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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL MESTRADO EM ARQUEOLOGIA Marina Buffa César O Escaravelho-Coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo Egito Volume I Texto . Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

MESTRADO EM ARQUEOLOGIA

Marina Buffa César

O Escaravelho-Coração nas Práticas e

Rituais Funerários do Antigo Egito

Volume I

Texto

.

Rio de Janeiro

2009

Marina Buffa César

O Escaravelho-coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo Egito

Dois volumes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Mestrado em Arqueologia,

Museu Nacional, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em

Arqueologia.

Orientador: prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior

Rio de Janeiro

Julho de 2009

César, Marina Buffa

O Escaravelho-Coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo Egito.- Rio de Janeiro:

Museu Nacional/UFRJ, 2009-07-02

X-276;2v;il.

Dissertação: Mestrado em Arqueologia, Departamento de Antropologia, Museu Nacional,

UFRJ, 2008

Orientador: Antonio Brancaglion Junior

1-escaravelho-coração 2-textos funerários 3- escaravelhos

Escaravelho-coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo

Egito

Marina Buffa César

Orientador: prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior

Dissertação de mestrado submetida ao Mestrado em Arqueologia do Museu Nacional da

Universidade Federal do Rio de janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Arqueologia.

Aprovada por

Presidente Prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior

Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese

Prof.a Dr.

a Márcia Severina Vasques

Rio de Janeiro

Julho de 2009

Aos meus pais

Agradecimentos

Agradeço a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

pelo apoio institucional e financeiro em minha pesquisa.

Meu agradecimento mais que especial ao meu orientador, Antonio Brancaglion Junior,

por incentivar-me a crescer tanto academicamente como ser humano desde que fizemos nossa

primeira reunião em 2004. Por toda a ajuda nesses anos de trabalho, pelos ensinamentos em

sala de aula e reuniões e ótimos momentos passados conversando sobre a vida e o cotidiano

no Egito atual. Em relação à Marly, o que posso dizer a não ser que ela é um anjo sempre

presente em nossos corações? Meus agradecimentos pela ajuda com os textos, por me acalmar

nos momentos de desespero, por nossas conversas, por todo carinho com que me tratou em

todos os momentos. Agradeço a essa relação de amizade cultivada com Antonio e Marly,

esperando que perdure pelo doutorado e por outros planos futuros.

Aos funcionários do Institut Français D’Archéologie Oriental (IFAO) do Cairo, que

me ajudaram quando estive lá, principalmente a Marie-Christine Michel, responsável pela

difusão das publicações do Instituto, Vanessa Desclaux, bibliotecária responsável, e Madame

Laure Pantalacci, diretora da Instituição.

Aos professores do Mestrado em Arqueologia, que sempre estiveram presentes nesses

dois anos de formação e muito aprendizado, muito obrigada. Agradeço a todos pelo

conhecimento passado e apoio em minhas pesquisas. À professora Tânia, pelas chicotadas ao

longo desses dois anos, pelos PowerPoints preparados na madrugada anterior à aula e por não

ter me passado o assustador texto de teoria evolutiva. Além de todo o carinho e ensinamento

que me passou enquanto fui sua aluna. À professora Cláudia, que me ensinou a anatomia

humana, por ter sido uma mãe para mim quando fraturei o pé nas pirâmides, pelos momentos

de turismo, diversão e muito aprendizado passados no Egito. À professora Sheila, embora

tenhamos nos conhecido há pouco tempo, abriu portas nunca antes imaginadas por mim. O

apoio que ela me dá em futuros projetos é indescritível. Agradeço ao professor Renato Cabral,

da Geologia, por me ensinar sobre as rochas tão importantes em meu trabalho. Ao professor

Wagner, por ter me alugado seu apartamento, facilitando a minha estada no Rio de Janeiro

sem ter que conversar com imobiliárias.

Os funcionários do Museu também foram importantes para minha maturidade como

Egiptóloga. Os museólogos que sempre me ajudaram no momento de estágio. À Ângela

Rabelo, que me recebeu na reserva técnica quando eu ainda era estagiária e muito me ensinou.

À Claudine, que sempre ajudou em todos os momentos e é mais que somente secretária do

mestrado, é nossa salvação.

Às minhas amigas do grupo do Egito, Cintia Gama, Cíntia (Lost), Juliana, Marilda,

Simone e Regina. Agradeço a todas da mesma maneira, porque todas tiveram papel

fundamental em meu trabalho. Obrigada por terem me apoiado, me acalmado, pelos cafés,

pelas conversas e por nunca me deixarem desistir nos momentos de fraqueza. Se hoje essa

dissertação está finalizada é porque vocês me ajudaram, com textos e emocionalmente.

Espero poder contribuir de mesma maneira para o sucesso de todas!

Aos meus colegas de mestrado só posso dizer que os momentos que passamos juntos

foram ótimos e que tenhamos muito outros em nossa nova jornada. À Tatiana, que sempre

esteve ao meu lado não importando a hora. Tati, obrigada pelo apoio durante as madrugadas e

por todas nossas conversas. Outra pessoa importante nessa trajetória foi a Regina Norma.

Obrigada por tudo amiga! Diogo, Cilcair, Bia (Líticos), Bia (Faiança) amigos formidáveis e

sempre carinhosos, sem vocês o mestrado não seria o mesmo.

Agora o agradecimento mais importante. À minha família que, apesar de tudo e do

jeito deles, sempre me apoiou e é a melhor família que eu poderia ter. Às minhas avós, que

sempre responderam com entusiasmo cada passo que eu dava nessa jornada. Às pessoas mais

importantes em minha vida, pai e mãe, muito obrigada por sempre acreditarem em mim e por

tudo que me deram até hoje. Obrigada por todas as oportunidades de estudo, de moradia.

Obrigada pelo carinho de vocês. Amo vocês cada dia mais.

Resumo

Os escaravelhos eram utilizados pelos egípcios antigos como amuletos, funerários ou

cotidianos, e selos, com nomes da realeza e de pessoas comuns. Eles eram identificados com

o deus solar Khepri. Um tipo de amuleto funerário, o escaravelho-coração, é conhecido como

um dos mais importantes para assegurar que o morto chegasse ao Mundo Inferior sem

contratempos. O objetivo dessa dissertação é descrever a simbologia dos escaravelhos-

coração de acordo com a religião egípcia e textos funerários. O texto está baseado em textos

clássicos sobre o assunto e em alguns relatórios de escavações, com intuito de entender o

contexto arqueológico em que esses objetos foram encontrados. Todavia, os escaravelhos-

coração não são raramente encontrados em contexto original, sendo a maioria comprada ou

doada para Museus. O amuleto era colocado na região torácica do morto durante o processo

de mumificação, mais comumente em meio às bandagens. A sua função era impedir que o

coração de seu dono se levantasse contra ele em falso testemunho. O Capítulo 30b do Livro

dos Mortos aparece em sua maioria na base desses amuletos para eficácia do poder dessas

palavras. O escaravelho-coração era feito basicamente em rocha esculpida no formato do

amuleto, tendo em um dos lados o animal e o texto no outro.

O segundo volume é composto pelos escaravelhos-coração em si, descritos em suas fichas

catalográficas e com fotografias. Esse volume serve como a base para o desenvolvimento do

texto do volume I.

Palavras chave: escaravelho-coração, textos funerários, mumificação e escaravelhos.

Abstract

Ancient Egyptians used scarabs as amulets, funerary or ordinary, and as seals with common

people and royal names. Scarabs were identified with the solar god Khepri. One kind of

funerary amulet, the scarab heart, is known as the most important to assert that the dead

became safely though the Underworld journey. The objective of this work is to describe the

simbology of the scarab heart in accordance with the Egyptian religion and funerary texts. We

have used well-known references about the subject, and some excavations reports to

understand the archaeological context of those objects. In fact, the scarab heart is rarely found

in its original context, since most of them were bought or donated to Museums. It is known

that through the mummification process, amulet was placed inside the thorax, frequently in

the bandages. The function of this amulet was to avoid that the heart acted on false testimony

against the dead. The chapter 30b of The Book of the Dead appears in the base of these

amulets to assert a better of this power of words. The scarab heart was sculpted in rocks in the

form of the amulet, with the animal in one side and text in the opposite side.

The second volume is the heart scarab itself, composed with its description and photography.

It’s the basis to development of all the paper.

Key words: heart scarab, funerary texts, mummification, scarabs.

Mapa do Egito- elaborado pelo professor Dr. Antonio Brancaglion Junior.

Cronologia

Paleolítico 500.000-5500

Pré-dinástico 5500-3050

Protodinástico 3150-3050

Período Thinita

1ª dinastia 2920-2575

2ª dinastia 2770-2649

Antigo Império

3ª dinastia 2649-2575

4ª dinsatia 2575-2645

Snefru 2575-2551

Khufu 2551-2528

Djedefre 2528-2520

Khafra 2520-2494

Menkhaure 2490-2472

Shepseskaf 2472-2467

5ª dinastia 2465-2323

Userkaf 2465-2458

Sahure 2458-2446

Neferikare Kakai 2446-2426

Shepseskare 2426-2419

Neferefre 2419-2416

Niuserre Ini 2416-2392

Menkauhor Kaiu 2396-2388

Djedkare Isesi 2388-2356

Unas 2356-2323

6ª dinastia 2323-2150

Teti 2323-2291

Pepi I 2289-2255

Menrere 2255-2246

Pepi II 2246-2152

Primeiro Período Intermediário 2134-2040

7ª e 8ª dinastias 2150-2134

9ª e 10ª dinastias 2134-2040

11ª dinastia (Tebas) 2134-2040

Médio Império 2040-1640

12ª dinastia 1991-1783

Segundo Período Intermediário 1640-1532

13ª dinastia 1784-1650

14ª dinastia ?

15ª dinastia 1663-1555

16ª dinastia 1650-?

17ª dinastia 1640-1550

Rahotep 1585-?

Sobekemsaf I ?

Antef V 1640-1635

Antef VI ?

Antef VII ?

Sobekemsaf II c.1633

Tao I ?-1558

Tao II 1558-1553

Kamósis 1553-1549

Novo Império 1550-1070

18ª dinastia 1550-1307

Ahmose 1550-1525

Amenhotep I 1525-1504

Thutmés I 1504-1492

Thutmés II 1492-1479

Hatshepsut 1473-1458

Thuemés III 1479-1425

Amenhotep II 1427-1401

Thutmés IV 1401-1391

Amenhotep III 1391-1353

Amenhotep IV 1353-1335

Smenkhare 1335-1333

Tutankhamun 1333-1323

Ay 1323-1319

Horemheb 1319-1307

19ª dinastia 1307-1196

Ramessés I 1307-1306

Séthi I 1306-1290

Ramessés II 1290-1224

Merneptah 1224-1214

Séthi II 1214-1204

Amenmesses 1202-1199

Siptah 1204-1198

Twosret 1198-1196

20ª dinastia 1196-1070

Setnakhte 1196-1194

Ramessés III 1194-1163

Ramessés IV 1163-1156

Ramessés V 1156-1151

Ramessés VI 1151-1136

Ramessés VII 1143-1136

Ramessés VIII 1136-1131

Ramessés IX 1131-1112

Ramessés X 1112-1100

Ramessés XI 1100-1070

Terceiro Período Intermediário 1070-712

21ª dinastia 1070-945

22ª dinastia 945-712

23ª dinastia 828-712

24ª dinastia 724-712

25ª dinastia 747-656

Período Saíta 664-525

26ª dinastia 664-525

Período Tardio (Baixa Época) 525-332

27ª dinastia 525-404

28ª dinastia 404-399

29ª dinastia 399-380

30ª dinastia 380-343

31ª dinastia 343-332

Reis Macedônios 332-304

Período Ptolomaico 304-30

Imperadores Romanos 30-395 d.C.

Lista de figuras

Figura 1. Hórus suprimindo Seth que se encontra na forma de hipopótamo ........................................33

Figura 2. Escaravelho em Karnak ......................................................................................................37

Figura 3. Escaravelho hoje no British Museum ..................................................................................37

Figura 4. Incisões. .............................................................................................................................46

Figura 5. Instrumentos utilizados no ritual ........................................................................................49

Figura 6. Tumba de Tutankhamun, KV62, Cerimônia de Abertura da Boca. ........................................50

Figura 7. Vinheta do Capítulo 23 do Livro dos Mortos. ......................................................................51

Figura 8. Frente do caixão voltada para leste. ....................................................................................60

Figura 9. A parte traseira do caixão é voltada para oeste. ...................................................................60

Figura 10. A cabeça é voltada para o norte. Figura 11. Os pés são voltados para o sul. .60

Figura 12. A tampa é voltada para o céu. ...........................................................................................61

Figura 13. O fundo é voltado para a terra. ..........................................................................................61

Figura 14. Cena do Tribunal de Osíris. ...............................................................................................67

Figura 15. Capítulo 30.......................................................................................................................69

Figura 16. Vinheta do Capítulo 30 . ...................................................................................................73

Figura 17. Vinheta do Capítulo 30b. ..................................................................................................76

Figura 18. Scarabeus sacer ................................................................................................................98

Figura 19. Scarabeus sacer fêmea e a esfera de excrementos ............................................................99

Figura 20. Ciclo de vida ...................................................................................................................100

Figura 21 caixão de escaravelho ......................................................................................................103

Figura 22. Tipologia feita por W.M.Flinders Petrie ...........................................................................104

Figura 23. Escaravelho do Médio Império .......................................................................................106

Figura 24. Escaravelho do 2° Período Intermediário ........................................................................106

Figura 25. Escaravelho do 2° Período Intermediário Figura 26. Escaravelho do período de

dominação dos Hicsos .....................................................................................................................106

Figura 27. Escaravelho do Novo Império .........................................................................................107

Figura 28. Escaravelho com o nome do Faraó Unas .........................................................................108

Figura 29. Escaravelho com nome de um Rei do período de dominação do Hicsos ..........................108

Figura 30. Jarro contendo o selo em sua tampa...............................................................................110

Figura 31. Escaravelho-selo .............................................................................................................110

Figura 32. Escaravelho com o relato do casamento do Faraó com a Rainha Tiy................................112

Figura 33. Escaraboide ....................................................................................................................115

Figura 34. Escaraboide ....................................................................................................................115

Figura 35. Molde para escaravelho..................................................................................................117

Figura 36. Sha-Amun-en-su .............................................................................................................133

RESUMO ........................................................................................................................................................ 9

ABSTRACT ...................................................................................................................................................10

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................18

CAPÍTULO 1. RELIGIÃO ...........................................................................................................................22

1.1. TEORIA E APLICAÇÃO NO CONTEXTO RELIGIOSO EGÍPCIO .........................................................................22

1.2. A FORMAÇÃO DO MUNDO ......................................................................................................................27

1.3 MITOS....................................................................................................................................................30

1.4 REPRESENTAÇÃO DIVINA........................................................................................................................34

1.5 KHEPRI ..................................................................................................................................................34

1.6. OSÍRIS ...................................................................................................................................................38

CAPÍTULO 2. CONTEXTO FUNERÁRIO .................................................................................................40

2.1. MUMIFICAÇÃO: SOMENTE PRESERVAÇÃO DO CORPO? ..............................................................................40

2.2. PROCESSOS DE MUMIFICAÇÃO ...............................................................................................................43

2.3 CERIMÔNIA DE ABERTURA DA BOCA .......................................................................................................47

2.4 AMULETOS FUNERÁRIOS ........................................................................................................................52

2.4.1 O pilar-djed ....................................................................................................................................53

2.4.2 Tit ..................................................................................................................................................54

2.4.3 Wadj ..............................................................................................................................................54

2.4.4 O olho-udjat ...................................................................................................................................54

2.4.5 Os quatro filhos de Hórus ...............................................................................................................55

CAPÍTULO 3. LITERATURA FUNERÁRIA ..............................................................................................56

3.1. TEXTO DAS PIRÂMIDES ..........................................................................................................................56

3.2. TEXTO DOS CAIXÕES .............................................................................................................................59

3.3. LIVRO DOS MORTOS ..............................................................................................................................63

3.4. CAPÍTULO 30 .........................................................................................................................................65

3.4.1. Contextualização ...........................................................................................................................65

3.4.2. O Capítulo 30 ...............................................................................................................................68

3.4.3. O Capítulo 30a ..............................................................................................................................74

3.4.4. O Capítulo 30b ..............................................................................................................................76

CAPÍTULO 4. O CORAÇÃO .......................................................................................................................81

4.1. BREVE HISTÓRICO .................................................................................................................................81

4.2. O CORAÇÃO HATI E IB‘ ..............................................................................................................................82

4.3. TERMINOLOGIA .....................................................................................................................................83

4.4. O CORAÇÃO NOS TEXTOS RELIGIOSO-FUNERÁRIO ....................................................................................86

4.5. AMULETO DO CORAÇÃO .........................................................................................................................95

CAPÍTULO 5. ESCARAVELHOS ...............................................................................................................97

5.1. MORFOLOGIA BIOLÓGICA ......................................................................................................................97

5.2. PERÍODO DE UTILIZAÇÃO ..................................................................................................................... 100

5.3 TIPOLOGIAS ......................................................................................................................................... 103

5.4. ESCARAVELHOS COM NOMES REAIS ...................................................................................................... 107

5.5. ESCARAVELHOS SELOS ........................................................................................................................ 109

5.6. ESCARAVELHOS PARTICULARES ........................................................................................................... 111

5.7. ESCARAVELHOS COMEMORATIVOS ....................................................................................................... 111

5.8. ESCARAVELHOS COMO AMULETOS ....................................................................................................... 113

5.9. ESCARAVELHOS FORA DO EGITO .......................................................................................................... 114

5.10. ESCARABÓIDE ................................................................................................................................... 115

CAPÍTULO 6. MATERIAIS E MANUFATURA ....................................................................................... 116

6.1. MATERIAIS.......................................................................................................................................... 116

6.1.1. Faiança ....................................................................................................................................... 116

6.1.2. Rochas ........................................................................................................................................ 118

6.1.2.1. Ardósia ..................................................................................................................................... 119

6.1.2.2. Arenito ..................................................................................................................................... 120

6.1.2.3. Amazonita ou Feldspato Verde .................................................................................................. 120

6.1.2.4. Calcário ................................................................................................................................... 120

6.1.2.5.Cornalina .................................................................................................................................. 121

6.1.2.6. Diorito...................................................................................................................................... 121

6.1.2.7. Esteatita ................................................................................................................................... 121

6.1.2.8. Granito ..................................................................................................................................... 122

6.1.2.9. Grauvaque ................................................................................................................................ 122

6.1.2.10. Jaspe ...................................................................................................................................... 123

6.1.2.11. Lápis-Lazúli ............................................................................................................................ 123

6.1.2.12. Mármore ................................................................................................................................ 123

6.1.2.13.Quartzito ................................................................................................................................. 124

6.1.2.14. Serpentina .............................................................................................................................. 124

6.1.2.15. Xisto ....................................................................................................................................... 125

6.1.3. OUTROS MATERIAIS .......................................................................................................................... 125

CAPÍTULO 7. ESCARAVELHO-CORAÇÃO........................................................................................... 127

7.1. PERÍODO DE UTILIZAÇÃO ..................................................................................................................... 129

7.2. FUNÇÕES E SIMBOLOGIA ...................................................................................................................... 131

7.3. POSIÇÃO NA MÚMIA ............................................................................................................................. 132

7.5. TEXTOS ............................................................................................................................................... 134

7.6. VARIAÇÕES ......................................................................................................................................... 135

7.6.1. O pássaro Benu ........................................................................................................................... 135

7.6.2. Escaravelhos com cabeça humana ............................................................................................... 135

7.6.3. Ouro e sua representação ............................................................................................................ 136

7.6.4. Pilonos ........................................................................................................................................ 136

7.6.5 Escaravelho-coração e amuleto do coração .................................................................................. 137

7.7 MÚMIAS DE ANIMAIS ............................................................................................................................ 138

CONCLUSÕES ........................................................................................................................................... 139

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 141

VOLUME II ................................................................................................................................................ 146

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 150

METODOLOGIA ............................................................................................................................................. 151

CATÁLOGO ............................................................................................................................................... 153

18

Introdução

O escaravelho-coração é tido como um dos amuletos funerários mais importantes que

acompanhavam a múmia. Tal fato se dava porque a função desse amuleto era de não deixar

que o coração se levantasse contra seu dono no momento da pesagem no Tribunal de Osíris.

Destarte, o coração era tido como órgão mais importante do corpo humano, porque nele se

encontrava a sabedoria, os desejos, a dor, a raiva, ou seja, todos os sentimentos.

Os amuletos de escaravelho foram utilizados pelos egípcios desde o Período pré-

dinástico, estes eram vistos como a simbologia do deus solar Khepri ( ) que significava

ressurreição e renascimento, também identificado como o sol nascente. Ele pode ser

representado como um escaravelho com o disco solar ou como um homem com cabeça de

escaravelho. Por que ressurreição e renascimento? Porque os egípcios perceberam que esse

inseto fazia uma bola de excrementos e a arrastava pelo deserto com o intuito de enterrá-la.

Após 28 dias um novo escaravelho nascia. Fato que os levou a crer que os escaravelhos

renasciam. Dessa forma, os amuletos de escaravelhos eram utilizados nos caixões, nas

múmias e nas inscrições das tumbas egípcias para que garantissem o renascimento do morto.

Os amuletos de escaravelhos podem ser o de uso cotidiano que tem como simbologia

principal o renascimento, o deus solar. Os escaravelhos funerários como, o escaravelho-alado

que aparece no Novo Império representa Khepri como o sol nascente, ligado ao ciclo solar do

nascimento até a morte, suas asas eram uma referência aos deuses do céu e seus poderes.

Pequenos amuletos de escaravelhos são colocados nas bandagens das múmias a partir do

Novo Império.

O escaravelho-coração tema central dessa dissertação era colocado sobre o peito da

múmia, em meio às bandagens durante seu embalsamento. A partir da 21ª dinastia ele

aparece dentro da caixa torácica. Todavia anterior a esse período caso ocorresse um descuido

19

do embalsamador e destruísse o coração o amuleto era colocado em seu lugar. Sua função era

não permitir que o coração do morto se levantasse contra seu dono durante o Tribunal de

Osíris. Esse Tribunal consistia no local onde o coração era pesado na balança da verdade e da

justiça, tendo como contrapeso a deusa Maat, representada por uma pena. Caso o coração

fosse mais pesado que a pena, ele era devorado por Ammit (deusa híbrida de crocodilo-

hipopótamo-leão), que espreitava ao lado da balança. Caso o coração do morto fosse

devorado, seu nome sumiria por toda a eternidade. Isso para os egípcios antigos seria a morte

realmente, momento em que a pessoa era completamente esquecida. Em contrapartida, se o

coração fosse menos pesado ou de peso igual ao da pena, o morto teria o direito de ir para o

Mundo Inferior. Contudo, para que o coração tivesse esse peso, contava-se com a ajuda do

escaravelho-coração que possuía em sua base o Capítulo 30b do Livro dos Mortos. Todavia o

amuleto poderia conter outros textos que indicassem esse desejo do morto em manter o seu

coração leve.

O Capítulo 30b não aparece completo nos escaravelhos-coração por uma questão de

espaço. Os artesãos colocavam os principais trechos, aqueles que exaltariam o coração para

que esse não se opusesse ao seu dono.

A discussão principal da dissertação se foca nas funções, simbologia e posicionamento

na múmia do escaravelho-coração. Isto posto indica que não será analisado somente o artefato

em si, porém todos os valores agregados a este. Para um entendimento fluido desse amuleto a

dissertação foi dividida em dois volumes. No primeiro volume têm os contextos religiosos,

funerários divididos em sete capítulos.

O primeiro capítulo traz uma contextualização da religião egípcia com base nos

principais deuses a que se remete a simbologia do escaravelho-coração, que são Khepri e

Osíris. O deus Khepri por ser o deus solar representado como escaravelho e símbolo do

20

renascimento e, Osíris o principal deus do panteão funerário e Grande Juiz no Tribunal da

pesagem do coração.

Ao se tratar do contexto funerário é de grande valia mostrar os processos de

mumificação e alguns amuletos que se encontravam nas bandagens. O que ocorre no segundo

capítulo. Seguindo essa linha, os textos funerários que poderiam ser escritos tanto em paredes

de tumbas, como em caixões e papiros são os temas do terceiro capítulo.

O quarto capítulo trata do coração, o principal órgão do corpo humano com suas

próprias vontades que eram contidas pelo o escaravelho-coração. Havia um amuleto funerário

próprio para o órgão que o amuleto do coração, esse tinha como objetivo proteger o coração

do morto ao longo de sua jornada rumo ao Mundo Inferior.

Após todo o trabalho de contextualização religiosa e funerária será feita a explanação

sobre o escaravelho na natureza, aos olhares egípcios e como esses se tornam objetos de uso

cotidiano e funerário.

Os capítulos seis e sete são mais interligados com o segundo volume da dissertação,

porque tratarão dos materiais e da manufatura dos escaravelhos-coração, no caso os materiais

que aparecem nas peças de referência.

O capítulo sete é a discussão bibliográfica sobre as funções do escaravelho-coração.

Em estudos clássicos de Egiptologia, Petrie (1917) e Ward (1902) por serem mais antigos

deixam de citar muitos pontos importantes sobre o escaravelho-coração. Por outro lado, eles

inseriram a discussão de quando começou a ser usado e sobre qual era o material habitual em

sua feitura. Nas publicações de Quirke (1992), Andrews (1996), Söderberg (1991), Gardiner

(1961) e Erman (1952) a conceitualização encontrada é a dos autores citados anteriormente

em seus trabalhos sem acrescentar nenhum item novo.

21

O segundo volume é composto por setenta e cinco peças de referência utilizadas para a

análise desse amuleto. Ao ser citadas no texto a numeração correspondente a encontrada no

segundo volume estará entre [ ].

