o escravismo brasileiro nas redes do poder

11
7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 1/11  Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152. O Escravismo Brasileiro nas Redes do Poder: comentário de quatro trabalhos recentes sobre escravidão colonial O feitor ausente - estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro , de Leila Mezan Algranti. Petrópolis, Vozes, 1988, 224 p. Os leigos e o poder - irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais , de Caio Cesar Boschi. São Paulo, Ática, 1986, 254 p. Campos da violência, de Sílvia Hunold Lara. São Paulo, Paz e Terra, 1988, 384  p. Ideologia e escravidão - os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial , de Ronaldo Vainfas. Petrópolis, Vozes, 1986, 168 p.  Laura de Mello e Souza * O estudo da escravidão no Brasil é hoje um dos campos mais férteis de nossa historiografia, sobretudo em função do Centenário da Abolição, quando se multiplicaram as publicações de trabalhos e teses universitárias. Parece-me que este correspondeu ao terceiro grande momento dos estudos sobre escravidão brasileira no século XX. O primeiro foi marcado pelos trabalhos de Gilberto Freyre e pela visão do escravismo  paternalista, doméstico e doce, como o açúcar das  plantations nordestinas, e teve como conquista fundamental a percepção da importância da escravidão nas relações sociais do país e a tomada de consciência da mestiçagem. O segundo foi caracterizado pelos estudos científicos saídos das universidades brasileiras, principalmente da Universidade de São Paulo, e centrados no enfoque sociológico das relações sociais e na discussão da natureza capitalista da economia escravista. São deste momento os trabalhos de Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as relações sociais entre  brancos e negros e a integração do negro na sociedade de classes além das teses de Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni sobre capitalismo e escravidão no Sul do país. Um desdobramento desta última etapa foi a discussão sobre a natureza capitalista ou não da escravidão e a tentativa de entendimento do sistema escravista colonial como um modo de produção especifico. Ocorrida na década de 70, tal discussão opôs alguns dos principais centros universitários do país, gerou muitos equívocos, mas também alguns trabalhos definitivos, como os de Ciro Flamarion Santana Cardoso, Antonio de Barros Castro, Jacob Gorender e, sobretudo, Fernando A. Novais. O grande legado deste momento, verdadeira inflexão no curso dos estudos sobre escravidão, foi a percepção da necessidade de se estudar o escravismo colonial. O estudo de Freyre, como todos sabemos hoje, é absolutamente atemporal e impreciso em termos históricos - para não falar em geográficos. Os trabalhos da escola sociológica paulista incidiram todos sobre o período final da escravidão, quando  já não se podia falar que ela integrasse um sistema, dado que engastava-se nos quadros da nação  *  Laura Mello e Souza é professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo e autora do livro O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial (São Paulo, Companhia das Letras, 1986).

Upload: denise-vieira-demetrio

Post on 22-Feb-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 1/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

O Escravismo Brasileiro nas Redes do Poder: comentário dequatro trabalhos recentes sobre escravidão colonial

O feitor ausente - estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro,

de Leila Mezan Algranti. Petrópolis, Vozes, 1988, 224 p.

Os leigos e o poder - irmandades leigas e pol ítica colonizadora emMinas Gerais, de Caio Cesar Boschi. São Paulo, Ática, 1986, 254 p.

Campos da violência, de Sílvia Hunold Lara. São Paulo, Paz e Terra, 1988, 384 p.

Ideologia e escravidão - os letrados e a sociedade escravista no Brasilcolonial , de Ronaldo Vainfas. Petrópolis, Vozes, 1986, 168 p.

 Laura de Mello e Souza*

O estudo da escravidão no Brasil é hoje um dos campos mais férteis de nossa historiografia,sobretudo em função do Centenário da Abolição, quando se multiplicaram as publicações detrabalhos e teses universitárias. Parece-me que este correspondeu ao terceiro grande momento dosestudos sobre escravidão brasileira no século XX.

O primeiro foi marcado pelos trabalhos de Gilberto Freyre e pela visão do escravismo paternalista, doméstico e doce, como o açúcar das  plantations nordestinas, e teve como conquistafundamental a percepção da importância da escravidão nas relações sociais do país e a tomada deconsciência da mestiçagem. O segundo foi caracterizado pelos estudos científicos saídos dasuniversidades brasileiras, principalmente da Universidade de São Paulo, e centrados no enfoquesociológico das relações sociais e na discussão da natureza capitalista da economia escravista. São

deste momento os trabalhos de Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as relações sociais entre brancos e negros e a integração do negro na sociedade de classes além das teses de FernandoHenrique Cardoso e Otávio Ianni sobre capitalismo e escravidão no Sul do país. Um desdobramentodesta última etapa foi a discussão sobre a natureza capitalista ou não da escravidão e a tentativa deentendimento do sistema escravista colonial como um modo de produção especifico. Ocorrida nadécada de 70, tal discussão opôs alguns dos principais centros universitários do país, gerou muitosequívocos, mas também alguns trabalhos definitivos, como os de Ciro Flamarion Santana Cardoso,Antonio de Barros Castro, Jacob Gorender e, sobretudo, Fernando A. Novais. O grande legado destemomento, verdadeira inflexão no curso dos estudos sobre escravidão, foi a percepção danecessidade de se estudar o escravismo colonial. O estudo de Freyre, como todos sabemos hoje, éabsolutamente atemporal e impreciso em termos históricos - para não falar em geográficos. Ostrabalhos da escola sociológica paulista incidiram todos sobre o período final da escravidão, quando já não se podia falar que ela integrasse um sistema, dado que engastava-se nos quadros da nação

 * Laura Mello e Souza é professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo e autora do livro Odiabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial (São Paulo, Companhia das Letras,1986).

