o escaravelho-coração nas práticas e rituais funerários do ... · rituais funerários do antigo...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
MESTRADO EM ARQUEOLOGIA
Marina Buffa César
O Escaravelho-Coração nas Práticas e
Rituais Funerários do Antigo Egito
Volume I
Texto
.
Rio de Janeiro
2009
Marina Buffa César
O Escaravelho-coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo Egito
Dois volumes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Mestrado em Arqueologia,
Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Arqueologia.
Orientador: prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior
Rio de Janeiro
Julho de 2009
César, Marina Buffa
O Escaravelho-Coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo Egito.- Rio de Janeiro:
Museu Nacional/UFRJ, 2009-07-02
X-276;2v;il.
Dissertação: Mestrado em Arqueologia, Departamento de Antropologia, Museu Nacional,
UFRJ, 2008
Orientador: Antonio Brancaglion Junior
1-escaravelho-coração 2-textos funerários 3- escaravelhos
Escaravelho-coração nas Práticas e Rituais Funerários do Antigo
Egito
Marina Buffa César
Orientador: prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior
Dissertação de mestrado submetida ao Mestrado em Arqueologia do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Arqueologia.
Aprovada por
Presidente Prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese
Prof.a Dr.
a Márcia Severina Vasques
Rio de Janeiro
Julho de 2009
Agradecimentos
Agradeço a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
pelo apoio institucional e financeiro em minha pesquisa.
Meu agradecimento mais que especial ao meu orientador, Antonio Brancaglion Junior,
por incentivar-me a crescer tanto academicamente como ser humano desde que fizemos nossa
primeira reunião em 2004. Por toda a ajuda nesses anos de trabalho, pelos ensinamentos em
sala de aula e reuniões e ótimos momentos passados conversando sobre a vida e o cotidiano
no Egito atual. Em relação à Marly, o que posso dizer a não ser que ela é um anjo sempre
presente em nossos corações? Meus agradecimentos pela ajuda com os textos, por me acalmar
nos momentos de desespero, por nossas conversas, por todo carinho com que me tratou em
todos os momentos. Agradeço a essa relação de amizade cultivada com Antonio e Marly,
esperando que perdure pelo doutorado e por outros planos futuros.
Aos funcionários do Institut Français D’Archéologie Oriental (IFAO) do Cairo, que
me ajudaram quando estive lá, principalmente a Marie-Christine Michel, responsável pela
difusão das publicações do Instituto, Vanessa Desclaux, bibliotecária responsável, e Madame
Laure Pantalacci, diretora da Instituição.
Aos professores do Mestrado em Arqueologia, que sempre estiveram presentes nesses
dois anos de formação e muito aprendizado, muito obrigada. Agradeço a todos pelo
conhecimento passado e apoio em minhas pesquisas. À professora Tânia, pelas chicotadas ao
longo desses dois anos, pelos PowerPoints preparados na madrugada anterior à aula e por não
ter me passado o assustador texto de teoria evolutiva. Além de todo o carinho e ensinamento
que me passou enquanto fui sua aluna. À professora Cláudia, que me ensinou a anatomia
humana, por ter sido uma mãe para mim quando fraturei o pé nas pirâmides, pelos momentos
de turismo, diversão e muito aprendizado passados no Egito. À professora Sheila, embora
tenhamos nos conhecido há pouco tempo, abriu portas nunca antes imaginadas por mim. O
apoio que ela me dá em futuros projetos é indescritível. Agradeço ao professor Renato Cabral,
da Geologia, por me ensinar sobre as rochas tão importantes em meu trabalho. Ao professor
Wagner, por ter me alugado seu apartamento, facilitando a minha estada no Rio de Janeiro
sem ter que conversar com imobiliárias.
Os funcionários do Museu também foram importantes para minha maturidade como
Egiptóloga. Os museólogos que sempre me ajudaram no momento de estágio. À Ângela
Rabelo, que me recebeu na reserva técnica quando eu ainda era estagiária e muito me ensinou.
À Claudine, que sempre ajudou em todos os momentos e é mais que somente secretária do
mestrado, é nossa salvação.
Às minhas amigas do grupo do Egito, Cintia Gama, Cíntia (Lost), Juliana, Marilda,
Simone e Regina. Agradeço a todas da mesma maneira, porque todas tiveram papel
fundamental em meu trabalho. Obrigada por terem me apoiado, me acalmado, pelos cafés,
pelas conversas e por nunca me deixarem desistir nos momentos de fraqueza. Se hoje essa
dissertação está finalizada é porque vocês me ajudaram, com textos e emocionalmente.
Espero poder contribuir de mesma maneira para o sucesso de todas!
Aos meus colegas de mestrado só posso dizer que os momentos que passamos juntos
foram ótimos e que tenhamos muito outros em nossa nova jornada. À Tatiana, que sempre
esteve ao meu lado não importando a hora. Tati, obrigada pelo apoio durante as madrugadas e
por todas nossas conversas. Outra pessoa importante nessa trajetória foi a Regina Norma.
Obrigada por tudo amiga! Diogo, Cilcair, Bia (Líticos), Bia (Faiança) amigos formidáveis e
sempre carinhosos, sem vocês o mestrado não seria o mesmo.
Agora o agradecimento mais importante. À minha família que, apesar de tudo e do
jeito deles, sempre me apoiou e é a melhor família que eu poderia ter. Às minhas avós, que
sempre responderam com entusiasmo cada passo que eu dava nessa jornada. Às pessoas mais
importantes em minha vida, pai e mãe, muito obrigada por sempre acreditarem em mim e por
tudo que me deram até hoje. Obrigada por todas as oportunidades de estudo, de moradia.
Obrigada pelo carinho de vocês. Amo vocês cada dia mais.
Resumo
Os escaravelhos eram utilizados pelos egípcios antigos como amuletos, funerários ou
cotidianos, e selos, com nomes da realeza e de pessoas comuns. Eles eram identificados com
o deus solar Khepri. Um tipo de amuleto funerário, o escaravelho-coração, é conhecido como
um dos mais importantes para assegurar que o morto chegasse ao Mundo Inferior sem
contratempos. O objetivo dessa dissertação é descrever a simbologia dos escaravelhos-
coração de acordo com a religião egípcia e textos funerários. O texto está baseado em textos
clássicos sobre o assunto e em alguns relatórios de escavações, com intuito de entender o
contexto arqueológico em que esses objetos foram encontrados. Todavia, os escaravelhos-
coração não são raramente encontrados em contexto original, sendo a maioria comprada ou
doada para Museus. O amuleto era colocado na região torácica do morto durante o processo
de mumificação, mais comumente em meio às bandagens. A sua função era impedir que o
coração de seu dono se levantasse contra ele em falso testemunho. O Capítulo 30b do Livro
dos Mortos aparece em sua maioria na base desses amuletos para eficácia do poder dessas
palavras. O escaravelho-coração era feito basicamente em rocha esculpida no formato do
amuleto, tendo em um dos lados o animal e o texto no outro.
O segundo volume é composto pelos escaravelhos-coração em si, descritos em suas fichas
catalográficas e com fotografias. Esse volume serve como a base para o desenvolvimento do
texto do volume I.
Palavras chave: escaravelho-coração, textos funerários, mumificação e escaravelhos.
Abstract
Ancient Egyptians used scarabs as amulets, funerary or ordinary, and as seals with common
people and royal names. Scarabs were identified with the solar god Khepri. One kind of
funerary amulet, the scarab heart, is known as the most important to assert that the dead
became safely though the Underworld journey. The objective of this work is to describe the
simbology of the scarab heart in accordance with the Egyptian religion and funerary texts. We
have used well-known references about the subject, and some excavations reports to
understand the archaeological context of those objects. In fact, the scarab heart is rarely found
in its original context, since most of them were bought or donated to Museums. It is known
that through the mummification process, amulet was placed inside the thorax, frequently in
the bandages. The function of this amulet was to avoid that the heart acted on false testimony
against the dead. The chapter 30b of The Book of the Dead appears in the base of these
amulets to assert a better of this power of words. The scarab heart was sculpted in rocks in the
form of the amulet, with the animal in one side and text in the opposite side.
The second volume is the heart scarab itself, composed with its description and photography.
It’s the basis to development of all the paper.
Key words: heart scarab, funerary texts, mummification, scarabs.
Cronologia
Paleolítico 500.000-5500
Pré-dinástico 5500-3050
Protodinástico 3150-3050
Período Thinita
1ª dinastia 2920-2575
2ª dinastia 2770-2649
Antigo Império
3ª dinastia 2649-2575
4ª dinsatia 2575-2645
Snefru 2575-2551
Khufu 2551-2528
Djedefre 2528-2520
Khafra 2520-2494
Menkhaure 2490-2472
Shepseskaf 2472-2467
5ª dinastia 2465-2323
Userkaf 2465-2458
Sahure 2458-2446
Neferikare Kakai 2446-2426
Shepseskare 2426-2419
Neferefre 2419-2416
Niuserre Ini 2416-2392
Menkauhor Kaiu 2396-2388
Djedkare Isesi 2388-2356
Unas 2356-2323
6ª dinastia 2323-2150
Teti 2323-2291
Pepi I 2289-2255
Menrere 2255-2246
Pepi II 2246-2152
Primeiro Período Intermediário 2134-2040
7ª e 8ª dinastias 2150-2134
9ª e 10ª dinastias 2134-2040
11ª dinastia (Tebas) 2134-2040
Médio Império 2040-1640
12ª dinastia 1991-1783
Segundo Período Intermediário 1640-1532
13ª dinastia 1784-1650
14ª dinastia ?
15ª dinastia 1663-1555
16ª dinastia 1650-?
17ª dinastia 1640-1550
Rahotep 1585-?
Sobekemsaf I ?
Antef V 1640-1635
Antef VI ?
Antef VII ?
Sobekemsaf II c.1633
Tao I ?-1558
Tao II 1558-1553
Kamósis 1553-1549
Novo Império 1550-1070
18ª dinastia 1550-1307
Ahmose 1550-1525
Amenhotep I 1525-1504
Thutmés I 1504-1492
Thutmés II 1492-1479
Hatshepsut 1473-1458
Thuemés III 1479-1425
Amenhotep II 1427-1401
Thutmés IV 1401-1391
Amenhotep III 1391-1353
Amenhotep IV 1353-1335
Smenkhare 1335-1333
Tutankhamun 1333-1323
Ay 1323-1319
Horemheb 1319-1307
19ª dinastia 1307-1196
Ramessés I 1307-1306
Séthi I 1306-1290
Ramessés II 1290-1224
Merneptah 1224-1214
Séthi II 1214-1204
Amenmesses 1202-1199
Siptah 1204-1198
Twosret 1198-1196
20ª dinastia 1196-1070
Setnakhte 1196-1194
Ramessés III 1194-1163
Ramessés IV 1163-1156
Ramessés V 1156-1151
Ramessés VI 1151-1136
Ramessés VII 1143-1136
Ramessés VIII 1136-1131
Ramessés IX 1131-1112
Ramessés X 1112-1100
Ramessés XI 1100-1070
Terceiro Período Intermediário 1070-712
21ª dinastia 1070-945
22ª dinastia 945-712
23ª dinastia 828-712
24ª dinastia 724-712
25ª dinastia 747-656
Período Saíta 664-525
26ª dinastia 664-525
Período Tardio (Baixa Época) 525-332
27ª dinastia 525-404
28ª dinastia 404-399
29ª dinastia 399-380
30ª dinastia 380-343
31ª dinastia 343-332
Reis Macedônios 332-304
Período Ptolomaico 304-30
Imperadores Romanos 30-395 d.C.
Lista de figuras
Figura 1. Hórus suprimindo Seth que se encontra na forma de hipopótamo ........................................33
Figura 2. Escaravelho em Karnak ......................................................................................................37
Figura 3. Escaravelho hoje no British Museum ..................................................................................37
Figura 4. Incisões. .............................................................................................................................46
Figura 5. Instrumentos utilizados no ritual ........................................................................................49
Figura 6. Tumba de Tutankhamun, KV62, Cerimônia de Abertura da Boca. ........................................50
Figura 7. Vinheta do Capítulo 23 do Livro dos Mortos. ......................................................................51
Figura 8. Frente do caixão voltada para leste. ....................................................................................60
Figura 9. A parte traseira do caixão é voltada para oeste. ...................................................................60
Figura 10. A cabeça é voltada para o norte. Figura 11. Os pés são voltados para o sul. .60
Figura 12. A tampa é voltada para o céu. ...........................................................................................61
Figura 13. O fundo é voltado para a terra. ..........................................................................................61
Figura 14. Cena do Tribunal de Osíris. ...............................................................................................67
Figura 15. Capítulo 30.......................................................................................................................69
Figura 16. Vinheta do Capítulo 30 . ...................................................................................................73
Figura 17. Vinheta do Capítulo 30b. ..................................................................................................76
Figura 18. Scarabeus sacer ................................................................................................................98
Figura 19. Scarabeus sacer fêmea e a esfera de excrementos ............................................................99
Figura 20. Ciclo de vida ...................................................................................................................100
Figura 21 caixão de escaravelho ......................................................................................................103
Figura 22. Tipologia feita por W.M.Flinders Petrie ...........................................................................104
Figura 23. Escaravelho do Médio Império .......................................................................................106
Figura 24. Escaravelho do 2° Período Intermediário ........................................................................106
Figura 25. Escaravelho do 2° Período Intermediário Figura 26. Escaravelho do período de
dominação dos Hicsos .....................................................................................................................106
Figura 27. Escaravelho do Novo Império .........................................................................................107
Figura 28. Escaravelho com o nome do Faraó Unas .........................................................................108
Figura 29. Escaravelho com nome de um Rei do período de dominação do Hicsos ..........................108
Figura 30. Jarro contendo o selo em sua tampa...............................................................................110
Figura 31. Escaravelho-selo .............................................................................................................110
Figura 32. Escaravelho com o relato do casamento do Faraó com a Rainha Tiy................................112
Figura 33. Escaraboide ....................................................................................................................115
Figura 34. Escaraboide ....................................................................................................................115
Figura 35. Molde para escaravelho..................................................................................................117
Figura 36. Sha-Amun-en-su .............................................................................................................133
RESUMO ........................................................................................................................................................ 9
ABSTRACT ...................................................................................................................................................10
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................18
CAPÍTULO 1. RELIGIÃO ...........................................................................................................................22
1.1. TEORIA E APLICAÇÃO NO CONTEXTO RELIGIOSO EGÍPCIO .........................................................................22
1.2. A FORMAÇÃO DO MUNDO ......................................................................................................................27
1.3 MITOS....................................................................................................................................................30
1.4 REPRESENTAÇÃO DIVINA........................................................................................................................34
1.5 KHEPRI ..................................................................................................................................................34
1.6. OSÍRIS ...................................................................................................................................................38
CAPÍTULO 2. CONTEXTO FUNERÁRIO .................................................................................................40
2.1. MUMIFICAÇÃO: SOMENTE PRESERVAÇÃO DO CORPO? ..............................................................................40
2.2. PROCESSOS DE MUMIFICAÇÃO ...............................................................................................................43
2.3 CERIMÔNIA DE ABERTURA DA BOCA .......................................................................................................47
2.4 AMULETOS FUNERÁRIOS ........................................................................................................................52
2.4.1 O pilar-djed ....................................................................................................................................53
2.4.2 Tit ..................................................................................................................................................54
2.4.3 Wadj ..............................................................................................................................................54
2.4.4 O olho-udjat ...................................................................................................................................54
2.4.5 Os quatro filhos de Hórus ...............................................................................................................55
CAPÍTULO 3. LITERATURA FUNERÁRIA ..............................................................................................56
3.1. TEXTO DAS PIRÂMIDES ..........................................................................................................................56
3.2. TEXTO DOS CAIXÕES .............................................................................................................................59
3.3. LIVRO DOS MORTOS ..............................................................................................................................63
3.4. CAPÍTULO 30 .........................................................................................................................................65
3.4.1. Contextualização ...........................................................................................................................65
3.4.2. O Capítulo 30 ...............................................................................................................................68
3.4.3. O Capítulo 30a ..............................................................................................................................74
3.4.4. O Capítulo 30b ..............................................................................................................................76
CAPÍTULO 4. O CORAÇÃO .......................................................................................................................81
4.1. BREVE HISTÓRICO .................................................................................................................................81
4.2. O CORAÇÃO HATI E IB‘ ..............................................................................................................................82
4.3. TERMINOLOGIA .....................................................................................................................................83
4.4. O CORAÇÃO NOS TEXTOS RELIGIOSO-FUNERÁRIO ....................................................................................86
4.5. AMULETO DO CORAÇÃO .........................................................................................................................95
CAPÍTULO 5. ESCARAVELHOS ...............................................................................................................97
5.1. MORFOLOGIA BIOLÓGICA ......................................................................................................................97
5.2. PERÍODO DE UTILIZAÇÃO ..................................................................................................................... 100
5.3 TIPOLOGIAS ......................................................................................................................................... 103
5.4. ESCARAVELHOS COM NOMES REAIS ...................................................................................................... 107
5.5. ESCARAVELHOS SELOS ........................................................................................................................ 109
5.6. ESCARAVELHOS PARTICULARES ........................................................................................................... 111
5.7. ESCARAVELHOS COMEMORATIVOS ....................................................................................................... 111
5.8. ESCARAVELHOS COMO AMULETOS ....................................................................................................... 113
5.9. ESCARAVELHOS FORA DO EGITO .......................................................................................................... 114
5.10. ESCARABÓIDE ................................................................................................................................... 115
CAPÍTULO 6. MATERIAIS E MANUFATURA ....................................................................................... 116
6.1. MATERIAIS.......................................................................................................................................... 116
6.1.1. Faiança ....................................................................................................................................... 116
6.1.2. Rochas ........................................................................................................................................ 118
6.1.2.1. Ardósia ..................................................................................................................................... 119
6.1.2.2. Arenito ..................................................................................................................................... 120
6.1.2.3. Amazonita ou Feldspato Verde .................................................................................................. 120
6.1.2.4. Calcário ................................................................................................................................... 120
6.1.2.5.Cornalina .................................................................................................................................. 121
6.1.2.6. Diorito...................................................................................................................................... 121
6.1.2.7. Esteatita ................................................................................................................................... 121
6.1.2.8. Granito ..................................................................................................................................... 122
6.1.2.9. Grauvaque ................................................................................................................................ 122
6.1.2.10. Jaspe ...................................................................................................................................... 123
6.1.2.11. Lápis-Lazúli ............................................................................................................................ 123
6.1.2.12. Mármore ................................................................................................................................ 123
6.1.2.13.Quartzito ................................................................................................................................. 124
6.1.2.14. Serpentina .............................................................................................................................. 124
6.1.2.15. Xisto ....................................................................................................................................... 125
6.1.3. OUTROS MATERIAIS .......................................................................................................................... 125
CAPÍTULO 7. ESCARAVELHO-CORAÇÃO........................................................................................... 127
7.1. PERÍODO DE UTILIZAÇÃO ..................................................................................................................... 129
7.2. FUNÇÕES E SIMBOLOGIA ...................................................................................................................... 131
7.3. POSIÇÃO NA MÚMIA ............................................................................................................................. 132
7.5. TEXTOS ............................................................................................................................................... 134
7.6. VARIAÇÕES ......................................................................................................................................... 135
7.6.1. O pássaro Benu ........................................................................................................................... 135
7.6.2. Escaravelhos com cabeça humana ............................................................................................... 135
7.6.3. Ouro e sua representação ............................................................................................................ 136
7.6.4. Pilonos ........................................................................................................................................ 136
7.6.5 Escaravelho-coração e amuleto do coração .................................................................................. 137
7.7 MÚMIAS DE ANIMAIS ............................................................................................................................ 138
CONCLUSÕES ........................................................................................................................................... 139
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 141
VOLUME II ................................................................................................................................................ 146
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 150
METODOLOGIA ............................................................................................................................................. 151
CATÁLOGO ............................................................................................................................................... 153
18
Introdução
O escaravelho-coração é tido como um dos amuletos funerários mais importantes que
acompanhavam a múmia. Tal fato se dava porque a função desse amuleto era de não deixar
que o coração se levantasse contra seu dono no momento da pesagem no Tribunal de Osíris.
Destarte, o coração era tido como órgão mais importante do corpo humano, porque nele se
encontrava a sabedoria, os desejos, a dor, a raiva, ou seja, todos os sentimentos.
Os amuletos de escaravelho foram utilizados pelos egípcios desde o Período pré-
dinástico, estes eram vistos como a simbologia do deus solar Khepri ( ) que significava
ressurreição e renascimento, também identificado como o sol nascente. Ele pode ser
representado como um escaravelho com o disco solar ou como um homem com cabeça de
escaravelho. Por que ressurreição e renascimento? Porque os egípcios perceberam que esse
inseto fazia uma bola de excrementos e a arrastava pelo deserto com o intuito de enterrá-la.
Após 28 dias um novo escaravelho nascia. Fato que os levou a crer que os escaravelhos
renasciam. Dessa forma, os amuletos de escaravelhos eram utilizados nos caixões, nas
múmias e nas inscrições das tumbas egípcias para que garantissem o renascimento do morto.
