capitalistas e não-capitalistas é acisão essencial das sociedades modernas, aquelaque leva às desigualdades e aos conflitos mais re-levantes e que impedem qualquer consenso realem seu interior. Uma vez eliminada essa cisão, es-tariam eliminadas também aquelas condições so-ciais que, no entender de Rousseau, impediamque largos segmentos da população adquirissemo privilégio de participar das decisões da comuni-dade política.

É verdade que Marx não pensou que todas asdiferenças de classe pudessem ser eliminadas deuma hora para outra. Afinal, não existe apenasuma – os proletários urbanos, os trabalhadores as-salariados – mas várias classes subjugadas peloscapitalistas. Mas, como ele diz no Manifesto Comu-nista, o próprio desenvolvimento do capitalismona direção de oligopólios ou de virtuais monopó-lios nos diversos ramos de produção tornava es-

sas classes aliadas “objetivas” do proletariado, oúnico capaz de oferecer-lhes uma alternativa dig-na, diferente da exploração e da pauperização.Ou seja: em vez de serem engolidas, a contragos-to, pelo grande capitalista, elas deveriam, volunta-riamente, aderir a um arranjo que pouco a poucotransformaria seus membros em novos contingen-tes de trabalhadores (Marx e Engels, 1986, pp.491-492 e 494; Engels, s/d ). Eis porque, sob essascondições, todos os grupos subalternos da popu-lação, isto é, a imensa maioria, poderiam agora serreconhecidos como cidadãos com plenos direitospolíticos. Esse reconhecimento, aliás, deveria serbuscado antes mesmo da revolução proletáriapois, como ele e seu amigo Engels sugeriram di-versas vezes, dada a convergência “objetiva” de in-teresses, a extensão do sufrágio a todas as classesseria um passo importante, senão decisivo, para aconquista do socialismo (Marx e Engels, 1986, p.504; Engels, s/d, pp. 26-30).

Contudo, os autores do Manifesto Comunis-ta não oferecem argumentos específicos para con-vencer um rousseauniano de que tal universaliza-ção dos direitos políticos satisfaz igualmente asuas demandas de alto engajamento político. Ain-da que fosse verdadeiro que, sem os capitalistas esem a economia capitalista, a comunidade políticaestaria fadada a um consenso, graças à convergên-cia de interesses materiais, isso ainda estaria longedos requisitos de simplicidade, austeridade e lazeressenciais para uma cidadania ativa. Rousseau nãoestá nem um pouco interessado no desenvolvi-mento das forças produtivas, no progresso mate-rial e tecnológico e coisas do tipo, pois a seu veresses fenômenos levam as pessoas a enredar-secada vez mais profundamente no círculo infernalda vida econômica, seja ela na forma da acumula-ção de riqueza ou na do consumo. Quanto maishomo oeconomicus eles são, menos homo politi-cus podem ser.

O problema crucial é que Marx considera,ao contrário, ser indispensável uma alta partici-pação política dos trabalhadores e, ao mesmotempo, o contínuo, cada vez mais acelerado, de-senvolvimento das forças produtivas, o que nãopode ser feito sem uma intensificação da divisãode trabalho (Marx, vol. 6, p. 504). E ele não dei-

ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO 43

xa claro como esses dois movimentos simultâ-neos poderiam ocorrer.

Essa tensão entre a participação política e adivisão do trabalho explica em parte por que a ci-vitas revolucionária tende a ser uma agência instá-vel. O problema crucial, contudo, é que, no iníciodo processo revolucionário, a participação na co-munidade política é acompanhada pela exigênciade alto engajamento político, tal como Rousseau aprescreveu – isto é, um alto grau de civismo. Mastambém é acompanhada pela exigência de amplaexpansão de seus membros, vale dizer, um altograu de plebeísmo. O primeiro requer um eleva-díssimo nível de consenso da civitas e de uma for-te convergência para com um mesmo objeto deinteresses e atividades, enquanto o segundo levaa uma profunda diferenciação interna da comuni-dade e uma enorme divergência de objetos de in-teresses e atividades. E não se pode esperar umequilíbrio duradouro dessas duas tendências con-trárias enquanto suas intensidades permaneceremtão elevadas, como na situação revolucionária.Conseqüentemente, tal como o estado de nature-za hobbesiano acaba pressionando os indivíduosa aceitarem o Leviatã, a mistura explosiva de altocivismo e alto plebeísmo induz a revolução a rom-per gradualmente com o arranjo civitas/governo ea aceitar gradualmente a entidade estatal como re-presentante, absoluta e irrevogável, do conjuntodos cidadãos.

A ascensão de uma entidade estatal, porém,não implica necessariamente que cada cidadão re-nuncie a qualquer engajamento político ou a qual-quer direito de participação nas decisões políticas.Antes, ela pode significar um esforço dos própriosrevolucionários para encontrar um patamar me-nos intenso de interação entre civismo e plebeís-mo. E essa busca pode até resultar num arranjoque preserve os direitos políticos para pratica-mente todas as pessoas adultas e aceite não só ní-veis diferenciados de interesse dos cidadãos pelaatividade política como a sua especialização. To-marei tal arranjo como uma definição parcial deEstado democrático.

Contudo, é um tanto difícil que essa formade Estado surja imediatamente de um processo re-volucionário, embora isso possa ocorrer mais tar-

de. O nascimento de uma civitas revolucionáriaabre um período de conflitos muito intensos, nãosó de interesses materiais, mas de valores morais,religiosos e filosóficos. Tais conflitos, mediadospor canais institucionais em constante fluxo, alte-ram radical e continuamente a vida regular das pes-soas, o que gera enorme insegurança. O resultadoé que, ao final do processo, a maioria dos cidadãosnão só esgota quase por completo seu interesse porparticipar ativa e diretamente, como também estádisposta a abrir mão de todos os seus direitos departicipar, em troca de estabilidade. Hobbesiana-mente falando: o medo que inspira o aparatopolítico que nasce dessa desistência, e que vaicertamente monopolizar os meios de violência,e cujo uso pode ser inteiramente arbitrário, aca-ba sendo muito menor do que o medo que oscidadãos inspiram uns aos outros.

A dissolução da civitas revolucionária e aemergência de um novo Estado não significa queeste último tenha de rejeitar as aspirações moraise políticas daquela. Isto pode acontecer apenasse ela for suprimida pelos inimigos declarados darevolução. Do contrário, é decisivo para a legiti-midade do novo Estado que ele se aproprie da-quelas aspirações. Pois a legitimidade do Estadoconsiste precisamente em ser capaz de se colo-car no lugar da civitas e falar em nome dela, istoé, representá-la concretamente e idealmente.