Page 2: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 2/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

independente, e não da colônia. A partir dos trabalhos de Ciro Cardoso e de Fernando Novais, oshistoriadores erigiram o escravismo colonial em um dos seus temas preferenciais de estudo e sederam conta de que muitas das formulações dos sociólogos valiam para o século XIX, mas não paraos séculos anteriores. Havia, pois, que resgatar significados perdidos e ir à raiz das coisas.

Seria difícil e maçante tentar um balanço geral da produção historiográfica recente, de cunhouniversitário, voltada para a problemática da escravidão e, a meu ver, integrante deste terceiro

momento. Procurarei enfocar quatro trabalhos que, além de sua relevância, apresentam traços co-muns o suficiente para justificar analisá-los em conjunto. Encontram-se neles representadas quatrouniversidades brasileiras - a USP, a UFMG, a UFF e a Unicamp -, amostragem significativa daabrangência do tema na atual produção historiográfica universitária em nosso país. Os trabalhos eseus autores são os seguintes: O feitor ausente, de Leila Mezan Algranti (1988), Os leigos e o poder,de Caio César Boschi (1986), Ideologia e escravidão, de Ronaldo Vainfas (1986) e Campos daviolência, de Sílvia Hunold Lara (1988). Estas publicações constituem teses universitárias defen-didas entre 1981 e 1986, acusando com nitidez o percurso atravessado pelo estudo da escravidãonos últimos anos. De uma forma ou de outra, todos eles discutem as relações entre escravidão e poder, inaugurando seara até então muito pouco explorada pelos estudiosos do assunto. A naturezaeconômica e social do escravismo é obviamente analisada, mas sob nova ótica e nova

hierarquização, subordinada muitas vezes ao esmiuçamento das relações de poder nas suas múlti- plas gradações, do macroscópico ao microscópico. O caráter dinâmico do escravismo comoarticulador das relações sociais é praticamente pressuposto, ilustrando bem o desprestígio em que seencontra hoje a compreensão institucional da escravidão.

Sob um pano de fundo comum, as perspectivas teóricas dos autores variam: a influência domarxismo de Lucien Goldmann em Vainfas, aliada às análises de ideologia de Eliseo Verón; a presença de Althusser em Boschi, que, como Algranti, incorpora também o enfoque de Novaisacerca do antigo sistema colonial; em AIgranti e em Lara, a leitura cuidadosa dos historiadoresnorte-americanos que estudam a escravidão, fundamentais para que a primeira repense a questão daescravidão nas cidades (Richard Wade, Mary Karasch) e a segunda redimensione a problemática do paternalismo (Eugene Genovese); em ambas, ainda, a influência de Michel Foucault (sobretudo emVigiar e punir) e da historiografia inglesa voltada para criminalidade e classes sociais (notadamentea coletânea Albion's Fatal Tree); em Lara, mais especificamente, nota-se o endosso de certas posições de Thompson e Linebaugh quanto à problemática mais teórica do marxismo, e ainda umaincorporação bastante peculiar de certas posições de Novais e de outras de Maria Sylvia deCarvalho Franco.

É especialmente curiosa a posição de dois dentre estes trabalhos: O  feitor ausente e Campos da

violência, que poderiam ser vistos, respectivamente, como ponto de partida e ponto de chegada. EmO  feitor ausente, que cronologicamente é o primeiro desta série, estão os embriões das principaisquestões debatidas pelos demais historiadores; em Lara, estas são levadas às últimas conseqüências,mantendose algumas, enquanto outras são dissolvidas. Todos os quatro trabalhos se encontram na

encruzilhada de perspectivas teóricas renovadoras, da filosofia de Foucault ao marxismo peculiar deThompson e Linebaugh, valendo-se da história das mentalidades e do cotidiano, atrelando-se, portanto, às linhas mestras que definem a historiografia contemporânea.

Apresentado como dissertação de mestrado em 1983, na USP, o feitor ausente  parte de umaquestão aparentemente marginal à problemática do escravismo brasileiro: a da escravidão nascidades. Como perspectiva teórico-metodológica, foi portanto precursor, procurando lançar luzsobre o sistema como um todo a partir de fenômeno considerado de menor importância - o que hojeé considerado procedimento fundamental por alguns dos historiadores ditos das mentalidades, como

Page 3: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 3/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

Robert Darnton (O grande massacre de gatos, Boemia literária e revolução) e Carlo Ginzburg (Miti

- emblemi - spie, ainda sem tradução entre nós). Leila Algranti acredita que, ao invés de negar oescravismo ou de constituir fissura na sua organização - conforme considerou R. Wade para osEstados Unidos (Slavery in the cities) - a escravidão urbana reforça o sistema escravista. Nascidades, a escravidão sequer teria tido caráter mais brando, sua especificidade ilustraria o quanto sãotortuosos os caminhos da dominação e como são diversas as formas através das quais dominadores

e dominados interagem. Como se verá a seguir, Sílvia Lara levará adiante preocupações deste tipo.Algranti atenta ainda para a questão complexa da convivência entre industrialização (ou os seus

 primórdios, agora designados por  proto-industrialização) e mão-de-obra escrava, que estudosrecentes vêm mostrando ter sido maior e mais freqüente do que se imaginava década atrás. O ma-terial sobre o qual constrói sua argumentação é constituído basicamente dos documentos daIntendência de Polícia do Rio de Janeiro, que a partir de 1808 muitas vezes desempenhou na corte afunção que nas fazendas do interior geralmente cabia ao feitor e ao mando senhorial. Valendo-secom proveito da historiografia inglesa - na qual a coletânea  Albion's Fatal Tree, com importantesartigos de Linebaugh, Thompson e Douglas Hay, parece cada vez mais ter sido um divisor de águas-, O  feitor ausente esboca ainda a relação entre uma sociedade disciplinar na Europa e o controle dasociedade escravista, procurando compreender esta última no contexto mais amplo da sociedade do