22

Capítulo 1. Religião

1.1. Teoria e aplicação no contexto religioso egípcio

A religião egípcia antiga possui um extenso panteão de divindades, mitos, hinos e

rituais. Uma breve demonstração de teoria e forma que engloba a questão da religiosidade faz-

se necessária. A teoria arqueológica escolhida é o cognitivismo e os motivos que levaram a

essa opção serão expostos a seguir.

A Egiptologia tem uma de suas bases na interpretação dos textos encontrados em

papiros, tumbas, templos, equipamentos funerários e amuletos. Por conseguinte, qualquer

estudo em Egiptologia estará baseado em textos, assim como a presente dissertação, que tem

como base o Livro dos Mortos, mais precisamente o Capítulo 30b. O próprio amuleto aqui

abordado, o escaravelho-coração, exibe inscrição em sua base e, alguns casos, nele inteiro.

Não há como elaborar esse estudo sem o uso da filologia, mas a cognição por trás da

fabricação e da simbologia de cada amuleto é igualmente importante.

Freki Hassan1, professor da University College of London, em sua conferência sobre

teoria em Egiptologia no X Congresso Internacional de Egiptologia2 propõe uma Egiptologia

mais antropológica, com ênfase nos processos, princípios e agências, o que levaria a um

conhecimento mais aprofundado das transformações culturais ocorridas no período faraônico.

Um estudo mais holístico volta-se para a paisagem, porque por meio dela se consegue

ver as mudanças geográficas, do leito dos rios, da agricultura, do modo de vida das pessoas.

Para Hassan, a cognição é um meio de se elaborar esse estudo haja vista que atos e artefatos

estão ligados, ou seja, o cérebro é a conexão com a mão.

1 Hasan Fekri, Theorizing ancient Egypt: towards a new paradigm, p. 88, ocorrido em maio de 2008 na cidade de Rhodes, na

Grécia.

2 Os autores e seus resumos podem ser visitados no <http://www.rhodes.aegean.gr/tms/congress%20site/Speakers.pdf>

Acesso em junho de 2008.

23

A arqueologia cognitiva, ou a arqueologia da mente humana, pode ser reconhecida

como um tema da Nova Arqueologia dos anos 60 e 70, mas não ganhou uma identidade

distinta até o começo dos 90 (SHAW & JAMENSON, 2002). Ela aparece como uma resposta

ao materialismo proposto pela Nova Arqueologia. Isso ocorre porque essa linha de

pensamento processualista se restringe à economia e tecnologia e, com isso, os sistemas de

crenças e os simbolismos não foram estudados. Para os autores que iniciaram as pesquisas em

arqueologia cognitiva são as ações e não o pensamento que fica registrado no material

arqueológico, portanto não negligencia o papel do indivíduo. Destarte, a arqueologia

cognitiva apesar de possuir um viés processualista está interligada ao pós-processualismo,

pois ela pretende saber como trabalhou a mente e essa linha de pesquisa espera desvendar os

símbolos3. Como o presente estudo aborda simbologia e funcionalidade do escaravelho-

coração, o cognitivismo se encaixa perfeitamente nessa linha de raciocínio, porque o foco está

na habilidade humana de construir e usar os símbolos. Para Ian Hodder (1992) os itens

materiais não são simplesmente categorias de reflexão da mente, porque os indivíduos e as

sociedades constroem sua própria realidade e a cultura material tem um lugar integral nessa

construção. A arqueologia é uma disciplina histórica com integração ativa de itens culturais

nas práticas diárias. Essa afirmação de Hodder pode ser vista no cotidiano egípcio com

relação às construções das tumbas. Os escaravelhos são uma representação clara da cultura na

vida cotidiana. Eles representavam o deus Khepri, eram símbolos do renascimento e também

foram utilizados diariamente em forma de anéis para lacrar vasos de comida e bebidas. A

diferenciação entre o escaravelho de uso cotidiano e o funerário se dava em sua forma,

tamanho, matéria-prima, manufatura e utilização final.

3 Anotações de aula do curso de teoria arqueológica ministrada pela professora Dra. Tânia Andrade Lima no primeiro

semestre de 2008, no programa de mestrado em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ

24

Para Flannery e Marcus (1998) a arqueologia cognitiva é o estudo de todos os aspectos

da cultura antiga que são produtos da mente humana: a percepção, descrição e classificação

do universo (cosmologia), a natureza do supernatural (religião), princípios, filosofias, éticas e

valores que governam a sociedade humana (ideologia), valores humanos transformados em

arte (iconografia) e todas as outras formas de comportamento intelectual e simbólico humano

que sobrevive no registro arqueológico.

É importante ressaltar o que cada um desses pontos significa para aqueles autores. A

cosmologia é uma teoria ou filosofia da origem e estrutura geral do universo, seus

componentes, elementos, leis, especialmente aquelas estruturas relacionadas com a variável

espaço, tempo e casualidade. A cosmologia egípcia influenciava nos processos de subsistência

do povo, pois o próprio Mundo era constituído de deuses, onde, por exemplo, deus Geb

representa a terra, sua mulher Nut o céu e entre eles Shu, que era o deus do ar.

A religião pode ser definida como um conjunto específico de crenças em um poder ou

poderes divino ou super-humano, para ser obedecido e venerado como o(s) criador (es) e/ou

regra(s) do universo. Geralmente, a religião envolve uma filosofia e um código de ética,

ambos relacionados com a busca por valores de uma vida ideal. Ela é a consciência de um

sentimento, a qual gera no ser humano um sentimento de dependência e inferioridade

(SALES, 1999, p.13). As circunstâncias políticas mostravam que em determinadas épocas os

deuses de certas regiões eram mais adorados que outros, resultando em uma importância a

apontado nomo. Portanto, a religião era fundamentalmente a adoração ao culto a determinado

deus, esse reconhecido e aclamado como de um determinado local. O culto local era o

princípio, o elo de unidade da religião (SALES, 1999, p.14).

A ideologia pode ser definida como um corpo de doutrinas, mitos e simbolismos de

um movimento social, instituição, classe ou grupo de indivíduos, com referência a algum

25

plano político ou cultural, com estratégias para colocar a doutrina em operação. A ideologia

egípcia não era estática e imutável, ela se adequava às inovações e mudanças da sociedade.

A iconografia se refere ao fazer de uma imagem por entalhe ou desenho. Em casos nos

quais se pretende saber sobre cosmologia, religião e ideologia a iconografia se faz presente

em uma análise científica. Ao se levar em consideração as colocações de Flannery e Marcus,

que remete à iconografia que, por exemplo, está relatada em tumbas como na tumba do faraó

Thutmés III, governante da 18ª dinastia, no Vale dos Reis, inscrições com capítulos do Livro

dos Mortos onde está a vinheta deles, por mim estudados, e suas rubricas. Invocações ao deus

Kheper também podem ser vistas em templos, tumbas e papiros. Os templos são ricos em

relatos sobre a religião, cultura e cotidiano egípcios e, portanto, não é possível elaborar um

estudo dessa sociedade sem olhar atentamente para os relatos iconográficos. Na iconografia

podemos analisar o pensamento e as crenças e também como eles mudam no decorrer das

dinastias. Os escaravelhos-coração são um ótimo exemplo disso, já que com o passar dos anos

a sua função e simbologia não mudam, contanto o material utilizado em sua fabricação e os

estilos de decoração se modifica. Afinal, a arqueologia cognitiva estuda os caminhos do

pensamento nas sociedades do passado, com base em seus remanescentes (SHAW &

JAMENSON, 2002).

Para se estudar a arqueologia dos períodos históricos faz-se uso dos textos disponíveis,

o que acontece com que estuda Egiptologia. Na prática, isso não acontece de maneira linear,

afinal os escritos são considerados palimpsesto, ou seja, ele pode não passar de uma série de

resquícios acumulados ao longo dos séculos. Faz-se necessário analisar os contextos tanto

arqueológicos como textuais.

Complementando, para se pesquisar uma arqueologia da mente é necessária estudar

religião. Porque ela trabalha com os símbolos, com o sobrenatural (RENFREW, 1994) O

26

estudo do escaravelho-coração na cultura egípcia do período faraônico requer conhecimentos

tanto no campo religioso, quanto simbólico e até mesmo econômico haja vista que as rochas

utilizadas para a fabricação desses amuletos diversificam ao longo das dinastias.

Uma síntese dessa discussão pode ser entendida por meio das palavras de Claude

Traunecker

No plano teórico, o ritual egípcio funda-se em duas noções: por um lado a polissemia, a pluralidade dos significados das imagens, coisas e objetos, e

por outro, o caráter performático da imagem e do verbo. Diversos “objetos”

podem ser os pontos de emergência de uma mesma força, de uma “coisa” saída do imaginário. (p.25)

Para o autor, o ritual dependerá sempre do real, senão esse não se realizará. O

imaginário está na estátua divina, onde ele está definido, nomeado e personificado.

No Antigo Império, os faraós eram os próprios deuses na terra. Contudo, no Novo

Império eles eram os intermediadores dessa relação entre homem e natureza, homem e o

cosmos. Os faraós eram uma personificação divina, Hórus habitando a terra, somente ele

poderia se comunicar com os deuses, o que ocorria após a coroação. A sacralização aparecia

nas regalias utilizadas pelo governante, como cetros, coroas e vestimentas. Destarte, o

governante não poderia realizar todos os rituais e cultos e, para isso, ele nomeava os

sacerdotes que fariam algumas de suas funções nos templos. Os sacerdotes ou vizires

poderiam realizar essas funções de culto nos templos porque eles eram tidos como a

personificação do faraó. Esses também desempenhavam funções administrativas, como a

supervisão de construções de tumbas e templos e distribuição de bens. Apesar de ser um cargo

apresentado como hereditário, eles só assumiriam tal posto se fossem nomeados pelo faraó.

Na Teologia Menfita, a teoria de sucessão de governantes possui bases cosmológicas,

mostra a dualidade governamental centrada em Mênfis, realizada em um plano divino e o

27

estabelecimento da sociedade por Menés, como parte de uma ordem cósmica (FRANKFORT,

1948, p.33). Como o faraó é um deus na terra e ele é Hórus, a sua sucessão se faz legitimada

em um plano cosmológico porque esse faz os rituais para seu antecessor Osíris e com isso

garante, assim como Hórus, que a legitimação de seu trono seja baseada em uma sucessão de

pai para filho, já que Hórus era o primogênito.

O faraó quando divinizado poderia ser cultuado de duas maneiras. Enquanto vivo as

motivações que levavam a esse culto eram político-religiosas e após a sua morte era a

memória que era cultuada.

A população só poderia adentrar em algumas salas dos templos durante festividades

especiais.

1.2. A Formação do Mundo

Os egípcios antigos precisavam viver de acordo com Maat— equilíbrio, harmonia,

justiça, respeito e verdade— caso isso não acontecesse haveria o estabelecimento do caos.

Com isso, a manutenção da ordem do estado egípcio se dava por conta da manutenção do

divino. O caos aqui era a não ordem, o domínio do deus Seth. Para Jan Assman (2006, p.34)

esse conceito é chamado de religião invisível, onde o princípio da harmonia universal que se

manifesta nos cosmos como ordem e na vida dos seres humanos como justiça. Esses conceitos

servem para expressar o significado total da ordem no maior plano de abstração. O rei é

responsável por manter as regras de Maat na vida terrena, ou seja, sem ele haveria o caos.

Cada centro religioso importante localizado ao longo do território egípcio possuía a

sua cosmogonia, com seu deus criador e seus mitos. Em alguns casos, essas eram conflitantes.

Muitos de seus deuses estão relacionados a fatores ambientais, tanto palpáveis como

abstratos. No caso, deuses como Rê, Shu, Tefnut, Geb, Nut e Kuk e Kauket (escuridão).

Contudo, antes de ocorrer a criação, foi preciso a presença de três poderes, que eram a energia

28

necessária para essa concepção: Hu (palavra divina), Heka (magia ou energia divina) e Sia

(conhecimento divino) (SHAFER,2002).

Os deuses egípcios podem ser classificados em nacionais, aqueles que possuíam a

mesma simbologia e era cultuado em todo o território, e os locais, que eram de cada nomo.

Os egípcios antigos agrupavam seus deuses em enéades, nove deuses; ogdóade, oito

deuses e trindades, geralmente pai, mãe e filho. Esse agrupamento, assim como o ato dos

deuses casarem, servia para formar a essência mitológica da religião. Essa divisão seria uma

maneira de segmentar o imaginário e conceber uma organização mais próxima de sua lógica

palpável.

A enéade Heliopolitana era formada pelos seguintes deuses que fazem parte do mito

de criação do Mundo de Heliópolis: Atum, Shu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Isis, Seth e Néftis.

De acordo com diversos textos até hoje encontrados há várias versões de como o Mundo foi

criado. Pode-se dizer que a mais comum é aquela em que o Grande deus Atum surge do Nun,

o Oceano Primordial, e, após um ato de masturbação, ejacula e nesse momento nascem Shu

(que representa o ar) e Tefnut (a umidade). Shu e Tefnut geram Geb (a terra) e Nut (o céu). Os

deuses Geb e Nut geram dois filhos e duas filhas Seth, Osíris, Ísis e Néftis. O céu e a terra são

separados porque eles se casaram sem a aprovação do deus Rê e, por ordem desse deus, eles

nunca mais se encostariam. No entanto, à noite eles se encontravam, criando assim as trevas.

O deus Shu, quando Rê abandona a vida terrena, assume seu lugar frente ao governo egípcio

e, após preparar a paz e estabilidade, abdica de seu cargo em favor de seu filho Geb. A deusa

Nut era também considerada a mãe do Sol, aquela que todos os dias pela manhã o vomitava e

depois o engolia como forma de proteção.

29

Atum não era somente um deus/conceito (TRAUNECKER, 1995, p.101), mas era uma

divindade histórica que possuía seu centro de culto em Heliópolis. Ele entrega a Osíris o

domínio do território egípcio, tanto o real quanto o abstrato.

O deus Seth é considerado desde seu nascimento como aquele que propaga a não

ordem. Em alguns momentos do período faraônico, a humanidade era dividida entre aqueles

que seguiam Hórus (o bem) e Seth (o mal).

A Teologia Menfita (c.3000 a.C.) apresenta textos religiosos para Menes

simbolicamente tido como faraó da 1ª dinastia. Algumas doutrinas dessa Teologia aparecem

como novas e foram aceitas no desenvolvimento da história egípcia. Outras aparentam estar

baseadas nas tradições mais antigas egípcias e africanas (FRANKFORT, 1948, p.24). O texto

é uma cosmologia que remete à criação e mostra que a unificação das Duas Terras se deu por

Menés e que elas não poderiam mais ser dissociadas. Contudo, o tema principal é o

julgamento de Geb em relação a Hórus e Seth, finalizando com o modo pelo qual Osíris se

torna o governante do Mundo Inferior. Ptah que possuía seu centro de culto em Mênfis foi

proclamado como o Criador de Tudo e ele era híbrido, combinado com outros deuses,

dependendo do contexto.

O texto sobre a Teologia Menfita encontra-se está bastante danificado, mas com partes

legíveis e em uma dessas o deus-criador Atum proclama que ele fora criado por Ptah na forma

de Ptah-Ta-Tjenen, que criara também todo o universo. A criação consistia em uma colina

primordial acima das águas do caos (Num) e Ptah surge nessa colina de onde ele cria todo o

resto. Os deuses são colocados como manifestações de Ptah. Tudo o que hoje existe é criação

do coração de Ptah que transformava seus desejos em palpável com a ajuda de sua língua.

Nesse processo de criação, vieram ao Mundo um deus após o outro e por meio deles foi

criado o universo, as criaturas vivas, a justiça e as artes. Após a criação, Ptah descansou. Esse

30

deus também é tido como aquele que estava ao lado de Atum na criação da enéade

Heliopolitana.

A construção do palácio em Mênfis, no local onde Osíris fora enterrado, coloca esse

local como ponto de toda a autoridade do território estabelecida por Menés. Essa região

possuía um significado para o sustento econômico e produtivo do Egito e é explicado pela

presença do corpo de Osíris ali sepultado.

1.3 Mitos

Os deuses não eram seres perfeitos e imutáveis. A aparência de um deus é inconstante

e o seu nome não bastava para exprimir sua natureza. Ninguém poderia saber o nome secreto

dos deuses porque aquele que detivesse esse conhecimento poderia utilizá-lo contra o deus e

tornar-se mais poderoso. Todavia, invocar um deus contribuía para sua existência e

subsistência. Eles envelheciam, padeciam de doenças e até morriam. Entretanto, esse tipo de

representação é amplamente utilizado a partir do Período Raméssida.

O mito do Nome Verdadeiro de Rê é uma clássica ilustração da imperfeição desses

deuses, assim como mostra a importância dos nomes dos deuses. O mito consistia no ponto

em que as pessoas e as divindades estavam ligadas ao deus criador identificado como Rê. Ele

aparecia sob diversas formas e era conhecido por uma infinidade de nomes, mas nenhum

desses era o seu verdadeiro nome. O verdadeiro nome desse deus ficava guardado em seu

estômago para que ninguém pudesse usá-lo contra ele. Ísis conhecia tudo na terra e no divino,

mas ela não sabia o nome de Rê e foi a única a desafiá-lo. A oportunidade para ela descobrir

se deu quando o deus, já aparentando uma idade muito avançada, começa a babar. Com isso,

ela pega um pouco de sua saliva e a mistura com terra moldando-a como uma cobra. Ela leva

a cobra para um local onde Rê passava todos os dias, ele é mordido pela cobra e o veneno

queima como fogo, fazendo o deus gritar e perturbando os outros deuses. No começo, ele não

31

conseguia falar porque o veneno dominava seu corpo como uma inundação, mas depois ele

explica aos seus seguidores que fora picado por uma criatura que não tivera sido criada por

ele. O deus pede ajuda às outras entidades divinas e Ísis promete ao deus que destruiria essa

criatura com seus poderes mágicos. Contudo, o deus não contava com um pedido de Ísis: ela

diz que o ajudará se ele disser seu nome. Rê se descreve como aquele que criou o mundo

físico, que causa a inundação do Nilo, que dividiu o ano em estações e termina dizendo que é

chamado de Khepri no amanhecer, Rê ao meio dia e Atum no início da noite. Mas, nenhum

desses é seu verdadeiro nome e a dor continua. Ísis insiste que somente poderá ajudar se ele

disser seu verdadeiro nome. A dor aumenta a cada instante e o deus não resiste e sussurra seu

nome no ouvido da deusa. Ele diz que quando chegar o momento oportuno que ela diga a

Hórus o nome. A deusa então profere palavras mágicas e o veneno e a dor cessam.

Eventualmente, Hórus, seu filho e governante do Egito, seria, juntamente com ela, os únicos a

saberem o nome de Rê (PINCH, 2003, p.70).

Para governar o Egito fora escolhido Osíris, que reinaria ao lado de sua irmã e esposa

Ísis. Seu irmão Seth não aprovou que Osíris assumisse o trono e, juntamente com seus

seguidores, preparou uma armadilha. O deus da não ordem convidou seu irmão para um jantar

e em certo momento, como uma brincadeira, ele convida todos para se deitarem em um

caixão. Feito especialmente do tamanho de Osíris, ao se deitar ele foi o único que coube e

rapidamente o caixão foi lacrado e escondido. Ísis, ao perceber que seu marido sumira, sai a

sua procura e o encontra, mas Seth também estava lá. Então, Seth pega o caixão e o parte em

vários pedaços. Há textos que dizem que esse foi partido em 42 pedaços e cada um escondido

em um nomo. Jan Assmann diz que fora dividido em 14 e que as águas carregaram suas partes

por todo o território e, nos locais onde pararam, foram centros de rituais por todo o período

faraônico (ASSMANN, 1989, p.138). A amada esposa então parte em busca de todos os

pedaços de seu marido, os encontra, junta e mumifica. Essa busca pelos pedaços do deus e sua

32

posterior reunião são os precedentes do ato de mumificar. Contudo, ela não encontra o falo

porque esse havia sido arremessado aos crocodilos do Nilo. Ela então se transforma em uma

ave e em um ato mágico copula com seu marido mumificado e engravida de Hórus. Na

Teologia Menfita, Ísis aparece obedecendo Hórus e ela pratica esses atos em benefício de

Osíris porque Hórus pede que assim seja feito. O que está em comum acordo com o Texto das

Pirâmides onde Hórus, o rei vivo, faz atos benevolentes a Osíris, o deus e rei morto.

A Grande Contenda é um dos mitos egípcios mais controversos. Seus escritos datam

do Novo Império e é a narrativa mais longa já encontrada. Nesse mito, Hórus e Seth se

transformam em hipopótamos e lutam para ver quem consegue ficar mais tempo embaixo

d‟água. Depois eles competem em barcos, Hórus faz o seu de madeira, mas o pinta como

rocha e, em compensação Seth faz um totalmente de rocha que afunda.

Tanto Osíris quanto Hórus sempre eram atacados por Seth e seus seguidores. O olho

de Hórus foi arrancado por Seth e os testículos do deus da não ordem arrancados por Hórus.

Thoth recolocou o olho danificado e Hórus venceu tornando-se rei do Egito e reconciliando-se

com Seth. Hórus fez uma série de rituais que consagraram Osíris como o rei do Mundo

Inferior. Esse ritual era encenado nos lagos dos templos e os participantes eram aqueles que

normalmente seguiam Seth e Hórus.

A batalha entre esses dois deuses causou uma perda de harmonia no cosmos e com

isso foi necessário fazer um Tribunal Divino encabeçado por Geb, mas com a autoridade

máxima do deus-criador. O Tribunal ocorreu em Heliópolis. Osíris estaria presente, com o seu

corpo tendo que ser seguro por Ísis e Néftis. Ele era tido como virtuoso. Seth tenta justificar

sua violência com o irmão, mas falha, o que cede espaço para Hórus pedir a legitimação de

sua posição como sucessor ao trono do Egito. Em algumas narrativas, a punição de Seth seria

carregar o corpo de Osíris até o seu local de habitação eterna. Os deuses decidem dividir o

33

Egito, onde Hórus governaria os vales férteis do Nilo, a terra negra, e Seth a área desértica, a

terra vermelha. Há também a iconografia e a literatura que apresentam Seth como triunfante,

governando o território egípcio. Isso ocorre no período em que esse deus está nacionalizado e

sua adoração se faz presente em muitas regiões.

No templo de Edfu há a iconografia de uma das versões finais da disputa, que é aquela

em que Hórus mata Seth, que está sob a forma de um hipopótamo, como ilustra a Figura 1.

Figura 1. Hórus suprimindo Seth que se encontra na forma de hipopótamo4

A literatura mostra que o conflito entre Hórus e Seth termina com um coro de rezas

enquanto Hórus é coroado. No entanto, antes ou durante essa cerimônia o deus agora rei

aparece fazendo uma série de rituais funerários para seu pai, como a Cerimônia de Abertura

da Boca e a elevação do pilar-djed. Esses atos caracterizam os rituais funerários que todos os

4 Templo de Edfu, fotografia feita pela autora em 16/08/2008.

34

novos reis precisavam fazer para aquele que estava morto, porque assim se confirmaria a

sucessão.

1.4 Representação Divina

Esses seres divinos eram majoritariamente antropomorfos, como crianças de mais ou

menos dois anos. Quando representados como adultos sempre no auge de sua plenitude e,

alguns híbridos com cabeças de animais ou totalmente animalescos e expressões humanas.

Um deus não exibe aparência única, depende do contexto ao qual ele se insere no momento. A

forma híbrida mais comum é o corpo de um ser humano e a cabeça de um animal.

As mãos dos deuses raramente estavam vazias, poderiam conter a cruz ankh ou o

cetro-uas, assim como adereços que especificassem a sua natureza. Na cabeça possuíam

coroas e hieróglifos que remetiam aos seus nomes.

Os deuses que serão tratados com ênfase ao longo deste trabalho são Khepri e Osíris,

um por ser o símbolo dos escaravelhos e o outro por ser o principal deus funerário.

1.5 Khepri

É uma das três manifestações do deus solar Rê, o sol nascente. Tema que pode ser

vistos nos Hinos ao deus-sol. O Hino ao deus-sol, mostrado a seguir, foi retirado da estela dos

irmãos Suti e Hor que hoje está no British Museum (BM 826). A tradução para o inglês foi

feita por Miriam Lichteim (1976, p. 86-88) e para o português pela autora desta dissertação.

São dois hinos nessa estela, na qual aparece a menção a Khepri. Os trechos relacionados ao

deus são, no primeiro hino,

Saudações a você, Rê, perfeito a cada dia Que nasce ao amanhecer sem falhar,

Khepri que fatiga com o trabalho duro!

Seus raios estão na face, jamais conhecida

35

No segundo hino ele é tido como aquele do nascimento distinto,

Khepri do nascimento distinto,

Que eleva sua beleza no corpo de Nut,

Que ilumina as Duas Terras com seu disco.

Seu nome deriva da palavra Kheper que significa “tornar-se” ou “se transformar”, já

Kheperu significa “mudanças” ou “transformações” e Khepri é “aquele que se criou”

(PINCH, 2002). Por ser chamado como aquele que se criou, ele era identificado com o deus

criador Atum.

No Texto das Pirâmides5, Khepri já aparece como um dos nomes do deus Sol. Ele é

visto como “aquele que brilha” ou “aquele que está em Nun”. Ele estava ligado ao poder

criativo do coração e identificado com o deus Sol jovem, aquele que começa a criação por

nascer das águas primordiais na flor de lótus primordial. Em relação à sua jornada pelas horas

da noite, ele renasce todas as manhãs do corpo da deusa do céu, Nut. No mito conhecido

como O Nome Verdadeiro de Rê, o deus Sol diz a Isis que ele é “Khepri na manhã, Rê ao

meio do dia e Atum ao anoitecer.” A barca noturna é associada com Rê-Atum e a barca do dia

com Khepri.

A sua iconografia é um escaravelho empurrando o disco solar pelo Mundo Inferior na

jornada pelo céu. Em seu ambiente, os egípcios devem ter notado que o ato do escaravelho em

rolar sua bola pelo deserto seria o mesmo que o do Sol6. Contudo, a analogia feita por eles

não termina nesse ponto. Observando que da bola de excrementos nascia um escaravelho eles

o associaram com Khepri, aquele que se autocria.