Os amuletos de escaravelhos podem ser o de uso cotidiano que tem como simbologia
principal o renascimento, o deus solar. Os escaravelhos funerários como, o escaravelho-alado
que aparece no Novo Império representa Khepri como o sol nascente, ligado ao ciclo solar do
nascimento até a morte, suas asas eram uma referência aos deuses do céu e seus poderes.
Pequenos amuletos de escaravelhos são colocados nas bandagens das múmias a partir do
Novo Império.
O escaravelho-coração tema central dessa dissertação era colocado sobre o peito da
múmia, em meio às bandagens durante seu embalsamento. A partir da 21ª dinastia ele
aparece dentro da caixa torácica. Todavia anterior a esse período caso ocorresse um descuido
19
do embalsamador e destruísse o coração o amuleto era colocado em seu lugar. Sua função era
não permitir que o coração do morto se levantasse contra seu dono durante o Tribunal de
Osíris. Esse Tribunal consistia no local onde o coração era pesado na balança da verdade e da
justiça, tendo como contrapeso a deusa Maat, representada por uma pena. Caso o coração
fosse mais pesado que a pena, ele era devorado por Ammit (deusa híbrida de crocodilo-
hipopótamo-leão), que espreitava ao lado da balança. Caso o coração do morto fosse
devorado, seu nome sumiria por toda a eternidade. Isso para os egípcios antigos seria a morte
realmente, momento em que a pessoa era completamente esquecida. Em contrapartida, se o
coração fosse menos pesado ou de peso igual ao da pena, o morto teria o direito de ir para o
Mundo Inferior. Contudo, para que o coração tivesse esse peso, contava-se com a ajuda do
escaravelho-coração que possuía em sua base o Capítulo 30b do Livro dos Mortos. Todavia o
amuleto poderia conter outros textos que indicassem esse desejo do morto em manter o seu
coração leve.
O Capítulo 30b não aparece completo nos escaravelhos-coração por uma questão de
espaço. Os artesãos colocavam os principais trechos, aqueles que exaltariam o coração para
que esse não se opusesse ao seu dono.
A discussão principal da dissertação se foca nas funções, simbologia e posicionamento
na múmia do escaravelho-coração. Isto posto indica que não será analisado somente o artefato
em si, porém todos os valores agregados a este. Para um entendimento fluido desse amuleto a
dissertação foi dividida em dois volumes. No primeiro volume têm os contextos religiosos,
funerários divididos em sete capítulos.
O primeiro capítulo traz uma contextualização da religião egípcia com base nos
principais deuses a que se remete a simbologia do escaravelho-coração, que são Khepri e
Osíris. O deus Khepri por ser o deus solar representado como escaravelho e símbolo do
20
renascimento e, Osíris o principal deus do panteão funerário e Grande Juiz no Tribunal da
pesagem do coração.
Ao se tratar do contexto funerário é de grande valia mostrar os processos de
mumificação e alguns amuletos que se encontravam nas bandagens. O que ocorre no segundo
capítulo. Seguindo essa linha, os textos funerários que poderiam ser escritos tanto em paredes
de tumbas, como em caixões e papiros são os temas do terceiro capítulo.
O quarto capítulo trata do coração, o principal órgão do corpo humano com suas
próprias vontades que eram contidas pelo o escaravelho-coração. Havia um amuleto funerário
próprio para o órgão que o amuleto do coração, esse tinha como objetivo proteger o coração
do morto ao longo de sua jornada rumo ao Mundo Inferior.
Após todo o trabalho de contextualização religiosa e funerária será feita a explanação
sobre o escaravelho na natureza, aos olhares egípcios e como esses se tornam objetos de uso
cotidiano e funerário.
Os capítulos seis e sete são mais interligados com o segundo volume da dissertação,
porque tratarão dos materiais e da manufatura dos escaravelhos-coração, no caso os materiais
que aparecem nas peças de referência.
O capítulo sete é a discussão bibliográfica sobre as funções do escaravelho-coração.
Em estudos clássicos de Egiptologia, Petrie (1917) e Ward (1902) por serem mais antigos
deixam de citar muitos pontos importantes sobre o escaravelho-coração. Por outro lado, eles
inseriram a discussão de quando começou a ser usado e sobre qual era o material habitual em
sua feitura. Nas publicações de Quirke (1992), Andrews (1996), Söderberg (1991), Gardiner
(1961) e Erman (1952) a conceitualização encontrada é a dos autores citados anteriormente
em seus trabalhos sem acrescentar nenhum item novo.
21
O segundo volume é composto por setenta e cinco peças de referência utilizadas para a
análise desse amuleto. Ao ser citadas no texto a numeração correspondente a encontrada no
segundo volume estará entre [ ].
22
Capítulo 1. Religião
1.1. Teoria e aplicação no contexto religioso egípcio
A religião egípcia antiga possui um extenso panteão de divindades, mitos, hinos e
rituais. Uma breve demonstração de teoria e forma que engloba a questão da religiosidade faz-
se necessária. A teoria arqueológica escolhida é o cognitivismo e os motivos que levaram a
essa opção serão expostos a seguir.
A Egiptologia tem uma de suas bases na interpretação dos textos encontrados em
papiros, tumbas, templos, equipamentos funerários e amuletos. Por conseguinte, qualquer
estudo em Egiptologia estará baseado em textos, assim como a presente dissertação, que tem
como base o Livro dos Mortos, mais precisamente o Capítulo 30b. O próprio amuleto aqui
abordado, o escaravelho-coração, exibe inscrição em sua base e, alguns casos, nele inteiro.
Não há como elaborar esse estudo sem o uso da filologia, mas a cognição por trás da
fabricação e da simbologia de cada amuleto é igualmente importante.
Freki Hassan1, professor da University College of London, em sua conferência sobre
teoria em Egiptologia no X Congresso Internacional de Egiptologia2 propõe uma Egiptologia
mais antropológica, com ênfase nos processos, princípios e agências, o que levaria a um
conhecimento mais aprofundado das transformações culturais ocorridas no período faraônico.
Um estudo mais holístico volta-se para a paisagem, porque por meio dela se consegue
ver as mudanças geográficas, do leito dos rios, da agricultura, do modo de vida das pessoas.
Para Hassan, a cognição é um meio de se elaborar esse estudo haja vista que atos e artefatos
estão ligados, ou seja, o cérebro é a conexão com a mão.
1 Hasan Fekri, Theorizing ancient Egypt: towards a new paradigm, p. 88, ocorrido em maio de 2008 na cidade de Rhodes, na
Grécia.
2 Os autores e seus resumos podem ser visitados no <http://www.rhodes.aegean.gr/tms/congress%20site/Speakers.pdf>
Acesso em junho de 2008.
23
A arqueologia cognitiva, ou a arqueologia da mente humana, pode ser reconhecida
como um tema da Nova Arqueologia dos anos 60 e 70, mas não ganhou uma identidade
distinta até o começo dos 90 (SHAW & JAMENSON, 2002). Ela aparece como uma resposta
ao materialismo proposto pela Nova Arqueologia. Isso ocorre porque essa linha de
pensamento processualista se restringe à economia e tecnologia e, com isso, os sistemas de
crenças e os simbolismos não foram estudados. Para os autores que iniciaram as pesquisas em
arqueologia cognitiva são as ações e não o pensamento que fica registrado no material
arqueológico, portanto não negligencia o papel do indivíduo. Destarte, a arqueologia
cognitiva apesar de possuir um viés processualista está interligada ao pós-processualismo,
pois ela pretende saber como trabalhou a mente e essa linha de pesquisa espera desvendar os
símbolos3. Como o presente estudo aborda simbologia e funcionalidade do escaravelho-
coração, o cognitivismo se encaixa perfeitamente nessa linha de raciocínio, porque o foco está
na habilidade humana de construir e usar os símbolos. Para Ian Hodder (1992) os itens
materiais não são simplesmente categorias de reflexão da mente, porque os indivíduos e as
sociedades constroem sua própria realidade e a cultura material tem um lugar integral nessa
construção. A arqueologia é uma disciplina histórica com integração ativa de itens culturais
nas práticas diárias. Essa afirmação de Hodder pode ser vista no cotidiano egípcio com
relação às construções das tumbas. Os escaravelhos são uma representação clara da cultura na
vida cotidiana. Eles representavam o deus Khepri, eram símbolos do renascimento e também
foram utilizados diariamente em forma de anéis para lacrar vasos de comida e bebidas. A
diferenciação entre o escaravelho de uso cotidiano e o funerário se dava em sua forma,
tamanho, matéria-prima, manufatura e utilização final.
3 Anotações de aula do curso de teoria arqueológica ministrada pela professora Dra. Tânia Andrade Lima no primeiro
semestre de 2008, no programa de mestrado em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ
24
Para Flannery e Marcus (1998) a arqueologia cognitiva é o estudo de todos os aspectos
da cultura antiga que são produtos da mente humana: a percepção, descrição e classificação
do universo (cosmologia), a natureza do supernatural (religião), princípios, filosofias, éticas e
valores que governam a sociedade humana (ideologia), valores humanos transformados em
arte (iconografia) e todas as outras formas de comportamento intelectual e simbólico humano
que sobrevive no registro arqueológico.
É importante ressaltar o que cada um desses pontos significa para aqueles autores. A
cosmologia é uma teoria ou filosofia da origem e estrutura geral do universo, seus
componentes, elementos, leis, especialmente aquelas estruturas relacionadas com a variável
espaço, tempo e casualidade. A cosmologia egípcia influenciava nos processos de subsistência
do povo, pois o próprio Mundo era constituído de deuses, onde, por exemplo, deus Geb
representa a terra, sua mulher Nut o céu e entre eles Shu, que era o deus do ar.
A religião pode ser definida como um conjunto específico de crenças em um poder ou
poderes divino ou super-humano, para ser obedecido e venerado como o(s) criador (es) e/ou
regra(s) do universo. Geralmente, a religião envolve uma filosofia e um código de ética,
ambos relacionados com a busca por valores de uma vida ideal. Ela é a consciência de um
sentimento, a qual gera no ser humano um sentimento de dependência e inferioridade
(SALES, 1999, p.13). As circunstâncias políticas mostravam que em determinadas épocas os
deuses de certas regiões eram mais adorados que outros, resultando em uma importância a
apontado nomo. Portanto, a religião era fundamentalmente a adoração ao culto a determinado
deus, esse reconhecido e aclamado como de um determinado local. O culto local era o
princípio, o elo de unidade da religião (SALES, 1999, p.14).
A ideologia pode ser definida como um corpo de doutrinas, mitos e simbolismos de
um movimento social, instituição, classe ou grupo de indivíduos, com referência a algum
25
plano político ou cultural, com estratégias para colocar a doutrina em operação. A ideologia
egípcia não era estática e imutável, ela se adequava às inovações e mudanças da sociedade.
A iconografia se refere ao fazer de uma imagem por entalhe ou desenho. Em casos nos
quais se pretende saber sobre cosmologia, religião e ideologia a iconografia se faz presente
em uma análise científica. Ao se levar em consideração as colocações de Flannery e Marcus,
que remete à iconografia que, por exemplo, está relatada em tumbas como na tumba do faraó
Thutmés III, governante da 18ª dinastia, no Vale dos Reis, inscrições com capítulos do Livro
dos Mortos onde está a vinheta deles, por mim estudados, e suas rubricas. Invocações ao deus
Kheper também podem ser vistas em templos, tumbas e papiros. Os templos são ricos em
relatos sobre a religião, cultura e cotidiano egípcios e, portanto, não é possível elaborar um
estudo dessa sociedade sem olhar atentamente para os relatos iconográficos. Na iconografia
podemos analisar o pensamento e as crenças e também como eles mudam no decorrer das
dinastias. Os escaravelhos-coração são um ótimo exemplo disso, já que com o passar dos anos
a sua função e simbologia não mudam, contanto o material utilizado em sua fabricação e os
estilos de decoração se modifica. Afinal, a arqueologia cognitiva estuda os caminhos do
pensamento nas sociedades do passado, com base em seus remanescentes (SHAW &
JAMENSON, 2002).
Para se estudar a arqueologia dos períodos históricos faz-se uso dos textos disponíveis,
o que acontece com que estuda Egiptologia. Na prática, isso não acontece de maneira linear,
afinal os escritos são considerados palimpsesto, ou seja, ele pode não passar de uma série de
resquícios acumulados ao longo dos séculos. Faz-se necessário analisar os contextos tanto
arqueológicos como textuais.
Complementando, para se pesquisar uma arqueologia da mente é necessária estudar
religião. Porque ela trabalha com os símbolos, com o sobrenatural (RENFREW, 1994) O
26
estudo do escaravelho-coração na cultura egípcia do período faraônico requer conhecimentos
tanto no campo religioso, quanto simbólico e até mesmo econômico haja vista que as rochas
utilizadas para a fabricação desses amuletos diversificam ao longo das dinastias.
Uma síntese dessa discussão pode ser entendida por meio das palavras de Claude
Traunecker
No plano teórico, o ritual egípcio funda-se em duas noções: por um lado a polissemia, a pluralidade dos significados das imagens, coisas e objetos, e
por outro, o caráter performático da imagem e do verbo. Diversos “objetos”
podem ser os pontos de emergência de uma mesma força, de uma “coisa” saída do imaginário. (p.25)
Para o autor, o ritual dependerá sempre do real, senão esse não se realizará. O
imaginário está na estátua divina, onde ele está definido, nomeado e personificado.
No Antigo Império, os faraós eram os próprios deuses na terra. Contudo, no Novo
Império eles eram os intermediadores dessa relação entre homem e natureza, homem e o
cosmos. Os faraós eram uma personificação divina, Hórus habitando a terra, somente ele
poderia se comunicar com os deuses, o que ocorria após a coroação. A sacralização aparecia
nas regalias utilizadas pelo governante, como cetros, coroas e vestimentas. Destarte, o
governante não poderia realizar todos os rituais e cultos e, para isso, ele nomeava os
sacerdotes que fariam algumas de suas funções nos templos. Os sacerdotes ou vizires
poderiam realizar essas funções de culto nos templos porque eles eram tidos como a
personificação do faraó. Esses também desempenhavam funções administrativas, como a
supervisão de construções de tumbas e templos e distribuição de bens. Apesar de ser um cargo
apresentado como hereditário, eles só assumiriam tal posto se fossem nomeados pelo faraó.
Na Teologia Menfita, a teoria de sucessão de governantes possui bases cosmológicas,
mostra a dualidade governamental centrada em Mênfis, realizada em um plano divino e o
27
estabelecimento da sociedade por Menés, como parte de uma ordem cósmica (FRANKFORT,
1948, p.33). Como o faraó é um deus na terra e ele é Hórus, a sua sucessão se faz legitimada
em um plano cosmológico porque esse faz os rituais para seu antecessor Osíris e com isso
garante, assim como Hórus, que a legitimação de seu trono seja baseada em uma sucessão de
pai para filho, já que Hórus era o primogênito.
O faraó quando divinizado poderia ser cultuado de duas maneiras. Enquanto vivo as
motivações que levavam a esse culto eram político-religiosas e após a sua morte era a
memória que era cultuada.
A população só poderia adentrar em algumas salas dos templos durante festividades
especiais.
1.2. A Formação do Mundo
Os egípcios antigos precisavam viver de acordo com Maat— equilíbrio, harmonia,
justiça, respeito e verdade— caso isso não acontecesse haveria o estabelecimento do caos.
Com isso, a manutenção da ordem do estado egípcio se dava por conta da manutenção do
divino. O caos aqui era a não ordem, o domínio do deus Seth. Para Jan Assman (2006, p.34)
esse conceito é chamado de religião invisível, onde o princípio da harmonia universal que se
manifesta nos cosmos como ordem e na vida dos seres humanos como justiça. Esses conceitos
servem para expressar o significado total da ordem no maior plano de abstração. O rei é
responsável por manter as regras de Maat na vida terrena, ou seja, sem ele haveria o caos.
Cada centro religioso importante localizado ao longo do território egípcio possuía a
sua cosmogonia, com seu deus criador e seus mitos. Em alguns casos, essas eram conflitantes.
Muitos de seus deuses estão relacionados a fatores ambientais, tanto palpáveis como
abstratos. No caso, deuses como Rê, Shu, Tefnut, Geb, Nut e Kuk e Kauket (escuridão).
Contudo, antes de ocorrer a criação, foi preciso a presença de três poderes, que eram a energia
28
necessária para essa concepção: Hu (palavra divina), Heka (magia ou energia divina) e Sia
(conhecimento divino) (SHAFER,2002).
Os deuses egípcios podem ser classificados em nacionais, aqueles que possuíam a
mesma simbologia e era cultuado em todo o território, e os locais, que eram de cada nomo.
Os egípcios antigos agrupavam seus deuses em enéades, nove deuses; ogdóade, oito
deuses e trindades, geralmente pai, mãe e filho. Esse agrupamento, assim como o ato dos
deuses casarem, servia para formar a essência mitológica da religião. Essa divisão seria uma
maneira de segmentar o imaginário e conceber uma organização mais próxima de sua lógica
palpável.
A enéade Heliopolitana era formada pelos seguintes deuses que fazem parte do mito
de criação do Mundo de Heliópolis: Atum, Shu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Isis, Seth e Néftis.
De acordo com diversos textos até hoje encontrados há várias versões de como o Mundo foi
criado. Pode-se dizer que a mais comum é aquela em que o Grande deus Atum surge do Nun,
o Oceano Primordial, e, após um ato de masturbação, ejacula e nesse momento nascem Shu
(que representa o ar) e Tefnut (a umidade). Shu e Tefnut geram Geb (a terra) e Nut (o céu). Os
deuses Geb e Nut geram dois filhos e duas filhas Seth, Osíris, Ísis e Néftis. O céu e a terra são
separados porque eles se casaram sem a aprovação do deus Rê e, por ordem desse deus, eles
nunca mais se encostariam. No entanto, à noite eles se encontravam, criando assim as trevas.
O deus Shu, quando Rê abandona a vida terrena, assume seu lugar frente ao governo egípcio
e, após preparar a paz e estabilidade, abdica de seu cargo em favor de seu filho Geb. A deusa
Nut era também considerada a mãe do Sol, aquela que todos os dias pela manhã o vomitava e
depois o engolia como forma de proteção.
29
Atum não era somente um deus/conceito (TRAUNECKER, 1995, p.101), mas era uma
divindade histórica que possuía seu centro de culto em Heliópolis. Ele entrega a Osíris o
domínio do território egípcio, tanto o real quanto o abstrato.
O deus Seth é considerado desde seu nascimento como aquele que propaga a não
ordem. Em alguns momentos do período faraônico, a humanidade era dividida entre aqueles
que seguiam Hórus (o bem) e Seth (o mal).
A Teologia Menfita (c.3000 a.C.) apresenta textos religiosos para Menes
simbolicamente tido como faraó da 1ª dinastia. Algumas doutrinas dessa Teologia aparecem
como novas e foram aceitas no desenvolvimento da história egípcia. Outras aparentam estar
baseadas nas tradições mais antigas egípcias e africanas (FRANKFORT, 1948, p.24). O texto
é uma cosmologia que remete à criação e mostra que a unificação das Duas Terras se deu por
Menés e que elas não poderiam mais ser dissociadas. Contudo, o tema principal é o
julgamento de Geb em relação a Hórus e Seth, finalizando com o modo pelo qual Osíris se
torna o governante do Mundo Inferior. Ptah que possuía seu centro de culto em Mênfis foi
proclamado como o Criador de Tudo e ele era híbrido, combinado com outros deuses,
dependendo do contexto.
O texto sobre a Teologia Menfita encontra-se está bastante danificado, mas com partes
legíveis e em uma dessas o deus-criador Atum proclama que ele fora criado por Ptah na forma
de Ptah-Ta-Tjenen, que criara também todo o universo. A criação consistia em uma colina
primordial acima das águas do caos (Num) e Ptah surge nessa colina de onde ele cria todo o
resto. Os deuses são colocados como manifestações de Ptah. Tudo o que hoje existe é criação
do coração de Ptah que transformava seus desejos em palpável com a ajuda de sua língua.
Nesse processo de criação, vieram ao Mundo um deus após o outro e por meio deles foi
criado o universo, as criaturas vivas, a justiça e as artes. Após a criação, Ptah descansou. Esse
30
deus também é tido como aquele que estava ao lado de Atum na criação da enéade
Heliopolitana.
A construção do palácio em Mênfis, no local onde Osíris fora enterrado, coloca esse
local como ponto de toda a autoridade do território estabelecida por Menés. Essa região
possuía um significado para o sustento econômico e produtivo do Egito e é explicado pela
presença do corpo de Osíris ali sepultado.
1.3 Mitos
Os deuses não eram seres perfeitos e imutáveis. A aparência de um deus é inconstante
e o seu nome não bastava para exprimir sua natureza. Ninguém poderia saber o nome secreto
dos deuses porque aquele que detivesse esse conhecimento poderia utilizá-lo contra o deus e
tornar-se mais poderoso. Todavia, invocar um deus contribuía para sua existência e
subsistência. Eles envelheciam, padeciam de doenças e até morriam. Entretanto, esse tipo de
representação é amplamente utilizado a partir do Período Raméssida.