Antigo Regime. Como nos grandes centros urbanos europeus do período, na corte carioca do tempode dom João VI aproveitavam-se prisioneiros escravos - os libambos - nos serviços públicos, o quenão deixa de representar uma face curiosa, colonial, do Grande Fechamento, conforme atesta umacarta lapidar do chefe de polícia: "Com o crescimento da cidade e a construção de novos edifícios, asituação agravava-se conforme o tempo passava, e cada vez mais eram necessários mais prisioneiros, e a artimanha de retê-los na prisão mais tempo do que o necessário persistia" (cit. p.80-81).

Voltando-se com cuidado para a vida cotidiana e acreditando nela encontrar respostas elucidativasacerca do modo de constituição  peculiar da escravidão nas cidades, Leila Algranti desvenda o seucaráter violento e rastreia os crimes insignificantes, os  pettycrimes que pontilham o dia-a-dia eacusam subrepticiamente, muitas vezes sem fragor, mas numa constância surda, a insatisfaçãolatente da camada escrava. Mais uma vez, este trabalho se mostra precursor: além de ser entre nósum dos primeiros estudos voltados para a vida cotidiana das camadas subalternas, preocupa-se coma violência miúda das pequenas infrações, chamando atenção para o relevo dos fenômenosaparentemente negligenciáveis. Detecta especificidades, como a forma peculiar, basicamenteurbana, do trabalho do escravo ao ganho - cuja análise constitui um dos pontos altos do livro -,diferenciando-o daquele com que é freqüentemente confundido pela historiografia: o trabalho doescravo de aluguel. Através do modo de vida dos escravos ao ganho, Algranti chama a atenção paraos “bolsões de liberdade” que a escravidão comportava - e que Sílvia Lara detectará também nomeio rural, na região de Campos dos Goitacazes: "O sistema de escravos ao ganho adaptava-se perfeitamente à cidade, pois era comum se necessitar de trabalhadores para serviços provisórios que

duravam um dia, ou mesmo algumas horas" (p. 49). Alguns desses escravos chegavam a morar so-zinhos, 1evando uma vida de 'liberdade' no cativeiro" (p. 49).Abrindo caminhos de pesquisa e preconizando tendências hoje abraçadas por muitos dos jovens

historiadores brasileiros, O feitor ausente  peca em alguns momentos por simpatizar com umacompreensão absolutizadora do escravismo, para a qual este seria quase um modelo abstrato edotado de uma rigidez que conflita com as novas realidades surgidas nas análises mais recentes,fundamentadas em pesquisa documental minuciosa. Um exemplo: "O trabalho assalariado éimprescindível para o capitalismo. Mas no escravismo ele é tão insignificante que seu

Page 4: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 4/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

desaparecimento não alteraria em nada o sistema" (p. 69). Verdadeira em termos gerais, a afir-mação merece nuance. A própria análise que a autora faz do escravo ao ganho relativiza esta noçãode um escravismo puro, assim como a constatação de que o trabalho escravo nos centros urbanosvoltava-se para as atividades que visavam o mercado interno, mostrando uma outra face daescravidão: não apenas essencial à economia exportadora, mas também sustentáculo da economiainterna da colônia, uma e outra sendo vistas como um todo integrado. Justamente devido ao fato de

ser o seu um trabalho pioneiro, talvez fosse mais difícil a Algranti dar conta das tensões entreevidências empíricas - que emergiam de documentação inexplorada - e modelos teóricos então con-sagrados.

Especialmente sensível em captar a natureza da escravidão urbana, do poder do estado sobre a população escrava nas cidades, o seu modo de vida pautado na violência e semeado de pequenasinfrações, Leila Algranti lança também elementos importantes para o entendimento da oscilação en-tre violência e cordialidade, que os estudiosos têm mostrado ser central ao escravismo, e que eladetecta na documentação da polícia carioca. A parte final do trabalho defende posição intrigante ede certa forma polêmica de que, nas cidades, o público cresce sobre o privado, com o Estado punindo os escravos que se insurgiam contra a ordem pública e sobrepondo seus direitos einteresses aos dos senhores. Estes muitas vezes levavam seus escravos indisciplinados às auto-

ridades policiais para que os castigassem, tendo autonomia de decidirem sobre o número de açoitesa serem dados, mas podendo receber uma recusa da polícia, caso esta considerasse que a vítima nãoapresentava as condições físicas necessárias. Na corte joanina, portanto, o Estado não só interferiana relação senhor-escravo, como dava a última palavra. Se isto ocorria devido à maior proximidadedo aparelho estatal ou se era fenômeno próprio ao ambiente das cidades, só o estudo do fenômenoem outras zonas urbanas da colônia poderá dizer, conclui a autora.