5 Ver Capítulo 3

6 Ver Capítulo 5

36

Pinturas em papiros funerários o mostram no barco do deus das águas primordiais

Nun. Em Heliópolis ele era ilustrado como Atum-Khepri, era um único deus que diariamente

sofria uma série de transformações. Na tumba de Petosiris, vizir do templo de Thoth (c.340

a.C.) em Tuna el-Gebel, ele está representado usando a coroa atef do deus Osíris. Quando o

deus-sol se apresenta na forma de Khepri, ele possui o corpo de um homem e no lugar de sua

cabeça um escaravelho. Assim como Rê, ele carrega em suas mãos um ankh e um cetro.

O deus se encontra com Rê e Atum na jornada diária na barca solar. As várias formas

do deus-sol se encontram no meio do barco. Há também a representação de Khepri na barca

com Nun e Khnum (deus criador com cabeça de carneiro). Thoth e Maat ficam juntamente

com Hórus para a aprovação do caminho da barca e, no final do dia, elas entram no curso em

direção ao Mundo Inferior e a jornada continua com a barca noturna, na qual Hórus, Hapi, Ísis

e Néftis a aguardam em forma de adoração. A barca era atacada durante a noite por seus

inimigos e o mais perigoso de todos era Apófis— a personificação da parte mais obscura da

noite, ou seja, o caos— que se transformava em uma serpente. Ela atacava o deus-sol para

acabar com a estabilidade do Mundo. Para lutar contra a serpente, Rê assume a forma de um

felino, admirado por sua agilidade, e a degola.

Khepri aparece desde pequenos amuletos (centímetros) até em tamanhos maiores

como no templo de Karnak. Nesse templo ele se encontra, in situ, e um parecido está na

exposição do British Museum, conforme mostram as Figuras 2 e 3. Esse escaravelho que

representava o deus está sob um pedestal e simbolizava arquiteturalmente o deus criador sobre

o monte onde ocorrera a criação do cosmos. Até hoje não foi encontrado nenhum templo

erigido exclusivamente para esse deus.

37

Figura 2. Escaravelho em Karnak7

Figura 3. Escaravelho hoje no British Museum8

Esse deus poderia ajudar na transformação final do morto em akh (espírito

transfigurado). No Capítulo 83 do Livro dos Mortos ele era invocado para superar o medo

intenso da putrefação. O trecho onde fala sofre o deus é (ANDREWS e FAULKNER, 1985,

p.80).

Eu flutuei como um primário, eu me tornei Khepri, eu cresci como uma planta, eu me cobri como uma tartaruga, eu estou na essência de cada deus,

eu sou o décimo sétimo das sete uraeus que vem a vida no oeste.

7 Fotografia feita pela autora em 14/06/2008.

8 Fotografia feita pela autora em 06/07/2008, dois ângulos do mesmo objeto.

38

1.6. Osíris

O deus Osíris aparece no Antigo Império, não possuindo referências no Período Pré-

Dinástico. A importância de seu mito é traçada no Texto das Pirâmides onde o faraó Unas é

identificado com Osíris. No Ritual de Oferendas desse faraó há a seguinte passagem: “Osíris

Unas, Eu lhe dei o olho de Hórus, oh Unas!...” Em outra passagem no Ritual de Abertura da

Boca está escrito: “Osíris Unas, Me deixe partir sua boca para você.” Assim como também a

citação do deus na declaração 210 que diz: “Uma escada foi erguida próxima ao Sol em frente

a Osíris, uma escada foi erguida junto a Hórus em frente a seu pai Osíris...”

Osíris era filho do deus da terra, Geb, e da deusa do céu, Nut, e tornou-se herdeiro do

trono do Egito. É tido como o primeiro faraó. Ele faz a sociedade egípcia sair de um estado de

barbárie e passar para o de civilização. O resultado foi um poder centralizado e com base

divina durante todos os períodos do regime faraônico.

A cerimônia em homenagem a Osíris acontecia às margens do Nilo após a inundação

anual, local onde a terra fértil aguardava para receber novas sementes. No Período tardio,

essas eram as principais cerimônias de todo o Egito. Ela consistia em encontrar e embalsamar

os remanescentes do deus que eram ritualmente reunidos, reanimados e terminava com a

ressurreição do deus e a coroação de Hórus no trono.

Há a crença de que as partes corporais do deus foram espalhadas por 42 pontos do

Egito, cada membro estava em um nomo, o que criava uma unidade no território por meio do

ritual de reunião dos elementos em um único corpo. Ou seja, o que era reunido nesse caso

possuía um significado político, histórico e cultural e não cósmico (ASSMANN, 2006). E a

terra do Egito que está reunida nessa cerimônia.

39

A Teologia Menfita (c.3000 a.C.) coloca Osíris em seu momento de enterramento

como aquele que se torna a terra. E, nesses textos, há o Tribunal que clama Hórus como o

sucessor legítimo do deus morto, aquele que governaria as Duas Terras, não como

conquistador, mas como sucessor.

Nesta Teologia, Osíris possui dois destinos após o seu enterro. Um deles é se juntar ao

deus-sol em seu circuito diário e o outro é se juntar à Corte de Ptah-Ta-Tjenen, além dele se

tornar a terra, o que explica mitologicamente porque a região de Mênfis era extremamente

fértil. Afinal, era lá que ele estava enterrado.

O deus era o principal do panteão funerário. A pessoa quando morria se tornava um

Osíris. Ele também era o Senhor do Tribunal do Julgamento do coração. Se a idéia da

mumificação nasce com o mito de Ísis e Osíris, essa é praticada até o final do período

faraônico.

40

Capítulo 2. Contexto Funerário

2.1. Mumificação: somente preservação do corpo?

A palavra múmia deriva do árabe mummya, que significa betume. No processo final de

mumificação era passada resina e a coloração do corpo ficava igual ao do betume. Todavia,

betume era raramente utilizado em múmias.

O processo de mumificação pode ocorrer de forma natural ou artificial. A

mumificação natural se dá quando um indivíduo é enterrado em condições climáticas

contrastantes, como uma região polar, onde o fluxo de ar é suficiente para a retirada da água

dos corpos, ou em climas áridos e secos. A mumificação artificial exige várias etapas de

embalsamento do corpo, como será descrito adiante.

A presença da mumificação natural pode ser vista em corpos, principalmente do

Período Pré-dinástico. As pessoas nessa época eram enterradas diretamente no solo, com uma

trama de fios como proteção. O solo, por ser muito árido e a temperatura elevada, faziam o

processo de desidratação do corpo, onde posteriormente seria utilizado o Natrão. Em regiões

áridas essa desidratação era rápida, o que preservava a camada de pele. As múmias naturais

são caracterizadas pela aparência rígida e a presença de pele fixada aos ossos, consequência

de uma boa preservação do corpo.

A mumificação artificial começa no Pré-Dinástico e é aprimorada ao longo das

dinastias. Inicialmente, ela era destinada somente ao faraó e, depois de alguns séculos, essa

prática já estava democratizada para toda a sociedade.

Para uma melhor compreensão do porquê de se mumificar os mortos, é necessário

conhecer as partes abstratas das quais os egípcios acreditavam que as pessoas eram

41

compostas. O ser humano era constituído de cinco faculdades: seu corpo, sua sombra, seu ka,

seu ba, seu nome e aquele que era o poder, o espírito perfeito chamado akh.

O ka nascia juntamente com a pessoa, era chamado de duplo, porque ele seguia o ser

humano em todos os momentos de sua vida. Ele faz parte da personalidade da pessoa. O ka

era dado a um ser humanos pelo deus.

O faraó possuía ka real era o deus no rei, e a relação entre deuses, rei e o povo

(GORDON,1996 p.33). Ou seja, o faraó recebe sua força vital dos deuses e age como

mediador na distribuição para as pessoas.

O sustento do ka se fazia importante após a morte. É por isso que há rituais e

oferendas para ele. Quando a pessoa morria, acreditavam que ele então habitaria a estátua-ka

na capela dedicada a esse indivíduo, onde receberia as oferendas e orações, mesmo que essas

fossem só representadas. O ka precisava dessas provisões para que ele pudesse continuar vivo.

No Capítulo 30 do Livro dos Mortos há o trecho que diz “... você é o meu ka que está

em meu corpo...” onde o morto faz alusão ao seu duplo, pedindo para que esse o ajude a sair

do julgamento de seu coração como um justificado e assim adentrar ao Mundo Inferior. Essa

frase mostra também que em todo o momento o morto teve consciência de onde o ka residia.

O ba era uma manifestação do morto, que poderia habitar tanto o mundo terreno como

o Mundo dos Mortos. Ele fazia a ligação entre os dois mundos. A preservação do corpo do

morto resultaria na preservação tanto do ba quanto do ka. Pois, o ba retorna todas as noites

para a câmara funerária e assim ele pode migrar durante o dia. Se o corpo não estivesse

preservado para essas duas faculdades habitarem, elas morreriam.

42

Sua representação era em forma de um pássaro com a cabeça humana. Entretanto, ele

poderia assumir a forma que quisesse e há várias fórmulas funerárias para assegurar essa

transformação.

O Capítulo 89 do Livro dos Mortos sugere em sua rubrica que seja feita uma

representação da ba em ouro e que essa seja colocada no peito da múmia. Assim, asseguraria

o retorno da ba ao corpo. O próprio título da fórmula já deixa clara a sua função, fórmula de

como fazer a alma se unir a seu corpo no domínio dos mortos. Um trecho do capítulo diz:

“(...) Deixa minha alma vir até mim onde quer que esteja.” (ANDREWS e FAULKNER,

1985, p.84)

Ao morrer, a pessoa se unia ao seu ka, mas não ao seu ba porque esse era dinâmico.

Na iconografia funerária, há cenas em que o morto está realizando algum ritual e o ka está

atrás dele. Em alguns papiros que descrevem a pesagem do coração, pode-se ver o ba ao lado

esquerdo da balança aguardando o resultado juntamente com o morto e seu ka.

O akh era chamado por Claude Traunecker (1995, p.37) de espírito-akh e eram

espíritos luminosos que podiam ser temíveis. Não eram uma faculdade como o ba e nem um

estado como o ka, eram um poder ocasional perfeito. Ele era o espírito do bem-aventurado e a

união de sucesso do ka e do ba.

O Mundo Inferior ou Duat era limitado pelo corpo de Osíris, porque ele isola o Duat

do caos de Num e, nesse mundo, os mortos desempenhavam funções semelhantes às de

quando habitavam a vida terrena. O Campo dos Juncos situa-se a leste e é uma localidade de

passagem ligada ao Sol. O Campo das Oferendas está a oeste e esse já é um local de estadia.

O Campo das Oferendas era reservado aos mAa-Xrw, que significa “justo de voz”, “justificado”

ou “triunfante”, ou seja, aquele que já havia passado pelo julgamento do coração. Para eles a

43

justificação era uma etapa decisiva para que o morto não sofresse a sua segunda morte. A

segunda morte é a definitiva e nela a pessoa seria esquecida.

2.2. Processos de Mumificação

No mundo ideal e simbólico egípcio, a mumificação era realizada em uma única noite,

a anterior ao sepultamento, ocorrendo no mesmo momento em que o coração do morto era

pesado na sala do julgamento de Osíris. Todavia, hoje se sabe que o processo de mumificação

poderia levar em média 70 dias ou até muitos meses. Os fatores que influenciavam este tempo

poderia ser o preparo da múmia e da tumba.

A mumificação artificial egípcia era necessária no momento em que as tumbas se

tornam superestruturas e não mais há o contato do corpo com as areias áridas e aquecidas do

deserto que promoviam a conservação desses remanescentes. E, após uma série de tentativa e

erros os egípcios antigos perceberam que a chave para essa preservação era a retirada dos

fluidos corporais. Esse processo pode ter vindo provavelmente da análise do processo de

secagem das carnes e peixes (COCKBURN, 1998, p.18).

Não foram encontrados até hoje relatos completos de todos os passos para a

preparação de uma múmia. Há partes desse processo em papiros e paredes de tumbas, assim

como citações em rituais e oferendas. Mas, nada que mostre como era tratado o corpo físico.

Portanto, para fazer uma reconstituição dos métodos de mumificação são utilizados textos de

escritores como Heródoto e Diodoro, além das análises dos remanescentes físicos feitas por

DNA, compostos químicos na pele das múmias, tomografias computadorizadas e arqueologia

experimental.

O texto escrito por Heródoto no século cinco a.C. é reproduzido por todos os autores

que tratam dos processos de mumificação. O relato do escritor grego diz que algumas pessoas

eram apontadas pelas leis para exercerem essa profissão. Quando o corpo de um morto era

44

levado para eles, eles exibiam aos amigos da pessoa morta diferentes modelos em madeira. O

mais perfeito deles assemelha-se a um cujo nome não poderá ser mencionado nesse contexto

(sabe-se que é Osíris). O segundo era inferior em execução e com preço menor e o outro tinha

qualidade ainda mais inferior. Após a demonstração eles perguntavam com qual modelo o

morto gostaria de ser representado. Quando o preço era determinado, os embalsamadores

começam seu trabalho. A descrição do processo de mumificação detalhado adiante se refere

ao mais custoso, sempre lembrando que esse não era um processo técnico, envolvia muitos

rituais em cada estágio de seu preparo. Afinal, estava mumificando Osíris.

O corpo do morto era levado até a “Casa Boa” (pr-nfr) onde no local de embalsamento

começavam as etapas de dissecação do corpo. O primeiro passo era a retirada do cérebro por

meio do orifício nasal. Introduzia-se uma ferramenta metálica e com ela fazia-se uma série de

movimentos destinados a dissolução do cérebro. Quando ele estava em estado mais líquido

era colocada uma espécie de coletor nas narinas. Outro método para a retirada do cérebro era

fazer uma incisão na base do crânio. A cavidade craniana era lavada e preenchida com

resinas. Os olhos eram mantidos no lugar até a 22ª dinastia, quando esses são substituídos por

postiços ou por uma pasta vítrea.

A retirada dos demais órgãos era feita por meio de uma incisão no lado esquerdo da

cavidade abdominal do morto, de onde as vísceras e o intestino eram descartados. Os outros

órgãos eram lavados, drenados, recebendo substâncias aromáticas. Geralmente, eram envoltos

em linho e guardados nos chamados Vasos Canopos.

Os Vasos Canopos, a partir 4ª dinastia, aparecem como parte da arquitetura, em nichos

das câmaras funerárias, em forma de caixas retangulares. Na 5ª dinastia e depois ao longo do

período faraônico eles aparecem em caixas aos pés do caixão, porque as arcas que contém

esses vasos nunca se afastam dos caixões. Isto pode ser visto em papiros onde na procissão há

45

o caixão e logo atrás os canopos. No Novo Império as tampas eram feitas em formato da

cabeça dos quatro filhos de Hórus e cada uma abrigava um órgão especificamente. Os deuses

são Qebehsenuef, que possui a cabeça em forma de falcão e abrigaria os intestinos; Duamutef,

com a cabeça de chacal onde estaria o estômago; Hapy, com cabeça de babuíno guardava os

pulmões e Imset, com cabeça de homem e abrigaria o fígado. A 20ª dinastia caracteriza o

momento em que Anúbis aparece na parte de cima das caixas canópicas e os quatro filhos de

Hórus nas laterais. Contudo, esses vasos perdem a utilidade na 21ª dinastia porque os órgãos

passam a ser recolocados dentro da cavidade abdominal. Na 26ª dinastia há a retomada da

tradição de utilizar os Vasos Canopos e de utilizar nichos como na 4ª dinastia. No período que

compreende da 27ª a 30ª dinastias eles são guardados entre os pés da múmia e, no Período

Ptolomaico, são substituídos por arcas com um falcão na tampa, nas quais os órgãos eram

colocados.

Na cavidade abdominal restava somente o coração. Não era prática comum retirá-lo e,

caso isso acontecesse, ou ele era colocado novamente no tórax ou em seu lugar era colocado

um escaravelho-coração. O corpo era então lavado, óleos e especiarias eram aplicados e,

posteriormente, era coberto com Natrão. O Natrão é uma substância salina composta de

NaCL, Na2CO3 e NaP2SO4, usada para acelerar o processo de retirada dos fluidos corporais

que poderiam posteriormente causar a decomposição do corpo. Após a secagem do indivíduo,

havia a aplicação de resinas para que esse pudesse ter elasticidade novamente e, com isso, dar

continuidade à mumificação. O abdômen era recheado com linho, flores, serragem e outros

materiais para que pudesse ser mantido o mais próximo possível do que era em vida.

46

Figura 4. Incisões.

A Figura 4 (SMITH, 1914, p.194) mostra as incisões que eram feitas no morto tanto

para a retirada dos órgãos quanto para a posterior colocação do material que preenchia as

cavidades. Com a ajuda das mãos ou alguma outra ferramenta, o embalsamador inseria linho,

manteiga ou até mesmo lama na região T e outro material na W, para que esse segurasse o

enchimento da região do pescoço. A localização da letra Y, que são as pernas, era preenchida

pela mesma incisão X. Em alguns casos era feita uma nova incisão para os pés. Após esse

procedimento a cavidade abdominal (R, S, Q) era recheada e as incisões fechadas.

Em seguida, várias resinas, ungüentos, cera de abelha e perfumes eram aplicados,

estando pronto para a colocação das tiras de linho. No meio dessas tiras havia vários

amuletos. Esse processo poderia levar até 15 dias para que o corpo estivesse totalmente

coberto com o linho porque em alguns casos os dedos das mãos e dos pés eram primeiramente

47

enrolados um por um. Logo após o termino do preparo e a recitação de todas as orações, o

morto era colocado em seu caixão ou caixões e levado para a câmara funerária. Entretanto, a

múmia só iria para a câmara funerária caso o morto tivesse condições e status social para

possuir uma tumba. Senão, ela iria para a casa de seus familiares e ficava guardada em

armários na entrada das habitações.

O faraó depois de mumificado só poderia ser enterrado por outro governante, fato

sucessório que mostra que quando um faraó morre e está sofrendo o processo de

mumificação, o próximo governante era escolhido. Ao enterrar o faraó morto faz o mesmo

ritual que Hórus ao sepultar Osíris, garantindo assim a legitimidade do trono.

As escavações sob coordenação de G.A. Reisner, realizadas no plateau de Giza,

descobriram a tumba da rainha Heteperes, mulher de Snefru e mãe de Khufu, na 4ª dinastia. O

corpo não estava no sarcófago, mas uma descoberta surpreendente seria feita. As vísceras

foram encontradas em um recipiente de alabastro e embebidas em uma substância salina

contendo Natrão. O mais interessante é que após 4500 anos a substância continuava aquosa e

preservando as vísceras. Nesse período eles já retiravam os órgãos da cavidade abdominal. O

desenvolvimento dos processos de mumificação foi rápido e, na 5ª dinastia, já há relatos de

arqueólogos que diziam que as pessoas pareciam estar dormindo.

2.3 Cerimônia de Abertura da Boca

A cerimônia de Abertura da Boca (wpt-r ou wn-r) aparece em primeira vez no Texto

das Pirâmides, descrevendo que em uma estátua do deus ou do faraó a vida era inserida. No

entanto, a maioria dos remanescentes desse ritual é do Novo Império, que pode ser encontrado

em papiros e paredes de tumbas. Esse cerimonial poderia ser feito na múmia, no caixão ou em

estátuas que representavam o morto.

48

Para Ann Macy Roth (1993) o ritual começa a ser feito em estátuas no Antigo Império,

não anterior à 6ª dinastia. Onde ao invés de instrumentos eram utilizados próprios dedos do

sacerdote. Para ela, esse cerimonial começou da observação de limpar a boca dos bebês após

o nascimento. Por isso que a metáfora em dar vida ao morto por meio desse ritual seria de

tocar os seus lábios.

O ritual consistia em tocar a boca do morto com o pesesh-kef e recitando as seguintes

palavras: “Oh N, eu consolidei sua mandíbula então ela nunca mais será dividida. Eu

novamente abri a sua boca com o instrumento pesesh-kef, o qual é utilizado para abrir a boca

de todos os deuses e todas as deusas.” Contudo, esse ritual consistia em 75 atos separados e

para realizá-los eram necessários instrumentos específicos—como o Setep feito em madeira e

material metálico, o Pesesh-kef e o Enxó totalmente em madeira—óleos, ungüentos e

cosméticos, que são os mesmos utilizados no processo de mumificação. A Figura 5 mostra

esses instrumentos e na iconografia quando se mostra a Cerimônia de Abertura da Boca o

Enxó está na mão de quem efetua o ritual. Todavia, Pesesh-kef é utilizado desde o Antigo

Império.

49

Figura 5. Instrumentos utilizados no ritual9

O cerimonial era realizado pelo filho do morto ou por um sacerdote, no caso de

sucessão real pelo próximo faraó. Há aqui mais uma demonstração da legitimação do cargo,

onde Hórus faz a Cerimônia de Abertura da Boca em Osíris. A ritualística desse cerimonial

mais uma vez esbarra no viés político-social egípcio, segundo o qual para a legitimação do

poder e para que o novo faraó fosse reconhecido seria preciso realizar a Cerimônia de

Abertura da Boca no faraó morto. Ou seja, a ideologia aqui aparece de uma maneira

simbólica, mas com o intuito de colocar em ação uma troca de poder que nem sempre era

sucessória consanguineamente. Um exemplo bastante conhecido desse ritual está na câmara

funerária de Tutankhamun, faraó da 18ª dinastia, onde seu sucessor Ay realiza a cerimônia

(Figura 6).

9 Retirado do sítio http://www.civilization.ca/cmc/exhibitions/civil/egypt/images/reli40b.jpg acesso em 30 de maio de 2009.

50

Figura 6. Tumba de Tutankhamun, KV62, Cerimônia de Abertura da Boca.

O ritual marcava a finalização do processo de mumificação e consistia em dar vida ao

morto. Como o nome da cerimônia indica, ao abrir a boca do morto ele poderia novamente

falar e comer. Todavia, como há o toque em várias partes da múmia ou caixão não é somente

a abertura da boca, como também dos olhos, orelhas, nariz e outras partes do corpo. Quando o

morto tinha suas faculdades terrenas de volta ele poderia sustentar seu ka.

No Texto dos Caixões (CT 65) aparece a cena onde Hórus e Ptah abrem a boca do

morto, continuamente Ptah e Thoth fazem o ritual da transfiguração onde Thoth recoloca o

coração no corpo do morto e proclama: “assim você se lembra do que esqueceu e pode comer

pão como desejas.” A continuação dessa tradição pode ser vista no Capítulo 23 Livro dos

Mortos que trata especificamente desse ritual nas seguintes palavras (ANDREWS e

FAULKNER, 1985, p.51):

51

Fórmula para abrir a boca de N

Minha boca está aberta por Ptah e o que estava em minha boca foi liberado

pelo meu deus local. Thoth veio de fato, cheio e equipado com mágica e os laços com Seth que estavam restritos em minha boca foram aliviados. Atum

desviou-os e arremessou longe as restrições a Seth.

Minha boca está aberta, minha boca está aberta e separada por Shu com seu

arpão de ferro com o qual ele abre as bocas dos deuses. Eu sou Sakhmet, e sento ao lado dela que está no grande vento do céu; eu sou Órion o Grande

que reside com as Almas de Heliópolis.

Tanto para alguma fórmula mágica ou qualquer palavra que pode ter sido expressada contra mim, os deuses irão se levantar contra elas, até mesmo a

enéade inteira10

.

A vinheta desse capítulo (Figura 7) traz o morto, no caso aqui Nakht (a quem pertence

o Capítulo 23 citado), tendo o cerimonial realizado por um deus com cabeça de falcão que

possui em sua mão um Enxó, que dá novamente ao morto todas as faculdades para que ele

possa utilizá-las no Mundo Inferior.

Figura 7. Vinheta do Capítulo 23 do Livro dos Mortos.

Para Jan Assman e Lorton (2005, p. 312) o ritual era realizado na entrada das tumbas,

onde o morto (no caso o caixão) era colocado em pé, virado para o sul e sustentado por

10 Tradução para o português feita pela autora da dissertação.

52

Anúbis. Para eles, esse ritual era feito inicialmente para trazer as estátuas do morto novamente

à vida, o cerimonial se transformou de estatuária para o corpo em si.

2.4 Amuletos Funerários

Os amuletos poderiam ter inúmeras formas, variando de partes do corpo humano, de

animais, adornos de deuses e símbolos da eternidade. O material com o qual esse era feito

tinha um efeito tão significativo quanto a sua forma. Alguns amuletos por si só já exercem o

seu poder, todavia, alguns precisam de apoio de textos. Como aqui se trata de amuletos

funerários em uso a partir o Novo Império, o texto é o Livro dos Mortos. No entanto, não quer

dizer que não eram utilizados anteriormente, somente que as fontes consultadas são dessa

época.

Os amuletos funerários eram colocados no corpo do morto para protegê-lo em sua

jornada rumo ao Mundo Inferior.

Um dos motivos pelo qual não podemos citar todos os amuletos é a sua grande

quantidade. Em Dendera há uma listagem com 104 amuletos que deveriam ser colocados nas

bandagens das múmias. Nesta lista os amuletos que mais aparecem são os escaravelhos e o

olho-udjat, todavia ela não especifica o local na múmia. Destarte, na 26ª dinastia o número de

amuletos diferenciados que existia chegava a 300. O amuleto que se refere ao coração e os

escaravelhos funerários aparecerão em seus respectivos capítulos desta dissertação.

Com o advento da tecnologia e os estudos realizados por meio de raios-X e mais

desenvolvidos hoje com o auxílio das tomografias computadorizadas, não se faz necessário

desenrolar as múmias para que se possa ver a localização de seus amuletos. Como pode ser

53

visto na múmia de Sha-Amun-en-su11

, onde está indicada a localização de seu escaravelho-

coração.

