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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA M. Reus Engler TÒ THAUMÁZEIN: A EXPERIÊNCIA DE MARAVILHAMENTO E O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA EM PLATÃO Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em filosofia. Orientador: Prof. Dr. Nazareno Eduardo de Almeida. Co-orientador: Prof. Dr. Luís Felipe Bellintani Ribeiro. FLORIANÓPOLIS 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    M. Reus Engler

    T THAUMZEIN: A EXPERINCIA DE MARAVILHAMENTO E O PRINCPIO DA FILOSOFIA EM PLATO

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em filosofia. Orientador: Prof. Dr. Nazareno Eduardo de Almeida. Co-orientador: Prof. Dr. Lus Felipe Bellintani Ribeiro.

    FLORIANPOLIS 2011

  • Agradecimentos

    Ao professor Nazareno Eduardo de Almeida, que aceitou me orientar na fase final do trabalho, ajudou-me de diversas maneiras e sempre manteve comigo dilogo franco e elevado, dando mostras daquela nobreza dalma que os Antigos chamavam de enoia.

    professora Arlene Reis, que me orientou no incio do trabalho, auxiliou-me sempre que possvel e serena, peripateticamente guiou meus primeiros passos nos estudos helenistas.

    Ao professor Lus Felipe B. Ribeiro, meu co-orientador, em cujas aulas patticas e inspiradas comecei a aprender grego clssico e a me aprofundar no estudo de Plato e dos Antigos.

    Ao professor William Altman, cujas ideias sobre o platonismo e sobre a filosofia em geral influenciaram-me profunda e indelevelmente. Seguindo sua sugesto organizei os captulos dessa dissertao da forma como se apresentam.

    Ao professor Marcus Reis Pinheiro, que participou da banca de qualificao e fez importantes crticas ao trabalho.

    professora Cludia P. Drucker, que fez parte da banca de qualificao, contribuiu com crticas oportunas e ainda emprestou alguns livros para o trabalho.

    A outros mestres que foram importantes em minha formao: Alberto O. Cupani, Dcio Krause, Luiz Hebeche e Selvino Assmann.

    Ao apoio do Reuni e da Capes, sem o qual no teria realizado a pesquisa.

    Ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da UFSC, e em especial ao seu coordenador, Prof. Dr. Darlei DallAgnol.

  • Das Hchste, wozu der Mensch gelangen kann, sagte Goethe bei dieser Gelegenheit, ist das Erstaunen, und wenn ihn das Urphnomen in Erstaunen setzt, so sei er zufrieden; ein Hheres kann es ihm nicht gewhren, und ein Weiteres soll er nicht dahinter suchen; hier ist die Grenze. Aber den Menschen ist der Anblick eines Urphnomens gewhnlich noch nicht genug, sie denken, es msse noch weiter gehen, und sie sind den Kindern hnlich, die, wenn sie in einen Spiegel geguckt, ihn sogleich umwenden, um zu sehen, was auf der anderen Seite ist.1

    Conversa de Goethe com Eckermann, 18-02-1829.

    1 O mais elevado que o homem pode alcanar, disse Goethe nessa ocasio, o maravilhar-

    se, e quando ele lanado em maravilhamento pelo fenmeno originrio, ele deve sentir-se satisfeito; algo de mais alto no lhe permitido, e ele no deve ir atrs de algo mais distante; aqui est o limite. Contudo, a viso de um fenmeno originrio no costuma ser suficiente para os homens; eles pensam que se deve ir alm, e assim so parecidos com as crianas, as quais, quando olham para um espelho, imediatamente o viram para ver o que est do outro lado.

  • RESUMO

    Esta dissertao motivada por uma frase do Teeteto, de acordo com a qual a filosofia comea com a admirao. Nesse dilogo, Plato descreve uma cena em que o jovem Teeteto fica admirado quando compreende um dos argumentos sobre a sensibilidade apresentado por Scrates. A fim de explicar o sentimento de Teeteto, Scrates diz que o princpio da filosofia a experincia de admirao. No primeiro captulo, assim, tratamos do contexto do Teeteto e do significado da assertiva de Scrates. No segundo captulo, estudamos o conceito de pthos e alguns dos epifenmenos da admirao, a saber, a aporia, a passividade e a sensao de estranhamento. No terceiro captulo, mostramos que, quando a filosofia comea na alma de algum, h a atuao de uma dialtica triplamente pattica que pode conduzir o futuro filsofo para regio intermediria entre o humano e o divino. No quarto captulo, argumentamos que Scrates usava a admirao como uma parte de seu mtodo pedaggico, e que ele era visto por Plato e por seus contemporneos como algo admirvel em si mesmo. Por fim, no ltimo captulo interpretamos a alegoria da caverna como uma representao plstica e paradigmtica dos principais momentos envolvidos na admirao filosfica.

    Palavras-chave: Plato, admirao, Teeteto, princpio da filosofia.

  • ABSTRACT

    This dissertation is motivated by a phrase of Theaetetus, according to which philosophy begins with wonder. In this dialogue, Plato depicts a scene wherein the young Theaetetus becomes astonished when he understands one of the arguments about sensibility presented by Socrates. In order to explain Theaetetus feeling, Socrates says that the beginning of philosophy (arch) is the experience (pthos) of wonder (t thaumzein). In the first chapter, then, we deal with the Theaetetus context and the meaning of Socrates assertion. In the second one, we study the concept of pathos and some epiphenomena of wonder, namely, aporia, passivity and the feeling of estrangement. In the third chapter, we show that, when the philosophy begins in someones soul, there is the performance of a triply pathetical dialectics which can lead the future philosopher to the intermediary region between the human and the divine. In the fourth chapter, we argue that Socrates uses admiration as a part of his pedagogical method and that he was seen by Plato and his contemporaries as something wonderful in itself. Finally, in the last chapter we interpret the caves analogy as a plastic and paradigmatic representation of the main moments involved in the philosophic wonder.

    Keywords: Plato, wonder, Theaetetus, beginning of philosophy.

  • SUMRIO INTRODUO __________________________________________ 1 O DILOGO TEETETO E A ADMIRAO __________________ 11

    1.1. Sobre o dilogo ____________________________________ 11 1.2. A conversa de Scrates e Teeteto ______________________ 17 1.3. A primeira definio de conhecimento e a admirao_______ 30 1.4. Thama, Taumante e ris_____________________________ 47 1.5 Arch ____________________________________________ 57

    A FILOSOFIA COMO EXPERINCIA PATTICA ____________ 62 2.1. O significado de pthos ______________________________ 62 2.2. A aporia de Eutfron ________________________________ 71 2.3. A aporia de Mnon _________________________________ 82

    A FILOSOFIA COMO ESFERA INTERMEDIRIA ENTRE O SENSVEL E O INTELIGVEL____________________________ 104

    3.1. O pthos da ignorncia _____________________________ 104 3.2. O Alcibades Maior ________________________________ 106 3.3. O Sofista e o mtodo socrtico _______________________ 117 3.4. A filosofia e o intermedirio_________________________ 127

    A ADMIRABILIDADE DE SCRATES ____________________ 142 4.1. A admirao como expediente protrptico ______________ 142 4.2. Scrates e Alcibades_______________________________ 156

    A ALEGORIA DA CAVERNA: ENCENAO DO PRINCPIO PSQUICO DA FILOSOFIA ______________________________ 183

    5.1. Introduo ao captulo ______________________________ 183 5.2. A alegoria da caverna e a admirao como heternoia _____ 184 5.3. As sensaes contraditrias e a matemtica _____________ 198 5.4. O Teeteto e a digresso sobre o sofista _________________ 203 5.5. A digresso sobre o filsofo _________________________ 214

    CONCLUSO _________________________________________ 226 Bibliografia primria_____________________________________ 231 Bibliografia secundria ___________________________________ 234

  • 1

    INTRODUO

    Ein Philosoph: das ist ein Mensch, der bestndig ausserordenliche Dinge erlebt, sieht, hrt, argwhnt, hofft, trumt (...).

    Nietzsche2.

    Desde o incio histrico da filosofia, associaram-se figura do filsofo uma estranheza proverbial e uma falta de tato para com as coisas do cotidiano. Parece que a historieta contada sobre Tales, segundo a qual, perscrutando os astros, ele teria cado num poo, muito mais do que um caso isolado ou um reles evento inserido no anedotrio que enfeita marginalmente as reflexes srias dos filsofos. Ao contrrio, bem analisada, ela representa de modo arquetpico ou historial a peculiaridade que se encarna nesses homens e mulheres cuja vida a manifestao do desejo de saber. O fato de tal anedota se referir quele que ficou conhecido pela tradio como o primeiro filsofo, estando assim presente no momento exato em que a filosofia floresceu, s prova que, entre outras coisas, a absurdidade (topa) desses homens deve ser vista como uma marca de nascena ou como uma caracterstica indelevelmente selada pelo seu destino. Em verdade, seria de se perguntar se hoje a filosofia no se encontra em seu estgio final, quando os efeitos do nivelamento democrtico e do relativismo terico tendem a aniquilar essa singularidade do filsofo, fazendo dele mais um especialista, no sentido intelectual, e mais algum que partilha dos mesmos valores e do mesmo modo de vida da imensa maioria. Ser que no haveria nenhuma diferena entre aqueles que filosofam s deveras e aqueles que, to-somente, vo existindo vida afora? E acaso tambm no haveria uma experincia primordial a partir do que tal diferena poderia se instaurar e ser diligentemente caracterizada? Ou uma emoo particular, uma paixo, uma disposio anmica que, no obstante estar presente em todos os seres humanos, manifesta-se de forma toda especial no filsofo? Devemos admitir que ainda se veem atualmente alguns resqucios dessa marca de nascimento: muitas pessoas ainda se acanham quando se descobrem diante de um suposto filsofo, e a filosofia ainda tem o condo de esfacelar radicalmente o senso comum, mesmo quando o faz to-somente para depois reencontr-lo lmpido e purificado. Trpega e evanescente, a estranheza original do filsofo ainda respira. Contudo, parece que o nosso sculo ser lembrado como

    2 Um filsofo: um homem que continuamente v, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas

    extraordinrias (...). NIETZSCHE, 2008, 292, pg. 176.

  • 2

    aquele que viu na filosofia apenas uma atividade profissional, despojando-a de todo o herosmo e de todas as peculiaridades de que fora dotada at ento. Em certa medida, com o intuito de refletir sobre isso e sobre temas semelhantes que resolvemos escrutar, no presente trabalho, a concepo platnica acerca do princpio psquico da filosofia. Esses questionamentos supramencionados e outros que sero apresentados ao longo da exposio orbitam em torno de um problema fundamental, que o fato de Plato haver dito, no Teeteto, a origem (a)rx h /) da filosofia se encontra numa experincia (pa/qoj) de maravilhamento (qau ma/ze in). Essa frase serve como verdadeiro Leitmotiv de nossas indagaes, e estrutura a espinha dorsal do problema em questo. O problema (prbljma) tudo aquilo que lanado antes mesmo de alguma coisa e tambm em nome dela; o horizonte terico, a armadura ou o alambrado conceitual que se edificam toda a vez que uma afirmao ou uma pergunta feita de maneira essencial. Neste caso, nenhum pouco pequeno e desprezvel o horizonte que temos de contemplar, se de fato buscamos compreender a assertiva platnica; ele est intimamente imbricado no s com o pensamento desse autor, mas tambm com aquilo que desde h muito ficou conhecido como amor sabedoria. Noutras palavras, tal como ventilado por Plato, o problema da admirao atinge o prprio mago da filosofia, pois enuncia sobre ela uma proposio que pretende dizer algo acerca da origem dessa atividade, acerca do seu estatuto ontolgico e de como ela age de modo privilegiado sobre o filsofo.