A vida urbana e suas relações com o escravismo são também o pano de fundo de Os leigos e o

 poder, trabalho que procura dar conta das relações entre irmandades leigas ou confrarias das Minassetecentistas - a região mais urbanizada da colônia na época - e o Estado português, absolutista ecolonizador. Muitos dos estudiosos de temas mineiros viram nas irmandades leigas das Minasapenas um indício da estrutura mais flexível e democrática da formação social naquela região,aberta a formas organizatórias populares. Caio Cesar Boschi é menos romântico ou ingênuo e tomacomo epígrafe um verso de Gonzaga nas Cartas chilenas:

"Não há, meu Doroteu, não há um chefe bem que perverso seja, que não finja pela religião um justo zelo,e, quando não o faça por virtude,sempre, ao menos, o mostra por sistema."

Desde o início do trabalho está clara, desta forma, a preocupação em desvendar o outro lado das

irmandades, o seu atrelamento e subordinação à coroa e aos governantes da capitania que, comodom Lourenço de Almeida (1721-1732), Gomes Freire de Andrade (1735-1762) ou dom RodrigoJosé Menezes (1780-1783), foram também provedores de tais instituições. Boschi revela que o poder local penetrava as irmandades, simultaneamente conferindo-lhes status e se beneficiando como que delas extraía. Documenta a utilização que das irmandades fizeram os monarcas portugueses para melhor levarem a cabo sua política normalizadora, voltada para o policiamento e dominação dacomplexa população colonial - desde muito cedo os Compromissos das irmandades seguiam para

Page 5: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 5/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

Lisboa e, antes da aprovação, recebiam alterações da pena do Conselho Ultramarino ou da Mesa deConsciência e Ordens.

Evidentemente, as irmandades não foram apenas braços do poder metropolitano na colônia.Surgiram, com as cidades e com elas, da necessidade que a população mineira teve, desde os primórdios, de se organizar e se estruturar em terras sujeitas à instabilidade, à imprevidência, àitinerância da empresa aurífera. Agregaram elementos pobres e de cor, sempre leigos, para os quais

representavam a possibilidade de uma sepultura decente e afugentavam um pavor que encontrouexpressão em trovas populares:

"Nêgo véio quando morre vai na tumba do bangüêos parente vão dizendo: urubu tem que comê".

Constituíram bolsões arqueológicos, nos quais foi possível preservar formas africanas como oreizado, a congada, o candomblé.

O grande mérito de Os leigos e o poder é mostrar que, numa sociedade escravista e colonial,

ambigüidades e contradições não podem ser perdidas de vista. Há portanto que enxergar asirmandades como aparelhos de poder e, simultaneamente, como formas de organização sob muitosaspectos autônomas, espelho das contradições do universo colonial. A discussão lembra aquelareferente à natureza da urbanização nas Minas: teria sido ela imposta pelo Estado ou correspondidoao anseio das populações mineradoras, à sua necessidade de organização?

Assim como Algranti acredita que a polícia do Rio se impôs aos senhores nas primeiras décadasdo século XIX, Boschi conclui que o Estado metropolitano acabou limitando o potencialorganizatório - e virulento - das irmandades mineiras, notadamente as de negros libertos e deescravos. Nascidas de baixo para cima, "de livre vontade dos habitantes", as irmandades desde cedoforam cooptadas pelo Estado, que as manipulava de cima para baixo. Concessões podiam ser feitasde parte a parte, refletindo a própria natureza do exercício do poder nas Minas - grande jogo dealternância entre violência e contemporização -, mas havia momentos em que as posições semostravam irredutíveis. Em 1771, Pombal se empenhava em suprimir confrarias e irmandades denatureza mais acentuadamente popular, respeitando as referentes às camadas superiores da população e, como tais, mais facilmente transformáveis em instrumentos de defesa dos interesses doEstado. Na mesma época, a realidade apontava em sentido contrário: a maioria dos oragos (p. 62)invocava Nossa Senhora do Rosário, a santa querida dos negros. Para estes, as irmandades foram"unlocal privilegiado de afirmação das identidades culturais, étnicas ou sociais", representando comfreqüência meio de proteção contra os rigores do escravismo. Mas nem por isso perderam os traçosde instituição européia identificada com a política colonizadora e, decorrentemente, com aescravidão.

Para Boschi, portanto, as irmandades acabaram sendo instrumento de um sincretismo planejadoque escamoteava "o permanente conflito de classes ( ... ) que permeou todo o período colonial" (p..69). A clareza dos objetivos não impediu que o percurso fosse tortuoso: o Estado necessitava dasirmandades para "conservar a tranqüilidade e a subordinação necessária para os povos" (cit. p. 105),ao mesmo tempo em que elementos das classes dominantes viam tais organizações comocriminosas, danosas aos Estados soberanos, pseudamente religiosas mas, na verdade, "conventículossediciosos" que insuflavam as rebeliões.