O mito do Nome Verdadeiro de Rê é uma clássica ilustração da imperfeição desses
deuses, assim como mostra a importância dos nomes dos deuses. O mito consistia no ponto
em que as pessoas e as divindades estavam ligadas ao deus criador identificado como Rê. Ele
aparecia sob diversas formas e era conhecido por uma infinidade de nomes, mas nenhum
desses era o seu verdadeiro nome. O verdadeiro nome desse deus ficava guardado em seu
estômago para que ninguém pudesse usá-lo contra ele. Ísis conhecia tudo na terra e no divino,
mas ela não sabia o nome de Rê e foi a única a desafiá-lo. A oportunidade para ela descobrir
se deu quando o deus, já aparentando uma idade muito avançada, começa a babar. Com isso,
ela pega um pouco de sua saliva e a mistura com terra moldando-a como uma cobra. Ela leva
a cobra para um local onde Rê passava todos os dias, ele é mordido pela cobra e o veneno
queima como fogo, fazendo o deus gritar e perturbando os outros deuses. No começo, ele não
31
conseguia falar porque o veneno dominava seu corpo como uma inundação, mas depois ele
explica aos seus seguidores que fora picado por uma criatura que não tivera sido criada por
ele. O deus pede ajuda às outras entidades divinas e Ísis promete ao deus que destruiria essa
criatura com seus poderes mágicos. Contudo, o deus não contava com um pedido de Ísis: ela
diz que o ajudará se ele disser seu nome. Rê se descreve como aquele que criou o mundo
físico, que causa a inundação do Nilo, que dividiu o ano em estações e termina dizendo que é
chamado de Khepri no amanhecer, Rê ao meio dia e Atum no início da noite. Mas, nenhum
desses é seu verdadeiro nome e a dor continua. Ísis insiste que somente poderá ajudar se ele
disser seu verdadeiro nome. A dor aumenta a cada instante e o deus não resiste e sussurra seu
nome no ouvido da deusa. Ele diz que quando chegar o momento oportuno que ela diga a
Hórus o nome. A deusa então profere palavras mágicas e o veneno e a dor cessam.
Eventualmente, Hórus, seu filho e governante do Egito, seria, juntamente com ela, os únicos a
saberem o nome de Rê (PINCH, 2003, p.70).
Para governar o Egito fora escolhido Osíris, que reinaria ao lado de sua irmã e esposa
Ísis. Seu irmão Seth não aprovou que Osíris assumisse o trono e, juntamente com seus
seguidores, preparou uma armadilha. O deus da não ordem convidou seu irmão para um jantar
e em certo momento, como uma brincadeira, ele convida todos para se deitarem em um
caixão. Feito especialmente do tamanho de Osíris, ao se deitar ele foi o único que coube e
rapidamente o caixão foi lacrado e escondido. Ísis, ao perceber que seu marido sumira, sai a
sua procura e o encontra, mas Seth também estava lá. Então, Seth pega o caixão e o parte em
vários pedaços. Há textos que dizem que esse foi partido em 42 pedaços e cada um escondido
em um nomo. Jan Assmann diz que fora dividido em 14 e que as águas carregaram suas partes
por todo o território e, nos locais onde pararam, foram centros de rituais por todo o período
faraônico (ASSMANN, 1989, p.138). A amada esposa então parte em busca de todos os
pedaços de seu marido, os encontra, junta e mumifica. Essa busca pelos pedaços do deus e sua
32
posterior reunião são os precedentes do ato de mumificar. Contudo, ela não encontra o falo
porque esse havia sido arremessado aos crocodilos do Nilo. Ela então se transforma em uma
ave e em um ato mágico copula com seu marido mumificado e engravida de Hórus. Na
Teologia Menfita, Ísis aparece obedecendo Hórus e ela pratica esses atos em benefício de
Osíris porque Hórus pede que assim seja feito. O que está em comum acordo com o Texto das
Pirâmides onde Hórus, o rei vivo, faz atos benevolentes a Osíris, o deus e rei morto.
A Grande Contenda é um dos mitos egípcios mais controversos. Seus escritos datam
do Novo Império e é a narrativa mais longa já encontrada. Nesse mito, Hórus e Seth se
transformam em hipopótamos e lutam para ver quem consegue ficar mais tempo embaixo
d‟água. Depois eles competem em barcos, Hórus faz o seu de madeira, mas o pinta como
rocha e, em compensação Seth faz um totalmente de rocha que afunda.
Tanto Osíris quanto Hórus sempre eram atacados por Seth e seus seguidores. O olho
de Hórus foi arrancado por Seth e os testículos do deus da não ordem arrancados por Hórus.
Thoth recolocou o olho danificado e Hórus venceu tornando-se rei do Egito e reconciliando-se
com Seth. Hórus fez uma série de rituais que consagraram Osíris como o rei do Mundo
Inferior. Esse ritual era encenado nos lagos dos templos e os participantes eram aqueles que
normalmente seguiam Seth e Hórus.
A batalha entre esses dois deuses causou uma perda de harmonia no cosmos e com
isso foi necessário fazer um Tribunal Divino encabeçado por Geb, mas com a autoridade
máxima do deus-criador. O Tribunal ocorreu em Heliópolis. Osíris estaria presente, com o seu
corpo tendo que ser seguro por Ísis e Néftis. Ele era tido como virtuoso. Seth tenta justificar
sua violência com o irmão, mas falha, o que cede espaço para Hórus pedir a legitimação de
sua posição como sucessor ao trono do Egito. Em algumas narrativas, a punição de Seth seria
carregar o corpo de Osíris até o seu local de habitação eterna. Os deuses decidem dividir o
33
Egito, onde Hórus governaria os vales férteis do Nilo, a terra negra, e Seth a área desértica, a
terra vermelha. Há também a iconografia e a literatura que apresentam Seth como triunfante,
governando o território egípcio. Isso ocorre no período em que esse deus está nacionalizado e
sua adoração se faz presente em muitas regiões.
No templo de Edfu há a iconografia de uma das versões finais da disputa, que é aquela
em que Hórus mata Seth, que está sob a forma de um hipopótamo, como ilustra a Figura 1.
Figura 1. Hórus suprimindo Seth que se encontra na forma de hipopótamo4
A literatura mostra que o conflito entre Hórus e Seth termina com um coro de rezas
enquanto Hórus é coroado. No entanto, antes ou durante essa cerimônia o deus agora rei
aparece fazendo uma série de rituais funerários para seu pai, como a Cerimônia de Abertura
da Boca e a elevação do pilar-djed. Esses atos caracterizam os rituais funerários que todos os
4 Templo de Edfu, fotografia feita pela autora em 16/08/2008.
34
novos reis precisavam fazer para aquele que estava morto, porque assim se confirmaria a
sucessão.
1.4 Representação Divina
Esses seres divinos eram majoritariamente antropomorfos, como crianças de mais ou
menos dois anos. Quando representados como adultos sempre no auge de sua plenitude e,
alguns híbridos com cabeças de animais ou totalmente animalescos e expressões humanas.
Um deus não exibe aparência única, depende do contexto ao qual ele se insere no momento. A
forma híbrida mais comum é o corpo de um ser humano e a cabeça de um animal.
As mãos dos deuses raramente estavam vazias, poderiam conter a cruz ankh ou o
cetro-uas, assim como adereços que especificassem a sua natureza. Na cabeça possuíam
coroas e hieróglifos que remetiam aos seus nomes.
Os deuses que serão tratados com ênfase ao longo deste trabalho são Khepri e Osíris,
um por ser o símbolo dos escaravelhos e o outro por ser o principal deus funerário.
1.5 Khepri
É uma das três manifestações do deus solar Rê, o sol nascente. Tema que pode ser
vistos nos Hinos ao deus-sol. O Hino ao deus-sol, mostrado a seguir, foi retirado da estela dos
irmãos Suti e Hor que hoje está no British Museum (BM 826). A tradução para o inglês foi
feita por Miriam Lichteim (1976, p. 86-88) e para o português pela autora desta dissertação.
São dois hinos nessa estela, na qual aparece a menção a Khepri. Os trechos relacionados ao
deus são, no primeiro hino,
Saudações a você, Rê, perfeito a cada dia Que nasce ao amanhecer sem falhar,
Khepri que fatiga com o trabalho duro!
Seus raios estão na face, jamais conhecida
35
No segundo hino ele é tido como aquele do nascimento distinto,
Khepri do nascimento distinto,
Que eleva sua beleza no corpo de Nut,
Que ilumina as Duas Terras com seu disco.
Seu nome deriva da palavra Kheper que significa “tornar-se” ou “se transformar”, já
Kheperu significa “mudanças” ou “transformações” e Khepri é “aquele que se criou”
(PINCH, 2002). Por ser chamado como aquele que se criou, ele era identificado com o deus
criador Atum.
No Texto das Pirâmides5, Khepri já aparece como um dos nomes do deus Sol. Ele é
visto como “aquele que brilha” ou “aquele que está em Nun”. Ele estava ligado ao poder
criativo do coração e identificado com o deus Sol jovem, aquele que começa a criação por
nascer das águas primordiais na flor de lótus primordial. Em relação à sua jornada pelas horas
da noite, ele renasce todas as manhãs do corpo da deusa do céu, Nut. No mito conhecido
como O Nome Verdadeiro de Rê, o deus Sol diz a Isis que ele é “Khepri na manhã, Rê ao
meio do dia e Atum ao anoitecer.” A barca noturna é associada com Rê-Atum e a barca do dia
com Khepri.
A sua iconografia é um escaravelho empurrando o disco solar pelo Mundo Inferior na
jornada pelo céu. Em seu ambiente, os egípcios devem ter notado que o ato do escaravelho em
rolar sua bola pelo deserto seria o mesmo que o do Sol6. Contudo, a analogia feita por eles
não termina nesse ponto. Observando que da bola de excrementos nascia um escaravelho eles
o associaram com Khepri, aquele que se autocria.
5 Ver Capítulo 3
6 Ver Capítulo 5
36
Pinturas em papiros funerários o mostram no barco do deus das águas primordiais
Nun. Em Heliópolis ele era ilustrado como Atum-Khepri, era um único deus que diariamente
sofria uma série de transformações. Na tumba de Petosiris, vizir do templo de Thoth (c.340
a.C.) em Tuna el-Gebel, ele está representado usando a coroa atef do deus Osíris. Quando o
deus-sol se apresenta na forma de Khepri, ele possui o corpo de um homem e no lugar de sua
cabeça um escaravelho. Assim como Rê, ele carrega em suas mãos um ankh e um cetro.
O deus se encontra com Rê e Atum na jornada diária na barca solar. As várias formas
do deus-sol se encontram no meio do barco. Há também a representação de Khepri na barca
com Nun e Khnum (deus criador com cabeça de carneiro). Thoth e Maat ficam juntamente
com Hórus para a aprovação do caminho da barca e, no final do dia, elas entram no curso em
direção ao Mundo Inferior e a jornada continua com a barca noturna, na qual Hórus, Hapi, Ísis
e Néftis a aguardam em forma de adoração. A barca era atacada durante a noite por seus
inimigos e o mais perigoso de todos era Apófis— a personificação da parte mais obscura da
noite, ou seja, o caos— que se transformava em uma serpente. Ela atacava o deus-sol para
acabar com a estabilidade do Mundo. Para lutar contra a serpente, Rê assume a forma de um
felino, admirado por sua agilidade, e a degola.
Khepri aparece desde pequenos amuletos (centímetros) até em tamanhos maiores
como no templo de Karnak. Nesse templo ele se encontra, in situ, e um parecido está na
exposição do British Museum, conforme mostram as Figuras 2 e 3. Esse escaravelho que
representava o deus está sob um pedestal e simbolizava arquiteturalmente o deus criador sobre
o monte onde ocorrera a criação do cosmos. Até hoje não foi encontrado nenhum templo
erigido exclusivamente para esse deus.
37
Figura 2. Escaravelho em Karnak7
Figura 3. Escaravelho hoje no British Museum8
Esse deus poderia ajudar na transformação final do morto em akh (espírito
transfigurado). No Capítulo 83 do Livro dos Mortos ele era invocado para superar o medo
intenso da putrefação. O trecho onde fala sofre o deus é (ANDREWS e FAULKNER, 1985,
p.80).
Eu flutuei como um primário, eu me tornei Khepri, eu cresci como uma planta, eu me cobri como uma tartaruga, eu estou na essência de cada deus,
eu sou o décimo sétimo das sete uraeus que vem a vida no oeste.
7 Fotografia feita pela autora em 14/06/2008.
8 Fotografia feita pela autora em 06/07/2008, dois ângulos do mesmo objeto.
38
1.6. Osíris
O deus Osíris aparece no Antigo Império, não possuindo referências no Período Pré-
Dinástico. A importância de seu mito é traçada no Texto das Pirâmides onde o faraó Unas é
identificado com Osíris. No Ritual de Oferendas desse faraó há a seguinte passagem: “Osíris
Unas, Eu lhe dei o olho de Hórus, oh Unas!...” Em outra passagem no Ritual de Abertura da
Boca está escrito: “Osíris Unas, Me deixe partir sua boca para você.” Assim como também a
citação do deus na declaração 210 que diz: “Uma escada foi erguida próxima ao Sol em frente
a Osíris, uma escada foi erguida junto a Hórus em frente a seu pai Osíris...”
Osíris era filho do deus da terra, Geb, e da deusa do céu, Nut, e tornou-se herdeiro do
trono do Egito. É tido como o primeiro faraó. Ele faz a sociedade egípcia sair de um estado de
barbárie e passar para o de civilização. O resultado foi um poder centralizado e com base
divina durante todos os períodos do regime faraônico.
A cerimônia em homenagem a Osíris acontecia às margens do Nilo após a inundação
anual, local onde a terra fértil aguardava para receber novas sementes. No Período tardio,
essas eram as principais cerimônias de todo o Egito. Ela consistia em encontrar e embalsamar
os remanescentes do deus que eram ritualmente reunidos, reanimados e terminava com a
ressurreição do deus e a coroação de Hórus no trono.
Há a crença de que as partes corporais do deus foram espalhadas por 42 pontos do
Egito, cada membro estava em um nomo, o que criava uma unidade no território por meio do
ritual de reunião dos elementos em um único corpo. Ou seja, o que era reunido nesse caso
possuía um significado político, histórico e cultural e não cósmico (ASSMANN, 2006). E a
terra do Egito que está reunida nessa cerimônia.
39
A Teologia Menfita (c.3000 a.C.) coloca Osíris em seu momento de enterramento
como aquele que se torna a terra. E, nesses textos, há o Tribunal que clama Hórus como o
sucessor legítimo do deus morto, aquele que governaria as Duas Terras, não como
conquistador, mas como sucessor.
Nesta Teologia, Osíris possui dois destinos após o seu enterro. Um deles é se juntar ao
deus-sol em seu circuito diário e o outro é se juntar à Corte de Ptah-Ta-Tjenen, além dele se
tornar a terra, o que explica mitologicamente porque a região de Mênfis era extremamente
fértil. Afinal, era lá que ele estava enterrado.
O deus era o principal do panteão funerário. A pessoa quando morria se tornava um
Osíris. Ele também era o Senhor do Tribunal do Julgamento do coração. Se a idéia da
mumificação nasce com o mito de Ísis e Osíris, essa é praticada até o final do período
faraônico.
40
Capítulo 2. Contexto Funerário
2.1. Mumificação: somente preservação do corpo?
A palavra múmia deriva do árabe mummya, que significa betume. No processo final de
mumificação era passada resina e a coloração do corpo ficava igual ao do betume. Todavia,
betume era raramente utilizado em múmias.
O processo de mumificação pode ocorrer de forma natural ou artificial. A
mumificação natural se dá quando um indivíduo é enterrado em condições climáticas
contrastantes, como uma região polar, onde o fluxo de ar é suficiente para a retirada da água
dos corpos, ou em climas áridos e secos. A mumificação artificial exige várias etapas de
embalsamento do corpo, como será descrito adiante.
A presença da mumificação natural pode ser vista em corpos, principalmente do
Período Pré-dinástico. As pessoas nessa época eram enterradas diretamente no solo, com uma
trama de fios como proteção. O solo, por ser muito árido e a temperatura elevada, faziam o
processo de desidratação do corpo, onde posteriormente seria utilizado o Natrão. Em regiões
áridas essa desidratação era rápida, o que preservava a camada de pele. As múmias naturais
são caracterizadas pela aparência rígida e a presença de pele fixada aos ossos, consequência
de uma boa preservação do corpo.
A mumificação artificial começa no Pré-Dinástico e é aprimorada ao longo das
dinastias. Inicialmente, ela era destinada somente ao faraó e, depois de alguns séculos, essa
prática já estava democratizada para toda a sociedade.
Para uma melhor compreensão do porquê de se mumificar os mortos, é necessário
conhecer as partes abstratas das quais os egípcios acreditavam que as pessoas eram
41
compostas. O ser humano era constituído de cinco faculdades: seu corpo, sua sombra, seu ka,
seu ba, seu nome e aquele que era o poder, o espírito perfeito chamado akh.
O ka nascia juntamente com a pessoa, era chamado de duplo, porque ele seguia o ser
humano em todos os momentos de sua vida. Ele faz parte da personalidade da pessoa. O ka
era dado a um ser humanos pelo deus.
O faraó possuía ka real era o deus no rei, e a relação entre deuses, rei e o povo
(GORDON,1996 p.33). Ou seja, o faraó recebe sua força vital dos deuses e age como
mediador na distribuição para as pessoas.
O sustento do ka se fazia importante após a morte. É por isso que há rituais e
oferendas para ele. Quando a pessoa morria, acreditavam que ele então habitaria a estátua-ka
na capela dedicada a esse indivíduo, onde receberia as oferendas e orações, mesmo que essas
fossem só representadas. O ka precisava dessas provisões para que ele pudesse continuar vivo.
No Capítulo 30 do Livro dos Mortos há o trecho que diz “... você é o meu ka que está
em meu corpo...” onde o morto faz alusão ao seu duplo, pedindo para que esse o ajude a sair
do julgamento de seu coração como um justificado e assim adentrar ao Mundo Inferior. Essa
frase mostra também que em todo o momento o morto teve consciência de onde o ka residia.
O ba era uma manifestação do morto, que poderia habitar tanto o mundo terreno como
o Mundo dos Mortos. Ele fazia a ligação entre os dois mundos. A preservação do corpo do
morto resultaria na preservação tanto do ba quanto do ka. Pois, o ba retorna todas as noites
para a câmara funerária e assim ele pode migrar durante o dia. Se o corpo não estivesse
preservado para essas duas faculdades habitarem, elas morreriam.
42
Sua representação era em forma de um pássaro com a cabeça humana. Entretanto, ele
poderia assumir a forma que quisesse e há várias fórmulas funerárias para assegurar essa
transformação.
O Capítulo 89 do Livro dos Mortos sugere em sua rubrica que seja feita uma
representação da ba em ouro e que essa seja colocada no peito da múmia. Assim, asseguraria
o retorno da ba ao corpo. O próprio título da fórmula já deixa clara a sua função, fórmula de
como fazer a alma se unir a seu corpo no domínio dos mortos. Um trecho do capítulo diz:
“(...) Deixa minha alma vir até mim onde quer que esteja.” (ANDREWS e FAULKNER,
1985, p.84)
Ao morrer, a pessoa se unia ao seu ka, mas não ao seu ba porque esse era dinâmico.
Na iconografia funerária, há cenas em que o morto está realizando algum ritual e o ka está
atrás dele. Em alguns papiros que descrevem a pesagem do coração, pode-se ver o ba ao lado
esquerdo da balança aguardando o resultado juntamente com o morto e seu ka.
O akh era chamado por Claude Traunecker (1995, p.37) de espírito-akh e eram
espíritos luminosos que podiam ser temíveis. Não eram uma faculdade como o ba e nem um
estado como o ka, eram um poder ocasional perfeito. Ele era o espírito do bem-aventurado e a
união de sucesso do ka e do ba.
O Mundo Inferior ou Duat era limitado pelo corpo de Osíris, porque ele isola o Duat
do caos de Num e, nesse mundo, os mortos desempenhavam funções semelhantes às de
quando habitavam a vida terrena. O Campo dos Juncos situa-se a leste e é uma localidade de
passagem ligada ao Sol. O Campo das Oferendas está a oeste e esse já é um local de estadia.
O Campo das Oferendas era reservado aos mAa-Xrw, que significa “justo de voz”, “justificado”
ou “triunfante”, ou seja, aquele que já havia passado pelo julgamento do coração. Para eles a
43
justificação era uma etapa decisiva para que o morto não sofresse a sua segunda morte. A
segunda morte é a definitiva e nela a pessoa seria esquecida.
2.2. Processos de Mumificação
No mundo ideal e simbólico egípcio, a mumificação era realizada em uma única noite,
a anterior ao sepultamento, ocorrendo no mesmo momento em que o coração do morto era
pesado na sala do julgamento de Osíris. Todavia, hoje se sabe que o processo de mumificação
poderia levar em média 70 dias ou até muitos meses. Os fatores que influenciavam este tempo
poderia ser o preparo da múmia e da tumba.
A mumificação artificial egípcia era necessária no momento em que as tumbas se
tornam superestruturas e não mais há o contato do corpo com as areias áridas e aquecidas do
deserto que promoviam a conservação desses remanescentes. E, após uma série de tentativa e
erros os egípcios antigos perceberam que a chave para essa preservação era a retirada dos
fluidos corporais. Esse processo pode ter vindo provavelmente da análise do processo de
secagem das carnes e peixes (COCKBURN, 1998, p.18).