    Isso se torna ainda mais importante e crucial quando se tem conscincia de que foi Plato quem pela primeira vez definiu esse gnero de atividade humana, alm de lhe haver conferido os contornos fundamentais que subsistiram como espcie de paradigmas ao longo da histria do Ocidente, mesmo quando no foram seguidos com a devida fidelidade. A caracterizao da filosofia apresentada no Banquete, com efeito, talvez a primeira definio rigorosa dessa espcie de saber que comeava a aflorar entre os Helenos3. Ainda que os pr-socrticos ou

    3 HADOT, 1999, pg. 27. Maria Helena da Rocha Pereira, numa nota da sua traduo da

    Repblica, lembra um artigo de W. Burkert Platon oder Pythagoras? Zum Ursprung des Wortes Philosophie e afirma que parece haver se estabelecido um consenso sobre a origem platnica da palavra filosofia. Cf. REPBLICA, 1996, pg. 265, nota 26. Sabe-se, alis, que Burkert mantm certo ceticismo em relao a Pitgoras, donde a sua defesa da origem platnica da palavra filosofia. Cf. KAHN, 2007, pg. 17. Sem mencionar Pitgoras, Karl Albert afirma algo parecido: Il termine filosofia (filosofa) esisteva nella lingua greca gi prima di Platone, e tuttavia proprio Platone diede a questa parola il significato che sino ad oggi

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    Herdoto possam ter conhecido o vocbulo em questo, possam t-lo empregado em raras ocasies, tal como os textos remanescentes o comprovam, somente com Plato que o estatuto e a silhueta da filosofia so claramente definidos. Entre outras coisas, toda a sua obra uma tentativa de explicar, sob os mais variados aspectos, o que significa amar o saber e a ele dedicar-se completamente, e por isso ele nunca deixa de lado as belas exortaes protrpticas e parenticas, que at aparecem em contextos sumamente tericos e abstratos, como o caso do Sofista. Certo que essa sua preocupao possui contexto histrico bem preciso: se Plato se ocupa tanto da essncia da filosofia, amide at usando de certa literatura propagandstica para defend-la, ele o faz porque teme que ela seja confundida com a Sofstica ou com a Retrica4. No difcil de perceber que ele desejou diferenci-la desse movimento prtico-intelectual, verdadeira embriaguez da juventude5, que no gozava de muita fama entre certas parcelas da populao de Atenas e da Grcia em geral; assim como desejou apart-la da simples arte de bem falar, que se cristalizava empiricamente na escola de Iscrates e numa srie de outros autores menores6. Contudo, reduzir a sua preocupao terica a isso seria algo verdadeiramente temerrio. Ademais dos motivos que emergem a partir do cenrio histrico, Plato

    (seppur com scarti e revisioni) continua o dovrebbe continuare a mantenere (...). ALBERT, 1999, pg. 47. Sob ponto de vista diferente, Giorgio Colli defendeu que Plato criou a filosofia quando inventou o gnero literrio do dilogo: Plato inventou o dilogo como literatura, como tipo particular de dialtica escrita, de retrica escrita, que, num quadro narrativo, apresenta a um pblico indiferenciado os contedos de discusses imaginrias. A esse novo gnero literrio, o prprio Plato chama pelo novo nome de filosofia. COLLI, 1988, pg. 92. Levando em conta outros aspectos, a mesma opinio se encontra em Chatelet. CHATELET, 1977, pg. 31. 4 Os dilogos de Plato tm, essencialmente, carter de protrptico e contm uma parnese

    cerrada, pois pretendem guiar para uma determinada forma e concepo de vida; no se pode excluir neles, apesar de todo o seu antagonismo essencial, a influncia da oratria sofstica de propaganda. LESKY, 1995, pg. 545. Os helenistas que defendem a existncia das chamadas doutrinas no-escritas de Plato tambm costumam ressaltar as estratgias retricas e sofsticas de Plato. Slezk, por exemplo, afirma que o tom protrptico est presente em todas as fases do pensamento de Plato. SLEZK, 2005, pg. 49-50. A ideia de que os mitos escatolgicos sejam tambm um convite filosofia j bastante conhecida. GOLDSCHMIDT, 1963, pg. 84. Reale tambm v neles um complemento do discurso, ou a expresso de certa f que depois guarnecida com certas razes. REALE, 1994, pg. 41. 5 A expresso (Rausch der Jugend) de Karl Joel, apud GUTHRIE, 1995, pg. 50.

    6 Para Lesky, por exemplo, o fenmeno cultural mais importante do sculo IV a luta travada

    entre Plato (filosofia) e Iscrates (retrica). LESKY, 1995, pg. 538. O clssico trabalho de Jaeger tambm ressalta a onipresena do debate entre as diferentes disciplinas a respeito da educao. Cf. JAEGER, 2003. E, a propsito, no se deve esquecer que foram os sofistas os primeiros no s a problematizarem a educao na Grcia antiga, como tambm a fazerem dela sua fonte de sustento. SCOLNICOV, 2006, pg. 15; DHERBEY, 1986, pg. 10.

  • 4

    se perguntou pelo sentido da filosofia porque, como todo o grande pensador, buscava compreender a essncia daquilo mesmo que o afetava a si e aos seus alunos de modo to profundo e intenso. de se julgar que no era muito claro (e ainda no o ) o que estava por trs do efeito provocado por Scrates em todos aqueles que conviviam com ele: uma boa dose de retrica, sim, mas ainda alguma coisa que era completamente nova para a poca, um gnero de saber e uma forma de vida que ningum antes havia experimentado. Scrates era muito mais complexo do que os sofistas, e sua influncia no se restringia ao transe instigado por discursos brilhantes mas circunstanciais, que sempre tinham como limite o alcance da oportunidade, do kairv. A sua influncia se espraiava por um crculo de pessoas que tinham suas vidas modificadas em pontos fulcrais: nos juzos de valor, na compreenso dos deuses, nos costumes mais singelos e naquilo que hoje chamaramos de viso de mundo. Mais de um autor contemporneo concorda com a ideia de que Plato resolveu se dedicar filosofia em virtude do abalo que sofreu com a morte de Scrates 7. Isso no se confina ao aspecto poltico e a nenhum outro aspecto; em verdade, trata-se de um despertar que condicionou todo o seu pensamento e serviu para criar a tradio metafsica do Ocidente8. Como teremos a oportunidade de mostrar, as concluses de Plato sobre o incio psquico da filosofia atravs da experincia de maravilhamento se aplicam a ele mesmo, donde podermos dizer que h na base de sua deciso pela filosofia qualquer coisa de traumtico, num possvel sentido neutro do termo.

    Assim, convm indagar o que ele pretende dizer exatamente quando localiza a origem e o governo da filosofia numa disposio, numa paixo ou numa experincia anmica de maravilhamento. Que isso significa mais precisamente?

    Esta dissertao constitui o esforo de criar um quadro terico em que essa pergunta pode receber alguma luz. De algum modo, trata-se de um trabalho de antropologia filosfica ou ontologia existencial que apenas descreve uma paixo singular, como ela ocorre, a quem ocorre,

    7 JAEGER, 2003, pg. 410; DUHOT, 2004, pg. 76 e 206; CHAPELL, 2005, pg. 10; GUTHRIE,

    1978, pg. 231. 8 Erweckung expresso de Gadamer para explicar o que aconteceu a Plato quando, tendo

    conhecido Scrates, resolveu queimar seus trabalhos artsticos. Segundo ele, Plato no descobriu com essa experincia que no teria podido ser grande poeta, mas que no o queria ser, uma vez que diante da filosofia j no valia a pena o poetar. O despertar atravs de Scrates (Erweckung durch Sokrates) ter-lhe-ia revelado seu verdadeiro talento. GADAMER, 1999, pg. 188. Como ainda poder ser visto, Scrates causou em Plato verdadeira converso da alma (periagwg).

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    quais so seus momentos e seus efeitos. No que concerne origem, ver-se- que se trata de uma experincia psquica capaz de doar ao aspirante a filsofo um mundo completamente novo, nascido do alargamento de sua viso terica e do contato com a esfera da suprassensibilidade ou do divino. Esse processo implica a perda das opinies comuns, a mudana radical de perspectivas e at mesmo o sofrimento e o desgosto para consigo mesmo que tais alteraes podem suscitar. Em verdade, a sada da caverna, que ocupa posio central no pensamento de Plato, a encenao plstica da origem psicolgica da filosofia, porquanto descreva algum que deixa a ignorncia para se dirigir verdadeira realidade. O termo psquico (ou psicolgico), alis, no deve evocar as conotaes hodiernas de que imbudo, as quais pressupem muitas teses e concepes de todo alheias ao pensamento grego. Ele apenas designa aquilo que prprio do ser mais autntico do homem, definido por Plato, em mais uma de suas perenes contribuies histria do esprito, como psique9. As condies prvias para que tal processo possa acontecer so, entre outras, o surgimento da aporia, a constatao da prpria ignorncia e a conseqente purgao desse afeto. Nesse ponto, pois, entra com todas as suas singularidades a pedagogia socrtico-platnica, que tem como um dos seus principais objetivos trazer os indivduos para a posio ontolgica intermediria, ocupada por Scrates, em que se adquire a conscincia de sua prpria ignorncia e se entra em contato com o divino. Tal posio o abrigo prprio dos filsofos e estabelece as diferenas desses homens no que toca aos deuses e aos outros seres humanos que no foram purificados pela filosofia. Nesse mtodo pedaggico se distinguem claramente dois aspectos: o primeiro, que mais negativo, visa destruir a presuno do aluno atravs de uma srie de expedientes; e o segundo, mais positivo, permite que o desejo de conhecer aflore na alma do educando e o conduza para a filosofia e para a busca pelo Bem. Em certo sentido, trata-se da negatividade da ironia e da positividade da maiutica. As conseqncias disso envolvem reorientao dos desejos da pessoa, fortalecimento do aspecto racional de sua alma e a descoberta de paradigmas eternos e objetivos pelos quais ela pode doravante se

    9 Reale demonstra como foi Scrates quem delineou primordialmente o conceito de alma na

    cultura ocidental, e como Plato se apossou de tal conceito e o repensou de modo radical. Talvez ele at tivesse conscincia da revoluo que causava. REALE, 2002, pg. 15. Trata-se de ponto assente: JAEGER, 2003, pg. 529; CUSHMAN, 2007, pg. 12; ROBINSON, 2007, pg. 40.

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    orientar a fim de atingir a melhor das vidas possveis10. Grande parte do trabalho de iniciao que Scrates empreende, causando revolues psquicas em seus interlocutores, se fundamenta na criao do estado admirativo, embora devamos admitir que nem todos esses personagens chegam a se voltar de uma vez por todas filosofia. Muitos deles apenas reconhecem a contragosto que nada sabem daquilo sobre o que alardeiam a maior sapincia; outros sofrem modificaes temporrias, caem em aporia ou usam do que supem aprender com Scrates para fins nada louvveis. Em que pesem seus fracassos educacionais, sempre correto pensar que a noo socrtico-platnica de conhecimento, diferentemente da noo dos sofistas, implica reviravolta radical na alma de quem a experimenta; ela simplesmente demonstra que no pode conhecer alguma coisa quem permanece no interior da caverna.