Tal como a consolidação de um aparato esta-tal passa pela especialização e profissionalizaçãoda atividade política, a apropriação das aspiraçõesmorais e políticas da revolução requer uma forma-lização e depuração delas. Enquanto a civitas per-siste, as aspirações revolucionárias circulam entreos cidadãos através de diferentes formulações filo-sóficas, muitas delas contraditórias entre si. Mesmoquando a civitas toma decisões que impliquem pri-vilegiar momentaneamente uma formulação emdetrimento de outras, isso ainda não significa o queestou chamando uma “apropriação”, pois a vonta-de coletiva continua flutuante e descomprometidade uma formulação definitiva. É certo que os inte-lectuais revolucionários, que constituirão o núcleodo futuro aparato estatal, estão vivendo nessa faseuma feroz batalha ideológica – provavelmente or-ganizados em diferentes “facções”, “clubes” ou

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“partidos” – para definir qual o modo mais “corre-to” de formular e interpretar as aspirações da civi-tas. A ascensão da entidade estatal é concomitanteà transformação dos fluidos ideais revolucionáriosnuma versão oficial, numa doutrina que passa aorientar e sacramentar as deliberações dos que de-têm o direito de tomar ou participar das decisõesdaquela entidade.

A doutrina oficial pode explicitamente rei-vindicar uma visão filosófica abrangente, e assiminserir a luta revolucionária numa missão históricauniversal; quanto pode ser uma profissão de fénum conjunto mais ou menos rigoroso e coeren-te, mas paroquial, de princípios morais e jurídicos,que aponta e justifica a particularidade daqueleEstado em relação à “comunidade dos Estados”.Em ambos os casos, assim como a formulaçãoda doutrina oficial é tarefa de intelectuais, tam-bém o será a de perpetuá-la e continuamentereinterpretá-la à luz das contingências do futuro.Esse trabalho de conservação da autoridade dadoutrina oficial, que aos poucos vai gerandocomplexos procedimentos de exegese e interpre-tação, acaba se transformando numa atividadeespecializada no interior das instituições estatais9

– na forma, por exemplo, de um corpo de juízesencarregados de salvaguardar as “conquistas darevolução”, as quais aparecem agora como leissupremas do Estado.

Em seu conjunto, essas leis supremas forne-cem à entidade estatal uma ordem jurídica, em fun-ção da qual as decisões e as regras emanadas dasinstituições estatais deixam de aparecer como mani-festações de uma vontade caprichosa,10 mas comoemanações de um plano consistente e impessoal. Eassim um emergente “Supremo Tribunal da Revolu-ção” tende a reivindicar para si a autoridade paravetar decisões de outras instâncias estatais, se essasforem vistas como decisões que colocam em riscoalgum importante princípio revolucionário.

III

Em que sentido podemos falar de Estado de-mocrático, então? Vamos destacar dois elementosque, apesar de não estabelecerem uma definiçãocompleta, fazem parte de seus atributos essenciais:

1) O Estado democrático, como qualquer outroEstado, supõe a clara separação no interior dacidadania entre os que se dedicam exclusivaou principalmente às atividades políticas – istoé, aquelas atividades cujo propósito último éestabelecer regras e tomar decisões que sãocompulsórias para o conjunto da populaçãosob a autoridade daquele Estado – e os que sededicam a qualquer outra atividade. Os primei-ros são os funcionários públicos e os ativistasprofissionais, e os segundos são os súditos.

2) No Estado democrático, as regras e as decisõesestabelecidas pelos funcionários públicos sãoinfluenciadas, por meios legalmente reconhe-cidos (de modo explícito ou pelo silêncio dalei), por aproximadamente toda a populaçãoadulta dos súditos. Esses meios são os direitospolíticos e os detentores da plenitude dessesdireitos11 – ou seja, os que os possuem em re-conhecida igualdade com os demais – cha-mam-se cidadãos.

A primeira característica distingue o Estado de-mocrático do arranjo simples civitas/governo, a Re-pública. A segunda característica não só distingue oEstado democrático da República, mas também deoutras formas de Estado. Pois no Estado democráti-co os direitos políticos são reconhecidos para a par-te mais extensa possível da população de súditos,com base num princípio normativo que é a melhoraproximação do ideal plebeísta compatível com apresença da entidade estatal. Esse ideal pode serformulado da seguinte maneira: todos aqueles queestão sob a autoridade de uma agência que lhesdita decisões compulsórias têm o direito de partici-par dessas decisões. Num Estado democrático, essaparticipação se dá por meio de direitos políticos,isto é, dos meios de influência legalmente reconhe-cidos, os quais são estendidos igualmente aos súdi-tos independentemente, a não ser num grau míni-mo (como o limite inferior de idade e a exigênciade nacionalidade), da qualidade moral ou da dis-posição cívica com que venham a exercê-los.

Essa desvinculação do direito de cidadaniada excelência moral do seu exercício é o aspectocentral da distinção entre o Estado democrático e

ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO 45

a República. Pois, embora o Estado democráticopreserve algumas exigências mínimas de qualifi-cação – e é por isso que crianças, estrangeiros ementalmente incapacitados são excluídos da par-ticipação –, tais exigências estão bem abaixo doengajamento cívico esperado e necessário para asustentação da República. Por outro lado, a virtualuniversalização da cidadania também o separa deEstados onde a cidadania é o privilégio de umapequena parcela da população, ou restrita apenasaos funcionários que tomam as decisões.

Vamos chamar a ação coletiva que agrega to-dos os cidadãos do Estado democrático de comu-nidade política secundária ou atual (o demos),para diferenciá-la da civitas, que é a comunidadepolítica primária ou originária, ou seja, aquelaque deve deixar de existir para que o Estado, in-clusive o Estado democrático, possa emergir. A ci-vitas, como vimos, envolve uma idealização da ci-dadania que não é compatível com a especializa-ção e a profissionalização da política, enquanto odemos, ao reconhecer a autoridade de represen-tantes e funcionários, o é. Em termos de regras epráticas institucionais, isso é perfeitamente com-patível com os critérios da poliarquia de Dahl(Dahl, 1989, cap. 15).