Não foram encontrados até hoje relatos completos de todos os passos para a
preparação de uma múmia. Há partes desse processo em papiros e paredes de tumbas, assim
como citações em rituais e oferendas. Mas, nada que mostre como era tratado o corpo físico.
Portanto, para fazer uma reconstituição dos métodos de mumificação são utilizados textos de
escritores como Heródoto e Diodoro, além das análises dos remanescentes físicos feitas por
DNA, compostos químicos na pele das múmias, tomografias computadorizadas e arqueologia
experimental.
O texto escrito por Heródoto no século cinco a.C. é reproduzido por todos os autores
que tratam dos processos de mumificação. O relato do escritor grego diz que algumas pessoas
eram apontadas pelas leis para exercerem essa profissão. Quando o corpo de um morto era
44
levado para eles, eles exibiam aos amigos da pessoa morta diferentes modelos em madeira. O
mais perfeito deles assemelha-se a um cujo nome não poderá ser mencionado nesse contexto
(sabe-se que é Osíris). O segundo era inferior em execução e com preço menor e o outro tinha
qualidade ainda mais inferior. Após a demonstração eles perguntavam com qual modelo o
morto gostaria de ser representado. Quando o preço era determinado, os embalsamadores
começam seu trabalho. A descrição do processo de mumificação detalhado adiante se refere
ao mais custoso, sempre lembrando que esse não era um processo técnico, envolvia muitos
rituais em cada estágio de seu preparo. Afinal, estava mumificando Osíris.
O corpo do morto era levado até a “Casa Boa” (pr-nfr) onde no local de embalsamento
começavam as etapas de dissecação do corpo. O primeiro passo era a retirada do cérebro por
meio do orifício nasal. Introduzia-se uma ferramenta metálica e com ela fazia-se uma série de
movimentos destinados a dissolução do cérebro. Quando ele estava em estado mais líquido
era colocada uma espécie de coletor nas narinas. Outro método para a retirada do cérebro era
fazer uma incisão na base do crânio. A cavidade craniana era lavada e preenchida com
resinas. Os olhos eram mantidos no lugar até a 22ª dinastia, quando esses são substituídos por
postiços ou por uma pasta vítrea.
A retirada dos demais órgãos era feita por meio de uma incisão no lado esquerdo da
cavidade abdominal do morto, de onde as vísceras e o intestino eram descartados. Os outros
órgãos eram lavados, drenados, recebendo substâncias aromáticas. Geralmente, eram envoltos
em linho e guardados nos chamados Vasos Canopos.
Os Vasos Canopos, a partir 4ª dinastia, aparecem como parte da arquitetura, em nichos
das câmaras funerárias, em forma de caixas retangulares. Na 5ª dinastia e depois ao longo do
período faraônico eles aparecem em caixas aos pés do caixão, porque as arcas que contém
esses vasos nunca se afastam dos caixões. Isto pode ser visto em papiros onde na procissão há
45
o caixão e logo atrás os canopos. No Novo Império as tampas eram feitas em formato da
cabeça dos quatro filhos de Hórus e cada uma abrigava um órgão especificamente. Os deuses
são Qebehsenuef, que possui a cabeça em forma de falcão e abrigaria os intestinos; Duamutef,
com a cabeça de chacal onde estaria o estômago; Hapy, com cabeça de babuíno guardava os
pulmões e Imset, com cabeça de homem e abrigaria o fígado. A 20ª dinastia caracteriza o
momento em que Anúbis aparece na parte de cima das caixas canópicas e os quatro filhos de
Hórus nas laterais. Contudo, esses vasos perdem a utilidade na 21ª dinastia porque os órgãos
passam a ser recolocados dentro da cavidade abdominal. Na 26ª dinastia há a retomada da
tradição de utilizar os Vasos Canopos e de utilizar nichos como na 4ª dinastia. No período que
compreende da 27ª a 30ª dinastias eles são guardados entre os pés da múmia e, no Período
Ptolomaico, são substituídos por arcas com um falcão na tampa, nas quais os órgãos eram
colocados.
Na cavidade abdominal restava somente o coração. Não era prática comum retirá-lo e,
caso isso acontecesse, ou ele era colocado novamente no tórax ou em seu lugar era colocado
um escaravelho-coração. O corpo era então lavado, óleos e especiarias eram aplicados e,
posteriormente, era coberto com Natrão. O Natrão é uma substância salina composta de
NaCL, Na2CO3 e NaP2SO4, usada para acelerar o processo de retirada dos fluidos corporais
que poderiam posteriormente causar a decomposição do corpo. Após a secagem do indivíduo,
havia a aplicação de resinas para que esse pudesse ter elasticidade novamente e, com isso, dar
continuidade à mumificação. O abdômen era recheado com linho, flores, serragem e outros
materiais para que pudesse ser mantido o mais próximo possível do que era em vida.
46
Figura 4. Incisões.
A Figura 4 (SMITH, 1914, p.194) mostra as incisões que eram feitas no morto tanto
para a retirada dos órgãos quanto para a posterior colocação do material que preenchia as
cavidades. Com a ajuda das mãos ou alguma outra ferramenta, o embalsamador inseria linho,
manteiga ou até mesmo lama na região T e outro material na W, para que esse segurasse o
enchimento da região do pescoço. A localização da letra Y, que são as pernas, era preenchida
pela mesma incisão X. Em alguns casos era feita uma nova incisão para os pés. Após esse
procedimento a cavidade abdominal (R, S, Q) era recheada e as incisões fechadas.
Em seguida, várias resinas, ungüentos, cera de abelha e perfumes eram aplicados,
estando pronto para a colocação das tiras de linho. No meio dessas tiras havia vários
amuletos. Esse processo poderia levar até 15 dias para que o corpo estivesse totalmente
coberto com o linho porque em alguns casos os dedos das mãos e dos pés eram primeiramente
47
enrolados um por um. Logo após o termino do preparo e a recitação de todas as orações, o
morto era colocado em seu caixão ou caixões e levado para a câmara funerária. Entretanto, a
múmia só iria para a câmara funerária caso o morto tivesse condições e status social para
possuir uma tumba. Senão, ela iria para a casa de seus familiares e ficava guardada em
armários na entrada das habitações.
O faraó depois de mumificado só poderia ser enterrado por outro governante, fato
sucessório que mostra que quando um faraó morre e está sofrendo o processo de
mumificação, o próximo governante era escolhido. Ao enterrar o faraó morto faz o mesmo
ritual que Hórus ao sepultar Osíris, garantindo assim a legitimidade do trono.
As escavações sob coordenação de G.A. Reisner, realizadas no plateau de Giza,
descobriram a tumba da rainha Heteperes, mulher de Snefru e mãe de Khufu, na 4ª dinastia. O
corpo não estava no sarcófago, mas uma descoberta surpreendente seria feita. As vísceras
foram encontradas em um recipiente de alabastro e embebidas em uma substância salina
contendo Natrão. O mais interessante é que após 4500 anos a substância continuava aquosa e
preservando as vísceras. Nesse período eles já retiravam os órgãos da cavidade abdominal. O
desenvolvimento dos processos de mumificação foi rápido e, na 5ª dinastia, já há relatos de
arqueólogos que diziam que as pessoas pareciam estar dormindo.
2.3 Cerimônia de Abertura da Boca
A cerimônia de Abertura da Boca (wpt-r ou wn-r) aparece em primeira vez no Texto
das Pirâmides, descrevendo que em uma estátua do deus ou do faraó a vida era inserida. No
entanto, a maioria dos remanescentes desse ritual é do Novo Império, que pode ser encontrado
em papiros e paredes de tumbas. Esse cerimonial poderia ser feito na múmia, no caixão ou em
estátuas que representavam o morto.
48
Para Ann Macy Roth (1993) o ritual começa a ser feito em estátuas no Antigo Império,
não anterior à 6ª dinastia. Onde ao invés de instrumentos eram utilizados próprios dedos do
sacerdote. Para ela, esse cerimonial começou da observação de limpar a boca dos bebês após
o nascimento. Por isso que a metáfora em dar vida ao morto por meio desse ritual seria de
tocar os seus lábios.
O ritual consistia em tocar a boca do morto com o pesesh-kef e recitando as seguintes
palavras: “Oh N, eu consolidei sua mandíbula então ela nunca mais será dividida. Eu
novamente abri a sua boca com o instrumento pesesh-kef, o qual é utilizado para abrir a boca
de todos os deuses e todas as deusas.” Contudo, esse ritual consistia em 75 atos separados e
para realizá-los eram necessários instrumentos específicos—como o Setep feito em madeira e
material metálico, o Pesesh-kef e o Enxó totalmente em madeira—óleos, ungüentos e
cosméticos, que são os mesmos utilizados no processo de mumificação. A Figura 5 mostra
esses instrumentos e na iconografia quando se mostra a Cerimônia de Abertura da Boca o
Enxó está na mão de quem efetua o ritual. Todavia, Pesesh-kef é utilizado desde o Antigo
Império.
49
Figura 5. Instrumentos utilizados no ritual9
O cerimonial era realizado pelo filho do morto ou por um sacerdote, no caso de
sucessão real pelo próximo faraó. Há aqui mais uma demonstração da legitimação do cargo,
onde Hórus faz a Cerimônia de Abertura da Boca em Osíris. A ritualística desse cerimonial
mais uma vez esbarra no viés político-social egípcio, segundo o qual para a legitimação do
poder e para que o novo faraó fosse reconhecido seria preciso realizar a Cerimônia de
Abertura da Boca no faraó morto. Ou seja, a ideologia aqui aparece de uma maneira
simbólica, mas com o intuito de colocar em ação uma troca de poder que nem sempre era
sucessória consanguineamente. Um exemplo bastante conhecido desse ritual está na câmara
funerária de Tutankhamun, faraó da 18ª dinastia, onde seu sucessor Ay realiza a cerimônia
(Figura 6).
9 Retirado do sítio http://www.civilization.ca/cmc/exhibitions/civil/egypt/images/reli40b.jpg acesso em 30 de maio de 2009.
50
Figura 6. Tumba de Tutankhamun, KV62, Cerimônia de Abertura da Boca.
O ritual marcava a finalização do processo de mumificação e consistia em dar vida ao
morto. Como o nome da cerimônia indica, ao abrir a boca do morto ele poderia novamente
falar e comer. Todavia, como há o toque em várias partes da múmia ou caixão não é somente
a abertura da boca, como também dos olhos, orelhas, nariz e outras partes do corpo. Quando o
morto tinha suas faculdades terrenas de volta ele poderia sustentar seu ka.
No Texto dos Caixões (CT 65) aparece a cena onde Hórus e Ptah abrem a boca do
morto, continuamente Ptah e Thoth fazem o ritual da transfiguração onde Thoth recoloca o
coração no corpo do morto e proclama: “assim você se lembra do que esqueceu e pode comer
pão como desejas.” A continuação dessa tradição pode ser vista no Capítulo 23 Livro dos
Mortos que trata especificamente desse ritual nas seguintes palavras (ANDREWS e
FAULKNER, 1985, p.51):
51
Fórmula para abrir a boca de N
Minha boca está aberta por Ptah e o que estava em minha boca foi liberado
pelo meu deus local. Thoth veio de fato, cheio e equipado com mágica e os laços com Seth que estavam restritos em minha boca foram aliviados. Atum
desviou-os e arremessou longe as restrições a Seth.
Minha boca está aberta, minha boca está aberta e separada por Shu com seu
arpão de ferro com o qual ele abre as bocas dos deuses. Eu sou Sakhmet, e sento ao lado dela que está no grande vento do céu; eu sou Órion o Grande
que reside com as Almas de Heliópolis.
Tanto para alguma fórmula mágica ou qualquer palavra que pode ter sido expressada contra mim, os deuses irão se levantar contra elas, até mesmo a
enéade inteira10
.
A vinheta desse capítulo (Figura 7) traz o morto, no caso aqui Nakht (a quem pertence
o Capítulo 23 citado), tendo o cerimonial realizado por um deus com cabeça de falcão que
possui em sua mão um Enxó, que dá novamente ao morto todas as faculdades para que ele
possa utilizá-las no Mundo Inferior.
Figura 7. Vinheta do Capítulo 23 do Livro dos Mortos.
Para Jan Assman e Lorton (2005, p. 312) o ritual era realizado na entrada das tumbas,
onde o morto (no caso o caixão) era colocado em pé, virado para o sul e sustentado por
10 Tradução para o português feita pela autora da dissertação.
52
Anúbis. Para eles, esse ritual era feito inicialmente para trazer as estátuas do morto novamente
à vida, o cerimonial se transformou de estatuária para o corpo em si.
2.4 Amuletos Funerários
Os amuletos poderiam ter inúmeras formas, variando de partes do corpo humano, de
animais, adornos de deuses e símbolos da eternidade. O material com o qual esse era feito
tinha um efeito tão significativo quanto a sua forma. Alguns amuletos por si só já exercem o
seu poder, todavia, alguns precisam de apoio de textos. Como aqui se trata de amuletos
funerários em uso a partir o Novo Império, o texto é o Livro dos Mortos. No entanto, não quer
dizer que não eram utilizados anteriormente, somente que as fontes consultadas são dessa
época.
Os amuletos funerários eram colocados no corpo do morto para protegê-lo em sua
jornada rumo ao Mundo Inferior.
Um dos motivos pelo qual não podemos citar todos os amuletos é a sua grande
quantidade. Em Dendera há uma listagem com 104 amuletos que deveriam ser colocados nas
bandagens das múmias. Nesta lista os amuletos que mais aparecem são os escaravelhos e o
olho-udjat, todavia ela não especifica o local na múmia. Destarte, na 26ª dinastia o número de
amuletos diferenciados que existia chegava a 300. O amuleto que se refere ao coração e os
escaravelhos funerários aparecerão em seus respectivos capítulos desta dissertação.
Com o advento da tecnologia e os estudos realizados por meio de raios-X e mais
desenvolvidos hoje com o auxílio das tomografias computadorizadas, não se faz necessário
desenrolar as múmias para que se possa ver a localização de seus amuletos. Como pode ser
53
visto na múmia de Sha-Amun-en-su11
, onde está indicada a localização de seu escaravelho-
coração.
Os amuletos eram utilizados em vida e, posteriormente, colocados juntamente com o
morto. Mas, no caso específico dos amuletos funerários que aparecem nas bandagens das
múmias, eles protegiam partes específicas do corpo, como o amuleto do coração, o
escaravelho-coração, pilar-djed, entre outros. Muitos amuletos simbolizavam os próprios
hieróglifos, como a cruz-ankh que era a “vida”, mas curiosamente, na listagem de Dendera
não aparece esse símbolo.
Como parte do equipamento funerário, esses amuletos davam proteção ao morto em
sua jornada até o Mundo Inferior. No Livro dos Mortos há capítulos específicos que falam
como deve ser feito cada tipo de amuleto, com qual material e como eles aparecem em suas
vinhetas. Quando colocado em lugar correto o amuleto se tornava extremamente poderoso e
os que aparecem no Livro dos Mortos tinham seus locais específicos no pescoço do morto e
em seu peito. A seguir se tem os principais amuletos encontrados em múmias.
2.4.1 O pilar-djed
A sua origem não é certa, mas pode ter surgido em épocas pré-históricas. Ele é tido
como o amuleto que representa a espinha dorsal de Osíris, ou seja, ele daria estabilidade à ao
corpo do morto. Ele está citado no Capítulo 155 do Livro dos Mortos, em que na vinheta há
um pilar-djed em ouro somente. A rubrica desse capítulo diz que ele deve ser recitado diante
de um amuleto de ouro, colocado em uma base de sicômoro e que deverá ser colocado no
pescoço do morto no dia do enterro. Se isso acontecer ele será como os que estão eternamente
na procissão. O mais interessante é que no final da rubrica há uma recomendação,
“verdadeiramente eficaz, experimentado um milhão de vezes” (BARGUET, 1976, p.224).
11 Ver Capítulo 7.
54
Como nem todos poderiam fazer um amuleto em ouro, ele poderia ser feito em faiança
e com acabamento em camada de folha de ouro.
2.4.2 Tit
Esse amuleto é chamado o nó de Ísis por se referir ao nó que prendia os cintos. Sua
referência no Livro dos Mortos está no Capítulo 156 que tem na vinheta o próprio amuleto. A
rubrica pede que se faça um amuleto em cornalina, podendo ser também em jaspe vermelha e,
depois de recitado o capítulo, ele será colocado no pescoço do morto no dia do enterro,
trazendo assim os poderes de Ísis para proteger os membros. A coloração vermelha
simbolizava o sangue da deusa (ANDREWS, 1994, p. 45), porque o capítulo começa com a
citação sobre o sangue de Ísis. No próprio amuleto há essa referência escrita.
2.4.3 Wadj
O amuleto Wadj é uma referência a um cetro de papiro. Os Capítulos 159 e 160 do
Livro dos Mortos fazem alusão a esse amuleto, devendo ser colocado no pescoço do morto no
dia de seu enterro. Na vinheta do Capítulo 160 quem dá o amuleto ao morto é o deus Thoth.
Esse era para ser feito em feldspato verde, porque essa rocha garantia o vigor do morto e, com
isso, a virtude do material era garantida a seu dono.
A sua forma sugeriria tanto a de uma planta de papiro quanto a de um pilar
arquiteturalmente falando. Essa planta era o emblema do Baixo Egito e em Buto no Delta ele
simbolizaria a proteção da deusa Wadjit.
2.4.4 O olho-udjat
O mito de surgimento desse amuleto remete à batalha entre Seth e Hórus, no momento
em que Seth arranca o olho de seu oponente. Quando esse é obrigado a devolvê-lo, Hórus o
coloca não em seu lugar, mas na boca de seu pai Osíris, concedendo assim a ele uma nova
vida. Este foi o primeiro e mais importante amuleto que se tornou oferenda (JANOT, 2008,
55
p.234). Há também outra história que diz que esse era o olho esquerdo de Hórus que foi
arrancado na batalha e depois quando o deus o coloca de volta, seu olho passa a simbolizar a
lua cheia.
O material utilizado para a sua fabricação era quase exclusivamente faiança, mas o de
Tutankhamun era feito em lápis-lazúli e ouro.
Assim como os escaravelhos, esse é um amuleto que aparece em abundância nas
múmias, considerando o pensamento que, quanto mais amuletos iguais, mais proteção, era
essa a intenção deles. Ele poderia aparecer sozinho, ou com a cobra uraues fazendo a
composição de uma espécie de peitoral.
2.4.5 Os quatro filhos de Hórus
Esses amuletos possuíam a simbologia da cavidade abdominal por causa dos vasos
canopos. Costumavam vir nas redes de contas que cobriam os corpos mumificados ou em
alguns casos nas bandagens das múmias. Eles são sempre moldados de perfil e mumiformes.
As suas funções como amuletos funerários é sempre estarem ao lado de Osíris para não deixar
que esse sinta fome ou sede, enquanto está ascendendo ao céu.
56
Capítulo 3. Literatura Funerária
A literatura funerária egípcia é composta por textos que guiavam o morto na vida após
a morte. Os principais são Texto das Pirâmides— escrito no Antigo Império, Texto dos
Caixões— no Médio Império e Livro dos Mortos— no Novo Império. Seus conteúdos podem
ser encontrados em paredes de pirâmides e tumbas, caixões, papiros, tiras de linho e,
ocasionalmente, em templos. Há também o Livro dos Dois Caminhos, Livro das Cavernas e o
Livro das Respirações. Entretanto, esses não serão aqui tratados por não estarem diretamente
relacionados com o escaravelho-coração.
3.1. Texto das Pirâmides
Os Textos das Pirâmides são os escritos religiosos e funerários mais antigos do Egito
Faraônico. Por utilizarem uma gramática e vocabulário muito ancestrais eles dificultaram a
leitura para os estudiosos modernos. Além disso, sua ortografia é incomum.
Esses textos são uma coleção de fórmulas e rituais funerários primeiramente inscritos
nos sarcófagos e paredes subterrâneas de cinco pirâmides de Faraós do Antigo Império e de
três rainhas. São elas: Unas (2375-2345 a.C.), Teti (2345-2333 a.C.), Pepi I (2332-2283 a.C.),
Merenre (2283-2278 a.C.), Pepi II (2278-2184) e três de suas Rainhas Neith, Iput e
Udjebten12
e um Faraó da 8ª dinastia Iby (c.2040 a.C.).
Esse corpus textual foi descoberto em 1880 e são até hoje objeto de pesquisas e
escavações, como em 2001 quando foram encontrados novos fragmentos de textos na
pirâmide de Pepi II. Os textos de Unas, Teti, Pepi I, Merenre e Pepi II foram primeiramente
publicados por seu descobridor, Gaston Maspero. Em 1908, Kurt Sethe publicou uma
compilação dos cinco textos e seu trabalho ainda é reconhecido. Escavações realizadas por
12 Grafia dos nomes das Rainhas retirados de DODSON, A.e HILTON, D. The Complete Royal Families of Ancient Egypt.
Cairo: The American University of Cairo Press, 2004 (p.73)
57
Gustave Jéquier (1897-1902) permitiram encontrar novas câmaras na pirâmide de Pepi II,
assim como novas pirâmides que exibiam essas inscrições (Neith, Iput, Udjebten e Iby) e,
Gustave Jéquier eventualmente publicou esses textos. Desde 1958, escavações sob a direção
de Jean-Philippe Lauer, Jean Sainte Fare Garnot e Jean Leclant são realizadas nos
remanescentes das pirâmides do Antigo Império de Teti, Pepi I e Merenre. A publicação
completa dos escritos da pirâmide de Pepi foi feita em 2001.