    Para que tudo isso fique mais claro, organizamos nosso trabalho em cinco captulos, brevemente explicados a seguir. No primeiro deles, analisamos o dilogo Teeteto a fim de entender tudo o que est implicado na afirmao feita por Scrates. apenas nesse dilogo que encontramos base textual explcita para a nossa pesquisa, de modo que precisamos esquadrinhar diligentemente cada um dos aspectos que emergem a partir dele. Contextualizamos a discusso at o momento em que aparece a sentena sobre a origem da filosofia; depois esmiuamos as palavras nela contidas e diferenciamos seu significado da doutrina aristotlica, a qual tambm toma a admirao como princpio do filosofar. No segundo captulo, tendo por arrimo os dilogos Eutfron e Mnon, oferecemos alguns exemplos dos efeitos da admirao nos discpulos que comeam a filosofar e delineamos com maior acuidade aquilo que seria a natureza pattica da filosofia, bem como os momentos que antecedem a sua origem, como o caso da aporia e do feitio que Scrates costuma lanar sobre seus ouvintes. No terceiro captulo, mostramos que a criao do maravilhamento depende de uma mudana de afeces e da passagem da ignorncia inconsciente para a conscincia da ignorncia, que no s a posio prpria do filsofo, mas tambm o fundamento e a inovao da concepo socrtica de sabedoria. Expomos o conceito platnico de ignorncia, tal como apresentado no Alcibades Maior; relacionamo-lo ao mtodo purgativo de Scrates que

    10 Nussbaum exps claramente como Plato acredita que a vida do filsofo a melhor possvel;

    ela : A life, then, of goodness without fragility. NUSSBAUM, 2001, pg. 138. No preciso dizer que tal juzo interpreta corretamente a filosofia de Plato, quando a toma por um modo de vida. Cremos ter sido bem demonstrado por Hadot que, para os antigos, dedicar-se filosofia fazer opo existencial que implica determinado modo de estar no mundo. HADOT, 1999.

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    compendiado no Sofista e terminamos o captulo estudando a noo de intermedirio, que mostra como a filosofia se caracteriza por uma maior proximidade da esfera divina e como, em razo disso, o maravilhamento que a produz est eivado de sentimentos religiosos como o temor e a reverncia. No quarto captulo, assim, voltamo-nos explicitamente para Scrates, com o propsito de averiguar suas contribuies pessoais para o fenmeno da admirao e a forma como ele faz de si mesmo algo admirvel. Reunimos algumas passagens em que seus amigos se admiram de seus atos e palavras, como ocorre no Fdon e no Crton, e damos especial ateno ao encmio que Alcibades faz no Banquete, o qual possui referncias inequvocas admirao que o filsofo suscitava. No quinto captulo, por fim, podemos oferecer interpretao precisa do famoso mito da caverna, tornando claro que ele nada mais nada menos do que a encenao alegrica do fenmeno da admirao, algo que at hoje no parece ter sido notado. Para condensar nossas concluses sobre essa alegoria e sua relao com o maravilhamento psquico, criamos e explicamos o conceito de heternoia. Em seguida, fazemos breve passagem sobre a biografia de Scrates e sobre a concepo platnica de matemtica, elucidada no decorre do livro VII da Repblica, a fim de explicitar como certos objetos do mundo podem despertar nossa inteligncia e fazer irromper a admirao filosfica. Arrematamos o captulo retornando ao Teeteto e estreitando os liames entre a alegoria da caverna e a digresso sobre o filsofo contida nessa obra.

    O tema da admirao no pensamento platnico parece nunca ter recebido tratamento mais aprofundado; a frase do Teeteto circula jactansiosamente aqui e acol, no registro oral e no escrito, mas nunca pensada com a radicalidade devida. Apesar de haver inmeros comentadores que se dedicaram ao estudo da concepo platnica de filosofia, poucos foram os que fizeram a conexo cerrada de um assunto com o outro, levando a srio a assertiva do Teeteto. Convencemo-nos desse fato se examinamos o mnimo da literatura existente acerca da questo. Karl Albert, que dedicou belssimo livro ao escrutnio do conceito platnico de filosofia, embora se recorde dessa frase, s v nela a confirmao da imagem do filsofo como intermedirio entre os deuses e os homens, tarefa simbolizada pela figura mitolgica de ris11. No obstante isso esteja certo, h ainda muita coisa pressuposta na pequena sentena em apreo: a palavra arch, que nela se faz presente,

    11 Cf. ALBERT, 1991, pg. 57-8.

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    por exemplo, no pode apenas ser compreendida como incio, mas deve tambm ser entendida como governo, isto , a instncia que dirige a prpria filosofia. O mesmo acontece com os autores que traduziram o dilogo e fizeram comentrios crticos em cada uma das pginas: eles mal e mal escrevem alguma coisa sobre essa passagem. Cornford mais no faz do que lembrar o leitor de que ris, a filha de Taumante tambm aludida na passagem em questo, j fora mencionada no Crtilo, razo por que esse dilogo deveria ser considerado anterior ao Teeteto. Anos depois John McDowell repetir lio parecida, com a nica diferena de pensar que ris representa a filosofia por causa das etimologias que aparecem no Crtilo12.

    No entanto, intelectuais e eruditos houve que se deram conta da importncia do problema, tanto mais que a mesma ideia sobre a origem da filosofia aparece em Aristteles e persiste entre alguns dos filsofos medievais, como Alberto Magno13. Um dos tratamentos mais instigantes dado por Andrea Nightingale, que analisa brevemente o conceito de admirao ao longo da tradio ocidental e conclui que ele possui importante papel na prtica da teoria, conquanto tenha sido pouco estudado14. Tambm Giovanni Reale, em sua Histria da Filosofia Antiga (Vol. I), comenta em apndice a concepo geral que tinham os Gregos da filosofia, e ressalta, alm de outras caractersticas, a primariedade da admirao como estado espiritual que abre as portas para os esplendores da investigao filosfica. Igualmente em seu dicionrio reserva espao para isso, remetendo o leitor do verbete para a explanao erudita do apndice mencionado. Contudo, restringe-se a dois aspectos de tal noo, a saber, a admirao diante do ser e a necessidade de satisfaz-la, desatentando para outras particularidades e traduzindo t thaumzein por admirao, sem oferecer elucidaes

    12 The Cratylus connects Iris with erein (408b), and erein (lgein) with dialectic

    (398d). So Iris (philosophy) is the daughter of Thaumas (wonder). Since our passage is unintelligible without the Cratylus, the Theaetetus must be the later of two. CORNFORD, 1979, pg. 43, nota 1. Iris represents philosophy because of the etymologies of Cratylus 408b4-5 and 398d5-8. And Thaumas (a Titan) represents wonder because of the derivation of his name. McDOWELL, 1999, pg. 137. 13

    Nam omines homines, qui et nunc in nostro tempore et primum ante nostra tempora philosophati sunt, non sunt moti ad philosophandum nisi per admirationem Qui autem dubitat et admiratur, ignorare videtur; est enim admiratio motus ignorantis procedentis ad inquirendum, ut sciat causam eius de quo miratur. Apud, NIGHTINGALE, 2009, pg. 254. Outros filsofos possuem reflexes sobre a admirao: Aquino, Descartes, Espinosa, Bacon,Vico. Citaremos algumas delas quando for apropriado. 14

    Wonder plays an important role in the pursuit and practice of theora, yet it is rarely analyzed in the scholarly literature. NIGHTINGALE, pg. 253.

  • 9

    sobre tal escolha15. O livro Termos Filosficos Gregos, de F.E. Peters, nem ao menos possui verbete que trate de modo pormenorizado o conceito de admirao; menciona-o apenas a fim de deslindar o substantivo aporia, valendo-se mais do texto de Aristteles e ignorando as diferenas existentes entre ele e Plato16. A propsito, no estabelecer diferenas ntidas entre esses dois pensadores deslize de que se no isentam filsofos da alada de Schopenhauer ou de Heidegger. Ambos citam e comentam as duas passagens como similares do ponto de vista do significado, algo com o que no podemos concordar, se no por razes maiores, pelo simples fato de Aristteles dizer que a filosofia tem como objetivo o fim da admirao17.

    De mais a mais e esse o ponto mais relevante poucos notaram que essa afirmao de Plato implica maneira completamente singular de conceber a atividade filosfica. Ao contrrio daqueles que pensam que a filosofia seja apenas uma tcnica de lidar com argumentos, uma atividade profissional ou algo que pode ser outorgado por um diploma, Plato a compreende como um acontecimento existencial que modifica ab imo corde a nossa maneira de estar no mundo. Assim para ele como para a maioria dos filsofos gregos, a filosofia um evento que provoca reorientao ontolgica nas pessoas e implica a experincia de determinadas paixes. Ela no atividade meramente intelectual, pois embora possua discurso de elevado nvel terico, origina-se antes de uma srie de escolhas e decises existenciais que, muitas vezes, so justificadas a posteriori18. A absurdidade que caracteriza o modo de vida do filsofo, longe de ser simples afetao teatral, advm dessas opes que o tornam diferente da maioria das pessoas, e por isso pode-se concluir com certo desalento que a filosofia grega est em seu estgio final, uma vez que filsofo j no parece

    15 REALE, 1993, pg. 387ss. Jean Beaufret tambm se detm na admirao diante do ser.

    BEAUFRET, 1978, pg. 175. 16

    PETERS, 1983, pg. 35-36. Os dicionrios de filosofia geralmente possuem verbete demasiado panormico sobre o assunto, como convm sua natureza. A exceo talvez Ferrater Mora, que oferece algumas reflexes inovadoras. Cf. MORA, 1981, 60-2. Goldschmidt tambm possui belas pginas em que relaciona a admirao e o incio da filosofia experincia de contradio sensvel, que aparece claramente no Teeteto: Lorigine de la rflexion philosophique est donc une experince de contradiction. On naurait que faire de la philosophie si le monde sensible o nous sommes destins vivre et agir tait transparent nos sensations, sil se comportait toujours de la mme manire et si tous les objets qui le composent consentaient rester ce quils paraissent et ne nous tonner jamais. GOLDSCHMIDT, 1993, pg. 119. 17

    HEIDEGGER, 1979; SCHOPENHAUER, 1960. 18

    HADOT, 1999, pg. 17-8.

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    viver de maneira diversa do senso comum. Conceber a filosofia como modo de vida, por sua vez, tambm acarreta uma mxima de valor exegtico, que nos leva a dar ateno aos personagens e ao contexto dramtico dos Dilogos. Se filosofar significa viver de determinada maneira, as afirmaes tericas que aparecem nos Dilogos no podem ser simplesmente isoladas e interpretadas como se pertencem a um tratado, seno que precisam ser creditadas aos personagens que as defendem e s situaes em que surgem19. No caso do Teeteto, veremos como isso importante.

    Mas no devemos nos adiantar em nossa exposio; observaremos oportunamente parte do que foi dito e omitido sobre o assunto. Cabe apenas dizer, por fim, que no faremos uso de todo o corpus platonicum, seno que escolheremos alguns dilogos que julgamos relacionados ao nosso tema. Utilizaremos algumas obras que apresentam a tentativa socrtica de converter seus interlocutores filosofia, pois elas pem em jogo os fenmenos psquicos que tais pessoas vivenciam; algumas que coroam determinadas ideias pressupostas na misso pedaggica de Scrates; e um ou outro dilogo, como o caso do Sofista, que oferece tratamento inusitado de temas que j vinham sendo ventilados desde a primeira fase do pensamento do autor.