Os amuletos eram utilizados em vida e, posteriormente, colocados juntamente com o

morto. Mas, no caso específico dos amuletos funerários que aparecem nas bandagens das

múmias, eles protegiam partes específicas do corpo, como o amuleto do coração, o

escaravelho-coração, pilar-djed, entre outros. Muitos amuletos simbolizavam os próprios

hieróglifos, como a cruz-ankh que era a “vida”, mas curiosamente, na listagem de Dendera

não aparece esse símbolo.

Como parte do equipamento funerário, esses amuletos davam proteção ao morto em

sua jornada até o Mundo Inferior. No Livro dos Mortos há capítulos específicos que falam

como deve ser feito cada tipo de amuleto, com qual material e como eles aparecem em suas

vinhetas. Quando colocado em lugar correto o amuleto se tornava extremamente poderoso e

os que aparecem no Livro dos Mortos tinham seus locais específicos no pescoço do morto e

em seu peito. A seguir se tem os principais amuletos encontrados em múmias.

2.4.1 O pilar-djed

A sua origem não é certa, mas pode ter surgido em épocas pré-históricas. Ele é tido

como o amuleto que representa a espinha dorsal de Osíris, ou seja, ele daria estabilidade à ao

corpo do morto. Ele está citado no Capítulo 155 do Livro dos Mortos, em que na vinheta há

um pilar-djed em ouro somente. A rubrica desse capítulo diz que ele deve ser recitado diante

de um amuleto de ouro, colocado em uma base de sicômoro e que deverá ser colocado no

pescoço do morto no dia do enterro. Se isso acontecer ele será como os que estão eternamente

na procissão. O mais interessante é que no final da rubrica há uma recomendação,

“verdadeiramente eficaz, experimentado um milhão de vezes” (BARGUET, 1976, p.224).

11 Ver Capítulo 7.

54

Como nem todos poderiam fazer um amuleto em ouro, ele poderia ser feito em faiança

e com acabamento em camada de folha de ouro.

2.4.2 Tit

Esse amuleto é chamado o nó de Ísis por se referir ao nó que prendia os cintos. Sua

referência no Livro dos Mortos está no Capítulo 156 que tem na vinheta o próprio amuleto. A

rubrica pede que se faça um amuleto em cornalina, podendo ser também em jaspe vermelha e,

depois de recitado o capítulo, ele será colocado no pescoço do morto no dia do enterro,

trazendo assim os poderes de Ísis para proteger os membros. A coloração vermelha

simbolizava o sangue da deusa (ANDREWS, 1994, p. 45), porque o capítulo começa com a

citação sobre o sangue de Ísis. No próprio amuleto há essa referência escrita.

2.4.3 Wadj

O amuleto Wadj é uma referência a um cetro de papiro. Os Capítulos 159 e 160 do

Livro dos Mortos fazem alusão a esse amuleto, devendo ser colocado no pescoço do morto no

dia de seu enterro. Na vinheta do Capítulo 160 quem dá o amuleto ao morto é o deus Thoth.

Esse era para ser feito em feldspato verde, porque essa rocha garantia o vigor do morto e, com

isso, a virtude do material era garantida a seu dono.

A sua forma sugeriria tanto a de uma planta de papiro quanto a de um pilar

arquiteturalmente falando. Essa planta era o emblema do Baixo Egito e em Buto no Delta ele

simbolizaria a proteção da deusa Wadjit.

2.4.4 O olho-udjat

O mito de surgimento desse amuleto remete à batalha entre Seth e Hórus, no momento

em que Seth arranca o olho de seu oponente. Quando esse é obrigado a devolvê-lo, Hórus o

coloca não em seu lugar, mas na boca de seu pai Osíris, concedendo assim a ele uma nova

vida. Este foi o primeiro e mais importante amuleto que se tornou oferenda (JANOT, 2008,

55

p.234). Há também outra história que diz que esse era o olho esquerdo de Hórus que foi

arrancado na batalha e depois quando o deus o coloca de volta, seu olho passa a simbolizar a

lua cheia.

O material utilizado para a sua fabricação era quase exclusivamente faiança, mas o de

Tutankhamun era feito em lápis-lazúli e ouro.

Assim como os escaravelhos, esse é um amuleto que aparece em abundância nas

múmias, considerando o pensamento que, quanto mais amuletos iguais, mais proteção, era

essa a intenção deles. Ele poderia aparecer sozinho, ou com a cobra uraues fazendo a

composição de uma espécie de peitoral.

2.4.5 Os quatro filhos de Hórus

Esses amuletos possuíam a simbologia da cavidade abdominal por causa dos vasos

canopos. Costumavam vir nas redes de contas que cobriam os corpos mumificados ou em

alguns casos nas bandagens das múmias. Eles são sempre moldados de perfil e mumiformes.

As suas funções como amuletos funerários é sempre estarem ao lado de Osíris para não deixar

que esse sinta fome ou sede, enquanto está ascendendo ao céu.

56

Capítulo 3. Literatura Funerária

A literatura funerária egípcia é composta por textos que guiavam o morto na vida após

a morte. Os principais são Texto das Pirâmides— escrito no Antigo Império, Texto dos

Caixões— no Médio Império e Livro dos Mortos— no Novo Império. Seus conteúdos podem

ser encontrados em paredes de pirâmides e tumbas, caixões, papiros, tiras de linho e,

ocasionalmente, em templos. Há também o Livro dos Dois Caminhos, Livro das Cavernas e o

Livro das Respirações. Entretanto, esses não serão aqui tratados por não estarem diretamente

relacionados com o escaravelho-coração.

3.1. Texto das Pirâmides

Os Textos das Pirâmides são os escritos religiosos e funerários mais antigos do Egito

Faraônico. Por utilizarem uma gramática e vocabulário muito ancestrais eles dificultaram a

leitura para os estudiosos modernos. Além disso, sua ortografia é incomum.

Esses textos são uma coleção de fórmulas e rituais funerários primeiramente inscritos

nos sarcófagos e paredes subterrâneas de cinco pirâmides de Faraós do Antigo Império e de

três rainhas. São elas: Unas (2375-2345 a.C.), Teti (2345-2333 a.C.), Pepi I (2332-2283 a.C.),

Merenre (2283-2278 a.C.), Pepi II (2278-2184) e três de suas Rainhas Neith, Iput e

Udjebten12

e um Faraó da 8ª dinastia Iby (c.2040 a.C.).

Esse corpus textual foi descoberto em 1880 e são até hoje objeto de pesquisas e

escavações, como em 2001 quando foram encontrados novos fragmentos de textos na

pirâmide de Pepi II. Os textos de Unas, Teti, Pepi I, Merenre e Pepi II foram primeiramente

publicados por seu descobridor, Gaston Maspero. Em 1908, Kurt Sethe publicou uma

compilação dos cinco textos e seu trabalho ainda é reconhecido. Escavações realizadas por

12 Grafia dos nomes das Rainhas retirados de DODSON, A.e HILTON, D. The Complete Royal Families of Ancient Egypt.

Cairo: The American University of Cairo Press, 2004 (p.73)

57

Gustave Jéquier (1897-1902) permitiram encontrar novas câmaras na pirâmide de Pepi II,

assim como novas pirâmides que exibiam essas inscrições (Neith, Iput, Udjebten e Iby) e,

Gustave Jéquier eventualmente publicou esses textos. Desde 1958, escavações sob a direção

de Jean-Philippe Lauer, Jean Sainte Fare Garnot e Jean Leclant são realizadas nos

remanescentes das pirâmides do Antigo Império de Teti, Pepi I e Merenre. A publicação

completa dos escritos da pirâmide de Pepi foi feita em 2001.

Uma série de publicações anteriores dos Textos das Pirâmides foi realizada, como de

Samuel B. Mercer em 1952, Alexandre Piankoff (somente a pirâmide de Unas) em 1968 e

Raymond O. Faulkner em 1969. Para Allen (2005, p.2), essas obras não devem ser

desmerecidas, contudo a Egiptologia produziu considerável avanço nos estudos sobre religião

e escrita, e alguns trechos passaram a exibir significados diferentes das publicações anteriores.

A publicação dos textos de Pepi I colaborou para aumento substancial desse conhecimento.

A pirâmide de Unas contém o texto mais preservado, com 236 declarações. As

pirâmides de seus sucessores possuem cerca de 750 declarações e alcançando quase 1000 em

algumas. Não se sabe o número exato dessas declarações porque as paredes colapsaram em

algumas dessas pirâmides.

Cópias dessas declarações podem ser vistas em sarcófagos, caixões e paredes de

tumbas de pessoas que não faziam parte da realeza no 1° Período Intermediário. A cópia

posterior mais importante está na tumba de Senusret I (1991-1962 a.C.) em El-Lisht que

contém o texto igual ao de Unas, mas com alguns adicionais.

A tumba de Unas e de seus sucessores tem o mesmo arranjo interior, que consiste em

uma câmara funerária, uma antecâmara para o leste e um corredor que conduz da parede norte

da antecâmara até a face norte das pirâmides. Os textos ocupam as paredes dessas salas em

um arranjo específico que reflete sua função e a das salas. A parede norte da antecâmara é

58

devotada aos Rituais de Oferendas— pequenas fórmulas de uma ou duas sentenças cada,

faladas para o morto quando as oferendas eram apresentadas. As fórmulas que estão na

metade da parede sul da câmara funerária são poucas e longas. Endereçadas para o morto e os

deuses, eles formam os textos do Ritual da Ressurreição— designado para enviar o “espírito”

do morto para uma vida ao lado dos deuses. Esse ritual começa com as palavras “Você não foi

para outro lugar morto: você foi para outro lugar vivo.” E conclui com a garantia que “seu

nome estará vivo entre as pessoas, assim como seu nome estará com os deuses.”

Na pirâmide de Unas, esses dois rituais ocupam todas as paredes da câmara mortuária,

com exceção do frontão ocidental acima do sarcófago. Essa parede é devotada a um terceiro

jogo de fórmulas, que servia para proteger o sarcófago e seu conteúdo das cobras e outros

seres perigosos. Nas pirâmides mais recentes as paredes oeste da câmara funerária contêm

fórmulas endereçadas à deusa Nut. As paredes da antecâmara e corredor são inscritas com a

quarta parte de fórmulas, designada a ajudar para passagem do morto da noite da tumba para o

dia da nova vida fora da pirâmide.

Originalmente o texto era escrito na primeira pessoa, porque era para ser recitado pelo

morto em sua jornada noturna e o nome da pessoa era a única parte alterada. Ele contém três

grandes grupos de fórmulas: os Rituais de Oferenda e Insígnias, o Ritual de Ressurreição e o

Ritual Matinal. O primeiro grupo aparece na parede norte da câmara funerária, onde ocorre a

libação, a limpeza por incensos e água salgada e a Abertura da Boca. O Ritual da Insígnia

consistia em roupas e regalias reais oferecidas a uma estátua do morto, que era apresentada

aos deuses na procissão. O Ritual da Ressurreição ocupa a parede sul da câmara mortuária e o

texto consiste em libertar o “espírito” do morto de seu corpo e da Terra e enviá-lo à sua

jornada diurna juntamente com os deuses. O terceiro grupo de rituais reflete as cerimônias nas

quais o Rei era acordado, trocado e alimentado durante a vida. Os outros textos nas paredes

59

das pirâmides são pessoais e se referem ao morto encontrar salvação em seus rituais matinais

e existir durante o dia na companhia dos deuses.

O Texto das Pirâmides reflete uma visão da vida após a morte modelada na jornada

noturna do Sol pelo Duat em seu caminho para o renascimento. Como o sol recebia o poder

da nova vida se juntando ao corpo de Osíris, o “espírito” do morto ganharia o mesmo poder

ao se juntar todas as noites com o deus. Este conceito solar da ressurreição diária constitui a

primeira versão da vida após a morte.

Os sepultamentos de pessoas da sociedade do Antigo Império exibiam trechos

análogos aos Textos das Pirâmides e Rituais de Oferendas, o que sugere que esses textos eram

recitados nesses enterramentos (REDFORD, 2001, p.97).

3.2. Texto dos Caixões

O termo se aplica a fórmulas religiosas ou capítulos pintados ou escavados em mais de

200 caixões do Médio Império de diversos sítios. Os sítios são: Kom El-Hisn, Saqqara,

Dashur, El-Lisht, Herakompolis, Beni Hasan, Bersheh, Qau, Meir, Akhmim, Siut, Abidos,

Dendera, Gebelein e Assuã.

Textos relacionados à vida do morto, que eram incluídos nos Textos dos Caixões,

foram encontrados em papiros, tumbas, máscaras mortuárias, caixas canópicas, esquifes,

estátuas e estelas. Os manuscritos desses textos apresentavam grande variação na seleção e

quantidade de fórmulas utilizadas.

Os caixões para os antigos egípcios significavam casas, a morada daquele que irá viver

uma vida nova. Esta casa é a visão do Mundo, onde há um céu (teto com a representação

astronômica), um sol (fundo, ornado com o Livro dos Dois Caminhos) e quatro horizontes (as

quatro tampas laterais). Nessa época a fachada de palácio (Serekh) que aparece nos caixões é

60

vista como a entrada do Mundo Inferior. Sua decoração exterior é característica desse período,

as figuras abaixo deixam claro essa iconografia. As Figuras 8 a 13 descrevem os caixões.

Figura 8. Frente do caixão voltada para leste.

Figura 9. A parte traseira do caixão é voltada para oeste.

Figura 10. A cabeça é voltada para o norte. Figura 11. Os pés são voltados para o sul.

61

Figura 12. A tampa é voltada para o céu.

Figura 13. O fundo é voltado para a terra.

O Texto dos Caixões inclui hinos, orações, descrições da vida após a morte, textos de

ascensão, transformações, fórmulas de serpentes e listas de oferendas— normalmente o

mesmo tipo de material encontrado no Texto das Pirâmides e no Livro dos Mortos. As

descrições envolvem três principais divindades: o deus Sol, Rê, a quem o morto se junta ou

quem o deve guiar pelo seu circuito diário. O deus dos mortos, Osíris com quem o morto se

identifica e a deusa Nut que como mãe de Osíris representa o céu o qual Rê passa a noite e a

tumba— ou mais especificamente o caixão— na qual Osíris renasce.

Esses textos são os mais antigos conhecidos utilizados por homens e mulheres não

ligados à realeza. Com isso, há uma eliminação da exclusividade real, a partir desse momento,

qualquer morto pode se tornar um Osíris N13

. Todavia, o grupo que faz um largo uso desses

13 Aqui se inclui o nome do morto.

62

textos é de nomarcas e suas famílias, oficiais, assim como pessoas do alto escalão da

sociedade.

O uso desse tipo de texto chega ao final com o início do Novo Império, onde esse se

transformou em um novo corpus textual denominado Livro dos Mortos, na 17ª dinastia.

Contudo, esses textos ainda são encontrados na câmara mortuária de Minnakhte (TT87) e, nas

tumbas da 25ª-26ª dinastias as fórmulas 151, 607 e 625 são populares.

A primeira obra que compilou esses textos foi escrita por C.R. Lepsius em 1867, na

qual ele estudou os caixões que estão em Berlim. Posteriormente, Pierre Lacau publicou o

Caixões do Médio Império no Museu do Cairo, como parte do Catalogue générale em 1904-

1906. James Henry Breasted e Alan Gardiner tinham planos de compilar todos os textos, mas

quem realizou esse trabalho foi Adriaan de Buck em uma publicação de sete volumes datada

entre 1935 e 1961. A primeira tradução completa em inglês é de Raymond O. Faulkner (1973-

1978) e em francês é de Paul Barguet (1983), obra que será muito utilizada nessa dissertação

quando houver referências às fórmulas do Texto dos Caixões.

A estrutura do texto é formada por 1185 fórmulas (HORNUNG, 1999, p.08) a

linguagem utilizada é a do Médio Império clássico, sem sinais locais peculiares, mas com

freqüente imitação do Antigo Egípcio. As fórmulas são escritas em colunas, em hieróglifos

cursivos ou hierático antigo. Apresentam claramente introdução, desenvolvimento e

conclusão. Como regra, os títulos se localizam no começo. A tinta vermelha é utilizada para

dar ênfase e indicar divisões, como a fórmula 1087, que é toda escrita em vermelho. O texto é

escrito em primeira pessoa, do mesmo modo que no Texto das Pirâmides. Em contraste com o

Texto das Pirâmides, esse corpus textual apresenta poucas, mas vinhetas e, também mostram

de maneira mais conceitualizada e concreta a vida após a morte e seus perigos estão mais

dramatizados.

63

3.3. Livro dos Mortos

O Livro dos Mortos é chamado pelos antigos egípcios de prt-m-hrwr Livro Para Sair à

Luz do Dia. Ele consiste de um grupo de fórmulas funerárias escritas em papiros do Novo

Império à Baixa Época.

Esses textos eram utilizados por todos aqueles que poderiam copiá-los, em papiros

grandes e pequenos e até em tiras de linho. Alguns capítulos podem ser encontrados em

paredes de templos, caixões, tumbas, shabtis14

, escaravelhos-coração, hipocéfalos e amuletos

do coração, entre outros materiais votivos. Do mesmo modo que os corpora textuais

supracitados, o Livro dos Mortos possui fórmulas que apareceram anteriormente, no Texto das

Pirâmides e Texto dos Caixões.

O Livro dos Mortos começa a ser comumente utilizado por oficiais do reinado de

Thutmés III. A produção desses textos para durante o Período Amarniano (1350-1334 a.C.) e

é retomada no reinado de Tutankhamun. Ele aparece escrito em paredes de tumbas no reino

de Merenptah, começando pelo Capítulo 125, o qual trata da pesagem do coração15

. No

Período Ramessida (1293-1185 a.C.) e 21ª dinastia, alguns papiros aparecem escritos em

hierático, porém também continuam em hieróglifo cursivo. Nos papiros mitológicos são

representadas somente as vinhetas dos capítulos. Na 22ª dinastia o Livro dos Mortos cai em

desuso, contudo na 26ª dinastia ele passa por uma revivificação com a adição de novas

fórmulas. No Período Ptolomaico há a presença de um papiro com os capítulos escritos em

demótico.

A primeira publicação desses textos é feita por Marcel Cadet em 1805 que reproduz

um papiro Ptolomaico. Alguns manuscritos aparecem no volume dois da Description de

14 Ver GAMA, C.A. Os servidores funerários da coleção egípcia do Museu Nacional: Catálogo e Interpretação. Dissertação

de Mestrado-UFRJ/MN Programa de Pós Graduação em Arqueologia, 2008.

15 Ver explicação na página 62.

64

l’Égypte em 1821 escrito pelos participantes da expedição de Napoleão Bonaparte. Em 1842,

C. R. Lepsius traduziu um papiro do Período Tardio com 165 capítulos que hoje está no

Museu de Turin. Foi ele que, pela primeira vez, dividiu o Livro em capítulos e os numerou e,

hoje, os egiptólogos seguem essa numeração. No Segundo Congresso de Orientalistas em

Londres, em 1874, o projeto de uma edição completa dos papiros ficou sob cuidados de

Edouard Naville que utilizou 71 manuscritos do Novo Império, haja vista a grande quantidade

que havia nos Museus. Sua publicação foi feita em três volumes em 1886 e até hoje é

utilizada em pesquisas. Em 1881, W. Willem Pleyte compilou fórmulas adicionais do Período

Tardio em uma continuação à numeração de Lepsius. E.A.Wallis Budge publicou em 1894 e

1899 uma compilação dos papiros que estão no British Museum. A edição de 1898 é

composta pelos hieróglifos que até hoje estão em uso e seus hieróglifos, assim como sua

tradução, são apresentados nessa dissertação. As traduções mais recentes desses papiros são

de Paul Barguet (1967), Thomas George Allen (1960), Erick Hornung e Raymond O.

Faulkner (1972). Conforme são encontrados novos capítulos, eles são colocados no final do

texto, sem nenhuma preocupação com sua real ordem. Para efetuar suas traduções Budge

utilizou os papiros de Ani e Nu, fazendo uma espécie de coletânea com os dois. No entanto,

Faulkner utilizou-se somente do papiro Ani. A atual edição da tradução de Faulkner (2008)

publicada em 2008 traz o fac-símile dos capítulos com suas respectivas traduções e

comentários.

O texto é escrito em preto em colunas de hieróglifos, separados por uma linha preta.

As rubricas, os títulos e as palavras iniciais aparecem em vermelho e são encontradas na

maioria dos manuscritos. Frequentemente são utilizadas para títulos ou comentários adicionais

sobre fórmulas individuais e sua efetividade, assim como dão instruções específicas para o

uso do capítulo. As vinhetas aparecem desenhadas e a partir da 21ª dinastia elas são coloridas.

Os capítulos— como assim passaram a serem chamadas as fórmulas após a tradução de

65

Lepsius— podem somar 190 de acordo com a tradução de Budge e 186 de acordo com

Naville. Não se sabe exatamente quantos capítulos compõem o Livro dos Mortos, já que nos

papiros do Novo Império ele não aparece completo. Por exemplo, o papiro de Kha hoje no

Museu de Turim possui 33 capítulos, o de Yuya que se está no Museu do Cairo 41e o de Ani

com 65 e Nu com 137 que se estão no British Museum. O tamanho dos papiros não era

padronizado, com isso, os escribas colocavam os capítulos tidos como mais importantes e

levavam em consideração o tamanho da área a ser trabalhada. De mesmo modo, como muitos

eram feitos em oficinas, pode-se encontrar espaços pequenos ou muito grandes para se

colocar o nome e a titularidade do morto.

Os objetivos do Livro dos Mortos são: entrar e sair à vontade do “Belo Ocidente”,

transfigurar-se, glorificar-se, recuperar as funções vitais, conduzir a ba de volta ao corpo,

viajar a Abidos e seguir Osíris, derrotar seus inimigos, respirar a brisa e beber água à vontade,

não comer excremento nem beber urina, evitar os trabalhos no Mundo dos Mortos e obter o

godê e a paleta de escriba16

.

3.4. Capítulo 30

3.4.1. Contextualização

O Capítulo 30 do Livro dos Mortos refere-se à pesagem do coração do morto no

Tribunal de Osíris. Ao ser recitado pelo morto pedia que o coração não se opusesse contra seu

dono na hora do julgamento. As traduções, funções e significados desse capítulo serão

discutidos a seguir.

Não se sabe quando esse capítulo aparece na cultura egípcia. A respeito do seu

surgimento há duas versões, mas se sabe que este é um dos capítulos mais antigos do Livro

dos Mortos. A primeira versão expõe que ele foi encontrado sob os pés de uma estátua do

16 Aula ministrada pelo prof. Antonio Brancaglion Junior, no Mestrado de Arqueologia do Museu Nacional, em 25/10/2006.

66

deus Thoth da 1a dinastia, época do reinado do faraó Semti-Hesepti. A segunda, amplamente

utilizada pelos estudiosos que trabalham com o Livro dos Mortos, atribui a descoberta ao

príncipe Herutataf, da 4a dinastia. Ele o descobriu durante uma viagem de inspeção aos

templos de sua propriedade— no templo da Majestade do Rei do Norte e do Sul Miquerinos,

localizada em Khemenu (Hermópolis Magna), aos pés de uma estátua do deus Thoth, escrito

em uma placa de ferro (BUDGE, 2002, p.62). As duas versões conferem a escrita do texto ao

próprio deus e, com isso, era atribuída uma deificação ao capítulo, sabendo que os próprios

egípcios atribuíam a criação desse capítulo ao deus.

Carol Andrews (1994) afirma que essas versões são usadas somente para mitificar o

capítulo. No seu livro, ela diz que não havia nenhuma necessidade desse capítulo ser utilizado

antes do 1° Período Intermediário. Contudo, ao longo de seu texto, percebe-se que ela remete

o aparecimento do capítulo ao amuleto do escaravelho-coração— objeto que será tratado

posteriormente— pois, como ela mesma apresenta o escaravelho-coração mais antigo

encontrado até hoje era pertencente à 13a dinastia. Outro ponto que nos leva a entender o

porquê da escolha dessa data por Andrews é que a 9a dinastia foi formada pelos Hicsos, povo

que introduziu o amuleto do escaravelho como artefato comemorativo e não funerário. Por

serem afirmações muito subjetivas porque a autora não as baseia em fatos, preferimos, como

muitos autores o surgimento desse capítulo na 4a dinastia (2613-2498 a.C.).

Para Malaise (1978) a idéia da pesagem do coração e a avaliação dos excessos se dão

no 1º Período Intermediário. Ele cita um caixão descoberto em El-Bersheh onde está o futuro

título do capítulo 30—“Não permitir que o coração de um homem se oponha a ele no Mundo

dos Mortos”—momento em que fica claro o ritual da pesagem do coração. A fórmula 112 do

Texto dos Caixões é denominada “para impedir que o coração de um homem se sente contra

ele”, a 459 demanda ao coração não abandonar o morto e a 715 pede para ele não se rebelar.

67

No Novo Império o coração desempenha um papel importante, e os textos funerários

reservam a ele um lugar privilegiado.

O Capítulo 30 pode ser encontrado em todos os papiros não mutilados e em centenas

de escaravelhos-coração.

O Livro dos Mortos, dependendo do copista, é dividido em partes, com aglomerados

de capítulos nos quais cada seção possui um significado. Ou seja, cada uma possui fórmulas

que remetem a uma intenção no Mundo Inferior. Serão citadas aqui as divisões de Sir E. A.

Wallis Budge (2002) e Paul Barguet (1967).

Nas palavras de Budge, o Capítulo 30 está diretamente relacionado com os capítulos

27, 28 e 29, formando, assim, a proteção ao coração do falecido, para que esse não seja

roubado pelos “ladrões de coração” no Mundo inferior. Para Paul Barguet, que faz uma

divisão do Livro em cinco seções, o Capítulo 30 está na seção número dois, entre os Capítulos

17 e 63, que são denominados capítulos de “sair ao dia”, à regeneração. Assim, ele diz que

eles compõem o triunfo e a eclosão do morto ante a incapacidade de seus inimigos.

Esse capítulo possui uma ligação com a pesagem do coração do falecido no tribunal de

Osíris, expressada na Figura 14.