Uma série de publicações anteriores dos Textos das Pirâmides foi realizada, como de
Samuel B. Mercer em 1952, Alexandre Piankoff (somente a pirâmide de Unas) em 1968 e
Raymond O. Faulkner em 1969. Para Allen (2005, p.2), essas obras não devem ser
desmerecidas, contudo a Egiptologia produziu considerável avanço nos estudos sobre religião
e escrita, e alguns trechos passaram a exibir significados diferentes das publicações anteriores.
A publicação dos textos de Pepi I colaborou para aumento substancial desse conhecimento.
A pirâmide de Unas contém o texto mais preservado, com 236 declarações. As
pirâmides de seus sucessores possuem cerca de 750 declarações e alcançando quase 1000 em
algumas. Não se sabe o número exato dessas declarações porque as paredes colapsaram em
algumas dessas pirâmides.
Cópias dessas declarações podem ser vistas em sarcófagos, caixões e paredes de
tumbas de pessoas que não faziam parte da realeza no 1° Período Intermediário. A cópia
posterior mais importante está na tumba de Senusret I (1991-1962 a.C.) em El-Lisht que
contém o texto igual ao de Unas, mas com alguns adicionais.
A tumba de Unas e de seus sucessores tem o mesmo arranjo interior, que consiste em
uma câmara funerária, uma antecâmara para o leste e um corredor que conduz da parede norte
da antecâmara até a face norte das pirâmides. Os textos ocupam as paredes dessas salas em
um arranjo específico que reflete sua função e a das salas. A parede norte da antecâmara é
58
devotada aos Rituais de Oferendas— pequenas fórmulas de uma ou duas sentenças cada,
faladas para o morto quando as oferendas eram apresentadas. As fórmulas que estão na
metade da parede sul da câmara funerária são poucas e longas. Endereçadas para o morto e os
deuses, eles formam os textos do Ritual da Ressurreição— designado para enviar o “espírito”
do morto para uma vida ao lado dos deuses. Esse ritual começa com as palavras “Você não foi
para outro lugar morto: você foi para outro lugar vivo.” E conclui com a garantia que “seu
nome estará vivo entre as pessoas, assim como seu nome estará com os deuses.”
Na pirâmide de Unas, esses dois rituais ocupam todas as paredes da câmara mortuária,
com exceção do frontão ocidental acima do sarcófago. Essa parede é devotada a um terceiro
jogo de fórmulas, que servia para proteger o sarcófago e seu conteúdo das cobras e outros
seres perigosos. Nas pirâmides mais recentes as paredes oeste da câmara funerária contêm
fórmulas endereçadas à deusa Nut. As paredes da antecâmara e corredor são inscritas com a
quarta parte de fórmulas, designada a ajudar para passagem do morto da noite da tumba para o
dia da nova vida fora da pirâmide.
Originalmente o texto era escrito na primeira pessoa, porque era para ser recitado pelo
morto em sua jornada noturna e o nome da pessoa era a única parte alterada. Ele contém três
grandes grupos de fórmulas: os Rituais de Oferenda e Insígnias, o Ritual de Ressurreição e o
Ritual Matinal. O primeiro grupo aparece na parede norte da câmara funerária, onde ocorre a
libação, a limpeza por incensos e água salgada e a Abertura da Boca. O Ritual da Insígnia
consistia em roupas e regalias reais oferecidas a uma estátua do morto, que era apresentada
aos deuses na procissão. O Ritual da Ressurreição ocupa a parede sul da câmara mortuária e o
texto consiste em libertar o “espírito” do morto de seu corpo e da Terra e enviá-lo à sua
jornada diurna juntamente com os deuses. O terceiro grupo de rituais reflete as cerimônias nas
quais o Rei era acordado, trocado e alimentado durante a vida. Os outros textos nas paredes
59
das pirâmides são pessoais e se referem ao morto encontrar salvação em seus rituais matinais
e existir durante o dia na companhia dos deuses.
O Texto das Pirâmides reflete uma visão da vida após a morte modelada na jornada
noturna do Sol pelo Duat em seu caminho para o renascimento. Como o sol recebia o poder
da nova vida se juntando ao corpo de Osíris, o “espírito” do morto ganharia o mesmo poder
ao se juntar todas as noites com o deus. Este conceito solar da ressurreição diária constitui a
primeira versão da vida após a morte.
Os sepultamentos de pessoas da sociedade do Antigo Império exibiam trechos
análogos aos Textos das Pirâmides e Rituais de Oferendas, o que sugere que esses textos eram
recitados nesses enterramentos (REDFORD, 2001, p.97).
3.2. Texto dos Caixões
O termo se aplica a fórmulas religiosas ou capítulos pintados ou escavados em mais de
200 caixões do Médio Império de diversos sítios. Os sítios são: Kom El-Hisn, Saqqara,
Dashur, El-Lisht, Herakompolis, Beni Hasan, Bersheh, Qau, Meir, Akhmim, Siut, Abidos,
Dendera, Gebelein e Assuã.
Textos relacionados à vida do morto, que eram incluídos nos Textos dos Caixões,
foram encontrados em papiros, tumbas, máscaras mortuárias, caixas canópicas, esquifes,
estátuas e estelas. Os manuscritos desses textos apresentavam grande variação na seleção e
quantidade de fórmulas utilizadas.
Os caixões para os antigos egípcios significavam casas, a morada daquele que irá viver
uma vida nova. Esta casa é a visão do Mundo, onde há um céu (teto com a representação
astronômica), um sol (fundo, ornado com o Livro dos Dois Caminhos) e quatro horizontes (as
quatro tampas laterais). Nessa época a fachada de palácio (Serekh) que aparece nos caixões é
60
vista como a entrada do Mundo Inferior. Sua decoração exterior é característica desse período,
as figuras abaixo deixam claro essa iconografia. As Figuras 8 a 13 descrevem os caixões.
Figura 8. Frente do caixão voltada para leste.
Figura 9. A parte traseira do caixão é voltada para oeste.
Figura 10. A cabeça é voltada para o norte. Figura 11. Os pés são voltados para o sul.
61
Figura 12. A tampa é voltada para o céu.
Figura 13. O fundo é voltado para a terra.
O Texto dos Caixões inclui hinos, orações, descrições da vida após a morte, textos de
ascensão, transformações, fórmulas de serpentes e listas de oferendas— normalmente o
mesmo tipo de material encontrado no Texto das Pirâmides e no Livro dos Mortos. As
descrições envolvem três principais divindades: o deus Sol, Rê, a quem o morto se junta ou
quem o deve guiar pelo seu circuito diário. O deus dos mortos, Osíris com quem o morto se
identifica e a deusa Nut que como mãe de Osíris representa o céu o qual Rê passa a noite e a
tumba— ou mais especificamente o caixão— na qual Osíris renasce.
Esses textos são os mais antigos conhecidos utilizados por homens e mulheres não
ligados à realeza. Com isso, há uma eliminação da exclusividade real, a partir desse momento,
qualquer morto pode se tornar um Osíris N13
. Todavia, o grupo que faz um largo uso desses
13 Aqui se inclui o nome do morto.
62
textos é de nomarcas e suas famílias, oficiais, assim como pessoas do alto escalão da
sociedade.
O uso desse tipo de texto chega ao final com o início do Novo Império, onde esse se
transformou em um novo corpus textual denominado Livro dos Mortos, na 17ª dinastia.
Contudo, esses textos ainda são encontrados na câmara mortuária de Minnakhte (TT87) e, nas
tumbas da 25ª-26ª dinastias as fórmulas 151, 607 e 625 são populares.
A primeira obra que compilou esses textos foi escrita por C.R. Lepsius em 1867, na
qual ele estudou os caixões que estão em Berlim. Posteriormente, Pierre Lacau publicou o
Caixões do Médio Império no Museu do Cairo, como parte do Catalogue générale em 1904-
1906. James Henry Breasted e Alan Gardiner tinham planos de compilar todos os textos, mas
quem realizou esse trabalho foi Adriaan de Buck em uma publicação de sete volumes datada
entre 1935 e 1961. A primeira tradução completa em inglês é de Raymond O. Faulkner (1973-
1978) e em francês é de Paul Barguet (1983), obra que será muito utilizada nessa dissertação
quando houver referências às fórmulas do Texto dos Caixões.
A estrutura do texto é formada por 1185 fórmulas (HORNUNG, 1999, p.08) a
linguagem utilizada é a do Médio Império clássico, sem sinais locais peculiares, mas com
freqüente imitação do Antigo Egípcio. As fórmulas são escritas em colunas, em hieróglifos
cursivos ou hierático antigo. Apresentam claramente introdução, desenvolvimento e
conclusão. Como regra, os títulos se localizam no começo. A tinta vermelha é utilizada para
dar ênfase e indicar divisões, como a fórmula 1087, que é toda escrita em vermelho. O texto é
escrito em primeira pessoa, do mesmo modo que no Texto das Pirâmides. Em contraste com o
Texto das Pirâmides, esse corpus textual apresenta poucas, mas vinhetas e, também mostram
de maneira mais conceitualizada e concreta a vida após a morte e seus perigos estão mais
dramatizados.
63
3.3. Livro dos Mortos
O Livro dos Mortos é chamado pelos antigos egípcios de prt-m-hrwr Livro Para Sair à
Luz do Dia. Ele consiste de um grupo de fórmulas funerárias escritas em papiros do Novo
Império à Baixa Época.
Esses textos eram utilizados por todos aqueles que poderiam copiá-los, em papiros
grandes e pequenos e até em tiras de linho. Alguns capítulos podem ser encontrados em
paredes de templos, caixões, tumbas, shabtis14
, escaravelhos-coração, hipocéfalos e amuletos
do coração, entre outros materiais votivos. Do mesmo modo que os corpora textuais
supracitados, o Livro dos Mortos possui fórmulas que apareceram anteriormente, no Texto das
Pirâmides e Texto dos Caixões.
O Livro dos Mortos começa a ser comumente utilizado por oficiais do reinado de
Thutmés III. A produção desses textos para durante o Período Amarniano (1350-1334 a.C.) e
é retomada no reinado de Tutankhamun. Ele aparece escrito em paredes de tumbas no reino
de Merenptah, começando pelo Capítulo 125, o qual trata da pesagem do coração15
. No
Período Ramessida (1293-1185 a.C.) e 21ª dinastia, alguns papiros aparecem escritos em
hierático, porém também continuam em hieróglifo cursivo. Nos papiros mitológicos são
representadas somente as vinhetas dos capítulos. Na 22ª dinastia o Livro dos Mortos cai em
desuso, contudo na 26ª dinastia ele passa por uma revivificação com a adição de novas
fórmulas. No Período Ptolomaico há a presença de um papiro com os capítulos escritos em
demótico.
A primeira publicação desses textos é feita por Marcel Cadet em 1805 que reproduz
um papiro Ptolomaico. Alguns manuscritos aparecem no volume dois da Description de
14 Ver GAMA, C.A. Os servidores funerários da coleção egípcia do Museu Nacional: Catálogo e Interpretação. Dissertação
de Mestrado-UFRJ/MN Programa de Pós Graduação em Arqueologia, 2008.
15 Ver explicação na página 62.
64
l’Égypte em 1821 escrito pelos participantes da expedição de Napoleão Bonaparte. Em 1842,
C. R. Lepsius traduziu um papiro do Período Tardio com 165 capítulos que hoje está no
Museu de Turin. Foi ele que, pela primeira vez, dividiu o Livro em capítulos e os numerou e,
hoje, os egiptólogos seguem essa numeração. No Segundo Congresso de Orientalistas em
Londres, em 1874, o projeto de uma edição completa dos papiros ficou sob cuidados de
Edouard Naville que utilizou 71 manuscritos do Novo Império, haja vista a grande quantidade
que havia nos Museus. Sua publicação foi feita em três volumes em 1886 e até hoje é
utilizada em pesquisas. Em 1881, W. Willem Pleyte compilou fórmulas adicionais do Período
Tardio em uma continuação à numeração de Lepsius. E.A.Wallis Budge publicou em 1894 e
1899 uma compilação dos papiros que estão no British Museum. A edição de 1898 é
composta pelos hieróglifos que até hoje estão em uso e seus hieróglifos, assim como sua
tradução, são apresentados nessa dissertação. As traduções mais recentes desses papiros são
de Paul Barguet (1967), Thomas George Allen (1960), Erick Hornung e Raymond O.
Faulkner (1972). Conforme são encontrados novos capítulos, eles são colocados no final do
texto, sem nenhuma preocupação com sua real ordem. Para efetuar suas traduções Budge
utilizou os papiros de Ani e Nu, fazendo uma espécie de coletânea com os dois. No entanto,
Faulkner utilizou-se somente do papiro Ani. A atual edição da tradução de Faulkner (2008)
publicada em 2008 traz o fac-símile dos capítulos com suas respectivas traduções e
comentários.
O texto é escrito em preto em colunas de hieróglifos, separados por uma linha preta.
As rubricas, os títulos e as palavras iniciais aparecem em vermelho e são encontradas na
maioria dos manuscritos. Frequentemente são utilizadas para títulos ou comentários adicionais
sobre fórmulas individuais e sua efetividade, assim como dão instruções específicas para o
uso do capítulo. As vinhetas aparecem desenhadas e a partir da 21ª dinastia elas são coloridas.
Os capítulos— como assim passaram a serem chamadas as fórmulas após a tradução de
65
Lepsius— podem somar 190 de acordo com a tradução de Budge e 186 de acordo com
Naville. Não se sabe exatamente quantos capítulos compõem o Livro dos Mortos, já que nos
papiros do Novo Império ele não aparece completo. Por exemplo, o papiro de Kha hoje no
Museu de Turim possui 33 capítulos, o de Yuya que se está no Museu do Cairo 41e o de Ani
com 65 e Nu com 137 que se estão no British Museum. O tamanho dos papiros não era
padronizado, com isso, os escribas colocavam os capítulos tidos como mais importantes e
levavam em consideração o tamanho da área a ser trabalhada. De mesmo modo, como muitos
eram feitos em oficinas, pode-se encontrar espaços pequenos ou muito grandes para se
colocar o nome e a titularidade do morto.
Os objetivos do Livro dos Mortos são: entrar e sair à vontade do “Belo Ocidente”,
transfigurar-se, glorificar-se, recuperar as funções vitais, conduzir a ba de volta ao corpo,
viajar a Abidos e seguir Osíris, derrotar seus inimigos, respirar a brisa e beber água à vontade,
não comer excremento nem beber urina, evitar os trabalhos no Mundo dos Mortos e obter o
godê e a paleta de escriba16
.
3.4. Capítulo 30
3.4.1. Contextualização
O Capítulo 30 do Livro dos Mortos refere-se à pesagem do coração do morto no
Tribunal de Osíris. Ao ser recitado pelo morto pedia que o coração não se opusesse contra seu
dono na hora do julgamento. As traduções, funções e significados desse capítulo serão
discutidos a seguir.
Não se sabe quando esse capítulo aparece na cultura egípcia. A respeito do seu
surgimento há duas versões, mas se sabe que este é um dos capítulos mais antigos do Livro
dos Mortos. A primeira versão expõe que ele foi encontrado sob os pés de uma estátua do
16 Aula ministrada pelo prof. Antonio Brancaglion Junior, no Mestrado de Arqueologia do Museu Nacional, em 25/10/2006.
66
deus Thoth da 1a dinastia, época do reinado do faraó Semti-Hesepti. A segunda, amplamente
utilizada pelos estudiosos que trabalham com o Livro dos Mortos, atribui a descoberta ao
príncipe Herutataf, da 4a dinastia. Ele o descobriu durante uma viagem de inspeção aos
templos de sua propriedade— no templo da Majestade do Rei do Norte e do Sul Miquerinos,
localizada em Khemenu (Hermópolis Magna), aos pés de uma estátua do deus Thoth, escrito
em uma placa de ferro (BUDGE, 2002, p.62). As duas versões conferem a escrita do texto ao
próprio deus e, com isso, era atribuída uma deificação ao capítulo, sabendo que os próprios
egípcios atribuíam a criação desse capítulo ao deus.
Carol Andrews (1994) afirma que essas versões são usadas somente para mitificar o
capítulo. No seu livro, ela diz que não havia nenhuma necessidade desse capítulo ser utilizado
antes do 1° Período Intermediário. Contudo, ao longo de seu texto, percebe-se que ela remete
o aparecimento do capítulo ao amuleto do escaravelho-coração— objeto que será tratado
posteriormente— pois, como ela mesma apresenta o escaravelho-coração mais antigo
encontrado até hoje era pertencente à 13a dinastia. Outro ponto que nos leva a entender o
porquê da escolha dessa data por Andrews é que a 9a dinastia foi formada pelos Hicsos, povo
que introduziu o amuleto do escaravelho como artefato comemorativo e não funerário. Por
serem afirmações muito subjetivas porque a autora não as baseia em fatos, preferimos, como
muitos autores o surgimento desse capítulo na 4a dinastia (2613-2498 a.C.).
Para Malaise (1978) a idéia da pesagem do coração e a avaliação dos excessos se dão
no 1º Período Intermediário. Ele cita um caixão descoberto em El-Bersheh onde está o futuro
título do capítulo 30—“Não permitir que o coração de um homem se oponha a ele no Mundo
dos Mortos”—momento em que fica claro o ritual da pesagem do coração. A fórmula 112 do
Texto dos Caixões é denominada “para impedir que o coração de um homem se sente contra
ele”, a 459 demanda ao coração não abandonar o morto e a 715 pede para ele não se rebelar.
67
No Novo Império o coração desempenha um papel importante, e os textos funerários
reservam a ele um lugar privilegiado.
O Capítulo 30 pode ser encontrado em todos os papiros não mutilados e em centenas
de escaravelhos-coração.
O Livro dos Mortos, dependendo do copista, é dividido em partes, com aglomerados
de capítulos nos quais cada seção possui um significado. Ou seja, cada uma possui fórmulas
que remetem a uma intenção no Mundo Inferior. Serão citadas aqui as divisões de Sir E. A.
Wallis Budge (2002) e Paul Barguet (1967).
Nas palavras de Budge, o Capítulo 30 está diretamente relacionado com os capítulos
27, 28 e 29, formando, assim, a proteção ao coração do falecido, para que esse não seja
roubado pelos “ladrões de coração” no Mundo inferior. Para Paul Barguet, que faz uma
divisão do Livro em cinco seções, o Capítulo 30 está na seção número dois, entre os Capítulos
17 e 63, que são denominados capítulos de “sair ao dia”, à regeneração. Assim, ele diz que
eles compõem o triunfo e a eclosão do morto ante a incapacidade de seus inimigos.
Esse capítulo possui uma ligação com a pesagem do coração do falecido no tribunal de
Osíris, expressada na Figura 14.
Figura 14. Cena do Tribunal de Osíris17.
17 Papiro de Hunefer, que foi um escriba real ao final do reinado do faraó Ramsés I. A cena aqui representada do Tribunal de
Osíris é como a mesma aparece nas vinhetas.
68
Como visto na descrição do papiro de Hunefer, o tribunal era constituído de um
recinto e na parte superior ficavam os 42 juízes que auxiliavam Osíris (juiz supremo de todo o
cerimonial). O morto era trazido de mãos dadas com Anúbis (lado esquerdo da imagem) e,
logo após, seu coração era pesado juntamente com Maat, a deusa da verdade e da justiça, que
poderia ser representada por uma mulher sentada com seu símbolo na cabeça ou também por
uma pena (forma pela qual é mais conhecida). Há também a presença da deusa Ammit, um
híbrido com cabeça de crocodilo, corpo de leão e traseiro de hipopótamo, que espreitava ao
lado da balança. Se o coração fosse mais pesado que Maat, ela o devorava e a pessoa era
esquecida para sempre. Acontecia assim a chamada segunda morte. Um pouco adiante dessa
deusa encontramos o deus Thoth que anota todos os procedimentos. Contudo, o coração
precisava ser de mesmo peso que Maat para que o morto pudesse se tornar um justificado e
continuar sua caminhada rumo ao Mundo Inferior.
O morto recita as fórmulas desse capítulo pedindo que: ninguém se oponha a ele no
Julgamento diante dos deuses auxiliares; que o seu coração não o deixe; que os deuses
auxiliares de Osíris não façam seu nome cheirar mal; que não prevaleçam contra ele falsos
testemunhos; e que o veredicto de virtuoso lhe seja conferido depois que seu coração tiver
sido pesado.
3.4.2. O Capítulo 30
A partir desse ponto será discutido o Capítulo 30, suas divisões em 30, 30a e 30b e
suas traduções. O 30a e 30b são do início do Novo Império e o 30 é da Recensão Saíta
que,como foi enumerado primeiramente por Lepsius, ele está antes dos mais antigos. As
versões a e b foram reproduzidas pela primeira vez no sarcófago de Mentouhotep, 12ª
dinastia.
69
Malaise (1978, p.19-20) coloca em sua tese um Capítulo 30 tido por ele como ideal e
correto, mostrado na Figura 15. Esse capítulo não foi retirado de nenhum papiro específico é
uma compilação que serve, de acordo com o autor, para ilustrar como ele deveria ser.