    19 The form in which he chose to express his thought is the dialogue, and he always confined

    his treatment of any problem to such aspects of it as seemed to him to be pertinent to the particular context of philosophical discussion which he is actually exposing. CHERNISS, 1978, pg. 245. Borges acredita que, se so ignorados alguns aspectos do Teeteto o prlogo, as cenas, os personagens o que resta um tratado sobre o conhecimento. Ele no est convencido da juno entre drama e dissertao no caso dos Dilogos. BORGES, 2008, pg. 4. Discordamos dessa posio: se so retirados tais aspectos da obra, resta-nos qualquer coisa que tudo, menos um dilogo platnico.

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    I

    O DILOGO TEETETO E A ADMIRAO

    Aus bloer Vernunft kommt keine Philosophie20. Hlderlin, Hiprion.

    1.1. Sobre o dilogo

    O Teeteto um daqueles dilogos cuja interpretao seguiu o mais das vezes ao p da letra, por sorte ou azar, o subttulo colocado pelos editores em cada uma das obras de Plato: sobre o conhecimento. Com efeito, a maioria dos intrpretes se volta para essa obra justamente para buscar as contribuies, as teses ou as crticas que Plato teria elaborado em torno da pergunta pela essncia da e )pist h/mh. E isso no acontece apenas no lado dos intelectuais com influncia da filosofia anglo-americana, de quem tal atitude sempre esperada; acontece tambm entre aqueles ditos continentais: mesmo Heidegger, o mais combatido e representativo de todos, deu um curso sobre esse dilogo enfatizando justamente questes epistemolgicas, no que se pode chamar de inusitada concordncia exegtica com seus adversrios insulares21. Certa concordncia tambm h, alis, no que se refere ao perodo de composio a que possivelmente pertence. Os comentadores geralmente acreditam que o dilogo se enquadre no mesmo perodo do Parmnides, do Sofista e do Poltico. Uma vez que no interior dessas obras encontram-se evidncias mais ou menos claras desse fato, isso no deve causar nenhuma surpresa. Tanto no Teeteto quanto no Sofista Scrates relembra o encontro que teve outrora com o sbio Parmnides, encontro descrito no dilogo homnimo; e no Poltico, por sua vez, o prlogo menciona explicitamente a continuidade

    20 A filosofia no surge da simples razo.

    21 Certo que, do ponto de vista da exegese particular de Heidegger, o que dissemos como que

    um exagero, pois as suas preocupaes tendem no fundo questo da verdade e do Ser, num sentido muito mais metafsico do que epistemolgico. Heidegger est ciente de que o Teeteto no versa apenas sobre o conhecimento; mas isso acontece no porque veja nele a problemtica acerca da filosofia, como ns fazemos, mas sim porque amplia o sentido de conhecimento e tenta pensar tal conceito de maneira mais grega. Ele pensa que nesse dilogo Plato elabora pela primeira vez o caminho que interroga o falso a fim de compreender o verdadeiro, atacando tambm as opinies do homem comum. HEIDEGGER, 2002, pg. 237-9.

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    da anlise comeada pelo Estrangeiro de Eleia no Sofista22. Se no bastasse, o jovem Teeteto o interlocutor privilegiado do Estrangeiro na primeira discusso do encontro; e s quando se empenham a definir o poltico cede seu lugar a um Scrates jovem, no obstante permanecer como um dos personagens do grupo23.

    Todavia, no interior da dramaturgia platnica, sabemos que a conversa entre Teeteto e Scrates ocorreu no mesmo dia em que este ltimo foi at o tribunal para se inteirar da acusao de impiedade e de corrupo dos jovens que lhe haviam movido. O ano , portanto, 399 a.C, e a longa conversa com Teodoro e seus discpulos precede imediatamente o encontro com o adivinho Eutfron, descrito no dilogo com o mesmo nome. Em razo disso alguns comentadores notaram algo curioso. No incio do Teeteto, Euclides afirma que s conseguiu reconstituir toda a conversao havida entre Scrates e o jovem ateniense com o auxlio de sucessivas rememoraes feitas pelo prprio Scrates, as quais foram diligentemente anotadas pelo filsofo de Mgara24. Ora, uma vez que depois de tal conversa Scrates foi condenado e permaneceu na priso, a aguardar o retorno do barco que fora a Delos, pode-se supor que foi na prpria carceragem que Euclides o visitou para ouvir e coligir as partes do dilogo de que se no podia

    22 Teet., 183e; Sof., 217c; Pol., 257a. Citamos as tradues dos dilogos indicadas na

    bibliografia, e avisamos quando traduzimos algum trecho. Usamos a traduo brasileira da Carta Stima e, para citaes em grego, utilizamos o Thesaurus linguae graecae. 23

    Sobre as datas: CORNFORD, 1979, pg. 1; CHAPELL, 2005, pg. 12. A fala de Scrates no Poltico (258a3-5) explcita, quando esclarece porque devem deixar Teeteto descansar e convocar para a discusso o jovem Scrates. Com Teeteto conversei ontem e ouvi, ainda h pouco, o que te respondeu; mas do jovem Scrates, nada ouvi. Assim, a conversa de Scrates com Teeteto teria acontecido na vspera; e no dia de hoje o menino teria falado sobre a definio do sofista com o Estrangeiro de Eleia, o qual passa agora a definir a figura do poltico. Tambm no fim do Teeteto (210d1-4), depois de dizer que ir agora se apresentar no Prtico do Rei para ver da acusao que Meleto lhe impugnou, Scrates marca encontro com Teodoro para a manh seguinte no mesmo local. Na ordem levada a termo pelo gramtico Trsilo, em que os dilogos foram divididos em nove tetralogias, o Teeteto aparece na segunda tetralogia, precedido pelo Crtilo e seguido pelo Sofista e pelo Poltico. O Parmnides surge no conjunto seguinte, junto com o Filebo, o Banquete e o Fedro. Cf. REALE, 1994, pg. 9. Em virtude do carter aportico do dilogo, at houve tentativas de localiz-lo junto s obras da juventude de Plato, como o fez Schleiermacher; mas j h tempos isso no ocorre, apesar dos testes de estilometria mostrarem que ele no se enquadra no perodo tardio, mas sim no final do perodo mdio, junto com a Repblica, o Fedro e o Parmnides. SEDLEY, 2004, pg. 1-3. Alis, mesmo com final aportico, o Teeteto se diferencia desses dilogos juvenis porque termina com certa satisfao, indiferente possibilidade de um estudo futuro, ao passo que os dilogos aporticos sensu stricto reclamam do fracasso final e exortam os personagens a prosseguirem com a investigao. BENITEZ; GUIMARES, 1993, pg. 298-299; SANTOS, 2008, pg. 9, n. 11. 24

    Teet., 143a3.

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    relembrar. Embora isso no diga muita coisa sobre o Teeteto em particular, lana alguma luz sobre o conjunto de dilogos relativos morte de Scrates: aqui que comea, pois, o elogio da coragem que o filsofo h de apresentar durante todo o tempo em que aguarda a sua execuo. De fato, se houve realmente tais encontros, h ento ainda mais evidncias para se afirmar que Scrates no deixou em nenhuma ocasio de realizar as mesmas investigaes a que era atreito, no tendo sido perturbado nem pela iminncia da travessia final. Alm de metrificar Esopo e de receber diariamente seus discpulos, teve presena de esprito bastante para evocar uma conversa recente cheia de raciocnios sutis e objetivos, isto , com pouca ou nenhuma relao com temas morais, religiosos ou escatolgicos. No entanto, como dito, trata-se apenas de especulao, e eruditos h que descartam a historicidade de tais fatos 25.

    Outros pontos que levam os eruditos a datarem o dilogo como pertencente fase tardia de Plato, pois, a meno da batalha perto de Corinto, ocorrida no ano de 369 a.C., e a ausncia de qualquer meno ou utilizao da chamada teoria das ideias, peculiar aos dilogos que costumam ser encastoados no perodo mdio da produo literria do autor. O primeiro fato evento histrico que no pode ser desmentido, e certamente o dilogo posterior a tal guerra, porquanto de outra maneira ela nem ao menos poderia ser evocada26. O segundo, pois, controverso e decisivo, a ponto de formar duas correntes opostas de interpretao. De um lado, temos aqueles autores que acreditam Plato revisou as teses sustentadas na sua maturidade, abandonando, atravs de criticismo cerrado, a teoria das ideias no tempo em que compunha os dilogos da senectude. De outro, temos os autores que mantm viso unitria do corpus platonicum e sustentam que tal teoria no mencionada, no Teeteto, por questes intrnsecas dramaturgia do dilogo, o qual realiza

    25 Eucleides account of how he came to write the main dialogue is obviously fictitious. No

    such conversation could have taken place in Socrates lifetime. CORNFORD, 1979, pg. 15. primeira vista, Chapell parece concordar com Cornford, quando escreve: Plato begins by establishing what seems certain to be a fiction about the origin of the Theaetetus. CHAPELL, 2005, pg. 25. No entanto, ele esclarece em nota que Euclides poderia ter visitado Scrates na priso, j que, segundo o testemunho do Fdon (58c5), Scrates aguardou longo tempo entre seu julgamento e sua morte. CHAPELL, 2005, pg. 25, nota 16. A propsito, tanto Euclides quanto Terpsio estavam presentes no dia da morte de Scrates (Fd., 59c2). Cremos que o elogio da coragem demonstrada por Scrates, nos dilogos relativos ao processo movido contra ele, mais do que evidente. Analisaremos melhor esse fato no captulo exclusivamente dedicado a Scrates, a fim de evidenciar que a isso se relaciona certo gnero de admirao. 26

    Segundo Jos Trindade dos Santos, nada se sabe acerca dessa guerra. SANTOS, 2008, pg. 22, n. 22.

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    uma reductio ad absurdum das teorias que tentam compreender o mundo sem apelar s ideias. Podem ser citados como revisionistas, entre outros, Gilbert Ryle, G. E. L. Owen e John McDowell; e como unitaristas, por sua vez, toda uma sorte de comentadores ilustres, a comear por Aristteles, Proclo, os glosadores medievais, Berkeley, Schleiermacher, F. M. Cornford, Sir David Ross, A. Dis e Timothy Chapell27. Vrias so as razes apresentadas de ambas as partes, e no nossa inteno oferecer nova argumentao sobre esse ponto demasiado conflituoso. Em geral, cremos que toda essa problemtica surge por duas preocupaes fundamentais: a primeira nasce do desejo bastante natural de tentar compreender a ordem em que os dilogos de Plato foram escritos, e se houve ou no alguma mudana fundamental no cerne do seu pensamento; e a segunda, pois, nasce da desmedida nfase que costumam os comentadores colocar nas questes epistemolgicas, como acima j ressaltamos. De fato, no caso do Teeteto, a segunda preocupao tem conduzido os intrpretes a verdadeiros erros de exegese, tal como afirmar que a digresso sobre o filsofo, inserida no corao do dilogo, nada tem que ver com o restante da dramaturgia, ou, o que ainda pior, afirmar que o dilogo tem qualquer coisa de desconexo, dado que apresente enorme gama de problemas28. Apresentaremos logo frente alguns argumentos contrrios a essa nfase desmesurada, mostrando como o dilogo pode ser mais bem compreendido se a anlise da alma do jovem Teeteto, assunto que abre e fecha a conversa, encarada como raiz pivotante da obra, ao invs da discusso roda da pergunta pelo conhecimento.

    parte tais questes, outras caractersticas gerais do dilogo podem ser ressaltadas. Em primeiro lugar, praticamente inegvel que ele apresente o que se pode alcunhar de estratgia de distanciamento por

    27 Seguimos a apresentao da controvrsia tal como apresentada pelo prprio Timothy

    Chapell. Cf. CHAPELL, 2005, pg. 16-21. David Sedley tem posio peculiar no debate: ao mesmo tempo em que aceita certas mudanas no pensamento de Plato, o que considera bvio, ressalta a sua continuidade. SEDLEY, 2004, pg. 15. Jos Trindade resume a controvrsia da seguinte maneira: A [leitura] de Cornford: ler a obra como uma reduo ao absurdo de qualquer tentativa de entender a realidade sem a teoria das formas; a de Ryle: como puro e simples abandono dessa teoria. A prpria posio de Trindade peculiar: admite a inteno dramtica do dilogo, mas enfatiza apenas as questes epistemolgicas. SANTOS, 2008, pg.8; 10, n. 13. 28

    Segundo Chapell, Ian Crombie e John Mcdowell ressaltariam o carter desconexo do dilogo. CHAPELL, 2005, pg. 23-24. Foi Ryle quem disse que a digresso sobre o filsofo era philosophically quite pointless. Outros autores, levados pela mesma impresso, defenderam que o Teeteto serve como espcie de comentrio filosfico a uma srie de posturas possveis. LIMA, 2004, pg. 30. Mais de um autor admite que se trata de uma composio nica de Plato. SANTOS, 2008, pg. 12; BOERI, 2009, pg. 228.