Figura 14. Cena do Tribunal de Osíris17.

17 Papiro de Hunefer, que foi um escriba real ao final do reinado do faraó Ramsés I. A cena aqui representada do Tribunal de

Osíris é como a mesma aparece nas vinhetas.

68

Como visto na descrição do papiro de Hunefer, o tribunal era constituído de um

recinto e na parte superior ficavam os 42 juízes que auxiliavam Osíris (juiz supremo de todo o

cerimonial). O morto era trazido de mãos dadas com Anúbis (lado esquerdo da imagem) e,

logo após, seu coração era pesado juntamente com Maat, a deusa da verdade e da justiça, que

poderia ser representada por uma mulher sentada com seu símbolo na cabeça ou também por

uma pena (forma pela qual é mais conhecida). Há também a presença da deusa Ammit, um

híbrido com cabeça de crocodilo, corpo de leão e traseiro de hipopótamo, que espreitava ao

lado da balança. Se o coração fosse mais pesado que Maat, ela o devorava e a pessoa era

esquecida para sempre. Acontecia assim a chamada segunda morte. Um pouco adiante dessa

deusa encontramos o deus Thoth que anota todos os procedimentos. Contudo, o coração

precisava ser de mesmo peso que Maat para que o morto pudesse se tornar um justificado e

continuar sua caminhada rumo ao Mundo Inferior.

O morto recita as fórmulas desse capítulo pedindo que: ninguém se oponha a ele no

Julgamento diante dos deuses auxiliares; que o seu coração não o deixe; que os deuses

auxiliares de Osíris não façam seu nome cheirar mal; que não prevaleçam contra ele falsos

testemunhos; e que o veredicto de virtuoso lhe seja conferido depois que seu coração tiver

sido pesado.

3.4.2. O Capítulo 30

A partir desse ponto será discutido o Capítulo 30, suas divisões em 30, 30a e 30b e

suas traduções. O 30a e 30b são do início do Novo Império e o 30 é da Recensão Saíta

que,como foi enumerado primeiramente por Lepsius, ele está antes dos mais antigos. As

versões a e b foram reproduzidas pela primeira vez no sarcófago de Mentouhotep, 12ª

dinastia.

69

Malaise (1978, p.19-20) coloca em sua tese um Capítulo 30 tido por ele como ideal e

correto, mostrado na Figura 15. Esse capítulo não foi retirado de nenhum papiro específico é

uma compilação que serve, de acordo com o autor, para ilustrar como ele deveria ser.

Hieróglifos

Figura 15. Capítulo 30.

Transliteração

(1) R n tm rdi.t xcf ib n N r.f m Xr.i-ntr

(2) Dd.f

(3) ib.i n mw.t.i sp HAtj.i n Xprw.i

(4) m aHa r.i m mtrw

(5) m xcf r.i m DADA.t

70

(6) m iri rq.q r.i m-bAH irj mxA.t

(7) ntk kA.i imj X.t.i

(8) Xnmw cwDA a.wt.i

(9) pr.k r bw nfr Hn.n im

(10) m cxnS rn.i n Snf.t irj.w rmt m aHa.w

(11) nfr n.n nfr n cDm Aw ib n wDa-mdw

(12) m qmd grg r.i r-gc ntr (AA m-bAH ntr aA nb Imn.f)

(13) mk Tn(w).t.k wn.tj (m mAa-xrw)

Tradução

Oh! Coração de minha mãe, oh coração de minha mãe, oh músculo

cardíaco de minhas transformações, não se erga contra mim em testemunho,

não se oponha a mim perante o tribunal, não manifeste hostilidade contra mim na presença do guardião da balança, pois você é meu ka que se encontra

em meu corpo, o Khnum que torna vigoroso meus membros; possa sair (do

julgamento) conforme o bem o qual encarregamo-nos (portanto), não torne meu nome malcheiroso aos membros do tribunal que distribuem os homens

em pilhas, então será bom para nós, será bom para o juiz e o coração

deleitar-se-á ao anúncio do julgamento; não invente mentira contra mim ao

lado do grande deus (defronte o grande deus, mestre do Ocidente), pois eis que tua avaliação está lá (consiste na prova da justificação!)

18

Sir. Wallis Budge (1910) também faz uma compilação de papiros para representar o

Capítulo 30b ideal, no qual o título é do papiro de Ani19

, a parte marcada pela letra A é do

papiro de Nut20

e a B do papiro de Iua

18 Tradução do francês para o português feito pela autora da dissertação.

19 British Museum, no.1040

20 British Museum, no.10477

71

72

As rubricas também compiladas por Budge (1910, p.131) foram retiradas do papiro de

Nu e de Amenhotep.

73

Na vinheta desse capítulo encontramos o morto em pé, com as mãos erguidas em

adoração diante de um escaravelho colocado sobre um pedestal, (Figura 16).

Figura 16. Vinheta do Capítulo 30 21.

As rubricas desse capítulo ordenam que ele seja recitado diante de um escaravelho22

de basalto, encravado em um engaste de ouro e colocado no local do coração do morto para o

qual se tenha realizado a cerimônia de “Abertura da Boca”.

A seguir a tradução de Sir E.A. Wallis Budge (2002):

Fórmula de como não deixar o coração de um homem ser-lhe arrebatado no mundo

inferior:

Oh meu coração, minha mãe; Oh meu coração, minha mãe! Oh meu coração de minha existência sobre a Terra. Nada se erga para opor-se a mim no

julgamento; não haja oposição a mim diante dos príncipes soberanos;

[nenhum mal] seja manipulado contra mim na presença dos deuses; não haja separação [entre ti] e mim perante o grande deus, senhor de Amentet.

Homenagem a ti, ó coração de Osíris-quent-Amentet! Homenagem a vós ó

meus rins! Homenagem a vós ó deuses que habitais nas nuvens divinas e sois exaltados mercê dos vossos cetros! Dizei palavras justas em favor do Osíris

21 Papiro do primeiro século d.C., Dinastia ptolemaica. Texto escrito em demótico. Fonte: www.insecula.com acesso em

30/05/2006.

22 Ver Capítulo 7.

74

Auf-anc, e fazei que ele prospere diante de Neebca. E embora eu esteja junto

a terra, e na parte mais interna do céu, deixai-me permanecer na terra e não

morrer em Amentet, e deixai-me ser lá uma alma imortal para todo o sempre. (2002, p.215)

A seguir, outra tradução feita por Thomas George Allen (1974, p.39):

Fórmula de como não deixar que o peito de um homem lhe seja tirado no

domínio do deus. Para ser dita por Osíris N.

Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe, meu peito que eu

tinha na terra, não se levante contra mim como testemunha, não se oponha a

mim no Conselho. Não haja contra mim perante os Deuses. Não pese contra

mim perante o grande Deus, senhor do oeste. Saudação a ti coração mil de Osíris que preside sobre os ocidentais; saudação a ti intestinos. Saudação a

vocês, deuses que presidem os cachos e prendem seus cetros. Diga que o

bom de ações de Osiris N recomenda-o a Nehebka(u).Embora eu tenha sido sepultado no lado oeste do Céu. Eu continuo na terra, que eu não morri no

oeste (mas) me tornei um abençoado nisso até a eternidade23

.

3.4.3. O Capítulo 30a

Em muitos papiros, inclusive nos da recensão tebana, não são encontradas vinhetas;

em alguns aparece um coração colocado em cima de um vaso; também é encontrado o

falecido adorando o próprio coração e, ainda, o falecido aparece em pé diante de quatro

deuses onde um está com a mão estendida oferecendo-lhe um coração. Esse capítulo não

possui rubrica. Ele costuma aparecer com frequência em amuletos do coração.

A primeira tradução aqui descrita é de Sir E.A. Wallis Budge, mostrada a seguir.

De como não deixar que o coração do intendente da casa do intendente do selo,

Nu, triunfante, lhe seja arrebatado no mundo inferior:

Ó meu coração, minha mãe; ó meu coração, minha mãe! Ó meu coração de minha existência sobre a terra. Nada se erga em oposição a mim no

julgamento perante os senhores do tribunal; não se diga de mim nem do que

tenho feito, „Ele praticou atos contra o justo e o verdadeiro‟; nada se volte contra mim na presença do grande deus, senhor de Amentet. Homenagem a

ti, ó meu coração! Homenagem a ti, ó meu coração! Homenagem a vós, ó

meus rins (vísceras)! Homenagem a vós, ó deuses que assisti nas divinas

23 Capítulo retirado do papiro Ptolomaico de Nysw-sw.Tfwt que se encontra no Oriental Institute Museum em Chicago

75

nuvens, e sois exaltados graças aos vossos cetros! Falai [por mim] coisas

justas a Rá, e fazei que eu prospere diante de Neebca. E contemplai-me,

ainda que eu esteja preso a terra nas suas partes mais íntimas, consenti que eu permaneça sobre ela e não me deixeis morrer em Amentet, mas me torne

uma Alma Imortal dentro dela. (2002,p.216)

A segunda tradução é de Paul Barguet, mostrada a seguir.

Fórmula para impedir que o coração do N. 24

não se oponha a ele dentro do

império dos mortos:

Ó meu coração de minha mãe, ó meu coração de minha mãe, ó víscera de

meu coração de minha existência terrestre, não se levante contra mim em

testemunho na presença dos Senhores dos bens! Não diga sobre meu sujeito: “Ele fez isso, em verdade!” sobre a atenção de que eu fiz isso; não se faça

conhecido contra mim na presença do grande deus, senhor do Ocidente.

Saudação a ti meu coração! Salvação à ti, víscera de meu coração! Salvação à ti, meu seio! Salvação a vocês, deuses preeminentes, que trazem as tranças

misteriosas que se apóiam sobre seus cetros! Anuncie-me à Rê, recomende-

me à Nehebkau quando ele está no Ocidente do céu.

Que eu seja durável sobre a terra, que eu não morra no Ocidente, que eu seja um bem-aventurado aqui!(1967, p.215)

A terceira tradução é de Thomas G. Allen (1974, p.40).

Fórmula para não deixar que o coração de N se oponha a ele no domínio do deus.

Ele diz:

Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe,meu peito que eu

tive na terra, não se levante contra mim como testemunha perante os

Senhores das Oferendas. Não diga nada contra mim “Ele realmente fez isso” a respeito do que eu fiz. Não traga nenhuma carga de encontro a mim

perante o grande deus senhor do oeste.

Saudação a ti, meu coração; saudação a ti, meu peito; saudação a ti, meus intestinos. Saudação [a vocês deuses] que presidem os Cachos e possuem

seus cetros. Diga minhas boas ações a Rê; recomende-me a Nehebkau.

Olhe, ele está enterrado „no meio do grande‟ continuando na terra, não

morrendo no oeste (mas) se tornando um abençoado nisto25

.

24 N. aqui no caso é para ser substituído pelo nome do falecido.

25. Papiro utilizado pertenceu a Nwmw e se encontra no British Museum, BM10470

76

3.4.4. O Capítulo 30b

Em alguns papiros da Recensão Tebana, o Capítulo 30b aparece sem nenhuma

vinheta. Talvez, por aparecer junto com um dos textos que acompanham a cena do

julgamento, onde forma a oração colocada na boca do falecido. A presente vinheta mostra o

morto em pé, junto à balança, ao passo que seu coração é pesado junto com Ma‟at,

representada como deusa. O seu coração na imagem também pode aparecer como um

escaravelho. O macaco que está em cima de um pedestal é chamado de “Senhor de Khenemu,

o pesador justiceiro” (Figura 17).

Figura 17. Vinheta do Capítulo 30b26.

Em alguns papiros encontramos a rubrica do Capítulo 148 do Livro dos Mortos, que

diz: “Atenção, faze um escaravelho de pedra verde, lava-o com ouro e coloca-o no coração do

falecido, e o escaravelho executará para ele a cerimônia de Abertura da Boca, unta-o com

ungüento e recita o Capítulo 30” (BUDGE, 2002, p.216)

26Essa vinheta é encontrada em um papiro da 21a dinastia. Pertencente a Imenemsaouf, chefe das portas do templo do deus

Amon em Tânis. O papiro é escrito em hierático. Fonte: www.insecula.com acesso em 30/05/2006.

77

Essa divisão do Capítulo 30 costuma ser encontrada em centenas de amuletos do

escaravelho-coração ao longo de toda a história egípcia.

Segue a tradução de Budge.

De como não deixar que o coração de Osíris, escriba das sagradas oferendas de

todos os deuses Ani, triunfante seja afastado dele no Mundo Inferior:

Meu coração, minha mãe; meu coração, minha mãe! Meu coração por meio

do qual nasci! Nada surja para opor-se a mim no [meu] julgamento; não haja

oposição a mim na presença dos príncipes soberanos; não haja separação entre ti e mim na presença do que guarda a balança! És o meu duplo (Ka),

habitador do meu corpo; o deus Cnemu costurou e fortaleceu meus

membros. Possas tu sair ao lugar de felicidade para onde vamos. Não façam

os shenit, que formam as condições das vidas dos homens, meu nome cheirar mal. [Seja ele satisfatório para nós, e seja a sua escuta satisfatória para nós, e

haja alegria de coração para nós na pesagem das palavras. Não seja o que é

falso pronunciado contra mim diante do grande deus, senhor de Amentet. Grande serás, com efeito, quando te ergueres em triunfo]. (2002, p.217)

A tradução de Paul Barguet é mostrada a seguir.

Fórmula para impedir que o coração de N. não se oponha a ele no império dos mortos:

Ó meu coração de minha mãe, ó meu coração de minha mãe, víscera de meu

coração de minhas diferentes idades, não se levante contra mim em testemunho, não se oponha a mim diante do tribunal, não mostre hostilidade

contra mim na presença do guardião da balança!

Você é meu Ka que está no meu corpo, o Chnoum que torna prósperos os

meus membros. Levanta-te na direção do bem, que nós estamos preparados aqui! Não tornes fétido meu nome perante os assessores que colocam os

homens em seus (verdadeiros) caminhos! Isso será bom para nós, isso será

bom para o juiz, isso será agradável àquele que julga. Não imagines mentiras contra mim perante o grande deus, Senhor do Ocidente!Veja: de sua nobreza

depende a proclamação da justiça. (1967, p.75/76)

Por último, segue tradução de Allen.

Fórmula para não deixar que o coração de N se oponha a ele no domínio do deus. Ele

diz:

78

Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe, meu peito de meu

ser, não se levante contra mim como testemunha, não se oponha a mim no

Conselho. Não pese perante o guardador da balança. Vossa arte de meu espírito que está em meu corpo, Khnum que faz o som de

minhas vísceras. Quando vós estais diante de um lugar bonito preparado para

nós, não faça nosso nome cheirar ml aos juízes que criaram a humanidade

em (seu) lugar, que será bom para nós e bom para o Auditor e aquele juiz deve ser agradecido. Não pense mentiras (contra mim) perante o Deus na

presença do grande Deus o senhor do oeste. Contemple, a distinção como

um triunfante está (envolvido).27

(1974, p.40)

A próxima variante apresentada sobre o Capítulo 30 é basicamente uma compilação

das três partes, no caso a que mais deixa a desejar com relação ao conteúdo e uso do mesmo.

Segue.

Para que o coração do morto não seja rejeitado:

Meu coração “ib” me vem de minha Mãe celeste. Meu Coração “hati” me vem de minha vida na Terra. Que não sejam levantados falsos testemunhos

contra mim! Que os juízes divinos não me repudiem! Que sejam verdadeiros

os testemunhos concernentes as minhas ações na Terra ante o Vigilante da

Balança e o divino Senhor do Amenti. Salve oh! Meu Coração “ib”! Salve oh! Meu coração “hati”! Salve oh! Entranhas minhas! Salve oh! Divindade

majestosa de luminosos Cetros, Senhores da Sagrada Cabeleira.

Que vossas Palavras de Potência me protejam ante Ra! Fazei-me vigoroso ante Neheb-Kau! Em verdade, embora meu Corpo esteja preso a Terra, não

morrerei, pois serei santificado no Amenti... Oh tu, Espírito encarregado da

Balança do Juízo, sabe: tu és meu Ka, pois habitas nos limites de meu Corpo! Tu, emanação do deus Khnum, tu dás a Forma e a vida a meus

Membros. Vem, pois aos lugares da felicidade para os quais marchamos

juntos. Que meu Nome não se corrompa nem se torne pestilento aos olhos

dos Senhores todo-poderosos que modelam os Destinos dos homens! E que o Ouvido dos deuses se regozije e seus corações se encham de alegria quando

minhas Palavras forem pesadas na Balança do Juízo! Que não se digam

mentiras diante do deus poderoso, Senhor de Amenti! Em verdade, grande serei no dia da Vitória. (NEGRAES, 1996, p.47/48)

Pela cópia de cada um dos capítulos e de cada autor, observamos algumas diferenças.

A última tradução aqui apresentada, do autor Negraes é a que apresenta menos conteúdo e

deixa uma série de lacunas entre as frases. Além de não informar de quais papiros ela foi

retirada. Coloquei-a por último para que se possa perceber que é uma combinação das

27 Papiro utilizado de Nebeseny e se encontra no British Museum, BM9900

79

traduções de Budge e Barguet, com algumas modificações que deixam o texto complicado. A

versão de Barguet é a mais completa.

Pode-se perceber também, ao longo da leitura dos capítulos, que a escrita egípcia

possui uma série de repetições (também percebido em contos e não só em fórmulas

funerárias). O texto é um pouco cansativo, porém especula-se que isto era feito para dar

ênfase à parte repetida, três vezes, porque esse número formava o plural egípcio. Por ter sido

primeiro oral e depois escrito, o conteúdo ficou o mesmo e, tanto na oralidade quanto na

escrita, a repetição é utilizada para marcar o tom e a importância do texto.

As rubricas e as vinhetas desse capítulo citam um amuleto do escaravelho objeto onde

essas fórmulas eram recitadas diante.

O escaravelho-coração de Sobemkazaf28

, Faraó da 17ª dinastia (c.1590 a.C.) foi

manufaturado como manda o Livro dos Mortos e as rubricas do Capítulo 30. No entanto, nem

todos eram feitos desse jeito. Alguns possuíam uma placa de prata na parte de trás e outros

não. O texto era incrustado na própria pedra e eles poderiam ser dos seguintes materiais: xisto,

amazonita, jaspe, serpentina, basalto, feldspato, obsidiana, alabastro e vidro. Contudo, o texto

encontrado nos escaravelhos-coração é o Capítulo 30b, mas como esse não cabia no amuleto,

trechos desse capítulo são escritos, como pode ser observado no escaravelho de Hati-iay [41],

no qual em suas nove linhas de textos o escriba pede que seu coração não se levante contra ele

e que não faça o seu nome cheirar mal. O escaravelho de Tewer-semen [43] traz cinco linhas

de inscrições e o morto pede que o coração não se levante contra ele em testemunho. O

amuleto de Intaneb [50] pede o mesmo que os outros, que o coração não se levante contra seu

dono em testemunho e que não se oponha perante ele no Tribunal. Contanto, percebe-se que a

parte principal do capítulo era inserida nos amuletos, nos quais se pede que o coração do

28 Ver catálogo [27]

80

morto não levante contra ele em testemunho. O escaravelho-coração simbolizava a

ressurreição, mas, principalmente, a proteção do coração no Mundo Inferior, para que esse

nunca fosse roubado ou que não depusesse contra seu “dono” no Tribunal de Osíris.

81

Capítulo 4. O coração

4.1. Breve histórico

Este capítulo tratará do significado do coração para os antigos egípcios por meio de

terminologia, textos funerários e amuleto do coração. O coração era para os antigos egípcios o

órgão mais importante de um ser humano. Ele era o órgão que bombeava o sangue por todo o

corpo e também a sede de todas as faculdades dos seres. Assim como nada é estático na

cultura e na religião egípcias, o significado das funções do coração também muda ao longo do

período faraônico.

Segundo a Teologia Menfita, foi no segredo do coração de Ptah que todos os seres

foram concebidos. Através da nomeação da língua do ser criador eles se tornaram visíveis.

Cada ser possui um coração-consciência que o liga ao demiurgo, o coração possui assim um

domínio sobre o corpo, ele é a sede dos pensamentos29

. Entretanto, o coração liga a pessoa

com o criador e mantém a vida física do ser humano.

De acordo com Rogério Sousa30

a partir da 4ª dinastia o coração era assemelhado ao

Sol, o centro de onde se irradia a vida. Os indivíduos eram guiados pelas ordens dos Faraós,

era uma sociedade estatal, embasada nos poderes reais. No Médio Império o coração torna-se

o centro de desenvolvimento individual a partir do qual cada homem poderia aderir à verdade.

Esse é o momento em que o coração do homem abriga seu caráter, sua virtude, sua

competência e sua vontade. A partir do Médio Império todos aqueles que morressem

poderiam se tornar um Osíris se não tivessem cometido pecados, ou seja, se o seu coração não

pesasse mais que Maat no Julgamento de Osíris. Essa atitude também mostra a divinização do

coração; é ele que recebe as ordens divinas que são transformadas em atos pelos seres

humanos. Quando uma pessoa segue seu coração ela segue uma vida digna e sem fracassos.

29 SOUSA, R.F. de A noção de coração no Egipto Faraônico: uma síntese evolutiva. In: Percursos do Oriente Antigo. s/d

30 op.cit.

82

Também é o momento de ligação do nome com o coração. A posse do coração assegura a do

nome e, assim, sua identidade está intacta.

No Novo Império a relação do homem com o coração não é mais unicamente racional,

ela passa a ser agora uma reciprocidade com o deus. Essa reciprocidade molda o caráter da

pessoa.

4.2. O coração hAti e ib

A movimentação do sangue pelo corpo não era completamente entendida pelos

egípcios antigos, no entanto, para eles o movimento de todas as partes do corpo estava ligado

às vontades do coração. Nos papiros médicos há a diferenciação de ib e hAti.

O coração hAti é o músculo cardíaco, aquele que bombeia o sangue para o corpo. É o

coração que funciona como uma máquina. Considerando que eles não detinham o

conhecimento específico de músculo, que pode ser interpretado como a máquina que mantém

o corpo funcionando juntamente com o ib. Ele era deixado nas múmias ao longo do processo

de mumificação e, caso fosse retirado por algum problema do embalsamador ele era

novamente colocado na caixa torácica. O coração passa a ser retirado da múmia e um

escaravelho-coração em pedra é colocado em seu lugar dentro do corpo somente a partir da

21ª dinastia. A proteção do coração do morto se dava de acordo com um amuleto do coração.

O coração ib era o berço de todos os sentimentos humanos, como coragem, memória,

amor, ambição, raiva. Nele também atuavam os deuses. Nas palavras de Traunecker:

O coração era igualmente a residência do intelecto, da faculdade de

concepção, sai. As „palavras do coração‟ eram os pensamentos, e o homem

sem coração era antes de tudo um imbecil. A inconsciência e o desmaio

espreitavam aquele cujo coração se afastava. (1995, p.22)

83

O coração ib era a força vital dos líquidos e do ar do corpo. Era mais que o coração,

eram os pulmões, o fígado, o estômago e o intestino. Portanto, quando uma pessoa adoecia,

era seu ib que estava enfermo; Este ocorria porque era a intervenção do deus no coração ib

(BARDINET, 1995, p.40).

Por ser o berço de todas as faculdades humanas, o coração ib possuía vontade própria.

Contanto, caso ele quisesse, poderia se levantar contra seu dono na hora do Julgamento de

Osíris. Todavia, quando o morto pede ao seu coração “não te levantas contra mim em falso

testemunho31

”, ele deixa claro essa vontade própria de seu órgão.

4.3. Terminologia

O coração que é representado tanto nos hieróglifos, como em amuletos é identificado

como o coração de um animal e não o humano. Certamente é o coração de um touro, que era

um dos itens mais importantes utilizados durante a Cerimônia de Abertura da Boca. Ele era

carregado no dia do sepultamento para restaurar as faculdades terrenas do morto

(ANDREWS, 1994).

Para escrever coração os egípcios possuíam dois modos: , ib, o coração como ele

mesmo. A outra maneira de representar o coração é: , hAti, esse é o coração

físico. As expressões formadas na escrita egípcia com a palavra coração servem para mostrar

a importância desse órgão tanto no campo simbólico como no físico.

1. Tristeza:

31Ver Capítulo 3.

84

“Oh se meu coração pudesse sofrer” (PIANKOFF, 1930, p.23)

2. Inquietude: essa pode ser demonstrada de diversas maneiras, assim como na frase que diz

“o coração não está em seu lugar”. É o que ocorre, principalmente, quando uma pessoa se

encontra apaixonada.

“Estou como um cavalo agitado, o sono não vem em meu coração durante o dia, ele

não está comigo à noite.” (PIANKOFF, 1930, p.24)

3. Abatimento: na estela de Tutahkhamun em Karnak há a seguinte frase:

“O coração está fraco em seu corpo.”

4. Satisfação: o modo de se escrever esse sentimento, , permanece o mesmo ao

longo da História Egípcia.

“Seu coração está contente.” (PIANKOFF, 1930, p.28)

85

5. Desejo:

“Seu coração desejou permanecer no Egito.” (PIANKOFF, 1930, p.29)

6. Bravura: o sentimento de bravura aparece no Texto das Pirâmides, declaração 356,

“Ele fez recuar o coração (coragem) de Seth, porque você é maior que ele.”

7. Amor: quando se está apaixonado era dito que o coração se elevava.

“Você faz o meu coração se elevar.” (PIANKOFF, 1930, p.40)

8. Memória, pensamento:

“Coloque os escritos em seu coração.” (PIANKOFF, 1930, p.45)

9. Espírito e sabedoria: freqüentemente o coração tem o significado de espírito.

“Meu coração sabe, mas os meus olhos não o vê.” (PIANKOFF, 1930, p.48)

86

O verbo compreender pode ser escrito por , que significa “liberar pelo

coração”.

4.4. O coração nos textos religioso-funerário

Neste tópico pretendemos mostrar como o coração é diferenciado e representado no

Texto das Pirâmides, Texto dos Caixões e no Livro dos Mortos. Com relação ao Livro dos

Mortos, serão apresentados os chamados capítulos do coração, que são classificados

juntamente com o Capítulo 30 como capítulos de “sair ao dia” 32

.