Para a inteligibilidade da noção de Estado écrucial não só a distinção entre essa entidade e acivitas, mas também a idéia da transferência irre-vogável da autoridade da última para o primeiro.Se a civitas continua a deter a última palavra nasdecisões, independente de como as instituiçõesestatais definam isso, então ela é soberana. Dizer,neste caso, que o Estado continua soberano é di-zer que a civitas e o Estado são entidades idênti-cas, que é o que estamos procurando rejeitar aqui.Quando se afirma que a civitas jamais deixa deexistir, mas apenas delega atribuições a uma enti-dade meramente administrativa, o que temos pro-priamente é uma civitas cum governo, e não a ar-ticulação de um “Estado”. Isso significa que é aprópria civitas que define quando e como recupe-rar a concessão feita ao governo. Mais do queisso: a recuperação é um ato de pura vontade,que não precisa submeter-se a uma regra previa-mente estipulada, pois esta pode ser alteradaquando e como achar conveniente, desde que es-teja reunida para tal.

Mesmo num Estado democrático, contudo, odemos não possui toda essa autonomia. Ainda quetenha poderes de eleger os agentes de governo, selegislativos ou executivos, e até de alterar leis pormeio de plebiscitos e referendos, é certo que essasatribuições são rigorosamente delimitadas por umaordem jurídica previamente estabelecida, o núcleoda qual – envolvendo o que poderíamos chamarde “questões constitucionais essenciais” – não podeser alterado nem mesmo pelo demos, sem que ospilares daquele Estado desmoronem juntos. Essaordem estipula, por exemplo, em que condiçõesespecíficas o demos pode “reunir-se”, que tipo deregra majoritária (se maioria simples, absoluta etc.)vale como uma “decisão” do demos e – mais im-portante ainda – a que instâncias um cidadão poderecorrer quando há uma disputa para saber se oprocedimento que o demos utilizou para chegar auma decisão foi corretamente observado, problemaque geralmente escapa à alçada do próprio demos,e requer uma agência especializada, capaz de lidarcom um conhecimento mais ou menos esotéricodas leis fundamentais do Estado. Enfim, a existên-cia de uma ordem jurídica prévia, que está acimada vontade do demos, é o que dá ao Estado demo-crático o seu caráter de Estado.12

Como essa ordem jurídica não pode ter sur-gido ex nihilo, estamos assumindo que tenha sidoo legado de um indivíduo ou uma agência coleti-va. Quando se trata de uma agência coletiva, queé a hipótese adotada neste artigo, e o seu legadoé uma ordem democrática, então precisamos fa-zer a distinção, acima referida, entre essa agência,que é a comunidade política originária (a civitas),e o demos com poderes legalmente reconhecidosde influenciar as decisões de governo. A existên-cia de um demos que pode trocar o governo pormeio de eleições, mas que se submete a uma or-dem jurídica que reconhece estar acima de suaprópria “vontade”, torna plenamente visível a di-ferença entre o governo do Estado e o Estadopropriamente dito. Um governo pode perder aconfiança dos cidadãos que o elegeram, sem quenecessariamente o Estado perca sua legitimidade.Num Estado democrático, a mudança de gover-nos pode ocorrer com bastante freqüência, semque esse fato caracterize o que venho tratando

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neste trabalho como uma situação revolucionária.Contudo, quando a comunidade política passa areclamar para si o poder, digamos assim, de “ze-rar” a ordem jurídica, de modificá-la como umtodo, então, por esse gesto mesmo, ela está desa-fiando a autoridade, não do governo, mas do Es-tado. E, ao fazê-lo, deixa de ser um demos comespecíficas atribuições constitucionais, e que de-pende do suporte e da sanção de instituições es-tatais para existir, e assume a condição de umanova civitas.

Para uma definição normativa completa doEstado democrático, mais dois elementos aindasão necessários: trata-se de um Estado que encar-na uma certa visão do bem comum, e a prática re-conhecida dessa visão, e um ideal de pluralismo.A primeira é uma sobrevivência do civismo. Sóque, em vez de existir através da concentraçãoprática dos cidadãos num mesmo campo de inte-resses, cuja prova é a participação na civitas, obem comum é agora sublimado na ordem jurídicado Estado. Por certo, o Estado democrático não éa expressão de qualquer ordem jurídica, mas ape-nas daquela que é compatível com o reconheci-mento de iguais direitos políticos a virtualmentetoda a população adulta do território sob sua ju-risdição. Muitas ordens jurídicas específicas são,porém, compatíveis com essa exigência geral. Porfim, o bem comum também deve estar expressonas variadas justificativas filosófico-morais queessa prática recebe dos cidadãos e dos servidoresdo Estado, por meio de seus discursos públicos.13

Um Estado democrático supõe uma comuni-dade de cidadãos a mais extensa e heterogêneapossível. A heterogeneidade existe não só pelapossibilidade de vários tipos de desigualdades,consideradas compatíveis com o reconhecimentode iguais direitos políticos, mas também da dis-persão da cidadania em diferentes objetos de in-teresse, além de distintas, e não raro contraditó-rias, concepções filosóficas, morais e religiosas, edivergentes estilos de vida. Em especial, a própriaexistência de um Estado implica o reconhecimen-to de uma região separada do espaço social, naqual um grupo destacado de cidadãos dedica maissua atenção e esforço às atividades políticas doque os demais. Implica, portanto, que o restanteda cidadania dedique uma proporção maior de

suas energias a outras regiões do espaço socialque não aquelas em que as atividades propria-mente políticas estão concentradas. O conjuntodessas outras regiões é a sociedade civil. Estado esociedade civil são, portanto, noções correlatas efenômenos sociais complementares: a existência dasegunda requer e remete à existência do primeiro.

IV

Algumas reflexões recentes (e outras nemtanto) sobre o problema de “aprofundar” as demo-cracias têm manifestado um renovado ceticismonão só para com a via da Revolução, mas tambémpara com a via do Estado. Por isso, elas acabam re-tornando à idéia da iniciativa direta e espontâneados cidadãos, como uma espécie de terceira via.Certos defensores dela, plenamente cônscios dadistância, teórica e prática, entre a República e aDemocracia, procuram todavia apropriar-se de al-guns anseios do republican revival contemporâneoatravés, por exemplo, da discussão sobre “socieda-de civil”. Mas ao trazer reminiscências, mesmoquando vagas, do ideal revolucionário e de seuspercalços, ela vai exigir um trabalho de redefiniçãode conceitos. Gostaríamos de examinar esse esfor-ço e submetê-lo à crítica, tomando as contribuiçõesde dois autores.

Ambos pensam em modelos normativos paraaprofundar a democracia em que, em vez de a Re-pública e a Revolução excluirem a via do Estado,como tem sido o enfoque do presente trabalho, asduas vias se combinam e se complementam. Nãose trata de Estado ou Revolução, Estado ou Repú-blica, mas Estado e Revolução, Estado e Repúbli-ca. Evidentemente, pelo menos dois reparos àstradições revolucionária e republicana têm de serfeitos para que isso seja teoricamente possível.Primeiro, há de se fazer uma assimilação seletivae crítica da Revolução: há revoluções desejáveis eindesejáveis. Segundo, há de se pensar uma civi-tas (que recebe outros nomes nos autores que va-mos analisar) que coexista com o Estado, em vezde repudiá-lo.