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    parte de Plato. No se trata nem de descrio direta como ocorre, por exemplo, no Eutfron ou em outros dilogos; tampouco se trata da narrao de algo passado, como se d no Banquete; mas sim da leitura, realizada por um terceiro, de uma narrao anotada por um dos ouvintes. Com efeito, um dos escravos de Euclides que, num ato costumeiro para a poca, l o relato para seu dono e para seu amigo, Terpsio 29. A estrutura dramtica assim a sobreposio de mais de um plano narrativo. No obstante isso parea no ter nenhuma importncia para a compreenso do dilogo como um todo, suscitou o interesse de alguns dos seus leitores30. Em segundo lugar, deve-se notar que neste dilogo que Plato apresenta a celebrrima comparao do trabalho de Scrates com o trabalho das parteiras. A semelhana das duas atividades serve para detalhar todas as singularidades da concepo pedaggica de Scrates e de Plato, que completamente diversa da concepo comum e tambm da sofstica. Para alguns comentadores, o trecho sobre as parteiras deve remeter o leitor teoria platnica da reminiscncia, que tambm pressupe que o conhecimento j esteja presente em cada pessoa; para outros, ele anuncia que o dilogo ser inconclusivo ou

    29 Teet., 143b3. Gentlemen of leisure (eleutheroi) did not go normally to the trouble of

    reading documents for themselves: they got a slave to read the documents to them. Plato must have expected that the Theaetetus itself would be read in this way. (No doubt it was). So Plato means you, his reader, to be in this situation: you are having the Theaetetus read to you by your slave; and what is happening in the Theaetetus, as your slave reads it to you, is that two men are having Eucleides memoir read to them by their slave. I made some brief remarks about Platos use of distancing techniques in section 3. Here is another distancing technique. CHAPELL, 2005, pg. 30. 30

    Com uma soluo relativamente simples de apresentao temos um resultado singular: um dilogo narrado, ou uma narrao sob forma de dilogo, em que Scrates o personagem principal e primeiro narrador, seguido por outros narradores, Euclides, como seu escravo, e, naturalmente, Plato. significativo que logo o dilogo no qual, graas imagem da maiutica, a forma dialgica parece ser mais claramente indicada como condio de investigao filosfica, seja consequncia de repetidas narraes. LIMA, 2004, pg. 12. Paulo Butti de Lima ainda analisa por que Heidegger, diante desse distanciamento, ficou to perplexo. Ele lembra que j na Antiguidade os comentadores tiveram seu interesse despertado por esse prlogo, quando duas verses diferentes circulavam; mas faz notar que a preocupao de Heidegger de outra ordem, e tem que ver com a diferena entre filosofia e histria ou filosofia e narrao. Heidegger teria ficado perplexo com o prlogo porque, enquanto tpico filsofo, descartava a narrao como meio de se expressar a filosofia, algo de que d mostras, em Ser e Tempo, ao comparar o estilo de Tucdides com o de Plato nas passagens conceituais do Sofista. LIMA, 2004, pg. 12. Cornford tambm relembra a existncia do outro prlogo mencionado pelo comentador annimo do dilogo: ele acredita que a outra verso existente foi apenas um esboo que calhou de ser preservado. CORNFORD, 1979, pg. 15. Para Sedley, o prlogo de fato nico na obra de Plato, e tem vantagem de receber o aval de Scrates. Ele acredita que a inteno de Plato seja remeter os leitores para o Scrates histrico, haja vista o Scrates apresentado no Parmnides, dilogo anterior ao Teeteto, indubitavelmente fictcio, sustentando teses que so apenas de Plato. SEDLEY, 2004, pg. 16-17.

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    experimental31. De nossa parte, suspendemos o juzo sobre o fato de ter Plato desejado que os leitores fizessem tal paralelo; mas no podemos negar que a passagem tem estreitos liames com a reminiscncia, algo que ser mostrado quando entendermos melhor o fenmeno da admirao. Independentemente da posio tomada, contudo, a comparao continua a ser uma das mais clebres que Plato j escreveu e deve ser lida ao mesmo tempo com sentimento e razo32. Em terceiro lugar, convm dizer uma palavra sobre o carter inconclusivo do dilogo, j mencionado superficialmente. Como Burnyeat salienta, no fundo no ficamos sabendo qual seja a viso de Plato sobre o conhecimento; apresenta-se-nos um drama de ideias que, do ponto de vista terico, tem resultado negativo33. O dilogo s positivo no que toca ao efeito que causa no jovem Teeteto, o que constitui, a nosso ver, razo a mais para que seja tomado como elucubrao acerca da filosofia que usa da problemtica em torno do conhecimento para se desenvolver. Mas isso ser tratado nas sees seguintes.

    Cabe dizer, por fim, que a singularidade desse escrito no se esgota no que foi dito acima. Outros pontos h para serem recordados. O clima em que ele se desenvolve, por exemplo a sua leitura em Mgara, num plano, e os seus personagens envolvidos diretamente com a matemtica, no outro relaciona-o do incio ao fim a certo tipo de conhecimento que sempre foi concebido por Plato como o mais seguro e perfeito, apesar de todos buscarem ironicamente o significado dessa palavra. Ademais, embora haja na famosa digresso o estabelecimento de diferenas entre o filsofo e o orador ou o sofista, a certa altura presenciamos um Scrates que se metamorfoseia em Protgoras a fim de defender a tese do homo mensura. Isso tudo sem falar no que discutido propriamente sobre o conhecimento: to profundas e rigorosas so as

    31 Tanto o comentador annimo quanto Cornford veem na maiutica aluso direta ao Mnon,

    dilogo em que a teoria da reminiscncia recebe larga ateno. CORNFORD, 1979, pg. 27-29. Outros autores, entre eles Chapell e McDowell, negam tal paralelo. CHAPELL, 2005, pg. 46. Sedley ressalta os paralelos e as diferenas, e mostra como o raciocnio de Scrates um tanto falacioso. SEDLEY, 2004, pg. 19-22. 32

    The passage in which Socrates compares himself to a midwife is deservedly one of the most famous Plato ever wrote; it should be read with feeling as well as thought. BURNYEAT, 1990, pg. 6. Burnyeat ainda acredita que a passagem faz parte de toda a estratgia que Plato emprega a fim de apresentar a primeira das definies dadas por Teeteto, segundo a qual conhecimento percepo. Uma vez que tal definio testada e logo ento abandonada, no h motivos para no aceitar semelhante interpretao, condizente com a mestria que Plato sempre apresenta. 33

    We never learn what Plato thinks knowledge is. Nonetheless, we are clearly meant to see that the negative outcome of the inquiry is not defeat but progress. BURNYEAT, 1990, pg. 2.

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    teses ventiladas, que a tradio filosfica pde se apropriar do dilogo de diversas maneiras. Berkeley viu nele uma defesa do empirismo; Wittgenstein encontrou expresso de certo atomismo lgico e tambm exemplos da nsia de generalizao que ofusca os filsofos; outros ainda viram uma apologia do pragmatismo34. Nenhuma dessas vises, contudo, est completamente certa ou completamente errada; parece que nesse dilogo se manifesta de modo ntido o apelo protrptico que costumeiro em Plato, cabendo ao leitor se decidir pela melhor das teses postas em jogo35.

    Nas prximas sees, analisaremos o que o dilogo tem para dizer sobre a origem da filosofia. Comeamos por ver como a conversa se desenvolve, levando em conta a ordem em que apresentada.

    1.2. A conversa de Scrates e Teeteto

    O dilogo se inicia com pequena troca de palavras entre Euclides e Terpsio, que serve basicamente para dois motivos: como homenagem pstuma a Teeteto e como explicao do meio pelo qual a conversa entre Scrates e o menino foi conservada36. O segundo motivo j foi brevemente explicado acima, quando referimos a estratgia de distanciamento usada por Plato. O primeiro motivo, por seu turno, se relaciona com o sentido geral do dilogo conforme o compreendemos: os dois amigos, que acabaram de ver Teeteto em mau estado, ferido e ainda doente de disenteria, recordam como o vaticnio de Scrates, de acordo com o qual o jovem tornar-se-ia homem clebre, era preciso e correto. Alm de Plato elogiar com essa cena um membro muito ilustre e querido de sua Academia37, ele mostra que a longnqua conversa havida entre seu mestre e o efebo prestou-se para que esse ltimo, que j tinha boas inclinaes, seguisse o caminho honrado dos belos e bons, dando mostras duma alma nobre. Isso significa, em retrospectiva, que Plato est a dizer que o efeito provocado por Scrates em Teeteto deu

    34 BURNYEAT, 1990, pg. 1.

    35 CHAPELL, 2005, pg. 13. Chapell compara o Teeteto s Meditaes de Descartes, as quais

    no devem ser apenas lidas, mas tambm feitas e vividas. 36

    Segundo Boeri, esse prlogo seria o lugar em que Plato declara expressamente sua insatisfao com a forma narrativa. BOERI, 2009, pg. 230. 37

    CORNFORD, 1979, pg. 15. Teeteto era um dos membros ilustres da Academia e um dos pioneiros da matemtica, principalmente da estereometria. O livro XIII dos Elementos de Euclides tinha por base muitas das suas descobertas, e provvel que por sua influncia Plato tenha dedicado tanta valor a esse ramo da geometria, incluindo-o no currculo do filsofo. LESKY, 1995, pg. 568; JAEGER, 2003, pg. 903.

  • 18

    frutos: o menino tornou-se filsofo, adotando um modo de vida que lhe permitiu, entre outras coisas, ser probo e corajoso quando solicitado pelo dever ptrio.