No Texto das Pirâmides o coração se mantido em seu lugar permite ao Rei morto a

manifestação de seus poderes vitais e a utilização de seus membros, a posse do ka e do ba.

Nesses textos, quando as partes do corpo se identificam com deuses, a designação de

coração é hAti

“... sua espinha dorsal é Neith e Selket, seu coração é Sekhmet, a grande.”

(PIANKOFF, 1930, p.10)

Outro trecho do Texto das Pirâmides que faz essa alusão aos deuses é:

32 Ver Capítulo 3.

87

“O coração de N é como Bastet... o ventre de N é como Nut... a parte posterior é como

Heket.” 33

(PIANKOFF, 1930, p.10)

O coração com a designação ib aparece como memória e coragem. Na declaração 477

ele aparece como memória:

O céu se agita, a terra treme, Hórus chega, Thoth aparece, eles erguem Osíris ao seu lado e o fazem ficar em pé perante as Duas Enéades. Lembre Seth, e

coloca em seu coração as palavras ditas por Geb..34

. (FAULKNER, s/d,

p.164)

Com o significado de coragem o coração aparece na declaração 356:

Oh Rei, Hórus veio e ele pode procurar por você, ele fez com que Thoth

virasse para trás os seguidores de Seth para você, e ele os trouxe junto, ele

conduziu para trás o coração de Seth para você, porque você é maior do que ele... (FAULKNER, s/d)

A ligação do coração com o ka aparece na declaração 659:

“Você tem seu coração, você tem o seu ka.”(FAULKNER,s/d, p.271)

Na declaração 486, o coração como ib e hAti aparecem juntos:

Saudação a você, suas águas trazidas por Shu, nas quais as duas fontes se

levantaram, onde Geb banhou seus membros. Corações (ibw) estão

impregnados com medo, corações (hAti) estão impregnados com terror...(FAULKNER,s/d,p.173)

No Texto dos Caixões na fórmula 229 o morto pede para “ser apto a falar e prosperar

em mágica, por ser quem equipa o coração com desejos”. Há também passagens relacionadas

com o ato de fazer o coração bater mais rápido.

33. O espaço deixado em branco tanto nos hieróglifos referem-se ao local onde se inseria do nome do morto.

34 Tradução do inglês para o português feito pela autora.

88

Os capítulos relacionados ao coração no Livro dos Mortos são 26-29b. Eles estão

apresentados em hieróglifos e tradução feitos por Sir Wallis Budge.

A vinheta do Capítulo 26 retirado do papiro de Ani35

traz o morto vestido de branco,

com o coração na mão direita se dirigindo a Anúbis. Na mão esquerda que está estendida, Ani

segura um colar de contas coloridas de várias voltas que possui fecho em forma de um pilono

com um escaravelho ao centro.

35 Papiro Ani BM10470, folha 15. Os hieróglifos dos Capítulos 26, 27, 28, 29, 29a e 29b foram retirados do livro BUDGE,

E.A.W.The book of the dead. The chapters of coming forth by Day. London: Kegan Paul Trench Trübner & Co. LTD,

1898

89

Fórmula de como dar um coração a Osíris no Mundo Inferior. Disse ele:

Possa meu coração (ab) estar comigo na Casa dos Corações! Possa meu

coração (hat) estar comigo na Casa dos Corações! Possa meu coração estar comigo, e descanse ele ali, [ou] não comerei dos bolos de Osíris no lado

oriental do Lago das Flores, nem terei um barco pra descer o Nilo, nem outro

para subi-lo, nem poderei singrar contigo às águas do Nilo. Possa minha boca [ser-me dada] para que eu fale com ela, e [sejam-me dadas] minhas

pernas para eu andar com elas, e minhas mãos e braços para eu derrubar meu

90

inimigo. Sejam-me abertas as portas do céu; escancare Seb, o Príncipe dos

deuses, suas mandíbulas para mim; abra ele meus olhos, que estão vendados;

faça ele que eu afaste uma da outra minhas pernas, que estão amarradas; e firme Anpu (Anúbis) minhas coxas para que eu fique ereto sobre elas. Faça a

deusa Sequet que eu me erga de modo que possa subir ao céu, e faça-se o

que eu ordenar na Casa do duplo de Ptá (isto é, Mênfis). Compreendo com o

coração. Alcancei o domínio do meu coração, alcancei o domínio das minhas mãos, alcancei o domínio das minhas pernas, alcancei o poder de fazer o que

agrada meu duplo. Minha alma será presa ao meu corpo às portas do mundo

inferior; mas nele entrarei em paz e dele sairei em paz. (BUDGE, 2002, p.211)

Esse capítulo mostra a relação dos dois corações com os membros e como o morto

necessita do coração para ter todas as suas atividades restabelecidas no Mundo Inferior.

Consegue-se também perceber a diferenciação dos dois corações. Na parte em que ele diz

“compreendo com o coração” é onde está representado o coração como consciência.

O Capítulo 27 possui na vinheta Ani com as mãos erguidas em sinal de adoração, seu

coração está colocado em um pedestal, diante dos quatro deuses sentados na representação do

hieróglifo de Maat.

91

Fórmula de como não deixar o coração (hAti) de um homem ser-lhe arrebatado no

Mundo Inferior. Disse Osíris Ani:

Salve, ó vós que arrebatais corações! [Salve], ó vós que roubais e esmagais

corações, e que fazeis [o coração de um homem sofrer transformações de acordo com os seus atos, não deixeis que o que ele fez prejudique perante

vós] 36

Homenagem a vós, senhores da eternidade, possuidores da

perpetuidade, não empolgueis este coração de Osíris Ani, este coração de Osíris, e não deixeis que más palavras se levantem contra ele; porque este é

o coração de Osíris Ani, vitorioso, e pertence ao de muitos nomes (isto é,

Tot), o poderoso cujas palavras são seus membros, e que mandou seu coração habitar em seu corpo. O coração de Osíris Ani é vitorioso, foi refeito

diante dos deuses, ele [Osíris Ani] conseguiu dominá-lo, não lhe falaram [de

acordo com] o que fez. Ele alcançou poder sobre seus próprios membros. O

coração lhe obedece, ele é o seu senhor, tem-no em seu corpo, e jamais o perderá. Eu, Osíris, o escriba Ani, vitorioso na paz e triunfante na formosa

Amenta e sobre a montanha da eternidade, ordeno-te que me obedeças no

Mundo Inferior.

Esse capítulo mostra a dominação do morto perante o seu coração e como nesse e nos

capítulos seguintes haverá sempre um pedido para que o coração não se levante contra seu

dono, como visto claramente no Capítulo 30b.

O Capítulo 2837

não possui vinheta.

36 As palavras entre chaves são do papiro de Mes-em-neter

37 Papiro de Nu, BM 10477, folha g

92

Fórmula de como não deixar o coração do intendente da casa do intendente do

selo, Nu, triunfante, ser-lhe arrebatado no Mundo Inferior. Diz ele:

Salva deus-Leão! Sou a Sarça Florida (Unb). O que abomino é o cepo

divino. Não deixes que este meu coração (hati) me seja arrebatado pelos

deuses combatentes de Anu. Salve ó tu que enrolas ataduras em torno de Osíris e viste Set! Salve, tu que voltaste depois de havê-lo derrotado e

destruído em presença dos poderosos! Este meu coração (ab) [senta-se] e

lastima-se diante de Osíris; tem suplicado por mim. Dei-lhe e decretei-lhe os

pensamentos do coração na Casa do deus Usec-hra e trouxe-lhe areia (sic) à entrada de Quemenu (Hermópolis Magna). Não deixes que meu coração

(hati) seja arrebatado! Faço-te morar no seu trono, ó tu que junta corações

(hatu) de força contra todas as coisas que abominas, e conseguir comida entre as coisas que te pertencem e estão contigo em razão da tua força dupla.

E meu coração (hati) é fiel aos decretos do deus Tem, que me conduz aos

93

antros de Suti, mas não deixes que lhe seja dado meu coração, que fez o que

desejava diante dos príncipes soberanos que estão no Mundo Inferior.

Quando encontram a perna e as ataduras eles as enterram. (BUDGE, 2002, p.213)

Assim como no capítulo anterior, o morto pede que o coração hAti não seja destruído

pelos deuses, para que assim ele possa recuperar o domínio de seus membros.

Na vinheta do Capítulo 2938

Nu está em pé com um bastão na mão esquerda.

Fórmula de como não deixar o coração de um homem ser-lhe arrebatado no

Mundo Inferior. Osíris Ani, vitorioso, diz:

Volta para trás, ó mensageiro de todos os deuses! Dar-se-á que tenhas vindo [para arrebatar-me] o coração que vive? Mas meu coração que vive não te

será dado. [Á proporção que] avanço, os deuses atentam para minhas

oferendas, e todos caem sobre seus rostos em seus próprios lugares.39

No presente capítulo, o morto pede a proteção de seu coração ib porque ele precisa

além do movimento de seus membros (Capítulo 28), também de sua memória, caráter e

sentimentos.

38 Papiro de Nu, BM 10477, folhas i, j

39 BUDGE 2002, op.cit.pág.213, ele nomeia esse capítulo como 29a, no entanto ao se olhar os hieróglifos e as referências,

esse corresponde ao 29.

94

O Capítulo 29a40

não possui vinheta.

Fórmula de como não permitir que o coração de Amen-hotep, vitorioso, seja

levado embora no Mundo Inferior. Diz o morto:

Meu coração está comigo, e jamais acontecerá que ele venha a ser levado embora. Sou o senhor dos corações, o matador do coração. Vivo na justiça e

na verdade (Ma‟at) e nelas tenho o meu ser. Sou Horo, habitador de

corações, que está dentro do habitador no corpo. Vivo em minha palavra, e meu coração tem ser. Não se permita que meu coração me seja arrebatado

nem ferido, nem que eu perceba ferimentos ou talhos por ele me haver sido

arrebatado. Seja-me permitido ter meu ser no corpo de [meu] pai Seb, [e no corpo de minha] mãe Nut. Não fiz o que é abominado pelos deuses; não se

permita que eu sofra ali uma derrota, [senão que eu seja] triunfante.41

Mais uma vez o morto está falando dos sentidos e pensamentos.

40 Papiro de Amen-hotep, Naville, Todtenbuch, Bd. I, Bl.40

41 BUDGE, 2002, op.cit. pág. 214, nesse capítulo ocorre o mesmo problema que o anterior. O autor o nomeia como 29b e ele

é 29a

95

O Capítulo 29b42

possui um coração em sua vinheta.

Fórmula de um coração de cornalina. Diz Osíris Ani, triunfante:

Sou o Benu, a alma de Rá e guia dos deuses no Tuat (Mundo Inferior). Suas

almas divinas saem à terra para fazer a vontade dos seus duplos, permita-se

portanto à alta de Osíris Ani sair para fazer a vontade do seu duplo.43

O coração era deixado no corpo durante o processo de mumificação porque ele poderia

revelar o caráter da pessoa após a morte.

4.5. Amuleto do coração

Não há até o momento uma descrição pormenorizada do significado preciso do

amuleto do coração. O primeiro autor a estabelecer uma tipologia para esse amuleto, assim

como para os escaravelhos, foi Flinders Petrie em sua obra Amulets.

É usualmente aceito que esse amuleto representava o coração do touro, haja vista que

esse é uma representação do hieróglifo. O texto que esses amuletos traziam era o Capítulo 29b

do Livro dos Mortos (SHAW e NICHOLSON, 1995).

Para Carol Andrews (1994, p.72), somente dois amuletos do coração são conhecidos

anteriormente ao Novo Império e esses são utilizados até o final das dinastias egípcia. No

42 Papiro de Ani, BM 10477, folha 33

43 BUDGE, 2002 op.cit. pág. 214. Ocorre aqui o mesmo problema, Budge o nomeia como 29c quando ele é 29b.

96

entanto, confrontando essa datação Rogério Sousa (2005) por meio de seus estudos com

amuletos coração de diversos Museus, mas especificamente, o Museu do Louvre e o Museu

do Cairo classificam o aparecimento do amuleto do coração na 6ª dinastia.

Esses amuletos eram produzidos para o uso cotidiano e por serem de tamanho pequeno

poderiam ser colocados em pulseiras ou colares. A partir da 18ª dinastia é possível diferenciar

os que eram produzidos para fins funerários e os cotidianos. Os amuletos funerários possuíam

dimensão maior e decoração diferenciada. No período Raméssida a produção desses amuletos

aumentou consideravelmente e sua função passa a ser paralela com a do escaravelho-coração.

97

Capítulo 5. Escaravelhos

Os egípcios reconheciam uma variedade de escaravelhos na natureza e, não obstante,

faziam os seus, com a mesma multiplicidade e ótima imitação do natural.

Neste capítulo serão mostrados os escaravelhos de acordo com suas funcionalidades

cotidianas e religiosos dos amuletos, nos quais há a simbologia do renascimento e da proteção

do vivo assim como do morto. Será apontada qual a morfologia biológica, quando eles

começam a ser utilizados na cultura egípcia, assim como suas funções de selo, real, particular

e comemorativo.

Os artefatos em forma de escaravelhos são encontrados tanto no Egito como na Núbia,

Síria e Palestina. Assim como, há uma grande quantidade encontrada na Grécia, que datam do

período em que os gregos dominavam o Egito.

5.1. Morfologia biológica

Os escaravelhos observados pelos egípcios antigos e posteriormente transformados em

artefatos são da família Scarabaeidae ou Coprophagi. Essa família é composta por uma grande

quantidade de espécies, cerca de 30 mil. A maioria dos escaravelhos dessas famílias pertence

às subfamílias Scarabaeinae, Aphodiinae e Melolonthinae. No primeiro grupo estão os

esterqueiros que são cerca de cinco mil espécies. O tipo admirado e copiado pela população

do Egito Antigo é o Ateuchus que, das 40 espécies, 30 pertencem à África. O escaravelho

sagrado dos egípcios é o Scarabeus sacer ou, para alguns autores, Ateuchus sacer. Este inseto

é encontrado no Egito, no sudoeste da Europa, China, oeste da Índia, leste da Ásia e nordeste

da África. Ele mede 2,5 cm (MEULENAERE, 1972).

Os escaravelhos esterqueiros chegam a mover com suas patas um peso equivalente a

50 vezes o seu. Alguns possuem pelos em suas patas, o que facilita a locomoção na areia.

98

Esses pelos são representados em escaravelhos-coração como estrias nas patas, alguns

exemplos são os escaravelhos de número [55], [57], [59].

A imagem mostrada na Figura 18 é uma representação desse inseto, que serve para

ilustrar o tipo de escaravelho aqui estudado.

Figura 18. Scarabeus sacer44

O ciclo de vida do Scarabeus sacer observado por escritores gregos, era de mesmo

modo imaginado pelos egípcios antigos. Plutarco45

relata que: a raça dos escaravelhos não

tem fêmea; são todos machos. Eles ejetam seus espermas em uma pelota redonda de material

na qual eles a rolando com suas patas traseiras, de mesmo modo que o sol aparenta girar nos

céus na direção oposta ao seu próprio curso, a qual é do leste para o oeste. Em Horapolo46

a seguinte definição: o escaravelho macho por ocasião da reprodução juntava excrementos e

os transformava em uma forma esférica, rolando-a de leste para o oeste, olhando-se para o

leste. Tendo um buraco para o esterco, ele enterrava a bola por 28 dias e no 29° dia ele abria a

bola e a jogava na água. Dela, o escaravelho vem à vida.

Hoje sabemos, ao contrário do que os egípcios imaginavam e que foi relatado por

escritores gregos, que esse ciclo consiste em a fêmea fazer uma esfera de estrume de gado e

44 Imagem cedida pelo prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior

45 Em Ísis e Osíris 318A

46 Horapolo, i, 10

99

rolá-la pelo deserto com o auxílio de suas patas traseiras, com a cabeça voltada para o oeste.

No trajeto ela seleciona um macho para copular, a copulação leva desde minutos até 17 horas.

Após o ato, ela procura um lugar seguro para enterrar a bola e, em seguida, coloca o ovo

dentro da esfera. O processo de gestação de um escaravelho se desenvolve em 28 dias, essa

larva se alimenta dos resíduos da esfera de excrementos. No vigésimo dia o escaravelho nasce

e o ciclo de rolar a bola recomeça. No entanto, a bola de excremento pode ser roubada por

outro escaravelho, que resulta resultando em grande embate. Por causa dessa briga, eles eram

vistos como símbolo de coragem e aptidão física (BEN-TOR, 1989). O inverno é o período

que os esterqueiros preferem para fazer e rolar suas bolas de excremento. O caminho

percorrido por eles é longo.

A Figura 19 mostra um escaravelho fêmea rolando a bola de excrementos e a Figura

20 mostra o diagrama do ciclo de vida desse inseto.

Figura 19. Scarabeus sacer fêmea e a esfera de excrementos47

47 Exemplar de um Scarabeus sacer fêmea, rolando a bola de excrementos com a ajuda das patas traseiras. Imagem cedida

pelo professor Dr. Antonio Brancaglion Junior.

100

Figura 20. Ciclo de vida48

Para os egípcios antigos, a idéia de “geração” se dava por causa da maneira como o

escaravelho se enterrava com a bola. Com isso, fizeram uma analogia com o deus criador

Khepri, que era aquele que se autocriava.

5.2. Período de utilização

A datação precisa de quando esse artefato começa a ser confeccionado até o presente

momento da Egiptologia não pode ser estabelecido. Apesar de haver milhares de escaravelhos

espalhados pelos museus e coleções particulares, boa parte desses foi encontrada sem

contexto e alguns não estão em registros de escavações. Mesmo os escaravelhos com nomes

48 Imagem cedida pelo prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior e as legendas traduzidas por mim

101

reais não podem ser utilizados para datações porque eles eram também produzidos anos após

a morte do Faraó. Mostraremos como diversos autores que estudam esses artefatos debatem as

datações.

Há uma convenção entre os estudiosos citados ao longo desse tema que os egípcios

começam a utilizar esses artefatos no período Pré-dinástico. Desde essa época eles observam

o ciclo de vida dos escaravelhos porque jarros com escaravelhos secos desse período foram

encontrados em sepulturas49

. Em Naqada foram localizadas as representações de dois

besouros em serpentina verde e também em Tarkhan (cova 120).

Segundo autores como W. M. Flinders Petrie, John Ward e Isaac Myer, escaravelhos

começam a ser utilizados desde o período pré-dinástico, mas os que possuem nomes de reis

são da 3a dinastia. Já para Meulenaure, começaram a ser utilizados somente com Khufu, faraó

da 4a dinastia. W.M. Flindres Petrie diz que os escaravelhos de Khafra — trabalhados por ele

e que estão na University College of London— são 26 no total. Os pertencentes ao faraó

Khufu somam 22 e Menkhaure não possui nenhum. Como o feitio desses escaravelhos era

parecido, Petrie afirma que poderia causar confusão para se saber a quem pertenceu cada uma.

Segundo Olga Tufnell (1984, pág.xv) é possível traçar uma cronologia baseada nos

escaravelhos de governantes da 12ª dinastia. Contudo, não é possível delinear essa cronologia

da 13ª até a 18ª dinastias com base em seus estudos.

No período de dominação dos Hicsos, há uma vasta produção dos escaravelhos como

nunca antes vista na cultura egípcia antiga e como não aconteceria mais. Para Petrie (1911), a

ordem dos nomes dos faraós que compuseram as dinastias dos Hicsos pode ser organizada de

acordo com seus escaravelhos e o grau de degradação de sua decoração. Para ele, é evidente

49 Encontrados em Diospolis (cova B 17, 217, 234 e 328). Ver: PETRIE, W.M.Flinders. Scarabs and cylinders with names.

London: School of Archaeology in Egypt University College, 1917

102

que os escaravelhos da 15ª a 17ª dinastias foram encontrados no Delta, porque era nesse local

que estava capital do governo dos Hicsos. As escavações de Manfred Bietak em Tell el-

Dab‟a, antiga Avaris identificou 15 nomes de reis que só aparecem em escaravelhos. Esses

nomes são egípcios e alguns semíticos, precedidos por epíteto como “o bom deus”, “o filho de

Rê” e “o governante de países estrangeiros”. Os primeiros dois epítetos foram utilizados por

Reis egípcios por anos. Estilisticamente, esses escaravelhos podem ter sido feitos tanto no

Egito como na Palestina. No entanto, os estilos os ligam aos produzidos durante a 13ª

dinastia. Até hoje, pelo trabalho realizado por Bietak não é possível organizar esses

escaravelhos cronologicamente, porque o egiptólogo não concluiu seus trabalhos de

escavação. Para John Ward os escaravelhos deixam de ser utilizados no período de dominação

Greco-Romana porque eles não entendiam o que estava escrito nos hieróglifos e faziam uma

cópia mal feita deles, com uma série de erros e, com isso, eles passam a utilizar menos esses

artefatos. De acordo com os outros autores, eles deixam de ser utilizados gradativamente na

30ª dinastia.

Os estudiosos supracitados tentaram fazer uma cronologia dos escaravelhos, no

entanto a de Willian A. Ward dos anos 1970 sempre foi a mais utilizada. Não obstante, David

O‟Connor, Manfred Bietak, James Weisntein e Daphna Ben-Tor sugerem que a maneira de se

fazer essas cronologias sejam revistas (WILKINSON, 1994).

Segundo Salima Ikram (2005), escaravelhos podem ser encontrados nos sítios de

Heliopolis e Tebas. A autora enfatiza que no Período Greco-Romano vários animais eram

mumificados, como cabras, babuínos, carneiros, leões, gatos, cães, hienas, peixes, gazelas. Os

escaravelhos e suas bolas de excrementos também eram mumificados. A Figura 21 mostra um

caixão ao seria colocada múmia do escaravelho.

103

Figura 21 caixão de escaravelho50

Após esse período de produção, os escaravelhos ainda foram encontrados em regiões

onde houve contato com a cultura egípcia antiga, como Grécia, Sírio-Palestina, Sudão e

Roma.

Percebe-se que os autores se baseiam em recursos estilísticos para a datação desses

artefatos, como decoração e formato do inseto, da cabeça do animal, o topo da peça, posição e

representação das pernas.

5.3 Tipologias

Para o estudioso W. M. Flinders Petrie (1917, pág.5), que fez a primeira padronização

dos estilos de escaravelhos para uma possível datação, em cada época são utilizados cinco

estilos. O Scarabeus é o mais facilmente reconhecido, possui o clípeo serrilhado e a cabeça

em forma lunar. O Catharsius possui uma cabeça quadrada e é o segundo mais comum.

Quando possui o clípeo angular em direção ao prototórax, provavelmente imitando um chifre,

é o Copris. O Gymnoplerus tem marcas dos dois lados em direção ao élitro. Finalmente, o

Hypselogenia é caracterizado por uma parte traseira alongada. A tipologia é feita também

50 Caixão de Madeira para escaravelhos mumificados, datado c. 664 a.C. Está no British Museum, EA36155. Fotografia da

autora da dissertação.

104

com base no estilo de manufatura de cada período. Destacando os seguintes padrões utilizados

para se fazer as patas com pelos, a cabeça de forma lunar ou profunda ou fundida com o

clípeo, clípeo destacado ou plano, as marcas em V no topo do élitro e linhas curvas na parte

traseira. Para uma possível datação pode ser feita porque entre a 12ª e 18ª dinastias nenhum

escaravelho produzido possuía decoração delicada. As espirais eram perfeitas na época de

Senusret I, mas na de Senusret II há uma queda na preocupação com a perfeição. Os desenhos

ovais somem no período de Senusret III. Os escaravelhos do período dos Hicsos não possuem

decorações elaboradas como os posteriores. A Figura 26 traz o desenho feito por Petrie onde

ele representa cada um de seus tipos de escaravelhos.

Figura 22. Tipologia feita por W.M.Flinders Petrie51

51 A presente tipologia está em PETRIE, 1917, p.176

105

No entanto, hoje essa tipologia é revisada pelos egiptólogos que estudam esses

artefatos, porque mesmo passado muito tempo da morte de um Faraó ainda se faziam

escaravelhos homenageando-o. É necessário levar em consideração que Petrie desenvolve

essa tipologia no início do século XX e, após esse período, uma infinidade de escaravelhos foi

encontrada durante as escavações.

A autora Kathlyn M. Cooney (2008) sugere a seguinte tipologia, na qual ela divide os

escaravelhos em cinco grupos. O primeiro grupo de escaravelhos data do Médio Império ao

Período Tardio e tem a iconografia de deuses e frases que trazem boa sorte. Esse grupo

também possui artefatos do Novo Império e Terceiro Período Intermediário que são

associados particularmente ao deus Amun. O segundo grupo inclui o nome de governantes

escritos na base que datam do Médio Império ao Período Tardio. A terceira categoria possui

nomes e títulos de pessoas que não fazem parte da realeza, o que sugere que seu uso era como

selo, um tipo muito utilizado no Médio Império. O quarto grupo pertence a uma decoração

Asiática que foi adaptada à iconografia egípcia, a sua maioria data do Médio Império e 2°

Período Intermediário, uns poucos são do Novo Império. O quinto grupo possui decoração

geométrica e estilizada e data do Médio Império e 2° Período Intermediário e a decoração

abstrata, floral e padrões humanóides é a mais comum.

Para John Ward52

a arte decorativa mais antiga dos egípcios é a encontrada nos

escaravelhos. Para ele, a decoração em espiral possuía um significado ainda não resolvido, ela

passa a integrar a composição decorativa de armas, objetos de madeira e relevos. Nessa época,

os padrões de decoração sofrem mudanças, são motivos florais, desenhos enrolados, espirais e

outros padrões decorativos. Há também hieróglifos com qualidades de amuletos e poderes.