Na primeira posição, o Estado e a civitaspreenchem funções constitucionais distintas, cadaqual cumprindo tarefas que a outra não pode, iso-

ladamente, resolver. Um fascinante exemplo delaé a recente e intensa incursão de J. Habermas nocampo da teoria democrática (Habermas, 1996).Reconhecendo seus débitos para com o pensa-mento político de H. Arendt, Habermas procuraassimilar as reflexões da última sobre a Revoluçãoem seus conceitos de “poder comunicativo” e “es-fera pública política”. Por outro lado, o Estado écompreendido pelas lentes da teoria sociológicacontemporânea, especialmente a teoria funciona-lista (Parsons) e a dos sistemas (Luhmann), e tra-duzido pelos termos “sistema político” e “poderadministrativo”. A política opera, então, em doisníveis que o próprio autor reconhece ser muitodivergentes, mas que, de alguma forma, podem eprecisam interagir positivamente. O elo perdido,e reencontrado, é fornecido pelos conceitos de“lei” e “direito”.

Mas não é necessário expor aqui como Ha-bermas reúne todas essas peças. Queremos apenasmostrar como a civitas e a Revolução insinuam-sena teoria, ainda que de forma bem represada, pormeio do poder comunicativo e da esfera pública.Como em seu modelo normativo o Estado é dese-jável, é inevitável que o autor tenha de lidar comuma noção de “sociedade civil” que o complemen-te. Sociedade civil e Estado, porém, não corres-pondem a uma divisão do espaço social entre opúblico e o privado ou, melhor ainda, entre o po-lítico e o privado. Pois tanto o político quanto oprivado podem ter regiões “colonizadas” por “sis-temas” – que constituem funções, códigos e apara-tos especializados: Estado, empresas capitalistas,mídia impressa e eletrônica – e outras regiões nãocolonizadas, que são manifestações do “mundo davida”, largadas à espontaneidade e à independên-cia dos atores sociais. A região do político e doprivado não colonizadas corresponde à sociedadecivil: “A sociedade civil é composta daquelasemergentes associações, organizações e movi-mentos mais ou menos espontâneos que, sintoni-zadas com os problemas societais que ressoamnas esferas da vida privada, destilam e transmitemtais reações de forma amplificada à esfera públi-ca” (Habermas, 1996, p. 367). A esfera pública,por sua vez, é “uma estrutura de comunicaçãoenraizada no mundo da vida através da rede as-sociativa da sociedade civil”. Em especial, a “es-

fera política pública” é uma espécie de “caixa deressonância para problemas que devem ser pro-cessados pelo sistema político”, “um sistema dealerta com sensores que, embora não especializa-dos, são sensíveis ao longo de toda a sociedade”(Idem, p. 359). O aspecto espontâneo e a estrutu-ra de comunicação da esfera pública lhe possibi-litam gerar um tipo de poder político, o “podercomunicativo”, aliás o poder político por excelên-cia, já que é a fonte de todos os outros poderespolíticos, inclusive o “poder administrativo” do Es-tado. É neste ponto que o autor tem como fonteo ideal de revolução de Arendt. O poder comuni-cativo é concebido como um poder político

[...] com força de autorização expressa na jurisge-nesis – a criação de lei legítima – e na fundaçãode instituições [...]. Ele emerge na forma maispura naqueles momentos em que revolucionárioscapturam o poder espalhado nas ruas; quandouma população comprometida com a resistênciapassiva opõe tanques estrangeiros com suas pró-prias mãos; [...] quando a pura “alegria da ação”irrompe em movimentos de protesto (Habermas,1996, p. 148, grifo do autor).

Habermas, porém, sabe que o poder políticopensado por Arendt não pode nem deve encon-trar uma forma de acoplamento com as estruturaspróprias do Estado. Em Arendt, o Estado é o re-sultado do vazio de “autoridade” da política mo-derna – vazio que não pode ser preenchido senãopor essa forma de pura violência organizada – e,portanto, a antítese de sua concepção de “poderpolítico” (Arendt, 1990, pp. 91 e 159-165): embo-ra uma entidade de realidade histórica inegável,ela a rejeita inteiramente do ponto de vista filosó-fico-moral. Habermas, ao contrário, pensa que associedades modernas são muito complexas paradispensarem um sistema político especializadocuja base é o aparato administrativo do Estado:trata-se de uma entidade tão real quanto positiva-mente necessária. Assim, “a política não podecoincidir, como um todo, com a prática daquelesque conversam um com outro a fim de agir de ummodo politicamente autônomo”. O exercício dopoder político “implica a formação discursiva deuma vontade comum”, mas “não a implementaçãodas leis dali emanadas”. Em seu sentido pleno, o

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conceito do político “também inclui o uso de po-der administrativo dentro do sistema político, assimcomo a competição pelo acesso àquele sistema”(Idem, p. 150, grifo do autor). De algum modo, opoder comunicativo tem de ser convertido em po-der administrativo, e de tal forma que cada qualacabe respeitando suas dinâmicas específicas.

Na medida em que envolve uma “vontadecomum” espontânea e autonôma capaz de gerarpoder político, a esfera pública política haberma-siana aproxima-se do que chamamos aqui de ci-vitas. Mas, como os argumentos ao longo destetrabalho procuraram mostrar, a tentativa de re-conciliação dessa última com o Estado deve co-locar sua teoria num equilíbrio conceitual muitoprecário: não vemos como cidadãos colocadosnum lado do espaço social podem ser capazesde assumir uma posição de autoridade políticafundacional e, ao mesmo tempo, admitir do ou-tro lado que funcionários estabeleçam “decisõesvinculantes”. Como uma questão de fato, o Esta-do e a civitas podem muito bem ter existido eexistir simultaneamente por algum tempo; o cha-mado “poder dual”, típico das situações revolu-cionárias, atesta-o de modo inequívoco; o que éconceitualmente problemático é sua coexistênciado ponto de vista normativo: a primeira entida-de sempre quer, e precisa, se afirmar às expen-sas da outra, e vice-versa. Por outro lado, “Esta-do” e “sociedade civil” são compatíveis e podemcoexistir estavelmente na exata medida em que asegunda é isto: sociedade civil, e não civitas. Éclaro que podem surgir de seu interior associa-ções políticas voluntárias e não profissionais,“movimentos sociais” e “de protesto”. Pode havertudo isso sem que haja a reivindicação da juris-genesis, ou sem que se pretenda deslocar a auto-ridade soberana do Estado.