Hieróglifos
Figura 15. Capítulo 30.
Transliteração
(1) R n tm rdi.t xcf ib n N r.f m Xr.i-ntr
(2) Dd.f
(3) ib.i n mw.t.i sp HAtj.i n Xprw.i
(4) m aHa r.i m mtrw
(5) m xcf r.i m DADA.t
70
(6) m iri rq.q r.i m-bAH irj mxA.t
(7) ntk kA.i imj X.t.i
(8) Xnmw cwDA a.wt.i
(9) pr.k r bw nfr Hn.n im
(10) m cxnS rn.i n Snf.t irj.w rmt m aHa.w
(11) nfr n.n nfr n cDm Aw ib n wDa-mdw
(12) m qmd grg r.i r-gc ntr (AA m-bAH ntr aA nb Imn.f)
(13) mk Tn(w).t.k wn.tj (m mAa-xrw)
Tradução
Oh! Coração de minha mãe, oh coração de minha mãe, oh músculo
cardíaco de minhas transformações, não se erga contra mim em testemunho,
não se oponha a mim perante o tribunal, não manifeste hostilidade contra mim na presença do guardião da balança, pois você é meu ka que se encontra
em meu corpo, o Khnum que torna vigoroso meus membros; possa sair (do
julgamento) conforme o bem o qual encarregamo-nos (portanto), não torne meu nome malcheiroso aos membros do tribunal que distribuem os homens
em pilhas, então será bom para nós, será bom para o juiz e o coração
deleitar-se-á ao anúncio do julgamento; não invente mentira contra mim ao
lado do grande deus (defronte o grande deus, mestre do Ocidente), pois eis que tua avaliação está lá (consiste na prova da justificação!)
18
Sir. Wallis Budge (1910) também faz uma compilação de papiros para representar o
Capítulo 30b ideal, no qual o título é do papiro de Ani19
, a parte marcada pela letra A é do
papiro de Nut20
e a B do papiro de Iua
18 Tradução do francês para o português feito pela autora da dissertação.
19 British Museum, no.1040
20 British Museum, no.10477
72
As rubricas também compiladas por Budge (1910, p.131) foram retiradas do papiro de
Nu e de Amenhotep.
73
Na vinheta desse capítulo encontramos o morto em pé, com as mãos erguidas em
adoração diante de um escaravelho colocado sobre um pedestal, (Figura 16).
Figura 16. Vinheta do Capítulo 30 21.
As rubricas desse capítulo ordenam que ele seja recitado diante de um escaravelho22
de basalto, encravado em um engaste de ouro e colocado no local do coração do morto para o
qual se tenha realizado a cerimônia de “Abertura da Boca”.
A seguir a tradução de Sir E.A. Wallis Budge (2002):
Fórmula de como não deixar o coração de um homem ser-lhe arrebatado no mundo
inferior:
Oh meu coração, minha mãe; Oh meu coração, minha mãe! Oh meu coração de minha existência sobre a Terra. Nada se erga para opor-se a mim no
julgamento; não haja oposição a mim diante dos príncipes soberanos;
[nenhum mal] seja manipulado contra mim na presença dos deuses; não haja separação [entre ti] e mim perante o grande deus, senhor de Amentet.
Homenagem a ti, ó coração de Osíris-quent-Amentet! Homenagem a vós ó
meus rins! Homenagem a vós ó deuses que habitais nas nuvens divinas e sois exaltados mercê dos vossos cetros! Dizei palavras justas em favor do Osíris
21 Papiro do primeiro século d.C., Dinastia ptolemaica. Texto escrito em demótico. Fonte: www.insecula.com acesso em
30/05/2006.
22 Ver Capítulo 7.
74
Auf-anc, e fazei que ele prospere diante de Neebca. E embora eu esteja junto
a terra, e na parte mais interna do céu, deixai-me permanecer na terra e não
morrer em Amentet, e deixai-me ser lá uma alma imortal para todo o sempre. (2002, p.215)
A seguir, outra tradução feita por Thomas George Allen (1974, p.39):
Fórmula de como não deixar que o peito de um homem lhe seja tirado no
domínio do deus. Para ser dita por Osíris N.
Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe, meu peito que eu
tinha na terra, não se levante contra mim como testemunha, não se oponha a
mim no Conselho. Não haja contra mim perante os Deuses. Não pese contra
mim perante o grande Deus, senhor do oeste. Saudação a ti coração mil de Osíris que preside sobre os ocidentais; saudação a ti intestinos. Saudação a
vocês, deuses que presidem os cachos e prendem seus cetros. Diga que o
bom de ações de Osiris N recomenda-o a Nehebka(u).Embora eu tenha sido sepultado no lado oeste do Céu. Eu continuo na terra, que eu não morri no
oeste (mas) me tornei um abençoado nisso até a eternidade23
.
3.4.3. O Capítulo 30a
Em muitos papiros, inclusive nos da recensão tebana, não são encontradas vinhetas;
em alguns aparece um coração colocado em cima de um vaso; também é encontrado o
falecido adorando o próprio coração e, ainda, o falecido aparece em pé diante de quatro
deuses onde um está com a mão estendida oferecendo-lhe um coração. Esse capítulo não
possui rubrica. Ele costuma aparecer com frequência em amuletos do coração.
A primeira tradução aqui descrita é de Sir E.A. Wallis Budge, mostrada a seguir.
De como não deixar que o coração do intendente da casa do intendente do selo,
Nu, triunfante, lhe seja arrebatado no mundo inferior:
Ó meu coração, minha mãe; ó meu coração, minha mãe! Ó meu coração de minha existência sobre a terra. Nada se erga em oposição a mim no
julgamento perante os senhores do tribunal; não se diga de mim nem do que
tenho feito, „Ele praticou atos contra o justo e o verdadeiro‟; nada se volte contra mim na presença do grande deus, senhor de Amentet. Homenagem a
ti, ó meu coração! Homenagem a ti, ó meu coração! Homenagem a vós, ó
meus rins (vísceras)! Homenagem a vós, ó deuses que assisti nas divinas
23 Capítulo retirado do papiro Ptolomaico de Nysw-sw.Tfwt que se encontra no Oriental Institute Museum em Chicago
75
nuvens, e sois exaltados graças aos vossos cetros! Falai [por mim] coisas
justas a Rá, e fazei que eu prospere diante de Neebca. E contemplai-me,
ainda que eu esteja preso a terra nas suas partes mais íntimas, consenti que eu permaneça sobre ela e não me deixeis morrer em Amentet, mas me torne
uma Alma Imortal dentro dela. (2002,p.216)
A segunda tradução é de Paul Barguet, mostrada a seguir.
Fórmula para impedir que o coração do N. 24
não se oponha a ele dentro do
império dos mortos:
Ó meu coração de minha mãe, ó meu coração de minha mãe, ó víscera de
meu coração de minha existência terrestre, não se levante contra mim em
testemunho na presença dos Senhores dos bens! Não diga sobre meu sujeito: “Ele fez isso, em verdade!” sobre a atenção de que eu fiz isso; não se faça
conhecido contra mim na presença do grande deus, senhor do Ocidente.
Saudação a ti meu coração! Salvação à ti, víscera de meu coração! Salvação à ti, meu seio! Salvação a vocês, deuses preeminentes, que trazem as tranças
misteriosas que se apóiam sobre seus cetros! Anuncie-me à Rê, recomende-
me à Nehebkau quando ele está no Ocidente do céu.
Que eu seja durável sobre a terra, que eu não morra no Ocidente, que eu seja um bem-aventurado aqui!(1967, p.215)
A terceira tradução é de Thomas G. Allen (1974, p.40).
Fórmula para não deixar que o coração de N se oponha a ele no domínio do deus.
Ele diz:
Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe,meu peito que eu
tive na terra, não se levante contra mim como testemunha perante os
Senhores das Oferendas. Não diga nada contra mim “Ele realmente fez isso” a respeito do que eu fiz. Não traga nenhuma carga de encontro a mim
perante o grande deus senhor do oeste.
Saudação a ti, meu coração; saudação a ti, meu peito; saudação a ti, meus intestinos. Saudação [a vocês deuses] que presidem os Cachos e possuem
seus cetros. Diga minhas boas ações a Rê; recomende-me a Nehebkau.
Olhe, ele está enterrado „no meio do grande‟ continuando na terra, não
morrendo no oeste (mas) se tornando um abençoado nisto25
.
24 N. aqui no caso é para ser substituído pelo nome do falecido.
25. Papiro utilizado pertenceu a Nwmw e se encontra no British Museum, BM10470
76
3.4.4. O Capítulo 30b
Em alguns papiros da Recensão Tebana, o Capítulo 30b aparece sem nenhuma
vinheta. Talvez, por aparecer junto com um dos textos que acompanham a cena do
julgamento, onde forma a oração colocada na boca do falecido. A presente vinheta mostra o
morto em pé, junto à balança, ao passo que seu coração é pesado junto com Ma‟at,
representada como deusa. O seu coração na imagem também pode aparecer como um
escaravelho. O macaco que está em cima de um pedestal é chamado de “Senhor de Khenemu,
o pesador justiceiro” (Figura 17).
Figura 17. Vinheta do Capítulo 30b26.
Em alguns papiros encontramos a rubrica do Capítulo 148 do Livro dos Mortos, que
diz: “Atenção, faze um escaravelho de pedra verde, lava-o com ouro e coloca-o no coração do
falecido, e o escaravelho executará para ele a cerimônia de Abertura da Boca, unta-o com
ungüento e recita o Capítulo 30” (BUDGE, 2002, p.216)
26Essa vinheta é encontrada em um papiro da 21a dinastia. Pertencente a Imenemsaouf, chefe das portas do templo do deus
Amon em Tânis. O papiro é escrito em hierático. Fonte: www.insecula.com acesso em 30/05/2006.
77
Essa divisão do Capítulo 30 costuma ser encontrada em centenas de amuletos do
escaravelho-coração ao longo de toda a história egípcia.
Segue a tradução de Budge.
De como não deixar que o coração de Osíris, escriba das sagradas oferendas de
todos os deuses Ani, triunfante seja afastado dele no Mundo Inferior:
Meu coração, minha mãe; meu coração, minha mãe! Meu coração por meio
do qual nasci! Nada surja para opor-se a mim no [meu] julgamento; não haja
oposição a mim na presença dos príncipes soberanos; não haja separação entre ti e mim na presença do que guarda a balança! És o meu duplo (Ka),
habitador do meu corpo; o deus Cnemu costurou e fortaleceu meus
membros. Possas tu sair ao lugar de felicidade para onde vamos. Não façam
os shenit, que formam as condições das vidas dos homens, meu nome cheirar mal. [Seja ele satisfatório para nós, e seja a sua escuta satisfatória para nós, e
haja alegria de coração para nós na pesagem das palavras. Não seja o que é
falso pronunciado contra mim diante do grande deus, senhor de Amentet. Grande serás, com efeito, quando te ergueres em triunfo]. (2002, p.217)
A tradução de Paul Barguet é mostrada a seguir.
Fórmula para impedir que o coração de N. não se oponha a ele no império dos mortos:
Ó meu coração de minha mãe, ó meu coração de minha mãe, víscera de meu
coração de minhas diferentes idades, não se levante contra mim em testemunho, não se oponha a mim diante do tribunal, não mostre hostilidade
contra mim na presença do guardião da balança!
Você é meu Ka que está no meu corpo, o Chnoum que torna prósperos os
meus membros. Levanta-te na direção do bem, que nós estamos preparados aqui! Não tornes fétido meu nome perante os assessores que colocam os
homens em seus (verdadeiros) caminhos! Isso será bom para nós, isso será
bom para o juiz, isso será agradável àquele que julga. Não imagines mentiras contra mim perante o grande deus, Senhor do Ocidente!Veja: de sua nobreza
depende a proclamação da justiça. (1967, p.75/76)
Por último, segue tradução de Allen.
Fórmula para não deixar que o coração de N se oponha a ele no domínio do deus. Ele
diz:
78
Meu coração de minha mãe, meu coração de minha mãe, meu peito de meu
ser, não se levante contra mim como testemunha, não se oponha a mim no
Conselho. Não pese perante o guardador da balança. Vossa arte de meu espírito que está em meu corpo, Khnum que faz o som de
minhas vísceras. Quando vós estais diante de um lugar bonito preparado para
nós, não faça nosso nome cheirar ml aos juízes que criaram a humanidade
em (seu) lugar, que será bom para nós e bom para o Auditor e aquele juiz deve ser agradecido. Não pense mentiras (contra mim) perante o Deus na
presença do grande Deus o senhor do oeste. Contemple, a distinção como
um triunfante está (envolvido).27
(1974, p.40)
A próxima variante apresentada sobre o Capítulo 30 é basicamente uma compilação
das três partes, no caso a que mais deixa a desejar com relação ao conteúdo e uso do mesmo.
Segue.
Para que o coração do morto não seja rejeitado:
Meu coração “ib” me vem de minha Mãe celeste. Meu Coração “hati” me vem de minha vida na Terra. Que não sejam levantados falsos testemunhos
contra mim! Que os juízes divinos não me repudiem! Que sejam verdadeiros
os testemunhos concernentes as minhas ações na Terra ante o Vigilante da
Balança e o divino Senhor do Amenti. Salve oh! Meu Coração “ib”! Salve oh! Meu coração “hati”! Salve oh! Entranhas minhas! Salve oh! Divindade
majestosa de luminosos Cetros, Senhores da Sagrada Cabeleira.
Que vossas Palavras de Potência me protejam ante Ra! Fazei-me vigoroso ante Neheb-Kau! Em verdade, embora meu Corpo esteja preso a Terra, não
morrerei, pois serei santificado no Amenti... Oh tu, Espírito encarregado da
Balança do Juízo, sabe: tu és meu Ka, pois habitas nos limites de meu Corpo! Tu, emanação do deus Khnum, tu dás a Forma e a vida a meus
Membros. Vem, pois aos lugares da felicidade para os quais marchamos
juntos. Que meu Nome não se corrompa nem se torne pestilento aos olhos
dos Senhores todo-poderosos que modelam os Destinos dos homens! E que o Ouvido dos deuses se regozije e seus corações se encham de alegria quando
minhas Palavras forem pesadas na Balança do Juízo! Que não se digam
mentiras diante do deus poderoso, Senhor de Amenti! Em verdade, grande serei no dia da Vitória. (NEGRAES, 1996, p.47/48)
Pela cópia de cada um dos capítulos e de cada autor, observamos algumas diferenças.
A última tradução aqui apresentada, do autor Negraes é a que apresenta menos conteúdo e
deixa uma série de lacunas entre as frases. Além de não informar de quais papiros ela foi
retirada. Coloquei-a por último para que se possa perceber que é uma combinação das
27 Papiro utilizado de Nebeseny e se encontra no British Museum, BM9900
79
traduções de Budge e Barguet, com algumas modificações que deixam o texto complicado. A
versão de Barguet é a mais completa.
Pode-se perceber também, ao longo da leitura dos capítulos, que a escrita egípcia
possui uma série de repetições (também percebido em contos e não só em fórmulas
funerárias). O texto é um pouco cansativo, porém especula-se que isto era feito para dar
ênfase à parte repetida, três vezes, porque esse número formava o plural egípcio. Por ter sido
primeiro oral e depois escrito, o conteúdo ficou o mesmo e, tanto na oralidade quanto na
escrita, a repetição é utilizada para marcar o tom e a importância do texto.
As rubricas e as vinhetas desse capítulo citam um amuleto do escaravelho objeto onde
essas fórmulas eram recitadas diante.
O escaravelho-coração de Sobemkazaf28
, Faraó da 17ª dinastia (c.1590 a.C.) foi
manufaturado como manda o Livro dos Mortos e as rubricas do Capítulo 30. No entanto, nem
todos eram feitos desse jeito. Alguns possuíam uma placa de prata na parte de trás e outros
não. O texto era incrustado na própria pedra e eles poderiam ser dos seguintes materiais: xisto,
amazonita, jaspe, serpentina, basalto, feldspato, obsidiana, alabastro e vidro. Contudo, o texto
encontrado nos escaravelhos-coração é o Capítulo 30b, mas como esse não cabia no amuleto,
trechos desse capítulo são escritos, como pode ser observado no escaravelho de Hati-iay [41],
no qual em suas nove linhas de textos o escriba pede que seu coração não se levante contra ele
e que não faça o seu nome cheirar mal. O escaravelho de Tewer-semen [43] traz cinco linhas
de inscrições e o morto pede que o coração não se levante contra ele em testemunho. O
amuleto de Intaneb [50] pede o mesmo que os outros, que o coração não se levante contra seu
dono em testemunho e que não se oponha perante ele no Tribunal. Contanto, percebe-se que a
parte principal do capítulo era inserida nos amuletos, nos quais se pede que o coração do
28 Ver catálogo [27]
80
morto não levante contra ele em testemunho. O escaravelho-coração simbolizava a
ressurreição, mas, principalmente, a proteção do coração no Mundo Inferior, para que esse
nunca fosse roubado ou que não depusesse contra seu “dono” no Tribunal de Osíris.
81
Capítulo 4. O coração
4.1. Breve histórico
Este capítulo tratará do significado do coração para os antigos egípcios por meio de
terminologia, textos funerários e amuleto do coração. O coração era para os antigos egípcios o
órgão mais importante de um ser humano. Ele era o órgão que bombeava o sangue por todo o
corpo e também a sede de todas as faculdades dos seres. Assim como nada é estático na
cultura e na religião egípcias, o significado das funções do coração também muda ao longo do
período faraônico.
Segundo a Teologia Menfita, foi no segredo do coração de Ptah que todos os seres
foram concebidos. Através da nomeação da língua do ser criador eles se tornaram visíveis.
Cada ser possui um coração-consciência que o liga ao demiurgo, o coração possui assim um
domínio sobre o corpo, ele é a sede dos pensamentos29
. Entretanto, o coração liga a pessoa
com o criador e mantém a vida física do ser humano.
De acordo com Rogério Sousa30
a partir da 4ª dinastia o coração era assemelhado ao
Sol, o centro de onde se irradia a vida. Os indivíduos eram guiados pelas ordens dos Faraós,
era uma sociedade estatal, embasada nos poderes reais. No Médio Império o coração torna-se
o centro de desenvolvimento individual a partir do qual cada homem poderia aderir à verdade.
Esse é o momento em que o coração do homem abriga seu caráter, sua virtude, sua
competência e sua vontade. A partir do Médio Império todos aqueles que morressem
poderiam se tornar um Osíris se não tivessem cometido pecados, ou seja, se o seu coração não
pesasse mais que Maat no Julgamento de Osíris. Essa atitude também mostra a divinização do
coração; é ele que recebe as ordens divinas que são transformadas em atos pelos seres
humanos. Quando uma pessoa segue seu coração ela segue uma vida digna e sem fracassos.
29 SOUSA, R.F. de A noção de coração no Egipto Faraônico: uma síntese evolutiva. In: Percursos do Oriente Antigo. s/d
30 op.cit.
82
Também é o momento de ligação do nome com o coração. A posse do coração assegura a do
nome e, assim, sua identidade está intacta.
No Novo Império a relação do homem com o coração não é mais unicamente racional,
ela passa a ser agora uma reciprocidade com o deus. Essa reciprocidade molda o caráter da
pessoa.
4.2. O coração hAti e ib
A movimentação do sangue pelo corpo não era completamente entendida pelos
egípcios antigos, no entanto, para eles o movimento de todas as partes do corpo estava ligado
às vontades do coração. Nos papiros médicos há a diferenciação de ib e hAti.
O coração hAti é o músculo cardíaco, aquele que bombeia o sangue para o corpo. É o
coração que funciona como uma máquina. Considerando que eles não detinham o
conhecimento específico de músculo, que pode ser interpretado como a máquina que mantém
o corpo funcionando juntamente com o ib. Ele era deixado nas múmias ao longo do processo
de mumificação e, caso fosse retirado por algum problema do embalsamador ele era
novamente colocado na caixa torácica. O coração passa a ser retirado da múmia e um
escaravelho-coração em pedra é colocado em seu lugar dentro do corpo somente a partir da
21ª dinastia. A proteção do coração do morto se dava de acordo com um amuleto do coração.
O coração ib era o berço de todos os sentimentos humanos, como coragem, memória,
amor, ambição, raiva. Nele também atuavam os deuses. Nas palavras de Traunecker:
O coração era igualmente a residência do intelecto, da faculdade de
concepção, sai. As „palavras do coração‟ eram os pensamentos, e o homem
sem coração era antes de tudo um imbecil. A inconsciência e o desmaio
espreitavam aquele cujo coração se afastava. (1995, p.22)
83
O coração ib era a força vital dos líquidos e do ar do corpo. Era mais que o coração,
eram os pulmões, o fígado, o estômago e o intestino. Portanto, quando uma pessoa adoecia,
era seu ib que estava enfermo; Este ocorria porque era a intervenção do deus no coração ib
(BARDINET, 1995, p.40).
Por ser o berço de todas as faculdades humanas, o coração ib possuía vontade própria.
Contanto, caso ele quisesse, poderia se levantar contra seu dono na hora do Julgamento de
Osíris. Todavia, quando o morto pede ao seu coração “não te levantas contra mim em falso
testemunho31
”, ele deixa claro essa vontade própria de seu órgão.