Nos escaravelhos do Médio Império os hieróglifos estão simplesmente arranjados em maneira

52 Ward, 1902, Em seu livro há pranchas com a representação dos escaravelhos e o de Nebkara, faraó da 3ª dinastia.

106

decorativa, provavelmente utilizados como símbolos mágicos (WILKINSON, 2008, p.17),

conforme mostram a Figuras 23-27.

Figura 23. Escaravelho do Médio Império53 Figura 24. Escaravelho do 2° Período Intermediário54

Figura 25. Escaravelho do 2° Período Intermediário55 Figura 26. Escaravelho do período de dominação dos

Hicsos56

53 Petrie Museum, UC11141 54 Petrie Museum, UC11121 55 Petrie Museum, UC28868 56 Petrie Museum, UC28878

107

Figura 27. Escaravelho do Novo Império57

Os exemplos citados ilustram a discussão dos autores com referência à decoração dos

escaravelhos. Contudo, não é correto afirmar que uma época possui uma decoração melhor

que a outra. Há sim uma preocupação com os padrões decorativos, assim como o seu feitio se

dá com relação ao seu período. No Novo Império os hieróglifos compõem nomes e títulos e

são mais claramente vistos. Contundo, na Baixa Época os escaravelhos possuem uma forma

mais simplificada tanto em sua base como em seu topo.

Atualmente, para se efetuar uma datação são usados todos os critérios viáveis, como

inscrições, formas, material, tamanho e contexto arqueológico (quando possível).

5.4. Escaravelhos com nomes reais

Os escaravelhos com nomes reais começaram a ser fabricados provavelmente na 3ª

dinastia. Eram fabricados durante a vida do rei, mas em alguns casos eles são recentes, como

um sinal de adoração ao faraó morto. A maioria desses escaravelhos foi feita como sinal de

devoção ao faraó.

Para Richard Wilkinson (2008, p.30), os escaravelhos de Khufu e de Unas somente

foram fabricados no Novo Império e não durante o reinado desses faraós. Contudo,

57 Petrie Museum, UC11256

108

discordando desse ponto do autor, sabe-se da presença desses escaravelhos durante os

reinados dos faraós do Antigo Império, como o de Unas da 5ª dinastia e Pepi I da 6ª dinastia.

O escaravelho de Unas, mostrado na Figura 28 é da Baixa Época, porque o hieróglifo em

forma de coelho começa a ser utilizado nesse período.

Figura 28. Escaravelho com o nome do Faraó Unas58

Figura 29. Escaravelho com nome de um Rei do período de dominação do Hicsos59

58 Escaravelho contendo o nome do faraó Unas, Petrie Museum, UC13382 59 Escaravelho do período de dominação dos Hicsos, contendo o nome do rei Sheshi 15ª dinastia (c.1666 a.C.). Hoje está no

Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, com o número de referência E.SC.52.

109

5.5. Escaravelhos selos

A utilização dos escaravelhos como selo se dá a partir da 13ª dinastia, onde nomes e

títulos de grande oficiais começam a aparecer entalhados nos escaravelhos e não somente

cartuchos com nomes reais. Esses escaravelhos eram colocados em anéis e empregados como

selos.

Os escaravelhos selos eram utilizados para lacrar potes com mantimentos e bebidas e

para que os jarros não se perdessem ou fossem roubados. O selo desses objetos era feito com

uma faixa ou tampa de argila e, ainda molhada, era feita a impressão da parte escrita do

escaravelho. Em outra maneira, uma fita de linho era colocada envolvendo o objeto a ser

lacrado, colocava argila e fazia a impressão. Antes desse período, ele o escaravelhos era usado

somente como amuleto e sem inscrição.

As Figuras 30 e 31 mostram exemplos da tampa de argila com a impressão e de um

anel com um escaravelho-selo.

110

Figura 30. Jarro contendo o selo em sua tampa60

Figura 31. Escaravelho-selo61

60 Jarro com tampo em argila e contendo no lado inferior direito da tampa o selo com a designação de a quem ele pertencia.

Possui 1 m de altura e 25,4 cm de diâmetro. Objeto atualmente no British Museum, London, UK, sob número de referência

EA 27741.

111

No período Amarniano62

os escaravelhos são encontrados em recintos fechados, como

as casas.

5.6. Escaravelhos particulares

Esse tipo de escaravelho possuía o nome de pessoas ou títulos. Contudo, eles não são

amplamente encontrados nas escavações como os selos e os amuletos. O Médio Império é o

período da História Egípcia no qual se observa grande quantidade desses artefatos. Todavia,

para W.M. Flindres Petrie (1917, p.12), o escaravelho mais antigo desse tipo pertenceu a

hetep-hers, que viveu provavelmente na 4ª dinastia.

5.7. Escaravelhos comemorativos

Os escaravelhos comemorativos tinham o objetivo de celebrar um grande feito do

Faraó. Há peças que narram grandes caçadas e casamentos.

A fabricação desses escaravelhos foi feita, em grande maioria, no Novo Império e

muitos são do reinado de Amenhotep III. Contudo, seus escaravelhos também foram

encontrados na Núbia e Palestina.

O escaravelho que relata o casamento do Faraó com a Rainha Tiy aparece na Figura

36 e possui o seguinte texto:

(1) Hórus vivo, Poderoso Touro, Mostra-se na Verdade

(2) [Ele das] Duas Damas, Fundador das Leis,

(3) Pacificador das Duas Terras, Hórus de Ouro, Grande de Força, Destruidor dos

Asiáticos;

(4) Rei do Alto e do Baixo Egito, Senhor das Duas Terras, Neb-Maat-Rê, filho de Rê

Amenhotep Governante de Tebas,

61 Escaravelho selo, colocado em um anel, utilizado para lacrar potes com mantimentos. Sua feitura se deu na 19ª dinastia

(1293-1185 a.C.), ele possui o tamanho de 1,8 cm. O objeto está no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob o número de

referência E. 106.1920 62 Período governado pelo faraó Amenhotep IV/Akhenaton (1350-1334 a.C.) no qual foram feitas reformas político-religiosas

no Egito.

112

(5) O faça Viver. A Grande esposa Real Tiy, a faça viver o nome de seu Pai

(6) Yuia, O nome de sua Mãe Thuia,

(7) Ela é a esposa do poderoso rei

(8) A bondade do sul dele se expande a Karoy [na Nubia]

(9) [Sua bondade] ao norte para Naha-

(10) rin [na Siria]

Figura 32. Escaravelho com o relato do casamento do Faraó com a Rainha Tiy63

Amenhotep III também possui escaravelhos que narram caçadas a touros e leões. Os

relacionados a leões são 137, encontrados até hoje e que contam várias caçadas realizadas

pelo Faraó. Ele também possui escaravelhos que relatam a abertura de lagos.

O Faraó Amenhotep IV/Akhenaton possuía esse tipo de escaravelhos e mostrava

sempre o seu respeito à Aton, seu deus Sol, e também aparecia o nome de sua rainha Nefetiti.

Os escaravelhos produzidos no período de Ramsés II e contavam seu oitavo jubileu.

Os escaravelhos comemorativos param de ser fabricados provavelmente ao final do

Novo Império. No entanto, mesmo 1000 anos após sua morte, o faraó Tuthmosis III ainda é

63 Escaravelho comemorativo onde está relatado o casamento do faraó Amenhotep III com a rainha Tyi. Possui entre 6-7 cm.

Objeto encontra-se no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK (número de acesso E.86.1934).

113

homenageado com escaravelhos. Isso poderia ocorrer porque o nome do faraó, Menkheperre

era uma palavra sagrada para os egípcios.

5.8. Escaravelhos como amuletos

O amuleto de escaravelho era utilizado tanto em vida como na morte. O mais antigo

encontrado estava em uma tumba da 6ª dinastia, feito em Marfim. A sua função simbólica se

dava principalmente por forma que já remetia a esperança de uma nova vida. Os textos e

imagens decorativas em sua base também são marcantes para determinar o simbolismo.

Alguns textos possuíam os dizeres de “boa sorte”, “que você seja abençoado com muitos

filhos”, “estável é a cidade que Amun manda”, “faça com que Khonsu seja a minha proteção”.

Ou seja, esse amuleto provia proteção e atraia boa sorte para quem o utilizasse, tanto em vida

como na morte.

Os escaravelhos continham inscrições que remetiam a deuses, mas também a faraós e

esses nomes possuíam poderes de proteção, se acrescessem palavras com significado mágico

o poder desse amuleto seria maior para quem o usasse.

Carol Andrews (1994, p.52) discorda a afirmação anterior, para ela os escaravelhos

como amuleto tinham a sua base sem inscrição. O material era o determinante para atestar a

sua função, como lápis-lazúli, turquesa. Sobre materiais a afirmação da autora está correta,

mas nem sempre seriam utilizadas rochas preciosas ou semipreciosas para a manufatura desse

amuleto. Assim, sendo o texto também atestaria juntamente com a forma e se possível o

material o poder de proteção desse escaravelho.

O material utilizado para a fabricação desses amuletos poderia ser qualquer matéria-

prima que o artesão tivesse disponível. Contudo, os mais comuns eram de Esteatita e Faiança.

O tamanho destes escaravelhos é 1 a 5 cm e eram utilizados em anéis, colares e braceletes,

pois possuíam furos longitudinais

114

O amuleto do escaravelho-coração64

era feito para ser usado somente no dia do enterro

e sepultado com a múmia. Outros amuletos de escaravelho que eram usados em vida também

eram enterrados com o falecido65

, mas sem a mesma função religiosa.

O amuleto do escaravelho alado, era colocado nas bandagens da múmia, também faz

parte do grupo dos escaravelhos usados como amuletos.

5.9. Escaravelhos fora do Egito

Escaravelhos foram encontrados em outras regiões como Etruria, Creta, Chipre,

Grécia, Península Ibérica e Núbia, mostrando a relação dos egípcios com outros povos.

Para Olga Tufnell (1984, p.1), ao se referir a escaravelhos selos, logo se pensa nos

produzidos no Egito. Contudo no Primeiro Período Intermediário há vasta produção na região

Sírio-Palestina, mas sendo utilizados em território egípcio.

Outra evidência que sugere o contato dos egípcios com povos de outras regiões é o

escaravelho com o nome de Senusret I (1971-1926 a.C.), Faraó da 12ª dinastia, encontrado em

Enkomi, sítio localizado ao noroeste de Chipre.

Artesãos Cananeus adotaram a tradição de confeccionar escaravelhos egípcios para

suas próprias crenças. A influência artística egípcia se deu com grande força na Idade do

Ferro (c.1200 a.C.), quando artesãos Fenícios criaram seus próprios escaravelhos. O mesmo

processo ocorreu no Sul do Egito, nos reinos de Napata e Meroe (localizados no Sudão),

basicamente no Período Helenístico e Romano.

64 Ver Capítulo 7 65 Ver Capítulo 2

115

5.10. Escarabóide

O termo escarabóide é utilizado para designar amuletos e selos feitos no formato

ovalado do escaravelho, mas que na parte onde aparece o animal tem-se outro. Nos

escarabóides aparecem patos, babuínos, leões, gatos. Como pode ser visto nas Figuras 33 e

34. Ele aparece no Primeiro Período Intermediário (2181-2040 a.C.) e é utilizado até ao final

das dinastias, assim como os escaravelhos.

A função dos escarabóides era a mesma a dos escaravelhos-selos. Os escarabóides só

tinham a função de amuletos quando em seu topo tivesse a representação de um deus. Caso

contrário eles não possuíam nenhum significado religioso.

Figura 33. Escaraboide66

Figura 34. Escaraboide67

66 Escarabóide contendo uma impressão de selo, com 1,8 cm. Atualmente no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK sob o

número de referência E.SC.19

116

Capítulo 6. Materiais e Manufatura

Os escaravelhos são fabricados em diversos materiais, de acordo com a época e

localização. A intenção nesse capítulo é mostrar os materiais e a fabricação dos escaravelhos-

coração que estão no volume II da presente dissertação.

Será utilizada como fonte de referência na elaboração desse capítulo a obra de Thierry

de Putter e Christina Karlshausen (1992), assim como os hieróglifos e transliterações que

aparecem no corpo do texto.

6.1. Materiais

Os materiais utilizados na fabricação dos escaravelhos-coração escolhidos para este

estudo são faiança, ardósia, argila, arenito, amazonite (feldspato), calcário, cobre, cornalina,

diorito, esteatita, granito, grauvaque, jaspe, lápis-lazúli, madeira, mármore, ouro, prata,

quartzito, resina, serpentina e xisto.

6.1.1. Faiança

A faiança egípcia era feita por meio de uma combinação de quartzo ou cristal moído

com óxido de cálcio e Natrão. A sílica compunha 99% do material. Esses eram misturados

com água e colocados em moldes de argila, como mostrado na Figura 35, ou a peça era

modelada à mão. Contudo, esses moldes não são encontrados antes da 18ª dinastia. Nas

escavações realizadas por W. M. Flindres Petrie em Tell el Amarna, foram encontrados cerca

de cinco mil moldes. Há também remanescentes de moldes em outros sítios como Qantir,

Naukratis, Mênfis, Tebas e Gurob. O resultado era uma cerâmica vitrificada de tonalidade

azul esverdeada (FRIEDMAN, 1998). Geralmente, a faiança se torna um material granular,

altamente friável. Se analisada microscopicamente, ela consiste de grãos angulares e

67 Escarabóide feito com anel, com um pato representado de um lado e hieroglifos de outro. Objeto encontra-se no

Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob número de referência E.GA.44.1947.

117

pontiagudos de quartzo sem a mistura de outros materiais (LUCAS, 1962). A sua coloração é

branca, mas podia ser tingida de marrom, cinza, azul, verde e tom amarelado.

Figura 35. Molde para escaravelho68

A vitrificação era comumente utilizada para fazer artefatos na coloração azul ou verde.

Consistia basicamente em vidro ou uma combinação de materiais alcalinos, com a proposta de

colorir. No caso poderia ser carbonato de cálcio em pequenas quantidades, que se tornava

carbonato silicoso por causa do calor e, uma grande proporção de sílica. Em altas

temperaturas a sílica age como um ácido que combina as substâncias. Pode acontecer de

nenhum material silicoso ser utilizado nesse processo, pois como a faiança era composta de

sílica, ela combinaria com o carbonato de cálcio, de sódio e de potássio. A faiança é utilizada

do período pré-dinástico até a dominação Islâmica. Provavelmente, os objetos feitos com esse

material serviam para imitar a turquesa e o lápis-lazúli.

68 Molde para o feitio de escaravelho em faiança. Objeto encontra-se no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob o número

de referência E.40.1887

118

6.1.2. Rochas

Para a fabricação dos escaravelhos-coração os egípcios antigos utilizavam uma grande

quantidade de rochas, que podiam ser ígneas, sedimentares ou metamórficas. Essas rochas se

diferenciam pelos processos de formação.

As rochas ígneas são formadas a partir do resfriamento do magma. Essas rochas

podem ser divididas em dois tipos principais. As intrusivas que se formam no interior da

Terra quando o magma é empurrado para dentro de fendas ou entre camadas rochosas. As

rochas ígneas aqui descritas são granito, feldspato, diorito e basalto. O outro tipo são as

rochas chamadas extrusivas, que se formam a partir da lava que é depositada na superfície

terrestre. Essas rochas possuem granulação fina, pois são formadas rapidamente com o

resfriamento da lava vulcânica.

As rochas sedimentares são constituídas por processos que ocorrem na superfície da

Terra, basicamente o intemperismo, que pode ser físico (desagregação) ou químico

(decomposição). A formação delas se dá com a sedimentação e compactação dos fragmentos

de rocha, o que a torna uma nova rocha. Essas rochas fornecem várias informações sobre as

mudanças ambientais ocorridas.

As rochas metamórficas se formam basicamente em locais profundos, onde há o

encontro de placas tectônicas ou magma, em local onde a pressão e a temperatura podem ser

alteradas em relação ao local onde a rocha se originou.

As técnicas de exploração e retirada da matéria-prima variam de acordo com sua

composição. A maneira mais comum era recolher blocos do fundo de oásis e vales.

No Antigo Império, o processo de obtenção dessas matérias é feito de maneira

sistemática e em larga escala. Essas rochas eram retiradas em blocos, facilitando o transporte

119

e confecção de templos, tumbas, estatuaria e amuletos, entre outros. Na rocha in situ eram

feito buracos e depois com um cinzel ou machado esse bloco era separado dos demais.

A confecção dos escaravelhos-coração em rocha é basicamente a mesma para todos os

materiais, moldagem no formato desejado com ferramentas metálicas e a incisão de

hieróglifos com ferramentas nesse material. Para finalizar, a rocha era polida por meio de

atrito. Esse polimento era feito com o auxílio de uma ferramenta de metal em conexão com

um material silicoso e água ou óleo.

O calcário era retirado com a ajuda de um instrumento metálico e outro de madeira

que servia como percutor. Essa rocha é macia, mas somente no momento em que está

recentemente escavada. As rochas mais duras como granito, diorito e quartzito eram

manufaturados com técnicas especiais de picote, perfuração, fricção e demolição.

A esteatita é um material que era trabalhado com o auxílio de uma agulha e com

pequena pressão. Após ter sido moldada no formato do escaravelho, a esteatita era levada ao

fogo, onde recebia o acabamento de vitrificação de diferentes cores. Contudo, geralmente era

azul ou verde. Os escaravelhos desse material encontrados com uma coloração branca ou

marrom perderam a sua vitrificação em processo de desgaste temporal ou de conservação.

Os escaravelhos feitos de argila são moldados e depois levados ao forno para queima.

Encravar os hieróglifos e detalhes no artefato de xisto era mais complicado e uma ferramenta

de metal era utilizada para marcá-lo.

6.1.2.1. Ardósia

A ardósia é uma rocha metamórfica composta por argila e cinza vulcânica e com grãos

finos.

120

6.1.2.2. Arenito

O arenito é uma rocha sedimentar, composto principalmente por quartzo, feldspato e

mica. A presença de impurezas em sua composição determina sua coloração. Costuma se

formar em ambientes com água, como rios e lagos. O gradativo acúmulo de material arenoso

na base desses rios e lagos e a compactação formam o arenito.

6.1.2.3. Amazonita ou Feldspato Verde

A amazonita ou Hsg ou nSmt .

É um mineral de coloração verde ou turquesa clara, opaca ou translúcida. Sua

coloração não é uniforme e sua composição é silicato de alumínio e silicato de potássio.

Essa rocha era comumente encontrada no deserto sul oriental de Gebel Migif e na

região do Wadi el-Gemal ,Wadi Abu Rusheid, Wadi Nugrus e Wadi Higelig.

Era utilizada desde o período Neolítico para a fabricação de contas e comumente usada

na 12ª dinastia nas jóias de Dashur e Lahun.

6.1.2.4. Calcário

O calcário inr HD.

O calcário é uma rocha sedimentar utilizada para fazer os escaravelhos-coração.

Possui uma composição homogênea, com granulometria compacta ou muito fina, ficando com

superfície lisa e brilhante ao ser polida. O material é composto de calcita em diferente estágio

de cristalização, o que o diferencia do alabastro e do mármore. Essa rocha possui como

cimento também um carbonato de cálcio, a aragonite e, portanto, o que a define é sua

composição química e não a granulometria. A sua formação ocorre em regiões marinhas.

121

Essa rocha é encontrada em toda a extensão do território egípcio. Esse material era

amplamente utilizado na arte e arquitetura faraônica desde o Período Pré-Dinástico até a

Baixa Época.

6.1.2.5.Cornalina

A cornalina Hrst.

A cornalina é um mineral semiprecioso, um derivado do quartzo de coloração laranja

translúcida. Não é encontrada com frequência em escaravelhos-coração.

Ela era extraída na região do Deserto Oriental, mas não era explorada

sistematicamente. A sua utilização se dá do Período Pré-Dinástico até a Baixa Época.

6.1.2.6. Diorito

O diorito ou com sua transliteração mntt ou ibhty.

O diorito é uma rocha ígnea, heterogênea, com coloração escura e com variação

granulométrica que pode chegar a medir centímetros e seus grãos podem vistos a olho nu. As

jazidas são localizadas principalmente ao Sul de Assuã e algumas estão nos desertos do Sinai.

Seu uso começa no Período Pré-Dinástico e vai até a Baixa Época.

6.1.2.7. Esteatita

A esteatita vitrificada é tida como um dos mais antigos produzidos pelos egípcios.

Provavelmente ela começou a ser utilizados no período Badariense, em forma de contas. A

esteatita é uma rocha metamórfica, composta por silicato de magnésio hidratado, com

granulação pequena, que pode ser facilmente cortada com uma faca ou marcada com as

unhas. Suas cores são, geralmente, branca ou cinza. Por sua maciez ela era utilizada para

122

moldar pequenos artefatos, como amuletos, contas e escaravelhos que são largamente

produzidos durante o Período Faraônico. A esteatita pode ser encontrada em Gebel Fatira, a

160 km de El Badari, Hamr, que está localizada próxima a Assuã e Wadi Gulan na costa do

Mar Vermelho.

6.1.2.8. Granito

O granito, ou e suas transliterações são, mAT ou mAT rwD.

Dependendo da composição, textura e estrutura, há vários tipos de granito, como o

granito vermelho de Assuã e o porfirítico. O granito é uma rocha ígnea intrusiva composta

principalmente por feldspato, quartzo e mica, com medida granulométrica visível a olho nu. O

granito de Assuã foi extensamente utilizado em estruturas arquitetônicas desde o Antigo

Império e é facilmente reconhecido. Sua duração como matéria-prima foi até a Baixa Época.

O granito é retirado principalmente de Assuã e Elefantina.

Nos escaravelhos estudados ele aparece nos pilonos de Sennedjem [73] e [74] e o

granito utilizado é o chamado pelos Egiptólogos de granito escuro, que possui minerais

máficos, ou seja, silicatos ferro-magnesianos.

6.1.2.9. Grauvaque

A grauvaque bxn.

A grauvaque é uma rocha sedimentar, constituída principalmente por grãos angulares

de quartzo, feldspato e pequenos fragmentos de rochas compactados. Possui textura imatura e

é encontrado geralmente no estrato referente à era Paleozóica. Por causa de sua coloração,

cinza, marrom, amarela ou preta, é confundido com o basalto.. Essa rocha era encontrada

123

principalmente em Wadi Hammamat, no deserto oriental. Sua utilização se inicia

provavelmente na 2ª dinastia, em uma estátua do Faraó Khasekhemwy, e vai até a Baixa

Época.

6.1.2.10. Jaspe

A jaspe xnmt.

Essa rocha se apresenta como um material compacto, na maioria das vezes homogêneo

com granulometria muito fina e coloração variada. Nos escaravelhos é utilizada basicamente a

jaspe verde. Quando polida essa rocha fica com a superfície lisa e brilhante.

Os autores Thierry de Putter e Christina Karlshausen (1992) afirmam que não se sabe

exatamente onde estavam as jazidas dessas rochas. O jaspe é utilizado desde o Período Pré-

Dinástico até a Baixa Época.

6.1.2.11. Lápis-Lazúli

O lápis-lazúli xsbD .

O lápis-lazúli é uma rocha metamórfica, com coloração azul intensa. A rocha é

composta principalmente de lazurita (silicato de feldspatóide), calcita, sodalita e pirita. Essa

rocha não era encontrada no Egito, mas vinha por meio de comércio com a região hoje

conhecida por Afeganistão. Seu uso começa nas primeiras dinastia e vai até a Baixa Época.

6.1.2.12. Mármore

O mármore aAt HDt.

124

É uma rocha metamórfica, bastante homogênea e opaca, constituída de calcário

submetido a altas temperaturas e pressão.

Essa rocha era encontrada principalmente na região de Gebel Rokham, que se situa

próximo a Edfu, na região do Deserto Ocidental emWadi Dib, Wadi Dagbag e Wadi Mia e ao

sul de Assuã em Wadi Maryia e Wadi Allaqi.

Na 1ª dinastia já se encontram recipientes feitos com essa matéria-prima e seu uso vai

até a Baixa Época. Essa rocha é rara de ser utilizada para a fabricação de escaravelhos-

coração.

6.1.2.13.Quartzito

O quartzito é uma rocha metamórfica constituído de pequenos grãos de quartzo que se

recristalizam sob efeitos da pressão e temperatura. Comumente extraído da jazida de Gebel

Ahmar na região de Assuã.

6.1.2.14. Serpentina

A serpentina ou ou e nmHf ou nSmt

ou shwt.

Se levar em consideração a primeira forma de se escrever esse tipo de rocha, essa será

a rocha designada para a confecção de todos os escaravelhos-coração, apresentado na rubrica

do Capítulo 30b quando diz “...faze um escaravelho em pedra verde...”69

. Nos hieroglifos essa

pedra verde está escrita como nmHf.

A serpentina é um mineral encontrado em várias cores, mas na fabricação dos

escaravelhos-coração são utilizados os de coloração verde escura. Ela é composta por um

69 Ver Capítulo 3.

125

grupo de minerais de filossilicato hidratado de magnésio e ferro. A sua extração era feita

principalmente nas regiões de Barramiya, próxima a Edu e Wadi Shaït, a oeste de Kom

Ombo. A sua utilização começa no Período Pré-Dinástico e se estende até a Baixa Época.

6.1.2.15. Xisto

O xisto é composto de várias rochas metamórficas que apresenta uma foliação

claramente visível a olho nu e se caracteriza pela granulometria média de seus grãos.

6.1.3. Outros materiais

O ouro, a prata e o cobre também estão presentes, contudo eles eram utilizados como

anéis que envolviam o escaravelho, como podem ser vistos nos números [39], [24] e [27] que

possui a placa de ouro onde eram escritos os hieróglifos. Imagina-se que os escaravelhos-

coração que não possuem nenhum tipo de inscrição tinham uma placa com um desses

materiais metálicos que foi retirada para um posterior derretimento e fabricação de outro

artefato.

A madeira é utilizada nos pilonos, não forma necessariamente o escaravelho, mas faz

parte da constituição final do amuleto.

Na tabela 1 podemos observar os escaravelhos-coração utilizados nesse trabalho

divididos de acordo com os materiais utilizados em sua manufatura. Todavia, há escaravelhos

que são fabricados com mais de um elemento, então a numeração desses aparecerá em todos

componentes de sua manufatura.