    Terpsio: Pelo que dizes, estamos na iminncia de perder um homem e tanto! Euclides: De muito merecimento (ka lo /n t e ka i a )g a qo /n), Terpsio. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os maiores elogios, pelo modo como se houve na batalha. Terp.: No de admirar. Estranho seria se fosse diferente. Mas por que no ficou aqui em Mgara conosco? Eucl.: Tinha pressa de chegar a casa. Insisti com ele e o aconselhei muito; porm no se deixou convencer. Por isso, o acompanhei; e, ao retornar, lembrei, com admirao (e)qa u /ma sa), de como Scrates foi bom profeta a respeito de muita coisa e tambm de Teeteto. Se mal no me lembro, pouco antes de morrer ele encontrou Teeteto, que ainda era adolescente. Ambos a se conhecerem, e logo a conversar, tendo Scrates ficado encantado com a natureza do rapaz (a u)t o u= t h\n f u/si n). Quando estive em Atenas, Scrates me falou pormenorizadamente da conversa que ento mantiveram, tendo acrescentado que se ele chegasse a ser homem, fatalmente se tornaria clebre. Terp.: S falou a verdade, como parece. E a respeito de qu conversaram, poderias dizer-me?38

    O prlogo nos coloca, portanto, diante de uma iniciao filosofia, de uma converso da alma inteira que foi indubitavelmente bem sucedida, porquanto esteja sendo confirmada, depois de longos anos, por pessoas com capacidade para realizar tal julgamento39. este o liame que introduz diretamente o segundo promio, aquele do dilogo propriamente dito, onde Scrates fala de sua nsia por conhecer meninos bem-dotados do ponto de vista intelectual; e este o sentido geral da

    38 Teet., 142b6-d5.

    39 Jos Trindade Santos acredita que toda a cena fictcia e irrelevante para a compreenso do

    dilogo. Certamente discordamos de sua postura, pelo menos no que toca importncia da cena para a compreenso do dilogo. SANTOS, 2008, pg. 22, n. 22; pg. 23, n. 23.

  • 19

    obra, que conecta todas as suas partes num todo harmnico. Com efeito, a ideia de iniciao filosofia, como j dissemos, a raiz principal a partir do qu se ramificam as outras radculas do dilogo: ela no s d incio encenao, como tambm conclui todas as discusses. O trecho supracitado, para que no seja encarado apenas como expediente arbitrrio de Plato, ganha sentido quando compreendido como a possibilidade de avaliar o sucesso de um evento passado: este o cerne da estratgia de distanciamento aqui exemplificada. No prosseguimento do dilogo, o nexo dessa iniciao com as outras partes se torna bastante ntido: em primeiro lugar, ele ilumina a comparao de Scrates com as parteiras, que explica em que consiste o mtodo de ensino do filsofo; em segundo, esclarece a afirmao sobre a origem da filosofia; e, por ltimo, revela o sentido da digresso sobre o filsofo, que, como se fora uma pea retrica, oferece a Teeteto e a seus amigos bela e pungente imagem do que seja dedicar-se filosofia. Esses pontos nunca so bem interligados nas interpretaes do dilogo, justamente porque, como dito, costuma-se dar exagerada nfase s discusses epistemolgicas, tomando-as como a espinha dorsal do drama. Mas essas discusses so usadas, a nosso ver, com o propsito de avaliar a alma de Teeteto e de lhe apresentar a filosofia40. Certo que elas possuem interesse e importncia em si mesmas, servindo para que tenhamos conscincia do que ocupava o pensamento de Plato por esse tempo; mas o seu carter aportico perde o sentido se no visto em direta relao com a iniciao do efebo. Mesmo no interior das discusses, a propsito, pode-se perceber nitidamente uma progresso argumentativa que visa levar Teeteto da esfera das simples sensaes, onde ele se encontra antes de se relacionar com Scrates, at a esfera da suprassensibilidade. As trs definies de conhecimento apresentadas ao longo da conversa a) sensao, b) opinio verdadeira e c) opinio verdadeira acrescida de justificao por si s encaminham o jovem para um horizonte mais

    40 Consequently, we treat the Theaetetus as a work whose explicit question about knowledge

    is directly linked with the deeper issue of what philosophy is. BENITEZ; GUIMARES, 1993, pg., 209. Em verdade, seria de se perguntar se a funo do Teeteto no oferecer a caracterizao do filsofo. Sabemos que ele pertence trilogia do Sofista e do Poltico, onde os personagens se propem a investigar a definio de cada uma dessas figuras (Sof., 217a; Pol., 257a); contudo, no temos um dilogo com o ttulo Filsofo. Ora, no seria isso estratgia irnica de Plato, dar-nos o retrato do filsofo no dia anterior s discusses sobre o sofista e o poltico? Tal estratgia ainda explicaria por que Scrates deixa de ser o condutor dos dois dilogos seguintes, bem como o fato de o estrangeiro de Eleia incluir Scrates junto dos sofistas. Trata-se, porm, apenas de hiptese que no temos o intuito de defender nesta ocasio. Como diz Cornford: Why the Philosopher was never written, we can only conjecture. CORNFORD, 1979, pg. 169.

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    intelectualista do que sensvel. Tal trajeto representa a sada da caverna ou o incio psquico da filosofia atravs da admirao. Em cada um desses momentos teremos oportunidade de ver como isso acontece.

    No promio do evento rememorado, Plato se concentra na capacidade socrtica de analisar os jovens e distinguir as naturezas bem-dotadas; mas tambm ressalta a preocupao de seu mestre com a educao e com o cuidado dos futuros cidados atenienses41. Scrates aparece no ginsio, dialogando com Teodoro, procura de meninos que se sobressaiam em algum gnero de estudo, sendo assim dignos de meno (a)c i% lo/gou). Ele interroga o velho gemetra, que tem muitos pupilos sob sua guarda, sobre os jovens atenienses, pois se preocupa em primeiro lugar com seus concidados, embora tambm apreciasse conhecer efebos vindos da terra natal de seu interlocutor, Cirene42. Essa sua caracterstica j nos conhecida: Scrates homem de seu tempo e de sua cidade; a sua mensagem visa deixar os Atenienses despertos, e talvez apenas por conseqncia se refira ao homem em geral43. Ambos os personagens so j idosos: Teodoro at se queixa de sua dificuldade em acompanhar as discusses, e o dilogo, segundo Euclides, deu-se num momento pouco antes da morte de Scrates. O clima matemtico relembrado no apenas por Teodoro, mas tambm pelo prprio Teeteto. Talvez eles mesmos, como notado acima, sejam exemplo de pessoas que lidam diariamente com o tipo mais seguro de conhecimento, a saber, as matemticas44. Ao responder a pergunta feita por Scrates, Teodoro afirma que teria algum receio de mencionar o jovem caso ele fosse belo, porque ento poderiam dizer as ms lnguas que ele anda por a enamorado pelos efebos. Contudo, acontece que o menino no apenas no belo, mas at mesmo se parece com Scrates,

    41 Nesse mesmo dia, sabemo-lo, Scrates conversou com o adivinho Eutfron. A preocupao

    com a educao dos jovens continuava em sua mente: Afigura-se-me o nico [Meleto] que, em matria de poltica, inicia como se deve, pois no justamente dos jovens que deve se ocupar para torn-los virtuosos, da mesma maneira que o bom lavrador se ocupa primeiramente das plantas tenras, e depois das outras? Talvez seja esta a razo por que Meleto comea o tratamento por ns que, conforme ele diz, somos os corruptores dos jovens em fase de crescimento. Eutf., 2c8-3a2. 42

    Teet., 143d1-143e3. 43

    Apol., 30e3-31a7. Tal distino de prioridade tnica, alis, outra coisa que Scrates partilha com Cristo. 44

    Eugnio Benitez e Lvia Guimares notam como o dilogo apresenta trs tipos de conhecimento personificados em trs personagens: a matemtica (Teodoro), a filosofia (Scrates) e a sofstica (Protgoras). Segundo eles, o propsito de Plato seria fazer com que o jovem Teeteto, que representa a juventude, optasse por um desses gneros de saber. BENITEZ; GUIMARES, 1993, pg. 305-306.

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    tendo o mesmo nariz achatado e os mesmos olhos saltados45. Esta semelhana dos interlocutores no parece ser aluso casual; em verdade, ela nos recorda imediatamente o discurso de Alcibades no Banquete, pelo qual sabemos que Scrates, em que pese seu aspecto externo, possua beleza interna que sobrepujava tudo quanto sensvel46. Talvez se trate de uma aluso de Plato alma do menino Teeteto, que possui qualidades dignas do filsofo ideal da Repblica. De resto, no julgamento de Teodoro j est pressuposta a revoluo esttica levada a efeito por Scrates, que valoriza mais a beleza interior ou anmica do que a beleza sensvel. Isso tambm aparece na naturalidade com que o gemetra comenta a feiura de Scrates. Em sua longa jornada pedaggica, em que ensinou muitos meninos, Teodoro nunca encontrou nenhum com to maravilhosa natureza (qau mastwj eu pe fu ko/t a). Ele cita as vrias aptides de que Teeteto dotado: facilidade de aprender incomparvel, docilidade nica, boa memria, rpido entendimento. Teeteto no se deixa levar nem pela ira nem pela preguia, e a sua vivacidade, que lhe garante vrias qualidades espirituais, no o torna impulsivo tal um navio sem lastro. Ele avana com naturalidade na senda do saber e, levando-se em conta a sua idade, de se admirar (qau ma/sai) com o que j realizou47.

    O primeiro pronunciamento sobre Teeteto, assim, no podia ser mais favorvel: seu mestre Teodoro gaba-lhe sem peias a natureza. Nas qualidades que ele enumera, podemos ver a primeira referncia de Plato Repblica, notadamente ao livro VI. Tal livro antecede o clmax da obra apresentado na stima parte, clmax esse que mantm relao explcita com a digresso sobre o filsofo contida no Teeteto. No livro VI, Plato se dedica caracterizao precisa dos filsofos, alinhavando suas qualidades e diferenciando-os do restante das pessoas. Ele pretende perscrutar a sua natureza (f u/sin) a fim de ver se podem ou no ser os guardies da cidade idealmente arquitetada, tal como abaliza aqui a natureza do adolescente para ver suas aptides48. Muitos so os apangios elencados, todos os quais contribuem para esboar um modelo ideal. Primeiramente dito que os filsofos andam sempre apaixonados pelo saber, no de forma fragmentada, mas almejando a essncia imutvel em sua totalidade. Dado que se voltem para isso, tm averso mentira e aspiram somente verdade, a qual sempre est

    45 Teet., 143e4-9.

    46 Banq., 218e7-219a4.

    47 Teet., 144a-144b7.

    48 Rep., 485a5-8.

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    intimamente ligada sabedoria. A concentrao dos seus desejos tambm os faz cuidar apenas dos prazeres da alma, deixando de lado os do corpo. Por tal motivo, assim, eles no se afadigam em busca de riquezas, sendo naturalmente moderados. Tambm no possuem nenhum tipo de mesquinhez que os impea de alcanar o divino, seu supremo objetivo. Eles se voltam para a contemplao de todo o ser, olhando para a vida sub specie deorum. Tal altivez de olhar faz com que sejam corajosos e no temam a morte. Alm disso, eles so pessoas de natureza justa e cordata; tm facilidade de aprender e boa memria, cultivando atitude de esprito comedida e agradvel que lhes facilita o acesso ao ser

    49. Nas palavras concludentes de Scrates:

    Ser ento possvel censurar, sob qualquer aspecto, uma ocupao tal que nunca ningum ser capaz de a exercer convenientemente, se no for de seu natural dotado de memria e de facilidade de aprender, de superioridade e amabilidade, amigo e aderente da verdade, da justia, da coragem e da temperana?50

    O jovem Teeteto possui praticamente todas as caractersticas agrupadas nessa passagem. Estamos diante, portanto, de uma iniciao ideal, que se direciona a algum com toda a propenso natural para sair da caverna e se tornar filsofo51. Esse fato alegra Scrates, que nem sempre encontra bons interlocutores, e ele logo deseja saber quem o pai do menino. Teodoro no se recorda do nome do progenitor, mas imediatamente aponta Teeteto, que vem se aproximando junto com outros efebos, todos os quais acabam de ter untado seu corpo com leo 52

    . Essa preparao para a ginstica acaba se revelando uma preparao para entrar em contato com Scrates, que tambm exercia certa ginstica intelectual. Se Teeteto e os outros meninos esto com os corpos nus, o que provvel, Scrates desnudar doravante a sua alma, analisando-a e

    49 Rep., 485b-486e.

    50 Rep. 487a2-5.

    51 LIMA, 2004, pg. 10. Em verdade, Teeteto o jovem com grande potencial que pode ser

    facilmente influencivel, sumariando em sua pessoa toda a juventude ateniense da poca, o prprio Plato inclusive. BENITEZ; GUIMARES, 1993, pg. 301-302. Scolnicov acredita que a tarefa socrtica provocar uma revoluo psquica em seus interlocutores pode ser facilmente realizada com Teeteto, graas s inmeras qualidades do adolescente. Scrates nem precisa se valer de toda a sua ironia, pois seu interlocutor bem disposto, no se zanga por ser refutado e prontamente reconhece seus erros. SCOLNICOV, 2006, pg. 56-57. 52

    Teet., 144c4.