Page 6: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 6/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

Os leigos e o poder é o mais instigante livro produzido pela historiografia brasileira sobre asirmandades de Minas Gerais. Assentado em documentação muitas vezes inédita, levantada emarquivos portugueses, e simultaneamente um trabalho raro de pesquisa empírica e de reflexãoanalítica. Parece-me, entretanto, muito preso a expectativa da revolução escrava, ou seja, a perspectiva que asculta a sociabilidade negra do ponto de vista das possibilidades de produção darevolta. As irmandades não foram catapulta à negação da escravidão por parte dos escravos, e

Boschi faz suas as palavras de Carlos Drummond de Andrade, para quem o objetivo das irmandadesfoi "adormentar nos homens de cor o sentido de rebeldia, conduzindo-os para o êxtase religioso"(cit. p. 171). Este é apenas um dos lados da questão. Para além da tensão entre a macrofísica e amicrofísica do poder, as irmandades representaram um espaço privilegiado para simbolizações, etalvez nestas esteja uma outra chave para a sua inteligibilidade. Promovendo festas de altosignificado ritual - como o Triunfo Eucarístico de 1733 -, patrocinando as artes - simbolizadorasdentre todas as manifestações humanas -, traduziram cotidianamente na religião seus momentos deeuforia, de temor e de desespero, invocando então os Passos da Paixão de Cristo e nele espelhandoseus anseios de colonos espezinhados.

 Ideologia e escravidão examina a sociedade escravista da colónia sob enfoque diverso. SeAlgranti e Boschi vasculharam as relações de poder no seio da formação social, Vainfas centra sua

análise na produção dos letrados coloniais, nos escritos dos homens que pensaram o escravismo defins do século XVII a fins do século XVIII. Antonio Vieira, Jorge Benci, André João Antonil,Manuel Ribeiro Rocha, Nuno Marques Pereira. Algumas destas visões se constituíram emideologias que acabaram penetrando a historiografia da escravidão. Analisá-las, entender os motivosde sua força persuasória e de sua perpetuação são objetivos básicos do estudo. Ao executá-lo,Vainfas discute a produção historiográfica brasileira mais recente sobre o assunto, procedimentocomum também a Sílvia Lara, mas ausente nos dois autores antes examinados.

Já no capítulo introdutório, Vainfas se mostra contrário à historiografia que vê a rebeldia negracomo fruto da crueldade do senhor, representada sobretudo pelos trabalhos de Décio Freitas, 1.Alípio Goulart e Clóvis Moura. Acredita que estes autores andaram pouco no sentido de desmontar o caráter da violência escravista, invertendo o esquema de Gilberto Freyre, - pintando comobstinação os horrores da escravidão, e destacando a coerção, sobretudo a violência física, como aviga mestra do sistema" (p. 15). Criticando o senhor bondoso celebrizado em Casa-grande &

senzala, teriam construído a imagem inversa da “escravidão-cárcere”, acabando "prisioneiros do paradigma que querem combater: para explicar a 'rebeldia negra' precisam de um senhor cruel”.(idem).

Para Vainfas, ideologia e poder são faces da mesma moeda, combinando em graus variáveis persuasão e coerção. Como decorrência, é impossível “pensar as práticas escravistas quer comoexclusivamente paternalistas, quer como puramente coercitivas” (p, 16). Estas posições serãoretomadas e desenvolvidas por Sílvia Lara, que contesta a análise da rebeldia e da violência centradano quilombo - mais óbvio e aparente - e, a partir de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de Eugene

Genovese, monta uma releitura da noção de paternalismo, entendendo-o como síntese de violência ede benignidade.Sem negar o conteúdo ideológico das práticas sociais, Vainfas centra sua análise na versão

ideológica das letras na colônia, vendo o discurso dos letrados como alternativo ao discurso pragmático do mundo senhorial. Há momentos em que a separação não é tão nítida, passível de ser esquematizada: inseridos na regra corporativa e portadores de uma visão de classe os jesuítasapresentaram produção literária nem sempre homogênea, pois pretendiam-na simultaneamentehistória da missão jesuítica no Brasil e história da escravidão no mundo colonial. Disseminados pelo

Page 7: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 7/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

conjunto do território, os jesuítas seriam os únicos a terem na colônia uma visão totalizante, possível de ser comparada à percepção metropolitana dos domínios do ultramar. Esta “duplainserção”, contraditória para Vainfas, seria vista de forma diferente por Sílvia Lara, que capta nasfalas dos senhores de escravos, registradas pelos processos-crime de Campos no século XVIII, asmesmas preocupações dos letrados com o universo das relações escravistas.

Outro tema abordado tanto por Vainfas quanto por Lara é o das visões dos escravos como coisa e

 pessoa. Um dos pontos altos de  Ideologia e escravidão é o capítulo "Esboço ideológico daescravidão", em que mostra como a percepção idílica do novo mundo levou à percepção do escravocomo coisa, enquanto o avanço da colonização construía paulatinamente a percepção do cativocomo  pessoa. Esta se deveu em grande parte à ocorrência das revoltas escravas, notadamentePalmares: através delas, patenteava-se a dimensão humana do escravo, que tinha emoções esentimentos, podendo, portanto, fugir e se revoltar contra a ordem senhorial. Para Lara, esta divisãoé impossível; rastreando a participação dos escravos no seu próprio comércio - o fato de aceitaremou não a sua venda, recusando-se a trabalhar para senhores que não os agradavam -, afirma seremesquemáticas muitas das análises reificadoras do escravo e mostra que a contradição entre coisa e pessoa era permanente e se achava presente não apenas no discurso metropolitano oficial, como na prática cotidiana de senhores e escravos.

Para Vainfas, portanto, acaba havendo divisão entre ideologia e prática social. Através de umlongo processo, que vai da consciência idílica da terra à compreensão da escravidão como problemática, os letrados coloniais se convencem da legitimidade da escravidão africana. Porém,insatisfeitos com as práticas sociais vigentes, constróem normas para tornar a escravidão maisestável, duradoura, produtiva e violenta. Cria-se, desta forma, um novo projeto ideológico como al-ternativo às práticas vigentes.