126

Material Número no Catálogo

Ardósia 09 50 53 54

Argila 11

Arenito 46

Amazonita, Feldspato 30 71 75

Calcário 34 37 58 66

Cobre 39

Cornalina 75

Diorito 32 33 35 64 65 68 69 70

Esteatita 24 38 56 67

Faiança 12 13 28 39 45

Granito 73 74

Grauvaque 48

Jaspe 17 27 42

Lápis-Lazúli 24 29 72 75

Madeira 73 74

Mármore 06

Ouro 24 27 29 44 71 72 74 75

Prata 66

Quartzito 41

Resina Preta 29

Serpentina 01 03 10 18 31 40

Xisto 49

Desconhecida

02 04 05 07 08 14 15 16 19 20

21 22 23 25 26 36 43 44 47 51

52 55 57 59 60 61 62 63

Tabela 1. Matéria-prima e seu número correspondente no volume II.

127

Capítulo 7. Escaravelho-coração

Diversos amuletos eram colocados na múmia para assegurar proteção a certas partes

do corpo ou assegurar uma caminhada tranqüila rumo ao Mundo Inferior. O escaravelho-

coração é tido como o amuleto funerário mais importante. Isso ocorria porque esse amuleto

evitaria que o coração se levantasse contra seu dono e proferisse contra ele falsos testemunhos

na pesagem do coração no Tribunal de Osíris.

O coração como berço de todos os sentimentos poderia nesse momento se rebelar e

contradizer o seu dono, o que resultaria na segunda morte. Os egípcios antigos almejavam se

tornar um justificado e para isso precisariam passar pela Sala do Julgamento de Osíris. Nesse

momento entram em ação os poderes das palavras escritas no escaravelho-coração. O coração

era o órgão que recebia a primeira vitalidade do segundo nascimento, era por ele que o morto

revivia.

A pessoa que viveu de acordo com Maat teoricamente não precisaria do amuleto do

escaravelho-coração. No caminho para a Sala do Julgamento o morto passa por vários portões

e seus guardiões, onde ele declara as Confissões Negativas. A confissão Negativa II se

encontra no papiro de Nebseni:

1. Ó tu, Espírito, que marchas a grandes passadas e que surge em Heliópolis,

escuta-me! Eu não cometi ações perversas.

2. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Keraha e cujos braços estão rodeados de um fogo que arde! Eu não trabalhei com violência.

3. Ó tu, Espírito, que te manifesta em Hermópolis e que respiras o Alento

divino! O meu coração detesta a brutalidade.

4. Ó tu, Espírito, que te manifestas nas Fontes do Nilo e que te alimentas à sombra dos Mortos! Eu não roubei.

5. Ó tu, Espírito, que te manifestas no rosetau e cujos membros apodrecem e

empestam! Eu não matei meus semelhantes. 6. Ó tu, Espírito, que te manifestas no Céu sob a dupla forma de leão! Eu não

diminuí o alqueire de trigo.

7. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Letópolis e cujos olhos ferem como punhais. Eu não cometi fraudes.

8. Ó tu, Espírito, da deslumbrante máscara, que andas lentamente

retrocedendo! Eu não subtraí o que pertencia aos deuses.

9. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Heracleópolis e que esmagas e trituras os ossos! Eu não menti.

128

10. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Mênfis e que fazes surgir e crescer

as chamas! Não subtraí o alimento de meus semelhantes.

11. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Amenti, divindade das duas fontes do Nilo! Eu não difamei.

12. Ó tu, Espírito, que te manifestas na região dos Lagos (região do Faium) e

cujos dentes brilham como o Sol! Eu nunca fui agressivo.

13. Ó tu, Espírito, que surges junto do cadafalso e que, voraz, te precipitas sobre o sangue das vítimas! Sabe-o: Eu não matei os animais do templo.

14. Ó tu, Espírito, que te manifestas na vasta Sala dos trinta juizes e que te

nutres das entranhas dos pecadores. Eu não defraudei. 15. Ó tu, Espírito, Senhor da Ordem Universal que te manifestas na Sala da

Verdade-Justiça. Conhece! Eu nunca monopolizei os campos de cultivo.

16. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Bubatis e que andas retrocedendo,

Conhece! Eu nunca escutei às portas. 17. Ó tu, Espírito Aati, que apareces em Heiópolis! Eu nunca pequei por

excesso de palavras.

18. Ó tu, Espírito, Tutuf, que apareces em Ati! Eu nunca pronunciei maldições quando me causaram qualquer dano.

19. Ó tu, Espírito Uamenti, que apareces nas covas da tortura! Eu nunca

cometi adultério. 20. Ó tu, Espírito, que te manifestas no templo de Amsu e que olhas com

cuidado as oferendas que te levam! Sabe-o: eu nunca me masturbei.

21. Ó tu, Espírito, que apareces em Nehatu, tu, chefe dos deuses antigos! Eu

nunca aterrorizei qualquer pessoa. 22. Ó tu, Espírito-destruidor, que te manifestas em Kaui! Eu nunca violei a

ordenação dos tempos.

23. Ó tu, Espírito, que apareces em Urit, de quem ouço a voz que salmodia! Eu nunca cedi à cólera.

24. Ó tu, Espírito, que apareces na região do Lago Hekat sob a forma de uma

criança! Eu nunca fui surdo às palavras da Justiça. 25. Ó tu, Espírito, que apareces em Unes e cuja voz é tão penetrante! Eu

nunca promovi querelas.

26. Ó tu, Espírito Basti, que apareces nos mistérios! Eu nunca fiz derramar

lágrimas aos meus semelhantes. 27. Ó tu, Espírito, cujo rosto se encontra na parte traseira da cabeça e que

sais da tua morada oculta! Eu nunca pequei contra a natureza dos homens.

28. Ó tu, Espírito com a perna envolta em fogo e que sais de Akhekhu! Eu nunca pequei por impaciência.

29. Ó tu, Espírito que sais de Kenemet e cujo nome é Kenemti! Eu nunca

injuriei ninguém.

30. Ó tu, Espírito, que sais de Sais e que levas nas tuas mãos as tuas oferendas! Eu nunca fui briguento.

31. Ó tu, Espírito, que apareces na cidade de Djefit e cujos rostos são

múltiplos! Eu nunca agi com precipitação. 32. Ó tu, Espírito, que apareces em Unth e que estás cheio de astúcia! Eu

nunca faltei com respeito aos deuses.

33. Ó tu, Espírito ornado de cornos e que sais de Satiú! Nos meus discursos nunca usei demasiadas palavras.

34. Ó tu, Nefertum, que sais de Mênfis! Eu nunca defraudei nem agi com

perversidade.

35. Ó tu, Tum-Sep, que sais de Djedu (Busíris)! Eu nunca amaldiçoei o Rei. 36. Ó tu, Espírito, cujo coração está ativo e que sais de Debti! Eu nunca

poluí as águas.

37. Ó tu, Hi, que apareces no Céu!Sabe-o: As minhas palavras nunca foram altaneiras.

129

38. Ó tu, Espírito, que dás as ordens aos Iniciados! Eu nunca amaldiçoei os

deuses.

39. Ó tu, Neheb-neferet, que sais do lago! Eu nunca fui impertinente ou insolente.

40. Ó tu, Neheb-Kau, que sais da cidade! Eu nunca intriguei para me fazer

valer.

41. Ó tu, Espírito, cuja cabeça é santificada e que sais, de repente, do teu esconderijo! Sabe-o: eu não enriqueci de um modo ilícito.

42. Ó tu, Espírito, que sais do Mundo Inferior e levas diante de ti o teu braço

cortado! Eu nunca desdenhei o deus da minha cidade. (BUDGE, 2002, p.325)

Essas são algumas das confissões feitas pelos mortos onde eles negam qualquer ato

que possam ter cometidos. Após a recitação das Confissões Negativas, o coração poderia se

levantar e contradizer o seu dono caso ele tenha feito algo que fora negado.

O escaravelho-coração deveria ser feito em pedra verde70

que provavelmente seria

jaspe71

, a coloração escolhida para esse amuleto não foi aleatória. O verde é o símbolo da

vida, da ressurreição. Osíris é associado com essa cor quando ele aparece mumificado na

iconografia. O único problema era que a jaspe era difícil de ser encontrada e entalhada, por

isso que foram utilizados outros materiais.

7.1. Período de utilização

O escaravelho-coração mais antigo encontrado até hoje pertenceu a Nebankh, um

oficial que serviu durante o reinado do faraó Sobekhotep IV na 13ª dinastia. Esse amuleto era

feito em Xisto e no local da cabeça do animal havia uma cabeça humana, como os

escaravelhos-coração dessa época. Na sua base havia a inscrição do Capítulo 30b.

Em equivalência o escaravelho-coração real do faraó Sobekemsaf da 17ª dinastia é

tido por diversos estudiosos como o mais remoto. Na simbologia egípcia o faraó não

precisaria do escaravelho-coração para proteger o coração, porque ele já é um glorificado.

Mas, a partir do Novo Império os faraós aparecem com esses amuletos. A respeito desse fato

70 Ver Capítulo 3. 71 Ver Capítulo 6.

130

podem ser supostas duas hipóteses, ou os escaravelhos-coração reais são mais antigos que o

da 13ª dinastia, mas nunca foram encontrados; ou esse amuleto fez o caminho contrário da

democratização da religião, iconografia e simbologia egípcias. Ele era primeiramente

utilizado pelos cidadãos comuns e depois foram usados pelos faraós. A segunda opção faz-se

mais viável porque poucas múmias reais continham esse amuleto. Mais uma vez os nobres e

cidadãos faziam mais uso desse recurso para garantir a sua vida no Mundo Inferior.

Para Petrie (1917) o escaravelho-coração só aparece na 18ª dinastia, quando a

simbologia do escaravelho já estava consagrada na cultura. Ikram e Dodson (1998) datam o

início de seu uso no Médio Império, momento esse em que os amuletos funerários são

utilizados em maiores quantidades.

Outro ponto de discussão é o momento em que esse amuleto deixa de ser utilizado.

Ikram e Dodson (1998, p.140) dizem o escaravelho-coração é usado até o Período Romano.

Contudo, é comum argumentar que ele deixa de ser fabricado progressivamente, de mesmo

modo que o Livro dos Mortos por volta da 26ª dinastia. Para Malaise (1970, p.77) na 26ª

dinastia os escaravelhos-coração se tornam cada vez mais raros e são anepigráficos, o que

dificulta em atestar a sua simbologia.

A maior dificuldade em se datar os escaravelhos-coração que não são encontrados em

contextos arqueológicos é que os recursos estilísticos não seguem uma padronagem temporal.

Os escaravelhos reais72

ou amuletos utilizados em vida podem ser classificados e assim

atestados as suas datações.

A comprovação dessa tese se dá no fato do escaravelho-coração com o élitro estriado.

Ele poderia pertencer à Baixa Época [17] como não. Os escaravelhos-coração [01] e o [46]

72 Ver Capítulo 5.

131

são do Novo Império, o [50] é da 20ª a 25ª dinastias, os [25] e [26] não possuem datação

cronológica.

O prototórax alongado, linha divisória do prototórax com élitro e clípeo alongado ou

curto também não são parâmetros para datação. Esses estilos de manufatura variavam de uma

oficina a outra, assim como o material também é importante. Se a rocha for muito dura a

dificuldade em se fazer o entalhe é maior e formato do escaravelho será diferenciado, assim

como uma mais macia terá mais detalhes.

O reaproveitamento de escaravelhos-coração também acontecia [33] na primeira linha

o nome do morto anterior foi sobrescrito pelo de Sem-Ne-Pa-Nay. Além do reaproveitamento

tem escaravelhos-coração cujo nome da pessoa fora apagado [31] onde a primeira linha

claramente foi extinta.

Os escaravelhos-coração que possuem o texto em sua base podem ser analisados para

uma possível seriação, essa feita com base nos hieróglifos. Todavia os que são anepigráficos

continuariam com datação desconhecida.

7.2. Funções e simbologia

A função principal do escaravelho-coração é por meio do texto contido em sua base

tentar silenciar o coração para que esse não testemunhe contra o seu dono perante o Tribunal

de Osíris. Quando analisada a sua forma, ele é o símbolo do renascimento, da renovação, por

ser o amuleto do deus Khepri. Com base na sua coloração ele é a regeneração diária do morto

assim como Osíris.

O escaravelho-coração era visto como o coração de Ísis, a mãe do morto, deste modo o

morto é identificado com Hórus, o coração que pertenceu às transformações ou formações

para sua vida futura, na ordem de dar estabilidade para seus membros e seu feitiço asseguraria

sua justificação no Julgamento. (PETRIE, 1917, p.122)

132

Meulenaere (1972) diz que o escaravelho por si é um amuleto que sugere o

renascimento ou a renovação, então essa seria a forma mais indicada para reanimar o coração

e impedir que as palavras dele e do morto não fossem contraditórias no momento do

Julgamento.

A definição de sua função e simbologia é citada por vários egiptólogos de uma forma

superficial. Em Ikram (1998) assim como Shaw (2002) acrescentam a essas discussões pontos

que até então não eram comentados, como, caso o coração fosse retirado por descuido dos

embalsamadores, o escaravelho-coração era colocado em seu lugar e não sobre as bandagens.

Assim como, descrevem de maneira sucinta a função do escaravelho no julgamento.

Para Bury (1940) as palavras escritas na base do escaravelho-coração eram tão

poderosas que silenciariam a voz acusadora do coração porque essa não perceberia o mal que

iria testemunhar. Andrews (1996) quando não se tinha o Capítulo 30b nos escaravelhos-

coração, teria outro texto cuja função seria a de prevenir que o morto perdesse um de seus

mais importantes órgãos.

Shaw e Nicholson (2002) dizem que após a descoberta que o coração poderia revelar o

verdadeiro caráter de uma pessoa, o órgão era deixado dentro do corpo.

O escaravelho-coração protegia o coração do morto e, servia como um substituto caso

o coração original fosse arrancado da cavidade torácica.

7.3. Posição na múmia

Antes de ser colocado na múmia, o escaravelho-coração passava por dois rituais: o

embalsamador borrifava mirra e posteriormente um óleo de boa qualidade no amuleto.

O escaravelho-coração deveria ser colocado entre a 17ª e 18ª camadas de bandagens da

múmia, essa informação provém dos estudos feitos através das tomografias computadorizadas

133

(JANOT, 2008, p.225). Quando por descuido o coração fosse tirado de dentro do corpo, o

amuleto era então inserido em seu lugar. O amuleto poderia ser colocado na múmia como um

colar, por meio de ganchos que se encontravam na frente da peça [27], [30], [37], [45]. O

cordão poderia ser feito de ouro ou contas. O escaravelho-coração sempre era colocado na

região torácica.

A partir da 21ª dinastia o escaravelho-coração é colocado dentro da cavidade

abdominal da múmia, mas também aparece em meio às bandagens. Como pode ser vista na

(figura 40) múmia Sha-Amun-en-su onde o escaravelho-coração, destacado na coloração azul

se encontra nas bandagens em uma posição não usual, provavelmente essa mudança de

posicionamento ocorreu durante o processo de mumificação.

Figura 36. Sha-Amun-en-su73

73 A múmia está no Museu Nacional do Rio de Janeiro, com numeração 157. A tomografia computadorizada realizada em

2004 na CDPI (Clínica de Diagnóstico por Imagem), sob supervisão do Museu Nacional com o apoio da FIOCRUZ

(Fundação Oswaldo Cruz), COPPE/UFRJ e INT (Instituto Nacional de Tecnologia)

134

O escaravelho-coração é feito em rocha e com um tamanho variável entre 5-10cm ou

seja, com essa mudança de posição ele pode fraturar um osso. Os trabalhos hoje realizados

com tomografias computadorizadas mostram os amuletos contidos nas múmias e percebe-se o

seu deslocamento.

7.5. Textos

Os escaravelhos-coração em sua maioria possuem o Capítulo 30b do Livro dos Mortos

em sua base. Quando não era possível escrever o capítulo inteiro, os artesãos colocavam

trechos que tinham as palavras mais poderosas. Erroneamente há a definição que só é

escaravelho-coração aquele que possui esse capítulo. Os estudos atuais mostram que o

importante não era o capítulo escrito nele e sim, as palavras. Alguns escaravelhos, como o de

Tutankhamun [29] possuíam outros capítulos. No caso aqui é o Capítulo 13 comumente de

Shabits.

Os textos diferentes do Capítulo 30b comumente faziam alusão a importância do

coração ou a proteção do coração do morto. Portanto, não se deve classificar um escaravelho-

coração somente pelo seu texto. Podem aparecer os Capítulos 21, 29b e 27 que são

relacionados ao coração. As palavras que costumam tem o maior poder de persuasão ao

coração eram “não se levante contra mim em testemunho”, “não crie oposição no tribunal”,

“não seja hostil com o guardião da balança”, “não faça meu nome cheirar mal” e “não diga

mentiras na presença dos deuses”.

Os escaravelhos-coração anepigráficos [01-26] podem nunca ter recebido texto ou

esses foram arrancados. Mas se colocados na região do coração, continuariam a exercer a sua

função.

135

7.6. Variações

7.6.1. O pássaro Benu

A ave Benu (nome egípcio) ou garça aparece nos escaravelhos-coração [24] e [29]

feita em material vítreo de diversas cores e lápis-lazúli. Os detalhes que compõe as partes da

ave são preenchidos cuidadosamente seguindo seu contorno anatômico.

No início do período faraônico, essa ave era deificada. O que provavelmente levou a

essa associação foi que após a inundação do rio Nilo, essas aves ficavam nas águas rasas e

barrentas. Assim foram associadas com a criação porque a vida surgiu das Águas Primordiais

e elas são as primeiras aves a habitar o leito do rio após a inundação. O epíteto dado as aves

Benu era “aquele que vem à vida completamente de si próprio”.

Ao colocar a ave Benu em um escaravelho-coração o morto teria a proteção para que

não fosse traído por seu coração no Tribunal de Osíris, além dos símbolos de ressurreição que

era a ave e o deus Khepri. Seria então um modo do morto regenerar a si mesmo. Assim como

ocorre com o amuleto do escaravelho de uso cotidiano que ao somar palavras poderosas está

enfatizando a proteção, o mesmo ocorreria nesse caso.

No Capítulo 29b do Livro dos Mortos, o morto proclama a sua identidade com a ave

Benu.

7.6.2. Escaravelhos com cabeça humana

Os escaravelhos com cabeça humana são tidos como os exemplares mais antigos desse

amuleto. O início de sua fabricação é no Segundo Período Intermediário, entretanto poucos

escaravelhos-coração restaram dessa época. No Novo Império eles ainda são produzidos.

O escaravelho-coração de Sobekemsaf [27] é tido como o mais antigo escaravelho real

encontrado. O faraó governou na 17ª dinastia. Diferentemente do escaravelho-coração do

faraó, os escaravelhos [46] e [50] possuem a cabeça proeminente, como se fossem esfinges.

136

Amuleto com esse tipo de cabeça são mais incomuns que os com a cabeça humana

substituindo a do animal sem elevação. O [46] tem a sua datação no Novo Império, momento

em que esse recurso era utilizado na fabricação dos escaravelhos-coração. O escaravelho-

coração [50] possui a datação entre 20ª e 25ª dinastias, época em que há a retomada de antigas

tradições.

Os três escaravelhos-coração com cabeça humana apresentados no volume II [27, 46 e

50] possuem trechos do Capítulo 30b.

Para Malaise (1970) eles possuíam a cabeça humana como forma de conferir ao

escaravelho-coração o poder da palavra, um fenômeno tão essencial que a Cerimônia de

Abertura da Boca só era praticada após a colocação do escaravelho na múmia.

7.6.3. Ouro e sua representação

Na rubrica do Capítulo 30b fala-se para fazer um escaravelho-coração de pedra verde e

colocá-lo em uma base de ouro. Como nem todos possuíam providências para ter a base de

ouro [27] fazia-se um anel com ouro e circundava a peça [43-44], [55], o amuleto [39] possui

o anel feito em cobre. O escaravelho-coração [65] tem o anel em prata. O que pode atestar que

quem não poderia fazer em ouro utilizaria outra espécie de metal.

A importância de se empregar o ouro nesses amuletos é que o ouro é inalterável, com

duração infinita. A matéria dourada vem do corpo do Sol, participa da natureza do céu, o que

propõe o seu valor vivificador.

7.6.4. Pilonos

Os pilonos são peitorais [70-75] que tem como destaque central o escaravelho-

coração. Começam a ser utilizados após o reinado do faraó Tutankhamun na 18ª dinastia, mas

eles se tornam mais populares durante o Período Raméssida.

137

O morto poderia ter vários peitorais com escaravelhos-coração. O artesão Sennedjem

da Vila de Deir el-Medina possuía dois peitorais com escaravelhos-coração [72-73]. O [72]

era feito em madeira com o escaravelho em granito e o [73] era de madeira, com granito e

ouro.

O escaravelho é identificado com o Sol nascente, consequentemente assimilado com

Osíris, aquele que renasceu. Por estar flanqueada por Ísis e Néftis a sua identificação Osiríaca

é reforçada. Caso ele apareça com a barca solar abaixo [72] [75] esse escaravelho remete a Rê

e não somente ao deus Khepri. Os peitorais [70-73 e 75] possuem as deusas postadas em pé,

uma de cada lado do escaravelho e com suas mãos em sinal de adoração.

O pilono [75] traz entre as deusas e o escaravelho a iconografia dos amuletos tit e

pilar-djed, remetendo ainda mais o sentido Osiríaco do conjunto. Os pilonos eram as fachadas

dos templos.

7.6.5 Escaravelho-coração e amuleto do coração

O escaravelho-coração tinha função de não deixar que o coração se levante contra seu

dono, ou seja, ele pedia para o ib não fazer o nome do seu dono cheirar mal. O amuleto do

coração por outro lado, protegia o hAti porque ao proteger o órgão, os movimentos corporais

estariam assegurados.

Os dois amuletos atuam paralelamente, mais uma vez ao se levar em consideração o

pensamento egípcio que, quanto mais enfatizada, mais potencializada seria a fórmula. Por que

não juntar os dois amuletos em um só. Os escaravelhos-coração juntamente com o amuleto

do coração [32], [36] e [53] datam do Novo Império, cronologia desconhecida e 25ª a 26ª

dinastias respectivamente.

138

Os três exemplares de amuletos unidos possuem trechos do Capítulo 30b em sua base.

Conclui-se que o escaravelho-coração atuaria pelo seu formato e também por suas palavras e

o amuleto do coração cumpriria o seu papel por causa da sua forma.

7.7 Múmias de animais

Assim como os seres humanos, alguns animais mumificados também carregavam em

suas bandagens escaravelhos-coração. Duas múmias do touro Mnevis que datam do período

de reinado de Ramséss II tinham escaravelhos-coração feitos em quartzo e com a seguinte

inscrição: “seu coração pertence a ti, o Osíris Mnevis.”

139

Conclusões

O estudo aqui realizado esbarrou na dificuldade de se encontrar fontes textuais que

remetessem a escavações onde poderiam ter sido encontrados esses escaravelhos-coração,

assim como estudos específicos sobre o tema. O trabalho que trata diretamente de

escaravelhos-coração é o de Malaise (1970), até o presente momento são encontradas citações

em estudos sobre religião, mumificação e amuletos egípcios. Portanto, as lacunas resultantes

são frutos da pouca documentação produzida até hoje. Acreditamos que com a utilização de

tecnologias como o CT-scan o estudo do escaravelho-coração se tornará mais concreto,

porque as imagens o mostraram em contexto.

A cronologia para os escaravelhos-coração não pode ser estabelecida por meio de

seriação, porque como mostrado no capítulo anterior os recursos estilísticos são praticamente

utilizados ao longo de várias das dinastias. Com base em pequenas exceções a datação precisa

do material se torna uma tarefa praticamente impossível.

O objetivo proposto no trabalho era o de mostrar as funções e a simbologia do

escaravelho-coração acreditamos ter sido alcançado pela demonstração da sua inserção na

religião, textos funerários e processos de mumificação.

Podemos concluir que o escaravelho-coração é o amuleto funerário mais importante

para a proteção da múmia, porque esse protegia o seu ib e não deixava que por vontade

própria ele se levantasse contra o seu dono no Julgamento de Osíris. Esse amuleto recebia

seus próprios rituais antes de ser colocado na múmia. A Cerimônia de Abertura da Boca só

poderia ser realizada após a colocação do escaravelho-coração na região torácica do morto.

A ligação do escaravelho-coração com o Capítulo 30b está no fato que um foi criado

em função do outro. Apesar do Capítulo 30b também ser encontrado em papiros juntamente

com os capítulos da pesagem do coração, é mais comum encontrá-lo em escaravelhos. Alguns

140

possuem uma versão maior e outros uma menor, dependendo de seu tamanho e do modo de

fabricação (sabe-se que alguns amuletos eram feitos em série nas oficinas especializadas). O

poder mágico dos dois é incontestável, pois eles são utilizados basicamente a partir da 12a

dinastia, até o Período Romano, quando se tem o último vestígio do Livro dos Mortos e que

começa a ser substituído pelo Livro das Respirações. Complementando, o escaravelho-

coração começa a ser usado juntamente com o Capítulo 30b, um não teria efeito sem o outro,

então quando deixa de usar um invariavelmente o outro também desaparece.

A diferenciação do escaravelho-coração com o amuleto do coração está para qual

coração cada um se dirigiria. O amuleto do coração remetia à proteção do coração hAti aquele

que não poderia ser destruído e assim traria novamente movimento aos membros. E o

escaravelho-coração era usado para impedir que o coração ib se levantasse contra seu dono na

pesagem do Tribunal de Osíris. Todavia, assim como ocorre com o Capítulo 30b os amuletos

precisavam atuar paralelamente assim garantiriam ao morto as faculdades terrenas e abstratas.

Permitindo ao morto atingir o “Belo Ocidente” com as suas faculdades físicas estabelecidas.

141

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