4.3. Terminologia
O coração que é representado tanto nos hieróglifos, como em amuletos é identificado
como o coração de um animal e não o humano. Certamente é o coração de um touro, que era
um dos itens mais importantes utilizados durante a Cerimônia de Abertura da Boca. Ele era
carregado no dia do sepultamento para restaurar as faculdades terrenas do morto
(ANDREWS, 1994).
Para escrever coração os egípcios possuíam dois modos: , ib, o coração como ele
mesmo. A outra maneira de representar o coração é: , hAti, esse é o coração
físico. As expressões formadas na escrita egípcia com a palavra coração servem para mostrar
a importância desse órgão tanto no campo simbólico como no físico.
1. Tristeza:
31Ver Capítulo 3.
84
“Oh se meu coração pudesse sofrer” (PIANKOFF, 1930, p.23)
2. Inquietude: essa pode ser demonstrada de diversas maneiras, assim como na frase que diz
“o coração não está em seu lugar”. É o que ocorre, principalmente, quando uma pessoa se
encontra apaixonada.
“Estou como um cavalo agitado, o sono não vem em meu coração durante o dia, ele
não está comigo à noite.” (PIANKOFF, 1930, p.24)
3. Abatimento: na estela de Tutahkhamun em Karnak há a seguinte frase:
“O coração está fraco em seu corpo.”
4. Satisfação: o modo de se escrever esse sentimento, , permanece o mesmo ao
longo da História Egípcia.
“Seu coração está contente.” (PIANKOFF, 1930, p.28)
85
5. Desejo:
“Seu coração desejou permanecer no Egito.” (PIANKOFF, 1930, p.29)
6. Bravura: o sentimento de bravura aparece no Texto das Pirâmides, declaração 356,
“Ele fez recuar o coração (coragem) de Seth, porque você é maior que ele.”
7. Amor: quando se está apaixonado era dito que o coração se elevava.
“Você faz o meu coração se elevar.” (PIANKOFF, 1930, p.40)
8. Memória, pensamento:
“Coloque os escritos em seu coração.” (PIANKOFF, 1930, p.45)
9. Espírito e sabedoria: freqüentemente o coração tem o significado de espírito.
“Meu coração sabe, mas os meus olhos não o vê.” (PIANKOFF, 1930, p.48)
86
O verbo compreender pode ser escrito por , que significa “liberar pelo
coração”.
4.4. O coração nos textos religioso-funerário
Neste tópico pretendemos mostrar como o coração é diferenciado e representado no
Texto das Pirâmides, Texto dos Caixões e no Livro dos Mortos. Com relação ao Livro dos
Mortos, serão apresentados os chamados capítulos do coração, que são classificados
juntamente com o Capítulo 30 como capítulos de “sair ao dia” 32
.
No Texto das Pirâmides o coração se mantido em seu lugar permite ao Rei morto a
manifestação de seus poderes vitais e a utilização de seus membros, a posse do ka e do ba.
Nesses textos, quando as partes do corpo se identificam com deuses, a designação de
coração é hAti
“... sua espinha dorsal é Neith e Selket, seu coração é Sekhmet, a grande.”
(PIANKOFF, 1930, p.10)
Outro trecho do Texto das Pirâmides que faz essa alusão aos deuses é:
32 Ver Capítulo 3.
87
“O coração de N é como Bastet... o ventre de N é como Nut... a parte posterior é como
Heket.” 33
(PIANKOFF, 1930, p.10)
O coração com a designação ib aparece como memória e coragem. Na declaração 477
ele aparece como memória:
O céu se agita, a terra treme, Hórus chega, Thoth aparece, eles erguem Osíris ao seu lado e o fazem ficar em pé perante as Duas Enéades. Lembre Seth, e
coloca em seu coração as palavras ditas por Geb..34
. (FAULKNER, s/d,
p.164)
Com o significado de coragem o coração aparece na declaração 356:
Oh Rei, Hórus veio e ele pode procurar por você, ele fez com que Thoth
virasse para trás os seguidores de Seth para você, e ele os trouxe junto, ele
conduziu para trás o coração de Seth para você, porque você é maior do que ele... (FAULKNER, s/d)
A ligação do coração com o ka aparece na declaração 659:
“Você tem seu coração, você tem o seu ka.”(FAULKNER,s/d, p.271)
Na declaração 486, o coração como ib e hAti aparecem juntos:
Saudação a você, suas águas trazidas por Shu, nas quais as duas fontes se
levantaram, onde Geb banhou seus membros. Corações (ibw) estão
impregnados com medo, corações (hAti) estão impregnados com terror...(FAULKNER,s/d,p.173)
No Texto dos Caixões na fórmula 229 o morto pede para “ser apto a falar e prosperar
em mágica, por ser quem equipa o coração com desejos”. Há também passagens relacionadas
com o ato de fazer o coração bater mais rápido.
33. O espaço deixado em branco tanto nos hieróglifos referem-se ao local onde se inseria do nome do morto.
34 Tradução do inglês para o português feito pela autora.
88
Os capítulos relacionados ao coração no Livro dos Mortos são 26-29b. Eles estão
apresentados em hieróglifos e tradução feitos por Sir Wallis Budge.
A vinheta do Capítulo 26 retirado do papiro de Ani35
traz o morto vestido de branco,
com o coração na mão direita se dirigindo a Anúbis. Na mão esquerda que está estendida, Ani
segura um colar de contas coloridas de várias voltas que possui fecho em forma de um pilono
com um escaravelho ao centro.
35 Papiro Ani BM10470, folha 15. Os hieróglifos dos Capítulos 26, 27, 28, 29, 29a e 29b foram retirados do livro BUDGE,
E.A.W.The book of the dead. The chapters of coming forth by Day. London: Kegan Paul Trench Trübner & Co. LTD,
1898
89
Fórmula de como dar um coração a Osíris no Mundo Inferior. Disse ele:
Possa meu coração (ab) estar comigo na Casa dos Corações! Possa meu
coração (hat) estar comigo na Casa dos Corações! Possa meu coração estar comigo, e descanse ele ali, [ou] não comerei dos bolos de Osíris no lado
oriental do Lago das Flores, nem terei um barco pra descer o Nilo, nem outro
para subi-lo, nem poderei singrar contigo às águas do Nilo. Possa minha boca [ser-me dada] para que eu fale com ela, e [sejam-me dadas] minhas
pernas para eu andar com elas, e minhas mãos e braços para eu derrubar meu
90
inimigo. Sejam-me abertas as portas do céu; escancare Seb, o Príncipe dos
deuses, suas mandíbulas para mim; abra ele meus olhos, que estão vendados;
faça ele que eu afaste uma da outra minhas pernas, que estão amarradas; e firme Anpu (Anúbis) minhas coxas para que eu fique ereto sobre elas. Faça a
deusa Sequet que eu me erga de modo que possa subir ao céu, e faça-se o
que eu ordenar na Casa do duplo de Ptá (isto é, Mênfis). Compreendo com o
coração. Alcancei o domínio do meu coração, alcancei o domínio das minhas mãos, alcancei o domínio das minhas pernas, alcancei o poder de fazer o que
agrada meu duplo. Minha alma será presa ao meu corpo às portas do mundo
inferior; mas nele entrarei em paz e dele sairei em paz. (BUDGE, 2002, p.211)
Esse capítulo mostra a relação dos dois corações com os membros e como o morto
necessita do coração para ter todas as suas atividades restabelecidas no Mundo Inferior.
Consegue-se também perceber a diferenciação dos dois corações. Na parte em que ele diz
“compreendo com o coração” é onde está representado o coração como consciência.
O Capítulo 27 possui na vinheta Ani com as mãos erguidas em sinal de adoração, seu
coração está colocado em um pedestal, diante dos quatro deuses sentados na representação do
hieróglifo de Maat.
91
Fórmula de como não deixar o coração (hAti) de um homem ser-lhe arrebatado no
Mundo Inferior. Disse Osíris Ani:
Salve, ó vós que arrebatais corações! [Salve], ó vós que roubais e esmagais
corações, e que fazeis [o coração de um homem sofrer transformações de acordo com os seus atos, não deixeis que o que ele fez prejudique perante
vós] 36
Homenagem a vós, senhores da eternidade, possuidores da
perpetuidade, não empolgueis este coração de Osíris Ani, este coração de Osíris, e não deixeis que más palavras se levantem contra ele; porque este é
o coração de Osíris Ani, vitorioso, e pertence ao de muitos nomes (isto é,
Tot), o poderoso cujas palavras são seus membros, e que mandou seu coração habitar em seu corpo. O coração de Osíris Ani é vitorioso, foi refeito
diante dos deuses, ele [Osíris Ani] conseguiu dominá-lo, não lhe falaram [de
acordo com] o que fez. Ele alcançou poder sobre seus próprios membros. O
coração lhe obedece, ele é o seu senhor, tem-no em seu corpo, e jamais o perderá. Eu, Osíris, o escriba Ani, vitorioso na paz e triunfante na formosa
Amenta e sobre a montanha da eternidade, ordeno-te que me obedeças no
Mundo Inferior.
Esse capítulo mostra a dominação do morto perante o seu coração e como nesse e nos
capítulos seguintes haverá sempre um pedido para que o coração não se levante contra seu
dono, como visto claramente no Capítulo 30b.
O Capítulo 2837
não possui vinheta.
36 As palavras entre chaves são do papiro de Mes-em-neter
37 Papiro de Nu, BM 10477, folha g
92
Fórmula de como não deixar o coração do intendente da casa do intendente do
selo, Nu, triunfante, ser-lhe arrebatado no Mundo Inferior. Diz ele:
Salva deus-Leão! Sou a Sarça Florida (Unb). O que abomino é o cepo
divino. Não deixes que este meu coração (hati) me seja arrebatado pelos
deuses combatentes de Anu. Salve ó tu que enrolas ataduras em torno de Osíris e viste Set! Salve, tu que voltaste depois de havê-lo derrotado e
destruído em presença dos poderosos! Este meu coração (ab) [senta-se] e
lastima-se diante de Osíris; tem suplicado por mim. Dei-lhe e decretei-lhe os
pensamentos do coração na Casa do deus Usec-hra e trouxe-lhe areia (sic) à entrada de Quemenu (Hermópolis Magna). Não deixes que meu coração
(hati) seja arrebatado! Faço-te morar no seu trono, ó tu que junta corações
(hatu) de força contra todas as coisas que abominas, e conseguir comida entre as coisas que te pertencem e estão contigo em razão da tua força dupla.
E meu coração (hati) é fiel aos decretos do deus Tem, que me conduz aos
93
antros de Suti, mas não deixes que lhe seja dado meu coração, que fez o que
desejava diante dos príncipes soberanos que estão no Mundo Inferior.
Quando encontram a perna e as ataduras eles as enterram. (BUDGE, 2002, p.213)
Assim como no capítulo anterior, o morto pede que o coração hAti não seja destruído
pelos deuses, para que assim ele possa recuperar o domínio de seus membros.
Na vinheta do Capítulo 2938
Nu está em pé com um bastão na mão esquerda.
Fórmula de como não deixar o coração de um homem ser-lhe arrebatado no
Mundo Inferior. Osíris Ani, vitorioso, diz:
Volta para trás, ó mensageiro de todos os deuses! Dar-se-á que tenhas vindo [para arrebatar-me] o coração que vive? Mas meu coração que vive não te
será dado. [Á proporção que] avanço, os deuses atentam para minhas
oferendas, e todos caem sobre seus rostos em seus próprios lugares.39
No presente capítulo, o morto pede a proteção de seu coração ib porque ele precisa
além do movimento de seus membros (Capítulo 28), também de sua memória, caráter e
sentimentos.
38 Papiro de Nu, BM 10477, folhas i, j
39 BUDGE 2002, op.cit.pág.213, ele nomeia esse capítulo como 29a, no entanto ao se olhar os hieróglifos e as referências,
esse corresponde ao 29.
94
O Capítulo 29a40
não possui vinheta.
Fórmula de como não permitir que o coração de Amen-hotep, vitorioso, seja
levado embora no Mundo Inferior. Diz o morto:
Meu coração está comigo, e jamais acontecerá que ele venha a ser levado embora. Sou o senhor dos corações, o matador do coração. Vivo na justiça e
na verdade (Ma‟at) e nelas tenho o meu ser. Sou Horo, habitador de
corações, que está dentro do habitador no corpo. Vivo em minha palavra, e meu coração tem ser. Não se permita que meu coração me seja arrebatado
nem ferido, nem que eu perceba ferimentos ou talhos por ele me haver sido
arrebatado. Seja-me permitido ter meu ser no corpo de [meu] pai Seb, [e no corpo de minha] mãe Nut. Não fiz o que é abominado pelos deuses; não se
permita que eu sofra ali uma derrota, [senão que eu seja] triunfante.41
Mais uma vez o morto está falando dos sentidos e pensamentos.
40 Papiro de Amen-hotep, Naville, Todtenbuch, Bd. I, Bl.40
41 BUDGE, 2002, op.cit. pág. 214, nesse capítulo ocorre o mesmo problema que o anterior. O autor o nomeia como 29b e ele
é 29a
95
O Capítulo 29b42
possui um coração em sua vinheta.
Fórmula de um coração de cornalina. Diz Osíris Ani, triunfante:
Sou o Benu, a alma de Rá e guia dos deuses no Tuat (Mundo Inferior). Suas
almas divinas saem à terra para fazer a vontade dos seus duplos, permita-se
portanto à alta de Osíris Ani sair para fazer a vontade do seu duplo.43
O coração era deixado no corpo durante o processo de mumificação porque ele poderia
revelar o caráter da pessoa após a morte.
4.5. Amuleto do coração
Não há até o momento uma descrição pormenorizada do significado preciso do
amuleto do coração. O primeiro autor a estabelecer uma tipologia para esse amuleto, assim
como para os escaravelhos, foi Flinders Petrie em sua obra Amulets.
É usualmente aceito que esse amuleto representava o coração do touro, haja vista que
esse é uma representação do hieróglifo. O texto que esses amuletos traziam era o Capítulo 29b
do Livro dos Mortos (SHAW e NICHOLSON, 1995).
Para Carol Andrews (1994, p.72), somente dois amuletos do coração são conhecidos
anteriormente ao Novo Império e esses são utilizados até o final das dinastias egípcia. No
42 Papiro de Ani, BM 10477, folha 33
43 BUDGE, 2002 op.cit. pág. 214. Ocorre aqui o mesmo problema, Budge o nomeia como 29c quando ele é 29b.
96
entanto, confrontando essa datação Rogério Sousa (2005) por meio de seus estudos com
amuletos coração de diversos Museus, mas especificamente, o Museu do Louvre e o Museu
do Cairo classificam o aparecimento do amuleto do coração na 6ª dinastia.
Esses amuletos eram produzidos para o uso cotidiano e por serem de tamanho pequeno
poderiam ser colocados em pulseiras ou colares. A partir da 18ª dinastia é possível diferenciar
os que eram produzidos para fins funerários e os cotidianos. Os amuletos funerários possuíam
dimensão maior e decoração diferenciada. No período Raméssida a produção desses amuletos
aumentou consideravelmente e sua função passa a ser paralela com a do escaravelho-coração.
97
Capítulo 5. Escaravelhos
Os egípcios reconheciam uma variedade de escaravelhos na natureza e, não obstante,
faziam os seus, com a mesma multiplicidade e ótima imitação do natural.
Neste capítulo serão mostrados os escaravelhos de acordo com suas funcionalidades
cotidianas e religiosos dos amuletos, nos quais há a simbologia do renascimento e da proteção
do vivo assim como do morto. Será apontada qual a morfologia biológica, quando eles
começam a ser utilizados na cultura egípcia, assim como suas funções de selo, real, particular
e comemorativo.
Os artefatos em forma de escaravelhos são encontrados tanto no Egito como na Núbia,
Síria e Palestina. Assim como, há uma grande quantidade encontrada na Grécia, que datam do
período em que os gregos dominavam o Egito.
5.1. Morfologia biológica
Os escaravelhos observados pelos egípcios antigos e posteriormente transformados em
artefatos são da família Scarabaeidae ou Coprophagi. Essa família é composta por uma grande
quantidade de espécies, cerca de 30 mil. A maioria dos escaravelhos dessas famílias pertence
às subfamílias Scarabaeinae, Aphodiinae e Melolonthinae. No primeiro grupo estão os
esterqueiros que são cerca de cinco mil espécies. O tipo admirado e copiado pela população
do Egito Antigo é o Ateuchus que, das 40 espécies, 30 pertencem à África. O escaravelho
sagrado dos egípcios é o Scarabeus sacer ou, para alguns autores, Ateuchus sacer. Este inseto
é encontrado no Egito, no sudoeste da Europa, China, oeste da Índia, leste da Ásia e nordeste
da África. Ele mede 2,5 cm (MEULENAERE, 1972).
Os escaravelhos esterqueiros chegam a mover com suas patas um peso equivalente a
50 vezes o seu. Alguns possuem pelos em suas patas, o que facilita a locomoção na areia.
98
Esses pelos são representados em escaravelhos-coração como estrias nas patas, alguns
exemplos são os escaravelhos de número [55], [57], [59].
A imagem mostrada na Figura 18 é uma representação desse inseto, que serve para
ilustrar o tipo de escaravelho aqui estudado.
Figura 18. Scarabeus sacer44
O ciclo de vida do Scarabeus sacer observado por escritores gregos, era de mesmo
modo imaginado pelos egípcios antigos. Plutarco45
relata que: a raça dos escaravelhos não
tem fêmea; são todos machos. Eles ejetam seus espermas em uma pelota redonda de material
na qual eles a rolando com suas patas traseiras, de mesmo modo que o sol aparenta girar nos
céus na direção oposta ao seu próprio curso, a qual é do leste para o oeste. Em Horapolo46
há
a seguinte definição: o escaravelho macho por ocasião da reprodução juntava excrementos e
os transformava em uma forma esférica, rolando-a de leste para o oeste, olhando-se para o
leste. Tendo um buraco para o esterco, ele enterrava a bola por 28 dias e no 29° dia ele abria a
bola e a jogava na água. Dela, o escaravelho vem à vida.
Hoje sabemos, ao contrário do que os egípcios imaginavam e que foi relatado por
escritores gregos, que esse ciclo consiste em a fêmea fazer uma esfera de estrume de gado e
44 Imagem cedida pelo prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior
45 Em Ísis e Osíris 318A
46 Horapolo, i, 10
99
rolá-la pelo deserto com o auxílio de suas patas traseiras, com a cabeça voltada para o oeste.
No trajeto ela seleciona um macho para copular, a copulação leva desde minutos até 17 horas.
Após o ato, ela procura um lugar seguro para enterrar a bola e, em seguida, coloca o ovo
dentro da esfera. O processo de gestação de um escaravelho se desenvolve em 28 dias, essa
larva se alimenta dos resíduos da esfera de excrementos. No vigésimo dia o escaravelho nasce
e o ciclo de rolar a bola recomeça. No entanto, a bola de excremento pode ser roubada por
outro escaravelho, que resulta resultando em grande embate. Por causa dessa briga, eles eram
vistos como símbolo de coragem e aptidão física (BEN-TOR, 1989). O inverno é o período
que os esterqueiros preferem para fazer e rolar suas bolas de excremento. O caminho
percorrido por eles é longo.
A Figura 19 mostra um escaravelho fêmea rolando a bola de excrementos e a Figura
20 mostra o diagrama do ciclo de vida desse inseto.
Figura 19. Scarabeus sacer fêmea e a esfera de excrementos47
47 Exemplar de um Scarabeus sacer fêmea, rolando a bola de excrementos com a ajuda das patas traseiras. Imagem cedida
pelo professor Dr. Antonio Brancaglion Junior.
100
Figura 20. Ciclo de vida48
Para os egípcios antigos, a idéia de “geração” se dava por causa da maneira como o
escaravelho se enterrava com a bola. Com isso, fizeram uma analogia com o deus criador
Khepri, que era aquele que se autocriava.
5.2. Período de utilização
A datação precisa de quando esse artefato começa a ser confeccionado até o presente
momento da Egiptologia não pode ser estabelecido. Apesar de haver milhares de escaravelhos
espalhados pelos museus e coleções particulares, boa parte desses foi encontrada sem
contexto e alguns não estão em registros de escavações. Mesmo os escaravelhos com nomes
48 Imagem cedida pelo prof. Dr. Antonio Brancaglion Junior e as legendas traduzidas por mim
101
reais não podem ser utilizados para datações porque eles eram também produzidos anos após
a morte do Faraó. Mostraremos como diversos autores que estudam esses artefatos debatem as
datações.
Há uma convenção entre os estudiosos citados ao longo desse tema que os egípcios
começam a utilizar esses artefatos no período Pré-dinástico. Desde essa época eles observam
o ciclo de vida dos escaravelhos porque jarros com escaravelhos secos desse período foram
encontrados em sepulturas49
. Em Naqada foram localizadas as representações de dois
besouros em serpentina verde e também em Tarkhan (cova 120).