Apesar da análise sensível e brilhante dos textos dos letrados, a ideologia escravista adquire, naleitura de Vainfas, quase que um caráter finalista, progressivo. Legitimada a escravidão, há quecontrolá-la pelo trabalho compreendido de duas formas antagônicas: em Vieira, como o máximo detransfiguração do social; em Benci e Antonil, como atividade produtiva. Após o controle, esboça-sea necessidade de uma  pedagogia. Por fim, há fixação de normas justas, racionais e cristãs que possibilitem a punição persuasiva.

 Na construção racional dos letrados coloniais não se abria espaço à contradição. Para o autor, istoexplica o fato de Palmares aparecer minimizado nestes escritos, o inimigo social muitas vezesconvertido em inimigo militar, retirando-se o potencial violento e contestatário do quilombola paraatribuírem-se-lhe qualidades guerreiras. No discurso dos letrados, as contradições de classe foram,no limite, diluídas no projeto cristão assentado em base familiar. O projeto escravista-cristão dos jesuítas constituiu, desta forma, o limite de consciência possível no Brasil colonial.

Do discurso jesuítico, este, projeto-limite teria ganhado a historiografia contemporânea. Na suavisão adocicada do escravismo brasileiro, Gilberto Freyre incorporaria a idéia do projeto cristão aodestacar a base familiar da colonização e valorizar o universo da escravidão doméstica. Na visão

oposta, assentada na denúncia da escravidão violenta e desumana, seria ainda o discurso jesuítico nasua vertente pedagógica e voltada para a punição persuasiva que se faria presente. “A atualidade dosdiscursos coloniais parece ser, assim, bem maior e mais profunda do que se supõe”, constataVainfas. Ao desmontar com brilho - mesmo se, às vezes, um tanto mecanicamente - o discurso dosletrados coloniais, o autor nos deixa a constatação melancólica de que, em pleno século XX, ahistoriografia estaria ainda a repetir a ideologia que foi o limite de consciência possível no início doséculo XVIII.

Page 8: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 8/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

Campos da violência tem muitos pontos comuns, mas também algumas divergências mais fundascom relação a Ideologia e escravidão. Ambos são corrosivos com a produção historiográfica sobreescravidão nos últimos anos - Vainfas voltando-se mais contra os historiadores "vitimistas", Laradirigindo suas baterias contra estes e ainda contra os que integram a "escola sociológica paulista". No geral, a posição crítica de ambos é extremamente fecunda e, de fato, aponta novos problemas. No livro de Vainfas, cartesiano e, no limite, quase esquemático, as críticas e as posições apre-

sentam-se mais definidas. já Sílvia Lara fez uma opção deliberada pelo avesso dos esquemas, preferindo antes desmontar do que remontar. Este desalinho tem os seus encantos e tem os seussenões. A estrutura mais fluida e aberta suscita várias idéias, mas também dificulta que se capte comclareza os passos da autora e o sentido mais profundo de algumas de suas críticas.

Apesar de bem escrito, Campos da violência torna-se às vezes de leitura difícil, o que em nadadiminui sua importância: é um livro definitivo, afetando várias das concepções daqueles que travamconhecimento com as suas. Neste sentido, ele amarra questões de todos os três estudos analisadosaté aqui e relativiza muitas de suas certezas. É um somatório deles na medida em que trabalha emtodos os níveis: esmiuça a vida cotidiana através de processos-crime, baseia-se em Consultas eoutros documentos oficiais da metrópole portuguesa, analisa os discursos dos letrados e discute coma bibliografia sobre escravidão. Como Vainfas, propõe-se a destrinchar o fenômeno em estudo

através dos documentos e dos dados empíricos; e, simultaneamente, a entender e situar-se frente à produção historiográfica.

Lara partilha com Vainfas a preocupação em repensar a relação entre violência e escravidão talcomo se manifestou na historiografia, considerando-a o "pano de fundo comum a todo o conjunto da bibliografia".  (p. 19). Seu enfoque, entretanto, incide no plano do cotidiano: é nele que vai tentar perceber omodo pelo qual "senhores e escravos viviam e percebiam sua prática" (p. 21), a violência do senhor se manifestando no castigo e na dominação, enquanto a do escravo se corporificava na falta, natransgressão, na violação do domínio senhorial, enfim, na rebeldia. A escolha das práticas cotidianasnão é fortuita, pois no cotidiano se integram as instâncias do social, no econômico e do ideológico.Lara acredita que não se pode separar relações sociais em relações de produção e em representaçõesfeitas sobre estas relações. Portanto, o discurso dos letrados coloniais não é autônomo, não pode ser lido em separado das relações cotidianas entre senhores e escravos.

Para compreender a natureza do controle social na colônia, Silvia Lara remete à questão daapropriação de capital que, verificando-se em dois níveis, condicionava duas formas distintas dedominação: a senhorial (presente na relação senhor-escravo) e a colonial (presente na relaçãometrópole-colônia). A autonomia da relação senhor-escravo ante a exploração colonial geravatensão entre os interesses metropolitanos (gerais) e os senhoriais (particulares). O controle social dametrópole incidia sobre a dominação dos vassalos, enquanto o dos senhores se voltava para odomínio dos escravos. No cotidiano, a dominação senhorial era sentida como pessoal: além donome próprio e do local de origem, os escravos traziam a indicação: "escravo de fulano de tal". Não

eram apenas escravos: eram escravos de tal ou tal senhor.Para que se realizasse a apropriação senhorial, a dominação deveria ser garantida pelo controle daescravaria através da disciplina. "Assim como se ministravam os sacramentos para ordenar aconsciência, ministravam-se castigos para ordenar e disciplinar o corpo dos escravos para o tra- balho" (p. 54), salienta a autora. Mais do que o caráter compulsório, é a disciplina da escravidão queimporta à análise, atrelando o Brasil escravista à emergência da sociedade disciplinar na Europa. Seeste viés tem seus problemas, limitando em muitos pontos a compreensão do escravismo colonial nasua especificidade histórica, permite entretanto que a autora suplante os vícios presentes na