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    inspecionando para descobrir seus defeitos e sua aptido para o exerccio intelectual53. Em verdade, Scrates tambm encetou revoluo ginstica, pois a despeito de nunca desprezar o corpo e de ser ele mesmo algum de constituio s e robusta, preza mais o treinamento da alma, o qual tambm garante o domnio do corpo54. Scrates reconhece o pai do efebo, Eufrnio, e garante ter ele sido homem de bom carter (como seu nome o diz) e ter deixado considervel herana55. Percebe-se por tal comentrio como Scrates conhecia seus concidados e se preocupava com o que eles faziam entre quatro paredes, o que vai surpreendentemente contra a ideia do filsofo alheado e distante, apresentada na longa digresso protrptica contida no dilogo56. Com efeito, deve-se ter sempre em conta essa ambigidade relativa ao filsofo tal como descrito por Plato e representado por Scrates: ao mesmo tempo em que ele no d a mnima ateno para os assuntos sobreposse humanos que alimentam a fogueira do falatrio e da fama da cidade, ele est sempre inteirado do que se passa ao seu redor e preocupado em tornar melhores aqueles que, no trato ntimo, vm ao seu encontro. Assim que Scrates trouxe a filosofia para os lares e as cidades, e definiu sua tarefa como a observao e o cuidado daquilo que feito privadamente, ao mesmo tempo em que evitou os lugares pblicos ao longo de sua vida, no entrou em nenhuma disputa pelo poder e absteve-se da tentativa de se tornar clebre ou poderoso.

    Teodoro chama Teeteto e seus amigos, e Scrates comea a questionar o menino com absoluta naturalidade, sem que tenham acontecido as devidas saudaes e apresentaes. Seu modo de agir

    53 Sobre esse ponto: Surgiu assim uma ginstica do pensamento que logo teve tantos

    partidrios e admiradores como a do corpo, e no tardou a ser reconhecida como o que j esta vinha sendo havia muito: como uma nova forma de paidia. A dialtica socrtica era uma planta indgena peculiar, a anttese mais completa do mtodo educativo dos sofistas, que tinha aparecido simultaneamente com ela. JAEGER, 2001, pg. 523. Nietzsche possui a mesma opinio: Dass er eine neue Art Agon entedeckte, dass er der erste Fechtmeister davon fr die vornehmen Kreise Athens war, is das eine. Er faszinierte, indem er an den agonalen Trieb der Helenen rhrte er brachte eine Variante in den Ringkampf zwischen jungen Mnnern und Jnglingen. Sokrates war auch ein grosser Erotiker. NIETZSCHE, 2008b, 8, pg. 19. 54

    No Crmides, Scrates diz que aprendeu o uso de certo remdio e dos encantamentos que o acompanham junto de Zalmxis, famoso mdico trcio de influncia pitagrica. Este mdico defende que a alma tem poder soberano sobre o corpo e suas doenas, sendo dela que derivam todos os bens e todos os males. A crena tambm partilhada por Scrates. Crm., 156e6-157a1. Para ele, alis, a finalidade da vida humana atingir a perfeio da alma. CORNFORD, 2001, pg. 8. 55

    Poder ser que a herana a mencionada seja a boa influncia moral do pai sobre o filho. BENITEZ; GUIMARES, 1993, pg. 308. 56

    Segundo Digenes Larcio, Scrates se ocupava daquilo que se faz em casa de bem e de mal, ou seja, de questes essencialmente ticas. Vidas., II, 21, 4.

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    abrupto e nada convencional, mas simultaneamente familiar, paternal e amistoso. Fala ao jovem que Teodoro os comparou fisicamente, e de pronto lhe pergunta se a comparao exata, lanando mo de analogia com as artes a fim de averiguar a exao do juzo de Teodoro. Se dissesse um msico haver a mesma afinao entre duas liras, eles aceitariam a sua opinio profissional; mas como crer em Teodoro, que nem ao menos pintor para estar a a falar de semelhanas fsicas?57 Todavia, se algum elogiasse a alma de outrem, no que toca virtude e sabedoria, no conviria que aquele que ouviu o elogio analisasse a alma do elogiado, e que o elogiado a exibisse? Scrates se prope, assim, a investigar a alma de Teeteto, e este deve se despir intelectualmente atravs de uma discusso. Tal como se fosse mestre de ginstica, Scrates far avaliao do menino. As palavras so vistas como reveladoras do esprito de algum: assim como a rvore se conhece pelos frutos e o leo pelas garras, assim a alma pelas palavras. No preciso dizer que Scrates, em fazendo isso, afirma-se como algum capaz de ajuizar sobre a natureza psquica das pessoas. Deve-se notar, de resto, que Scrates no se distancia do horizonte intelectual do menino, mas lhe pergunta algo que tem relao com os estudos matemticos. Ele deseja conversar com Teeteto e com os seus amigos no intuito, ns o sabemos, de lhes provocar a curiosidade intelectual e convert-los filosofia. A sua pergunta, contudo, assaz exigente, fazendo jus aos grandes dotes de seu interlocutor: que o saber? Teodoro se recusa a discutir com Scrates e o aconselha a no largar Teeteto58. Ao tentar dar uma resposta a Scrates, Teeteto oferece vrios exemplos de conhecimento, errando no mesmo ponto metodolgico em que Mnon, em sua conversa com Scrates, j se enganara59. Scrates o faz ver que procura uma definio geral: no quer saber, por exemplo, os vrios tipos existentes de lama a lama dos oleiros, a lama dos construtores de fornos etc. mas sim que lama terra molhada. Teeteto facilmente compreende a analogia e afirma que ele e seus amigos j passaram por algo do gnero: tentaram reunir todas as potncias, que so em nmero infinito, em apenas uma que fosse

    57 Teet., 144d9- 145a13.

    58 Teet., 146b1-7.

    59 Teet., 146c7-d2. A semelhana do erro de Teeteto com o de Mnon (Mn., 72a6), e o fato de

    ambos carem em aporia, serve de base para que Cornford, como dissemos acima, veja na passagem sobre a maiutica uma aluso teoria da reminiscncia, amplamente elaborada no Mnon. CORNFORD, 1979, pg. 27-29.

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    capaz de designar todas as outras60. Entretanto, Teeteto acredita que no consegue responder questo posta por Scrates, sendo que Teodoro deve ter ajuizado mal sobre sua natureza. A princpio, ele at tinha oferecido com alguma tranquilidade uma tentativa de resposta; mas ela foi refutada por Scrates e ele se encontra agora num esprito mais brando, como que admitindo que no sabe a resposta procurada. Este o primeiro momento em que o jovem sofre os efeitos de uma pequena aporia: ele no sabe para que lado ir. Scrates no o deixa desistir e o reanima, como antes j fizera, com uma frmula que mais do que usual em sua boca: S corajoso 61. Alm disso, mostra que o problema no fcil e a culpa no vem de Teeteto. O menino admite que, tendo ouvido algo a respeito dos temas tratados por Scrates, j tentou descobrir uma definio para o conhecimento, e embora no tenha logrado nenhum sucesso, a questo ainda hoje o incomoda62. Pode-se supor a partir disso que ele acalentasse a ideia de um dia vir a conversar com o famoso filsofo, e por isso fosse treinando e se preparando para tal encontro; talvez quisesse lhe mostrar que no seria facilmente refutado como as outras pessoas. Em todo caso, certamente deve ter sido com ansiedade e grande expectativa com um frio na barriga, para sermos bem preciso que ele se encaminhou para junto de Scrates depois de ter sido chamado pelo seu professor. Conquanto ele s expresse ingenuamente o que sente (pe/pon qa), Scrates afirma que suas dores so dores de parto, o que mostra que ele no est vazio. Scrates ainda conta algumas coisas sobre si mesmo, em tom de gracejo, supomos, como que para se tornar mais familiar e menos temido pelos adolescentes: diz que ele o homem mais absurdo do mundo (a)t opwt ato/j) e que gera confuso (a)pore in) no esprito dos

    60 Teet., 147c7. Chapell discute o fato de Scrates no aceitar definies dadas com auxlio de

    exemplos, contrapondo tal procedimento com a filosofia de Wittgenstein. CHAPELL, 2004, pg. 34-38. interessante notar que, na fala do jovem Teeteto sobre a matemtica, Plato evidencia mais uma vez que o menino tem tudo para ser o filsofo ideal. As disciplinas matemticas que Teeteto cita quando fala de sua experincia com as potncias a progresso que vai da aritmtica, via geometria plana, at a geometria dos slidos e ento alcana dialtica so exatamente as mesmas disciplinas que compem o currculo do filsofo no livro VII da Repblica. Teeteto ainda chega a dizer que deseja estudar com Teodoro, no futuro, astronomia, harmonia e clculo, que so o restante do currculo, sem falar no fato bvio de que ele est num ginsio (Teet., 145d1-3). Assim, a ligao deste dilogo com a Repblica mais do que clara e premeditada. SEDLEY, 2004, pg. 27; CHAPELL, 2004, pg. 30. 61

    Teet., 148c9. Segundo Jos Trindade, este elemento dramtico, pelo qual Scrates encoraja o menino e s vezes Teodoro, abunda no Teeteto e comparativamente raro em outros dilogos. SANTOS, 2008, pg. 6, n. 3. Isso pode servir como mais um indcio do carter protrptico da obra. 62

    Teet., 148e.