De qualquer forma, a relação ambígua deArendt no que diz respeito à experiência revolu-cionária – seu famoso On revolution sugere umadistinção normativa entre revoluções desejáveis, asrevoluções dos “conselhos”, feitas por uma elite deautênticos “cidadãos”, e revoluções indesejáveis,fadadas à violência e ao terror, feitas pelas “mas-sas” (cf. Arendt, 1990, pp. 255-281) – inspira Ha-bermas a conceber as manifestações espontâneasda esfera pública como espécies de revoluções

bem comportadas, capazes de se autolimitarem epermitir espaço suficiente para que o sistema polí-tico cumpra o seu papel. De modo que, se por umlado o “poder administrativo não deve se reprodu-zir em seus próprios termos”, cabendo “regenerar-se a partir do poder comunicativo”, por outro, essaconversão deve ser suave o bastante para evitarque a esfera pública “arrebente o código de poderao interferir no mecanismo autodirigido do sistemaadministrativo”. Para tanto, “movimentos democrá-ticos que emergem da sociedade civil devem abrirmão de aspirações holísticas por uma sociedadeauto-organizada” e deixar-se embeber por uma“cultura política liberal e os padrões de socializaçãocorrespondentes”. A sociedade civil, enfim, sópode “transformar diretamente a si mesma, e nomáximo pode ter um efeito indireto na autotrans-formação do sistema político [...] de modo algumela ocupa a posição de um macrosujeito que supos-tamente coloca a sociedade como um todo sobcontrole e simultaneamente age por ela” (Haber-mas, 1996, pp. 150 e 372, grifo do autor).

Mas ainda que a esfera pública política ve-nha a encontrar um modus vivendi com o siste-ma político, a primeira tem de arranjar um modode injetar sua agenda no segundo. Não se podeesperar, como o próprio Habermas admite, queo sistema político venha a fazê-lo de modo coo-perativo e por sua própria iniciativa. A iniciativa,direta e espontânea, necessariamente tem departir da sociedade civil politizada. É por isso,supomos, que Habermas acabe tendo de falarem “lutas”, “ações sensacionais”, “protestos demassa” e “movimentos de desobediência civil”, oque caracteriza algo como uma latente quebra debraço entre os dois lados. O autor admite, con-tudo, como “empiricamente” implausível, que asociedade civil – por sua “menor complexidadeorganizacional” e “mais frágil capacidade deação” – seja capaz de continuamente reunirenergias suficientes para alterar a rotina do po-der administrativo. Essa constatação leva o autor adistinguir situações “normais”, em que o sistemapolítico tende a fazer prevalecer seu próprio ciclo“autoprogramado”, e situações “críticas”, excepcio-nais, em que os atores da esfera pública encontramuma chance de “reverter os circuitos normais decomunicação” entre um e outra e então assumir

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“um papel surpreendentemente ativo e momento-so” (Habermas, 1996, pp. 380-384).

Até onde precisamente esse papel ativo emomentoso pode ir, compatível com as tarefas deproduzir “decisões vinculantes” atribuídas ao sis-tema político, isto é, compatíveis com a manuten-ção da autoridade do Estado de reclamar para sia sanção de tais decisões, Habermas não deixanem um pouco claro. Porém, é interessante e sig-nificativo que ele acabe tendo de reconhecer quesua esfera pública política normalmente está desa-tivada e apenas ocasionalmente, em situaçõesbastante excepcionais, irrompa a cena política deforma vigorosa e irreverente, ainda que advertidapara cumprir o script habermasiano de permane-cer comedida.

Este desdobramento da visão habermasianaleva-nos para a segunda contribuição que men-cionamos acima. Em vez de pensar em funçõesconstitucionais distintas e complementares entreEstado e civitas, esta posição admite explicita-mente um choque de funções entre ambos, nãosó como uma questão “empírica” (como é o casode Habermas), mas como uma questão eminente-mente conceitual. Neste caso, a coexistência entreas duas identidades, assim como o aprofunda-mento da democracia, só é plausível se a civitasnascer e renascer de tempos em tempos, provocaruma explosiva crise política e colocar sua pauta“revolucionária” a um Estado suficientemente po-roso para aceitar uma reforma espetacular de seusprincípios constitucionais. Essa posição pode serilustrada pela interpretação que B. Ackerman ofe-rece para a história constitucional americana.

Ackerman pensa o Estado americano comouma “democracia dualista”, na qual é possível dis-tinguir dois tipos radicalmente distintos de deci-sões: uma feita “pelo Povo americano” e outra“por seu governo”. Por um lado,

[...] decisões pelo Povo ocorrem raramente, e sobcondições constitucionais especiais. Antes de ga-nhar a autoridade para fazer a lei suprema emnome do Povo, militantes políticos de um movi-mento devem, primeiro, convencer um extraordi-nário número de seus concidadãos para tomar suapretendida iniciativa com uma seriedade que elesnormalmente não dão à política; segundo, devempermitir a seus oponentes uma razoável oportuni-

dade para organizar suas próprias forças; terceiro,devem convencer uma maioria de seus compatrio-tas a apoiar sua iniciativa enquanto seus méritossão discutidos (Ackerman, 1991, pp. 5-6).

Por outro lado, “decisões feitas pelo governoocorrem diariamente, e também sob condições es-peciais. Acima de tudo, funcionários em posiçõescentrais devem ser regularmente responsabiliza-dos perante as urnas”. Mas mesmo

[...] quando este sistema de “legislação normal”está operando bem, a Constituição dualista impe-de políticos eleitos de exagerar sua autoridade.Eles não podem reivindicar que uma vitória elei-toral lhes dê um mandato para criar um estatutoordinário que coloque de lado os refletidos julga-mentos a que o Povo chegou previamente”(Idem, ibidem).

Ackerman vê três grandes momentos da his-tória americana em que “O Povo” abandonou alegislação normal e decidiu-se por escalar a íngre-me colina da higher law-making. Primeiro, nosanos de 1780, quando os Founders quebraram adinâmica centrada nos Estados do CongressoContinental, mas deixaram irresoluto o problemada prioridade entre Estados e União; segundo,nos anos de 1860, quando os Reconstructers resol-veram esse problema, deixando claro que a cida-dania primária é nacional, não estadual, mas man-tendo a inviolabilidade das questões econômicase sociais; terceiro, nos anos de 1930, quando oNew Deal estendeu os poderes da Constituiçãopara este terreno (Idem, p. 105). Embora, no casodos Estados Unidos, o texto constitucional nãotenha sido explicitamente repudiado, mas ape-nas emendado, cada novo momento representoude fato uma “ruptura” com assunções prévias arespeito da interpretação do texto. Na visão deAckerman, porém, a ruptura nunca foi um retor-no à estaca zero, mas um verdadeiro salto àfrente. Daí seu otimismo com relação a futuras rup-turas, cujo desafio é continuar aprofundando asconquistas passadas: “o desafio é construir uma or-dem constitucional que é mais justa e livre do quea que herdamos” (Idem, p. 5).