Page 9: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 9/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

historiografia afeita à relação coerção-violência. O racionalismo dos debates letrados sobre o castigoé um indício de que este não era posto em xeque: sem ser incondicional, o castigo era incontestado,

tratava-se de um direito dos senhores. Era contra o primeiro, mas não contra o segundo, que se batiam os intelectuais e moralistas do século XVII e XVIII, pregando o castigo moderado ecorretivo, e sendo, nesta atitude, acompanhados pela prática dos senhores na região dos Campos dosGoitacazes. Escravos também não contestavam o castigo em si, mas seu excesso: ele aparecia,

 portanto, como natural para as diferentes instâncias da sociedade.Sem ser incondicional, o castigo podia, vez ou outra, ser exemplar, constituindo então estratégia e

dispositivo para a reprodução da exploração do trabalho. Nestas ocasiões, voltava-se para o futuro,nos quadros da  pedagogia do medo: "prevenindo rebeliões, atemorizando possíveis faltosos, ensi-nando o que era ser escravo, Mantendo e conservando os escravos, enquanto escravos,continuamente" (p. 96).

A leitura de Lara afasta-se, portanto, das que veriam a escravidão como assentada no castigoarbitrário e desregrado - a "escravidão-cárcere" de que fala Vainfas - e se preocupa não mais com otratamento dispensado ao escravo, mas com a análise dos meios e instrumentos de controle social,consolidação e perpetuação do escravismo.

Se a escravidão era a relação fundante da formação social brasileira e se constituía em síntese

complexa de violência e de benignidade, oscilando muitas vezes entre estes dois pólos antagônicose complementares, fica mais fácil entender a natureza da dominação e do mando político na colônia.Lara não se estende sobre este tópico, mas fornece as bases para o seu desenvolvimento. "O poder do Governo sobre a nação é proporcionado ao grau de união que existe entre o direito de mandar e avontade de obedecer - para a execução das ordens faz toda a diferença haver ou não desejo de ascumprir - e nascendo a vontade do bom efeito que resultou ou se espera das ordens, segue-se queacertar aumenta o poder, e que não acertar diminui o poder", dizia em 1803 o marquês de Alorna,usado como epígrafe à segunda parte de Campos da violência. Pouco mais de meio século antes, asautoridades administrativas das Minas Gerais captaram com grande sensibilidade a síntese entre brandura e rigor, necessária à manutenção do mando: "Faz preciso misturar o agro com o doce",recomendava Gomes Freire de Andrade na  Instrução que dirigiu ao irmão José Antonio, seuinterino no governo das Minas. Em  Regimento a Martinho de Mendonça de Pina e de Proença,também governador interino desta capitania, a coroa recomendava alguns anos antes: "Confio devós que usareis sempre daquela moderação e suavidade que é conveniente, e que, nos casos em quefor necessário, mostrei todo o vigor e resolução". As sutilezas moleculares da dominação senhorialtinham, portanto, contrapartida no mundo da política: “Sempre me persuadi”, diria um terceirogovernante mineiro na década de 80, "de que uma bem calculada e dirigida prudência seria suficien-te em quem governa, para ganhar o coração dos homens e obrigá-los com uma força voluntária acumprirem as suas obrigações, sem que aparecessem conduzidos mais que pela própria vontade, esem que percebessem mão Superior e estranha que desse os movimentos às suas ações". * A uniãodestes contrários foi traço dominante no período colonial porque, acirrando-se ao limite os

mecanismos da dominação senhorial, os escravos fugiam, morriam ou se sublevavam, pondo emrisco a continuidade da dominação de senhores sobre escravos; por outro lado, acirrando-se aolimite os mecanismos da dominação política, os colonos conspiravam, se amotinavam e punham emrisco a integridade da colônia. Relações sociais escravistas e relações políticas entre metrópole ecolônia apresentavam, assim, coerência marcante. Ao devolver um escravo ao seu senhor em 1799,

 * Utilizo aqui a análise desenvolvida por mim em Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro, Graal, 1983, p, 97-98.

Page 10: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 10/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

recomendavalhe a coroa "que o não castigue pela fugida ( ... ) e que o trate para o futuro comhumanidade e brandura" (cit. p. 322).

Se em Campos da violência a união dos contrários é, no plano da política, antes sugerida do queesmiuçada, no plano das práticas cotidianas ela é examinada com detalhes, mostrando a dialética deluta e acomodaçao presente nas relações sociais de senhores e escravos. A região dos Campos dosGoitacazes serve, assim, como evidência empírica para relativizar alguns dogmas da historiografia

 brasileira sobre a escravidão. Reforça-se, por exemplo, a idéia da "brecha camponesa" e dasatividades de subsistência a que se dedicavam os escravos: plantavam roças, criavam galinhas e porcos. Introduz-se a sugestão polêmica de uma maior mobilidade dos escravos. Mostrando não ser só no meio urbano que se moviam livremente: em Campos, havia um ir e vir constante, mesmo àsaltas horas da noite. Confirmam-se algumas constatações, como as minhas, em Desclassificados do

ouro, e as de Manuela Carneiro da Cunha, em "Sobre a servidão voluntária: outro discurso. Escra-vidão e contrato no Brasil colonial", de que o liberto nem sempre era livre, permanecendo sob odomínio senhorial e podendo ser reescravizado: "As marcas da dominação escravista iam muitoalém das marcas corporais e do estigma da cor. . . " (p. 268).