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    homens63. Teeteto se mostra informado sobre esse ponto, o que confirma a hiptese de que tivesse algum receio ou expectativa de se deparar com Scrates. Todavia, tanto o jovem como as demais pessoas desconhecem o fato de que Scrates tambm parteiro, tal como o foi a sua me. Ele pede que o jovem no divulgue esse fato para ningum e expe o que seria a sua maiutica. Convm salientar que o seu procedimento diferente do que costuma ocorrer em outros dilogos. Aqui, Scrates como que revela de antemo o que h de acontecer ao seu interlocutor pelo simples fato de entrar em contato com a sua absurdidade. Em outros lugares como no Mnon, no Laques e no Banquete so seus interlocutores que forjam metforas e comparaes a fim de tentar compreender qual a essncia da ao de Scrates sobre suas almas; ele mesmo permanece silencioso ou ento toma ironicamente o que lhe atribuem64. Agora como se ele, mantendo sua inteno de levar o adolescente para fora da caverna atravs de um parto intelectual, precisasse as fases pelas quais o parturiente h de passar, com o fito de acalm-lo e de torn-lo confiante, mais ou menos como o mdico faz antes de uma cirurgia. Teeteto tem o privilgio de saber o que h de lhe acontecer ao longo do percurso argumentativo e experiencial que o conduzir para mais perto do Sol. Alm disso, Scrates lhe apresenta com essa comparao a peculiaridade do mtodo filosfico, que se aparta do matemtico e do sofstico, dando ensejo para que o menino aclare seu horizonte mental e diferencie essas formas de saber. Ao invs de dedues e demonstraes, ou de longos discursos e improvisaes brilhantes e enfeitadas, a filosofia lida, numa de suas partes essenciais, com operaes doloridas na alma das pessoas, expurgando-as da presuno do saber e deixando que verdadeiros conhecimentos aflorem e venham tona. Este o cerne do mtodo socrtico de refutao, que consiste em destruir via ironia as opinies mal formuladas que os seus companheiros de conversa sustentam, bem como o cerne da refutao irnica, similar a uma catarse, que tambm utilizada pelo mais original dos sofistas65.

    63 Teet., 149a9. Essa capacidade de Scrates gerar aporia proverbial. BOERI, 2009, pg. 237.

    64 No Mnon, Scrates comparado por seu interlocutor a uma raia-eltrica e a algum capaz

    de encantar e enfeitiar as pessoas (Mn., 80a1-9). No Laques, Ncias explica o que Scrates causa em quem conversa com ele (Laq., 188b4-6). E no Banquete, por fim, Alcibades diz que Scrates possui os mesmos poderes do stiro Mrsias, alm de ser capaz de produzir delrios bquicos ou efeitos to poderosos quanto os provocados pela mordida de uma vbora (Banq., 215b4; 215e). Tudo isso ser mais bem estudado frente. 65

    Cf. Sof., 230b. A filosofia que Scrates aqui professa no um simples processo terico de pensamento: ao mesmo tempo uma exortao e uma educao. A servio destes objetivos esto ainda o exame e a refutao socrtica de todo o saber aparente e de toda a excelncia

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    Sem querer discutir se isso pressupe ou no a teoria da reminiscncia, o fato que sem dvida Scrates no acredita que est passando algum tipo de saber para seu interlocutor, seno que o est livrando de crenas ou, neste caso, ajudando-o a formul-las com nitidez66. A passagem sobre a maiutica se insere, assim, no escopo platnico de caracterizar o que seja a filosofia e o filsofo. Ela mesma a condio metodolgica, por assim dizer, para que Scrates seja capaz de suscitar maravilhamento em seus ouvintes, ou seja, para que os torne aptos a filosofar. Por tal motivo, em termos de estrutura do dilogo, a afirmao sobre a origem da filosofia aparece logo depois do primeiro fruto de Teeteto ter nascido.

    Midwifery is appropriate to a unique kind of problem that which originates in feelings of wonder and perplexity (155c; cf. 148e) and far from relieving that state of mind midwifery augments and transforms it. Perplexity and wonder occur when someones beliefs are suddenly shaken, when things long taken for granted are exposed to criticism; and in Socrates view this experience is characteristic of philosophy. As philosopher Socrates not only experiences wonder but induces it in others (149a)67.

    Toda a exposio da arte maiutica extrai seus elementos, por analogia, do trabalho das parteiras e das crenas populares que circulavam sobre elas68. Assim, tais profissionais so mulheres que j tiveram filhos, mas que atualmente j no podem parir; elas no so estreis, pelo fato de que a natureza humana no pode aprender uma tcnica da qual no tem experincia69. Embora veladamente, Scrates

    (arete) meramente imaginria. JAEGER, 2001, pg. 527. Para Jaeger o mtodo socrtico se faz de duas partes: refutao (elenchos) e exortao (protreptipkos). 66

    A metfora do parto mental, alis, algo comum em Plato, e aparece tambm no Banquete. BOERI, 2009, pg. 235; NIGHTINGALE, 2009, pg. 115-6. Segundo Trindade, Scolnicov considera a reminiscncia e a maiutica duas faces da mesma moeda. O prprio Trindade afirma que nada impede que se faa tal identificao. SANTOS, 2008, pg. 25, n. 29; pg. 55. 67

    BENITEZ; GUIMARES, 1993, pg. 320. A admirao suscitada pela mudana de opinies tem como base, no fundo, uma mudana de experincia: a passagem da ignorncia inconsciente para a conscincia da ignorncia. Isso ser visto nos prximos captulos. 68

    Chapell lista sete similaridades e quatro diferenas entre Scrates e as parteiras. CHAPELL, 2004, pg. 42-43. 69

    Teet., 149c1-2.

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    admite aqui que ele mesmo j pariu alguma coisa em algum momento de sua vida, porque do contrrio no poderia exercer seu ofcio. Pelo menos tem de ter gerado a ideia que possui sobre o seu prprio modo de educar seus ouvintes. Significativamente, rtemis, a irm de Apolo, a deusa protetora de tais mulheres e as auxilia nos partos. No improvvel a tentativa platnica de apresentar com tal ideia uma forma feminina para Apolo, o deus que sempre apadrinha Scrates em sua misso70. Da mesma forma que as parteiras reconhecem com facilidade uma mulher grvida, Scrates reconhece as almas prestes a parir algum conhecimento. Tal como o filsofo, as parteiras lanam mo de certos remdios (f arma/kia), poes e encantamentos (e )p#/ dou sai) a fim de aumentar ou diminuir as dores do parto, lev-lo a bom termo ou expulsar o fruto da concepo 71. talvez a afirmao mais clara de que Scrates tambm emprega artifcios retricos com a inteno de trazer luz os saberes que seus ouvintes possuem sem conscincia. Poes e encantamentos so palavras que fazem parte do lxico medicinal e, por extenso, do retrico; us-las no final do sculo V e incio do IV, quando Grgias ainda estava vivo, Protgoras ainda era lembrado e a tradio siciliana da retrica era espcie de moda, no mnimo significa fazer aluso a tais prticas72. Logo frente, veremos quais so as variantes desses remdios que Scrates emprega em seus interlocutores. Alm disso, as parteiras tambm so excelentes casamenteiras, pois no apenas sabem cultivar e colher o fruto, como tambm escolher o tipo adequado de semente para cada terreno73. Como Scrates falar explicitamente, isso quer dizer que ele pode recomendar a determinadas pessoas outros gneros de estudos mais propcios s suas naturezas e, de resto, que ele tambm sabe conversar com cada um de uma maneira diferente: retrico com Fedro, potico com on, empedoclesiano com Mnon, sofstico com Alcibades. Apesar de todas essas semelhanas, a arte das parteiras inferior de Scrates, porque ele precisa distinguir os frutos verdadeiros dos falsos, algo que no ocorre com as parteiras, que s presidem aos partos de crianas. Scrates, inversa, parteja homens e almas74. A sua superioridade est em que tem de examinar (b asanize in) de todos os modos o que o jovem pariu, a fim de ver se

    70 Cornford lembra que tanto rtemis quanto Leto so associadas filosofia no Crtilo, j que

    possuem carter casto e sbrio como o do filsofo. CORNFORD, 1989, pg. 141-2. 71

    Teet., 149c9-d3. 72

    Cf. Plebe, 1978. O Mnon, como veremos, outra evidncia dos poderes retricos de Scrates. 73

    Teet., 149d5-8. 74

    Teet., 150b6-9.

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    tem em mos quimeras, falsidades ou algo legtimo75. Ele percebe quando algum tem a sua alma prestes a ser iluminada por novo saber que deseja aflorar; tambm percebe se a pessoa apenas sofre modificao passageira, se apenas se instrui com o intuito de ser ainda melhor no interior da caverna, como os sofistas ensinavam. Com base nisso, v-se ser correta a acusao que lhe fazem, segundo a qual nunca apresenta ideias prprias, mas se limita a interrogar as outras pessoas 76. A divindade o impede de conceber e o incita a partejar os outros. Ele afirma no haver sequer um pensamento que tenha dado luz, o que, como j notamos, contraditrio, uma vez que as estreis no podem ser parteiras. Aqueles que convivem com ele, e que so auxiliados pelo deus, progridem s mil maravilhas (qau mast o\n oson), tanto segundo o seu juzo quando no juzo de outrem77. A melhoria dos amigos de Scrates perceptvel e evidente, pelo simples fato de que ele, fazendo com que cultivem e desenvolvam o elemento racional de sua alma, leva-os a se aproximarem cada vez mais de sua verdadeira humanidade. Eles nunca aprendem nada de Scrates, mas descobrem (e u(ro/nt ej) e geram (t e ko/nt ej) por si mesmos inmeras coisas belas. Muitos que desconhecem esse processo se afastam de Scrates antes do devido; acabam germinando frutos prematuros ou estragam os outros, e com o tempo parecem ignorantes aos prprios olhos e aos olhos de outrem. sem dvida o caso de Alcibades, de Crtias e de Aristides, filho de Lismaco, citado nominalmente no texto. Scrates s vezes os recebe de volta, quando seu gnio lho permite, mas s vezes os ignora 78. Todos os que convivem com ele sofrem (pa /sx ou si), por fim, o mesmo que as parturientes: andam prenhes de dores noite e dia, plenos de aporia e, pode-se adicionar, num estado fora do comum, com seus humores alterados e sua percepo do mundo transmudada. Scrates sabe despertar tal dor com sua tcnica. Ele tambm assume o papel de casamenteiro e encaminha algumas pessoas a certos especialistas e professores, como Prdico79.

    75 Este exame que Scrates realiza tambm o que ele faz de modo geral com as pessoas.

    Ncias d um testemunho, no Laques, de acordo com o qual j foi examinado vrias vezes por Scrates (u(po\ Swkra/touj b asaniz esqai), at mesmo com algum prazer (Laq., 188b4-6). Analisaremos melhor esse fato no terceiro captulo, pois o ser examinado por Scrates tambm uma espcie de experincia (pa/sxein). 76

    Teet., 150c5-7. 77

    Teet., 150d4. 78

    Teet., 150e-151a. 79

    Teet., 151b5. No Laques, temos um exemplo desse fato. Ao longo do dilogo, Laques expressa mais de uma vez a opinio segundo a qual Lismaco e Melsias devem consultar

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    A sua longa exposio faz com que Teeteto fique ainda mais dcil e receptivo. Scrates percebe que o jovem tem algo na alma pronto para sair; pede que se entregue aos seus cuidados e responda s questes que lhe propor. Ele no deve se aborrecer se tiverem de jogar fora algo intil, como o fazem os muitos que se zangam com Scrates e at o agridem, por no perceberem que s age por bondade. Como Teeteto no se arroga nenhum saber, no ser necessria nenhuma refutao forada, mas antes um encaminhamento para uma educao filosfica80. somente depois de saber o que est acontecendo consigo, portanto, que ele se aventura a continuar a conversa. O menino j tem agora alguma noo do que seja a filosofia: sabe que ela, como a matemtica, busca termos gerais que se aplicam a uma multiplicidade de coisas, mas sabe que tambm utiliza o mtodo maiu