O autor usa o termo “revolução” para carac-terizar essas rupturas. Todo período revolucioná-

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rio é seguido por um período de normalização, noqual as “conquistas” obtidas na ruptura são conso-lidadas na forma de emendas constitucionais oude uma leitura inteiramente diferente do texto an-cestral. O processo legislativo pelos representantesdo Povo, certamente, não é interrompido, mas ésubmetido a uma vigilância pela “lei mais alta”emergida da intervenção direta do Povo. Daí queleis promulgadas pelos representantes do Povo po-dem ser repelidas por leis derivadas de um envol-vimento supostamente mais profundo do próprioPovo. Quem fará essa vigilância? Na democraciadualista de Ackerman, um corpo especial do Esta-do pode muito bem se encarregar desta tarefa: “Emvez de ameaçar a democracia ao frustrar as deman-das estatutárias da elite política em Washington, ostribunais servem a democracia ao proteger os prin-cípios duramente conquistados por uma cidadaniamobilizada contra sua erosão por elites políticas”(Idem, p. 10).

Como também carrega um sentido cognitivo,a la Kuhn, já que cada período revolucionáriomarca uma virada no modo de entender a Consti-tuição, ela não precisa implicar o sentido políticode Revolução. Porém, a intenção do autor é preci-samente enfatizar o sentido político. E ele o fazresgatando, como Habermas, as reflexões deArendt a respeito: há de se “recuperar o significa-do político de revolução: o modo com que ho-mens e mulheres podem revigorar sua identidadede cidadãos ao convocarem uns aos outros a mar-car um ‘novo começo’ em sua vida política juntos”.E, como Arendt, há de se recuperar esse significa-do sem sucumbir à tentação de “usar a experiên-cia revolucionária [francesa] de 1789-1815 comoum modelo contra o qual medir a experiênciaamericana de 1776-1789”. Se o fizermos “perdere-mos de vista que a Constituição americana foi en-tendida por seus participantes como o cume, aoinvés de negação, de sua experiência políticacomo revolucionários” (Idem, p. 210). Porém, con-tra Arendt, ele não vê por que um autêntico movi-mento revolucionário deveria deixar de lado a“questão social”. De Thomas Jefferson ao movi-mento dos direitos civis liderado por Luther King,“uma preocupação com a ‘questão social’ serviucomo o principal motor para engajar a participa-ção pública do povo americano” (Idem, p. 209).

Apesar desse reparo, Ackerman não deixa defazer sua própria demarcação entre revoluções de-sejáveis e indesejáveis. As primeiras são aquelasque, embora carregando um programa de reformaseconômicas e sociais profundas, não visam a uma“revolução total nas relações econômicas e sociais”.De modo que, embora as viradas constitucionaistenham significado alterações drásticas nas relaçõesde poder, a ordem estatal não sucumbiu junto:

Especialmente durante a Reconstrução e o NewDeal, as tensões tornaram-se tão grandes que fiospreexistentes da tradição constitucional visivelmen-te começaram a desentranhar-se. Nesses momentosde crise constitucional, as regras de base mesmastornaram-se objetos [...] de reforma revolucionária.Os contendores vislumbraram o precipício [...]. Masem vez de mergulhar no caminho da revolução to-tal, a resposta em ambos os momentos foi a refor-ma revolucionária (Idem, p. 211).

Como em Habermas, para que o Estado e acivitas possam coexistir, a Revolução tem de saberse autolimitar, e os revolucionários comportarem-seapropriadamente. Diferentemente de Habermas,porém, Ackerman não sente nenhum desconfortocom o caráter ciclotímico da cidadania moderna,que entra, e só pode entrar, diretamente na cenapolítica apenas em momentos bem espaçados.

Embora consideremos sua “visão dualista” dademocracia essencialmente correta – seu The Peo-ple corresponde aproximadamente ao que esta-mos chamando aqui de civitas – fazemos duasrestrições à teoria de Ackerman:

1) Muitos historiadores e cientistas políticos hão deresistir à idealização da história constitucionalamericana oferecida pelo autor. Alguns vão con-siderar o processo que culminou na Constitui-ção Federal de 1787, mesmo se tratando de uma“ruptura”, mais como uma espécie de “reaçãotermidoriana” do que uma “revolução”.14 Outrosvão certamente considerar que o processo ini-ciado com a guerra civil de 1861-1865 represen-tou na prática uma “revolução total” no Sul, namedida em que destruiu impiedosamente, na-quele território, a ordem aristocrática e as res-pectivas relações sociais e econômicas preexis-tentes. E outros ainda, talvez mais sobriamente,

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vão interpretar que a guerra civil foi, na verda-de, não uma Revolução, mas uma guerra entredois Estados – portanto, duas entidades com ter-ritórios distintos –, na qual o vencedor simples-mente impôs suas condições ao derrotado. Asmudanças constitucionais ocorridas em seguidapoderiam, portanto, ser vistas como o subprodu-to político de uma guerra estritamente conduzi-da por um Estado, e não como uma “Revoluçãodentro da ordem” promovida pelo Povo.

2) Não nos parece plausível supor que a abruptademocratização da civitas, que é a Revolução,venha a conservar sua harmonia interna, a pon-to de conseguir, quase por unanimidade, “re-programar” o Estado. Ao contrário, há de se es-perar não só, num primeiro momento, o “poderdual” – no qual, ou a autoridade do Estado, oua autoridade da nova civitas, deverá prevalecer– mas também, num segundo momento, o cres-cimento vertiginoso de conflitos de toda sorteno interior do próprio Povo. E neste ponto nãotemos mais, simplesmente, a tensão entre duasentidades externas uma à outra (o “Povo” e o“Estado”), mas uma tensão crucial no interior dacidadania. Num Estado democrático, essa últi-ma tensão mantém-se administrável e conduzi-da segundo aquelas regras típicas, e acordadas,da competição política e da contestação civil.Contudo, a situação revolucionária é uma rup-tura com regras prévias e transcorre em meio aum virtual vácuo jurídico e institucional. Rigo-rosamente falando, é difícil pensar em algocomo uma “Revolução dentro da ordem”, comosugere Ackerman, embora possamos até cruzaros dedos e esperar que tudo acabe bem. Mas aidéia é conceitualmente frágil.