Evidencia-se, portanto, que o escravismo era também uma microfísica do poder, atuandomolecularmente e indo além das fronteiras da violência mais óbvia. Não eram apenas o grilhão ou o

tronco que impediam o escravo de fugir, assim como não era a coerção, pura e simples queexplicava a escravidão. Esta era tecida cotidianamente, nas relações complexas e contraditóriasentre senhores e escravos. "Todo um universo de relações pessoais encarregava-se de identificar oscativos e reafirmar sua condição, lembrandolhes quem era seu senhor e controlando-lhes asatividades. Angélica, Paulo, Antonio, Pedro e tantos outros podiam ter saído de suas fazendas, masos laços que os prendiam a seus senhores continuavam atados e eram cuidadosamente vigiados por todas as pessoas com quem se encontravam" (p. 236).

Em "O público e o privado", Lara parece levar às últimas conseqüências a idéia do poder comoum monstro tentacular e multiforme. Relativiza a idéia de que o poder público - a justiça - estejasubmetido ao poder privado - os interesses senhoriais - pois não vê nestes uniformidade; além disto,detecta no poder, tanto o público quanto o privado, uma notável capacidade metamorfoseadora. Neste contexto, o escravo era simultaneamente um inimigo doméstico e público "porque estas duasinstâncias tinham objetivos divergentes em relação ao controle dos cativos, ainda que pudessemestar associadas em momentos e circunstâncias específicas" (p. 340). O caráter público - domésticodo escravo expressava-se no fato de sua resistência se operar nestes dois níveis: "Tanto podia, na re-lação direta com seu senhor, recusar-se ao trabalho, fugir ou conseguir sua alforria, quanto apelar  para a instância judicial ou pública para questionar o poder de seu senhor ou conseguir sualiberdade" (idem). As considerações de Lara lançam luz e completam, desta forma, a problemáticade Leila Algranti: a interferência do Estado na relação senhor-escravo.

Situando-se numa espécie de desembocadura, Campos da violência corresponde a um momentoimportante das pesquisas sobre escravidão no Brasil. Oferecendo uma alternativa à análise

macroscópica da violência, chamando - como Algranti - a atenção para os fenômenos aparentementenegligenciáveis, mostrando a resistência molecular dos atos dos escravos no seio do escravismo,Sílvia Lara politiza o enfoque do objeto e esclarece, de uma vez por todas, acerca do equívoco dasanálises centradas na violência mais aparente. Se a leitura dos discursos letrados é irretocável edefinitiva, o aproveitamento dos documentos às vezes deixa a desejar, as transcrições se fazendomuito constantes e nem sempre se articulando com as formulações mais teóricas. Mas estas sãoquestões de forma que em nada comprometem o brilho do todo.

Page 11: O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

7/24/2019 O Escravismo Brasileiro Nas Redes Do Poder

http://slidepdf.com/reader/full/o-escravismo-brasileiro-nas-redes-do-poder 11/11

 Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 133-152.

Em grau variável, todos os trabalhos aqui analisados procuram um caminho novo para se entender a escravidão no Brasil. Evitam olhar apenas para o pólo colonial e procuram as vinculações com asociedade de Antigo Regime. A Época Moderna foi o momento da montagem dos aparelhos de poder, e sua atuação se fez sentir fundamente no Brasil colonial: na articulação da Polícia do Rio deJaneiro, na constituição de irmandades de negros muitas vezes manietadas pelo Estadometropolitano, na estruturação das ordens missionárias - como a dos jesuítas -, que nas colônias se

tornaram também senhoras de escravos e produtoras de uma ideologia escravista específica, naadoção de normas disciplinares que regiam as atitudes, no endosso do castigo exemplar que, nolimite, atingia feição de suplício, na constituição, enfim, de uma pedagogia do medo.

Quando Sílvia Lara se mostra contrária à separação das relações sociais em relações de produçãoe representações feitas destas relações, polemiza com as discussões da década passada acerca daviabilidade de um modo de produção colonial escravista. Sua crítica bibliográfica, assim como a deVainfas, revela que a violência do escravismo não pode ser analisada em termos de juízo de valor nem unilateralmente, sem que se considere a violência das relações escravistas como um todo.Viu-se atrás como Vainfas mostra a força ideológica assumida pelo discurso letrado, incorporado pela historiografia do século XX sem crivo analítico. Ao ler a sociedade escravista pelo prisma dasirmandades ou da escravidão urbana, Caio Boschi e Leila Algranti comprovam que a natureza das

cidades coloniais é essencialmente escravista e elucidadora do escravismo colonial. Pesquisadocumental cuidadosa, análise detida dos textos, paciência em enfrentar arquivos brasileiros e portugueses e apreço pela narrativa histórica são outros traços comuns destes trabalhos. Dandoseqüência e muitas vezes polemizando com os estudos sociológicos mais gerais das décadasanteriores, os historiadores brasileiros começam a mostrar, em bloco, como ler a escravidão sob aluz de métodos renovados.