A busca de um caminho intermediário entreo Estado e o “holismo” revolucionário, de qual-quer forma, só confirma o magnetismo que oideal da República continua a exercer sobre opensamento democrático contemporâneo. Mesmoo ideal da Revolução não desaparece inteiramen-te. Submetido a crítica, ele reemerge mitigado ecom outros nomes. Pois, para os autores que sin-ceramente defendem o caminho da democracia,mas experimentam com desilusão os percalços davia estatal de seu aprofundamento, a disposição

para engajar-se numa empreitada como essa temde estar disponível, apesar de todos os riscos quea própria crítica tratou de apontar.

É bastante natural que se contentem, porém,não com uma revolução “permanente”, mas com oseu repetido nascimento, morte e renascimento. Éque, apesar de sua frustração com a via do Estado,eles mesmos não vêem de que outra maneira avida coletiva moderna poderia ser conservada. Ainiciativa coletiva, direta e espontânea dos cida-dãos – a “liberdade” no sentido arendtiano – éalgo a ser desejado, mas como um instrumento, oumelhor, como um aríate contra os corredores cor-rompidos da representação estatal, que não deveser dispensada, mas recauchutada. Por outro lado,esses mesmos autores admitem, mais ou menoscomo pensavam certos “espontaneístas” da velhatradição revolucionária, que o tempo da Repúbli-ca, embora esperado, jamais pode ser planejado. Aexistência mesma de um Estado e de uma socieda-de civil revela que os cidadãos não estão concen-trados num mesmo objeto de interesses, nem estãodispostos a aceitar a qualquer momento os trajesgregos do zoon politikon. Num certo período, ape-nas alguns estão concentrados e a maior parte não;em outros, ninguém está realmente preocupadocom isso, a não ser os profissionais de sempre; eainda em outros, muitos estão preocupados, masisso não leva necessariamente aos compromissosde engajamento que a República requer, tal comoa coragem para colocar muita coisa pessoal em ris-co, no limite a própria vida, a favor de uma emprei-tada política. A República exige, portanto, umaconvergência de atenções e disposições a um sótempo rara e fortuita.

Como pensar, contudo, que esse movimentociclotímico venha a “aprofundar” a democracia? Aidéia de aprofundamento implica a de um aperfei-çoamento: um acréscimo, uma acumulação, umamelhora, contínua ou periódica, da qualidade dasinstituições democráticas. Não se trata de colocarem dúvida, aqui, se pode ou não haver essa acu-mulação. O ponto de interrogação diz respeito acondicionar o aprofundamento aos “ciclos” revo-lucionário-republicanos. Pois, se a visão esboçadaneste artigo faz sentido, o ressurgimento da civi-tas coloca a política não na rota da acumulação,mas na do ridurre ai principii maquiaveliano. As-

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sim, a experimentação de tais ciclos acaba, na prá-tica, não preservando, mas deslocando o Estado, e,portanto, a representação, do centro da atividadepolítica: é difícil imaginar como os dois poderiam“progredir” ao mesmo tempo. E, porém, a demo-cracia, se estamos corretos, implica um compromis-so umbilical com o Estado e a representação.

Se alguém disser, todavia, que a ação não-re-presentada dos cidadãos é o modo por excelênciade melhorar a qualidade da própria representaçãodemocrática, então teremos de admitir que essamelhora só é possível não com a intensificação,mas com a diminuição do papel dessa última. Eisso tem como conseqüências práticas, entre ou-tras, concentrar a idéia de aprofundamento ou napura e simples conclamação à “vida ativa”, à es-pera de que um dia ela venha a encontrar amplaressonância; ou numa estratégia educacional paracriar, nos futuros cidadãos, um hábito que tornepossível a estabilização desse modo de vida, poisse trataria então de modificar as instituições modi-ficando a conduta pessoal. Inclinamo-nos a pen-sar, entretanto, que a experiência democráticagera, a partir da combinação de ideais de cidada-nia que lhe é peculiar, uma expectativa um tantodistinta dessa, e, portanto, os anseios de seu apro-fundamento, supondo que venham a encontrarvazão no futuro, devem pender para outra dire-ção, cujo terreno, aliás, já nos é bastante familiar.Ou seja, para os modos com que, cada vez mais,diferentes parcelas da população poderiam tersuas demandas mais bem carreadas para as agên-cias estatais, e seus conflitos mútuos melhor me-diados, por meio de velhos e novos institutos derepresentação. Por certo, também nessa direçãoos bloqueios são formidáveis, como numerosasanálises sobre o assunto apontam há um bomtempo, mas parece-nos mais de acordo com o pa-pel dominante que o plebeísmo exerce nas demo-cracias contemporâneas.

NOTAS

1 C. Sunstein (1988).

2 A fronteira de temas e autores dessa tradição, po-rém, dificilmente pode ser delineada com precisão.Os autores que normalmente são colocados nessa

longa linhagem de pensamento (Aristóteles, Políbio,Cícero, Maquiavel, J. Harrington, J. J. Rousseau, T.Jefferson, H. Arendt e tantos outros) mais comparti-lham de certas questões comuns – entre as quais ada “excelência” ou “boa qualidade” da cidadania –do que respostas convergentes a elas. Fala-se, nes-te sentido, de diferenças internas à própria tradição;por exemplo – se seguirmos a sugestão de Taylor(1985) – entre o “republicanismo clássico”, propria-mente, e o “humanismo cívico”. Mas não vamos nosconcentrar nelas neste artigo. Por fim, é possívelidentificar autores – J. S. Mill, para ficar num casonotório – que lidam tanto com preocupações maisdiretamente filiadas à tradição liberal, quanto compreocupações tipicamente republicanas.

3 Estamos supondo que as instituições democráticasreais carregam consigo tais ideais, os quais dão ori-gem a um campo de forças normativas que as mo-vimentam. Certamente as forças normativas não sãoas únicas que movem as instituições, e talvez nemsejam as mais intensas. As motivações econômicas egeopolíticas, por exemplo, geram, cada qual à suamaneira, campos de força provavelmente bem maisintensos que as normativas. A presente análise vairestringir-se, porém, a essas últimas. Pensamos que,mesmo se fossem realmente de intensidade maisfraca, seus efeitos de longo prazo seriam de qual-quer modo decisivos para a conservação dos tiposde arranjos institucionais que examinaremos.

4 Há também tensões entre esses dois e o pluralismo.Porém, vamos nos ater ao contraste entre plebeísmoe civismo.

5 O arranjo mais complexo é a “constituição mista”,que analisamos em outra oportunidade. Ver C.Araújo (2000, pp. 11-22).

6 “A despeito da indubitável importância desses teóri-cos republicanos clássicos [ele está se referindo aoprimeiros republicanos modernos, renascentistas, autilizarem o termo ‘Estado’], entretanto, ainda seriaenganoso concluir que seu uso do termo stato e seusequivalentes expressa nosso conceito moderno deEstado. Este conceito veio a incorporar um caráterduplamente impessoal. Nós distinguimos a autorida-de do Estado da dos governantes ou magistrados [...].Mas nós também distinguimos sua autoridade da detoda sociedade ou comunidade sobre a qual seuspoderes são exercidos [...]. Os teóricos republicanosabraçam apenas metade desta noção duplamenteabstrata. Por um lado não há dúvida, penso eu, queeles constituem o grupo [moderno] mais remoto deescritores políticos que insistem com toda consciên-cia numa distinção categorial entre o Estado e aque-les que o controlam [...]. Mas por outro lado eles nãofazem nenhuma distinção comparável entre os po-deres do Estado e os de seus cidadãos. Ao contrá-

ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO 53

rio, todo o peso da teoria republicana clássica é co-locado numa equação última entre os dois” (Q.Skinner, 1989, p. 112).

7 A república romana pode ser considerada um casohistórico do ideal de “constituição mista” no qual,mesmo havendo uma ampla extensão, para os pa-drões da Antigüidade Clássica, do direito de votar(mais ampla do que a democracia ateniense, porexemplo), o peso individual desse direito era diferen-ciado de acordo com a “centúria” ou a “tribo” a queo cidadão pertencia. Por outro lado, as barreiras paraocupar postos de governo, entre os que possuíam di-reito de votar, eram bem maiores do que as da expe-riência ateniense (cf. W. Eder, 1991, pp. 174 ss.).

8 Para um argumento – sem dúvida controverso –nessa direção, ver D. Rosenfeld (1987).

9 A especialização, na forma do Estado, de uma região“política”, não exclui uma ulterior especialização in-terna das próprias atividades políticas.

10 Assim como o predomínio da vontade direta do“Povo” é um empecilho à plena consolidação do Es-tado, também o é o predomínio da vontade pura deum indivíduo.

11 Os direitos políticos incluem não só o direito de vo-tar (ou de ser representado), mas o direito de se ex-pressar e de se associar (ou de representar outros).O voto como forma de decisão invoca um princípiomajoritário. A justificativa do princípio majoritário,porém, dificilmente pode prescindir de um ideal debem comum e de consenso, derivado do civismo, oqual deve permanecer acima das divergências que le-vam à contagem dos votos. Ver as observações de R.Dahl em A preface to democratic theory, 1956, cap. 2.

12 Nossa posição, aqui, é próxima da visão constitucio-nalista de B. Ackerman (1991), com sua separaçãoentre a “política constitucional”, que é atributo doPeople, e a “política ordinária”, que é atributo doseleitores e seus representantes. Voltaremos a Acker-man no final deste artigo.

13 Deixamos a prospeção sobre a base argumentativacomum que essas justificações devem possuir, e a in-trincada questão de como ela pode se combinar como ideal do pluralismo, para uma outra oportunidade.

14 “Todas as noções de um corpo político foram desa-

fiadas ao longo dos anos de 1780 por um ascen-

dente movimento entre as altas classes sociais e os

interesses econômicos mais poderosos. Ele produ-

ziu a Constituição, com sua diferente concepção

[em relação aos tempos da Confederação] de cole-

tividade e poder [...]. A nova Constituição visou re-

verter a direção do país, estabelecê-la contra a po-

lítica democrática e participatória florescendo nos

Estados” (S. Wolin, 1981, p. 13).

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ENTRE O ESTADO E A REVOLUÇÃO

Cícero Araújo

Palavras-chaveTeoria democrática; Republicanismo;Estado; Sociedade civil; Revolução

Sem questionar todos os outros laçosque possam existir entre República edemocracia, é nosso intento nesteartigo registrar um distanciamentoconceitual entre as combinações deideais normativos que ambos encer-ram, e assim chamar a atenção paraas dificuldades em fazer deles ter-mos intercambiáveis. Salvo algumasexceções (duas das quais serão re-gistradas no final deste trabalho), osautores que procuram resgatar opensamento republicano dão poucaou nenhuma atenção para essas difi-culdades, por assumirem imediata-mente a continuidade entre o quechamam “democracia” e o que cha-mam “república”. E isso exige umexame crítico, até para que possamosdimensionar melhor o quanto a temá-tica republicana clássica ainda podenos ajudar a iluminar, e quem saberenovar, o pensamento e a experiên-cia democrática contemporânea.

BETWEEN THE STATE AND THE REVOLUTION

Cícero Araújo

KeywordsDemocratic theory; Republicanism;State; Civil society; Revolution

Notwithstanding all other possiblelinks between Republic and Demo-cracy, the intent of this article is topoint out a conceptual gap betweenthe combinations of normativeideals related to those two institutio-nal arrangements, therefore high-lighting the difficulties of makingthem interchangeable terms. Apartfrom a few exceptions (two of thembeing subject of our analysis here),the authors who try to rescue theRepublican tradition of politicalthought pay almost no attention tothose difficulties, assuming imme-diately the continuity from whatthey call “Democracy” to what theycall “Republic”. This requires a criti-cal examination in order to betteraccess how the typical topics of theclassical Republicanism can stillhelp us to illuminate, and even in-novate, the contemporary democra-tic thought and experience.

ENTRE L'ÉTAT ET LARÉVOLUTION

Cícero Araújo

Mots-clésThéorie démocratique; Républicanis-me; État; Société civile; Révolution

Sans remettre en question tous lesautres liens qui puissent exister en-tre la République et la démocratie,nous nous proposons, dans cet arti-cle, de faire un registre de l'écartconceptuel entre les associationsd'idéaux normatifs que ces deux no-tions englobent. Nous attirerons,ainsi, l'attention vers les difficultésd'en faire des termes interchan-geants. À quelques exceptions près(deux desquelles apparaîtront à lafin de ce travail), les auteurs quicherchent à récupérer la pensée ré-publicaine, accordent peu ou aucu-ne importance à ces difficultés, carils assument immédiatement la con-tinuité entre ce qu'ils appellent de"démocratie" et ce qu'ils appellentde "république", et ceci qui exige unexamen critique, jusqu'à ce qu'onpuisse mieux évaluer combien lathématique républicaine classiquepeut encore nous aider à éclairer -et, pourquoi pas, renouveler - lapensée et l'expérience démocrati-que contemporaine.