Segundo autores como W. M. Flinders Petrie, John Ward e Isaac Myer, escaravelhos
começam a ser utilizados desde o período pré-dinástico, mas os que possuem nomes de reis
são da 3a dinastia. Já para Meulenaure, começaram a ser utilizados somente com Khufu, faraó
da 4a dinastia. W.M. Flindres Petrie diz que os escaravelhos de Khafra — trabalhados por ele
e que estão na University College of London— são 26 no total. Os pertencentes ao faraó
Khufu somam 22 e Menkhaure não possui nenhum. Como o feitio desses escaravelhos era
parecido, Petrie afirma que poderia causar confusão para se saber a quem pertenceu cada uma.
Segundo Olga Tufnell (1984, pág.xv) é possível traçar uma cronologia baseada nos
escaravelhos de governantes da 12ª dinastia. Contudo, não é possível delinear essa cronologia
da 13ª até a 18ª dinastias com base em seus estudos.
No período de dominação dos Hicsos, há uma vasta produção dos escaravelhos como
nunca antes vista na cultura egípcia antiga e como não aconteceria mais. Para Petrie (1911), a
ordem dos nomes dos faraós que compuseram as dinastias dos Hicsos pode ser organizada de
acordo com seus escaravelhos e o grau de degradação de sua decoração. Para ele, é evidente
49 Encontrados em Diospolis (cova B 17, 217, 234 e 328). Ver: PETRIE, W.M.Flinders. Scarabs and cylinders with names.
London: School of Archaeology in Egypt University College, 1917
102
que os escaravelhos da 15ª a 17ª dinastias foram encontrados no Delta, porque era nesse local
que estava capital do governo dos Hicsos. As escavações de Manfred Bietak em Tell el-
Dab‟a, antiga Avaris identificou 15 nomes de reis que só aparecem em escaravelhos. Esses
nomes são egípcios e alguns semíticos, precedidos por epíteto como “o bom deus”, “o filho de
Rê” e “o governante de países estrangeiros”. Os primeiros dois epítetos foram utilizados por
Reis egípcios por anos. Estilisticamente, esses escaravelhos podem ter sido feitos tanto no
Egito como na Palestina. No entanto, os estilos os ligam aos produzidos durante a 13ª
dinastia. Até hoje, pelo trabalho realizado por Bietak não é possível organizar esses
escaravelhos cronologicamente, porque o egiptólogo não concluiu seus trabalhos de
escavação. Para John Ward os escaravelhos deixam de ser utilizados no período de dominação
Greco-Romana porque eles não entendiam o que estava escrito nos hieróglifos e faziam uma
cópia mal feita deles, com uma série de erros e, com isso, eles passam a utilizar menos esses
artefatos. De acordo com os outros autores, eles deixam de ser utilizados gradativamente na
30ª dinastia.
Os estudiosos supracitados tentaram fazer uma cronologia dos escaravelhos, no
entanto a de Willian A. Ward dos anos 1970 sempre foi a mais utilizada. Não obstante, David
O‟Connor, Manfred Bietak, James Weisntein e Daphna Ben-Tor sugerem que a maneira de se
fazer essas cronologias sejam revistas (WILKINSON, 1994).
Segundo Salima Ikram (2005), escaravelhos podem ser encontrados nos sítios de
Heliopolis e Tebas. A autora enfatiza que no Período Greco-Romano vários animais eram
mumificados, como cabras, babuínos, carneiros, leões, gatos, cães, hienas, peixes, gazelas. Os
escaravelhos e suas bolas de excrementos também eram mumificados. A Figura 21 mostra um
caixão ao seria colocada múmia do escaravelho.
103
Figura 21 caixão de escaravelho50
Após esse período de produção, os escaravelhos ainda foram encontrados em regiões
onde houve contato com a cultura egípcia antiga, como Grécia, Sírio-Palestina, Sudão e
Roma.
Percebe-se que os autores se baseiam em recursos estilísticos para a datação desses
artefatos, como decoração e formato do inseto, da cabeça do animal, o topo da peça, posição e
representação das pernas.
5.3 Tipologias
Para o estudioso W. M. Flinders Petrie (1917, pág.5), que fez a primeira padronização
dos estilos de escaravelhos para uma possível datação, em cada época são utilizados cinco
estilos. O Scarabeus é o mais facilmente reconhecido, possui o clípeo serrilhado e a cabeça
em forma lunar. O Catharsius possui uma cabeça quadrada e é o segundo mais comum.
Quando possui o clípeo angular em direção ao prototórax, provavelmente imitando um chifre,
é o Copris. O Gymnoplerus tem marcas dos dois lados em direção ao élitro. Finalmente, o
Hypselogenia é caracterizado por uma parte traseira alongada. A tipologia é feita também
50 Caixão de Madeira para escaravelhos mumificados, datado c. 664 a.C. Está no British Museum, EA36155. Fotografia da
autora da dissertação.
104
com base no estilo de manufatura de cada período. Destacando os seguintes padrões utilizados
para se fazer as patas com pelos, a cabeça de forma lunar ou profunda ou fundida com o
clípeo, clípeo destacado ou plano, as marcas em V no topo do élitro e linhas curvas na parte
traseira. Para uma possível datação pode ser feita porque entre a 12ª e 18ª dinastias nenhum
escaravelho produzido possuía decoração delicada. As espirais eram perfeitas na época de
Senusret I, mas na de Senusret II há uma queda na preocupação com a perfeição. Os desenhos
ovais somem no período de Senusret III. Os escaravelhos do período dos Hicsos não possuem
decorações elaboradas como os posteriores. A Figura 26 traz o desenho feito por Petrie onde
ele representa cada um de seus tipos de escaravelhos.
Figura 22. Tipologia feita por W.M.Flinders Petrie51
51 A presente tipologia está em PETRIE, 1917, p.176
105
No entanto, hoje essa tipologia é revisada pelos egiptólogos que estudam esses
artefatos, porque mesmo passado muito tempo da morte de um Faraó ainda se faziam
escaravelhos homenageando-o. É necessário levar em consideração que Petrie desenvolve
essa tipologia no início do século XX e, após esse período, uma infinidade de escaravelhos foi
encontrada durante as escavações.
A autora Kathlyn M. Cooney (2008) sugere a seguinte tipologia, na qual ela divide os
escaravelhos em cinco grupos. O primeiro grupo de escaravelhos data do Médio Império ao
Período Tardio e tem a iconografia de deuses e frases que trazem boa sorte. Esse grupo
também possui artefatos do Novo Império e Terceiro Período Intermediário que são
associados particularmente ao deus Amun. O segundo grupo inclui o nome de governantes
escritos na base que datam do Médio Império ao Período Tardio. A terceira categoria possui
nomes e títulos de pessoas que não fazem parte da realeza, o que sugere que seu uso era como
selo, um tipo muito utilizado no Médio Império. O quarto grupo pertence a uma decoração
Asiática que foi adaptada à iconografia egípcia, a sua maioria data do Médio Império e 2°
Período Intermediário, uns poucos são do Novo Império. O quinto grupo possui decoração
geométrica e estilizada e data do Médio Império e 2° Período Intermediário e a decoração
abstrata, floral e padrões humanóides é a mais comum.
Para John Ward52
a arte decorativa mais antiga dos egípcios é a encontrada nos
escaravelhos. Para ele, a decoração em espiral possuía um significado ainda não resolvido, ela
passa a integrar a composição decorativa de armas, objetos de madeira e relevos. Nessa época,
os padrões de decoração sofrem mudanças, são motivos florais, desenhos enrolados, espirais e
outros padrões decorativos. Há também hieróglifos com qualidades de amuletos e poderes.
Nos escaravelhos do Médio Império os hieróglifos estão simplesmente arranjados em maneira
52 Ward, 1902, Em seu livro há pranchas com a representação dos escaravelhos e o de Nebkara, faraó da 3ª dinastia.
106
decorativa, provavelmente utilizados como símbolos mágicos (WILKINSON, 2008, p.17),
conforme mostram a Figuras 23-27.
Figura 23. Escaravelho do Médio Império53 Figura 24. Escaravelho do 2° Período Intermediário54
Figura 25. Escaravelho do 2° Período Intermediário55 Figura 26. Escaravelho do período de dominação dos
Hicsos56
53 Petrie Museum, UC11141 54 Petrie Museum, UC11121 55 Petrie Museum, UC28868 56 Petrie Museum, UC28878
107
Figura 27. Escaravelho do Novo Império57
Os exemplos citados ilustram a discussão dos autores com referência à decoração dos
escaravelhos. Contudo, não é correto afirmar que uma época possui uma decoração melhor
que a outra. Há sim uma preocupação com os padrões decorativos, assim como o seu feitio se
dá com relação ao seu período. No Novo Império os hieróglifos compõem nomes e títulos e
são mais claramente vistos. Contundo, na Baixa Época os escaravelhos possuem uma forma
mais simplificada tanto em sua base como em seu topo.
Atualmente, para se efetuar uma datação são usados todos os critérios viáveis, como
inscrições, formas, material, tamanho e contexto arqueológico (quando possível).
5.4. Escaravelhos com nomes reais
Os escaravelhos com nomes reais começaram a ser fabricados provavelmente na 3ª
dinastia. Eram fabricados durante a vida do rei, mas em alguns casos eles são recentes, como
um sinal de adoração ao faraó morto. A maioria desses escaravelhos foi feita como sinal de
devoção ao faraó.
Para Richard Wilkinson (2008, p.30), os escaravelhos de Khufu e de Unas somente
foram fabricados no Novo Império e não durante o reinado desses faraós. Contudo,
57 Petrie Museum, UC11256
108
discordando desse ponto do autor, sabe-se da presença desses escaravelhos durante os
reinados dos faraós do Antigo Império, como o de Unas da 5ª dinastia e Pepi I da 6ª dinastia.
O escaravelho de Unas, mostrado na Figura 28 é da Baixa Época, porque o hieróglifo em
forma de coelho começa a ser utilizado nesse período.
Figura 28. Escaravelho com o nome do Faraó Unas58
Figura 29. Escaravelho com nome de um Rei do período de dominação do Hicsos59
58 Escaravelho contendo o nome do faraó Unas, Petrie Museum, UC13382 59 Escaravelho do período de dominação dos Hicsos, contendo o nome do rei Sheshi 15ª dinastia (c.1666 a.C.). Hoje está no
Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, com o número de referência E.SC.52.
109
5.5. Escaravelhos selos
A utilização dos escaravelhos como selo se dá a partir da 13ª dinastia, onde nomes e
títulos de grande oficiais começam a aparecer entalhados nos escaravelhos e não somente
cartuchos com nomes reais. Esses escaravelhos eram colocados em anéis e empregados como
selos.
Os escaravelhos selos eram utilizados para lacrar potes com mantimentos e bebidas e
para que os jarros não se perdessem ou fossem roubados. O selo desses objetos era feito com
uma faixa ou tampa de argila e, ainda molhada, era feita a impressão da parte escrita do
escaravelho. Em outra maneira, uma fita de linho era colocada envolvendo o objeto a ser
lacrado, colocava argila e fazia a impressão. Antes desse período, ele o escaravelhos era usado
somente como amuleto e sem inscrição.
As Figuras 30 e 31 mostram exemplos da tampa de argila com a impressão e de um
anel com um escaravelho-selo.
110
Figura 30. Jarro contendo o selo em sua tampa60
Figura 31. Escaravelho-selo61
60 Jarro com tampo em argila e contendo no lado inferior direito da tampa o selo com a designação de a quem ele pertencia.
Possui 1 m de altura e 25,4 cm de diâmetro. Objeto atualmente no British Museum, London, UK, sob número de referência
EA 27741.
111
No período Amarniano62
os escaravelhos são encontrados em recintos fechados, como
as casas.
5.6. Escaravelhos particulares
Esse tipo de escaravelho possuía o nome de pessoas ou títulos. Contudo, eles não são
amplamente encontrados nas escavações como os selos e os amuletos. O Médio Império é o
período da História Egípcia no qual se observa grande quantidade desses artefatos. Todavia,
para W.M. Flindres Petrie (1917, p.12), o escaravelho mais antigo desse tipo pertenceu a
hetep-hers, que viveu provavelmente na 4ª dinastia.
5.7. Escaravelhos comemorativos
Os escaravelhos comemorativos tinham o objetivo de celebrar um grande feito do
Faraó. Há peças que narram grandes caçadas e casamentos.
A fabricação desses escaravelhos foi feita, em grande maioria, no Novo Império e
muitos são do reinado de Amenhotep III. Contudo, seus escaravelhos também foram
encontrados na Núbia e Palestina.
O escaravelho que relata o casamento do Faraó com a Rainha Tiy aparece na Figura
36 e possui o seguinte texto:
(1) Hórus vivo, Poderoso Touro, Mostra-se na Verdade
(2) [Ele das] Duas Damas, Fundador das Leis,
(3) Pacificador das Duas Terras, Hórus de Ouro, Grande de Força, Destruidor dos
Asiáticos;
(4) Rei do Alto e do Baixo Egito, Senhor das Duas Terras, Neb-Maat-Rê, filho de Rê
Amenhotep Governante de Tebas,
61 Escaravelho selo, colocado em um anel, utilizado para lacrar potes com mantimentos. Sua feitura se deu na 19ª dinastia
(1293-1185 a.C.), ele possui o tamanho de 1,8 cm. O objeto está no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob o número de
referência E. 106.1920 62 Período governado pelo faraó Amenhotep IV/Akhenaton (1350-1334 a.C.) no qual foram feitas reformas político-religiosas
no Egito.
112
(5) O faça Viver. A Grande esposa Real Tiy, a faça viver o nome de seu Pai
(6) Yuia, O nome de sua Mãe Thuia,
(7) Ela é a esposa do poderoso rei
(8) A bondade do sul dele se expande a Karoy [na Nubia]
(9) [Sua bondade] ao norte para Naha-
(10) rin [na Siria]
Figura 32. Escaravelho com o relato do casamento do Faraó com a Rainha Tiy63
Amenhotep III também possui escaravelhos que narram caçadas a touros e leões. Os
relacionados a leões são 137, encontrados até hoje e que contam várias caçadas realizadas
pelo Faraó. Ele também possui escaravelhos que relatam a abertura de lagos.
O Faraó Amenhotep IV/Akhenaton possuía esse tipo de escaravelhos e mostrava
sempre o seu respeito à Aton, seu deus Sol, e também aparecia o nome de sua rainha Nefetiti.
Os escaravelhos produzidos no período de Ramsés II e contavam seu oitavo jubileu.
Os escaravelhos comemorativos param de ser fabricados provavelmente ao final do
Novo Império. No entanto, mesmo 1000 anos após sua morte, o faraó Tuthmosis III ainda é
63 Escaravelho comemorativo onde está relatado o casamento do faraó Amenhotep III com a rainha Tyi. Possui entre 6-7 cm.
Objeto encontra-se no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK (número de acesso E.86.1934).
113
homenageado com escaravelhos. Isso poderia ocorrer porque o nome do faraó, Menkheperre
era uma palavra sagrada para os egípcios.
5.8. Escaravelhos como amuletos
O amuleto de escaravelho era utilizado tanto em vida como na morte. O mais antigo
encontrado estava em uma tumba da 6ª dinastia, feito em Marfim. A sua função simbólica se
dava principalmente por forma que já remetia a esperança de uma nova vida. Os textos e
imagens decorativas em sua base também são marcantes para determinar o simbolismo.
Alguns textos possuíam os dizeres de “boa sorte”, “que você seja abençoado com muitos
filhos”, “estável é a cidade que Amun manda”, “faça com que Khonsu seja a minha proteção”.
Ou seja, esse amuleto provia proteção e atraia boa sorte para quem o utilizasse, tanto em vida
como na morte.
Os escaravelhos continham inscrições que remetiam a deuses, mas também a faraós e
esses nomes possuíam poderes de proteção, se acrescessem palavras com significado mágico
o poder desse amuleto seria maior para quem o usasse.
Carol Andrews (1994, p.52) discorda a afirmação anterior, para ela os escaravelhos
como amuleto tinham a sua base sem inscrição. O material era o determinante para atestar a
sua função, como lápis-lazúli, turquesa. Sobre materiais a afirmação da autora está correta,
mas nem sempre seriam utilizadas rochas preciosas ou semipreciosas para a manufatura desse
amuleto. Assim, sendo o texto também atestaria juntamente com a forma e se possível o
material o poder de proteção desse escaravelho.
O material utilizado para a fabricação desses amuletos poderia ser qualquer matéria-
prima que o artesão tivesse disponível. Contudo, os mais comuns eram de Esteatita e Faiança.
O tamanho destes escaravelhos é 1 a 5 cm e eram utilizados em anéis, colares e braceletes,
pois possuíam furos longitudinais
114
O amuleto do escaravelho-coração64
era feito para ser usado somente no dia do enterro
e sepultado com a múmia. Outros amuletos de escaravelho que eram usados em vida também
eram enterrados com o falecido65
, mas sem a mesma função religiosa.
O amuleto do escaravelho alado, era colocado nas bandagens da múmia, também faz
parte do grupo dos escaravelhos usados como amuletos.
5.9. Escaravelhos fora do Egito
Escaravelhos foram encontrados em outras regiões como Etruria, Creta, Chipre,
Grécia, Península Ibérica e Núbia, mostrando a relação dos egípcios com outros povos.
Para Olga Tufnell (1984, p.1), ao se referir a escaravelhos selos, logo se pensa nos
produzidos no Egito. Contudo no Primeiro Período Intermediário há vasta produção na região
Sírio-Palestina, mas sendo utilizados em território egípcio.
Outra evidência que sugere o contato dos egípcios com povos de outras regiões é o
escaravelho com o nome de Senusret I (1971-1926 a.C.), Faraó da 12ª dinastia, encontrado em
Enkomi, sítio localizado ao noroeste de Chipre.
Artesãos Cananeus adotaram a tradição de confeccionar escaravelhos egípcios para
suas próprias crenças. A influência artística egípcia se deu com grande força na Idade do
Ferro (c.1200 a.C.), quando artesãos Fenícios criaram seus próprios escaravelhos. O mesmo
processo ocorreu no Sul do Egito, nos reinos de Napata e Meroe (localizados no Sudão),
basicamente no Período Helenístico e Romano.
64 Ver Capítulo 7 65 Ver Capítulo 2
115
5.10. Escarabóide
O termo escarabóide é utilizado para designar amuletos e selos feitos no formato
ovalado do escaravelho, mas que na parte onde aparece o animal tem-se outro. Nos
escarabóides aparecem patos, babuínos, leões, gatos. Como pode ser visto nas Figuras 33 e
34. Ele aparece no Primeiro Período Intermediário (2181-2040 a.C.) e é utilizado até ao final
das dinastias, assim como os escaravelhos.
A função dos escarabóides era a mesma a dos escaravelhos-selos. Os escarabóides só
tinham a função de amuletos quando em seu topo tivesse a representação de um deus. Caso
contrário eles não possuíam nenhum significado religioso.
Figura 33. Escaraboide66
Figura 34. Escaraboide67
66 Escarabóide contendo uma impressão de selo, com 1,8 cm. Atualmente no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK sob o
número de referência E.SC.19
116
Capítulo 6. Materiais e Manufatura
Os escaravelhos são fabricados em diversos materiais, de acordo com a época e
localização. A intenção nesse capítulo é mostrar os materiais e a fabricação dos escaravelhos-
coração que estão no volume II da presente dissertação.
Será utilizada como fonte de referência na elaboração desse capítulo a obra de Thierry
de Putter e Christina Karlshausen (1992), assim como os hieróglifos e transliterações que
aparecem no corpo do texto.
6.1. Materiais
Os materiais utilizados na fabricação dos escaravelhos-coração escolhidos para este
estudo são faiança, ardósia, argila, arenito, amazonite (feldspato), calcário, cobre, cornalina,
diorito, esteatita, granito, grauvaque, jaspe, lápis-lazúli, madeira, mármore, ouro, prata,
quartzito, resina, serpentina e xisto.
6.1.1. Faiança
A faiança egípcia era feita por meio de uma combinação de quartzo ou cristal moído
com óxido de cálcio e Natrão. A sílica compunha 99% do material. Esses eram misturados
com água e colocados em moldes de argila, como mostrado na Figura 35, ou a peça era
modelada à mão. Contudo, esses moldes não são encontrados antes da 18ª dinastia. Nas
escavações realizadas por W. M. Flindres Petrie em Tell el Amarna, foram encontrados cerca
de cinco mil moldes. Há também remanescentes de moldes em outros sítios como Qantir,
Naukratis, Mênfis, Tebas e Gurob. O resultado era uma cerâmica vitrificada de tonalidade
azul esverdeada (FRIEDMAN, 1998). Geralmente, a faiança se torna um material granular,
altamente friável. Se analisada microscopicamente, ela consiste de grãos angulares e
67 Escarabóide feito com anel, com um pato representado de um lado e hieroglifos de outro. Objeto encontra-se no
Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob número de referência E.GA.44.1947.
117
pontiagudos de quartzo sem a mistura de outros materiais (LUCAS, 1962). A sua coloração é
branca, mas podia ser tingida de marrom, cinza, azul, verde e tom amarelado.
Figura 35. Molde para escaravelho68
A vitrificação era comumente utilizada para fazer artefatos na coloração azul ou verde.
Consistia basicamente em vidro ou uma combinação de materiais alcalinos, com a proposta de
colorir. No caso poderia ser carbonato de cálcio em pequenas quantidades, que se tornava
carbonato silicoso por causa do calor e, uma grande proporção de sílica. Em altas
temperaturas a sílica age como um ácido que combina as substâncias. Pode acontecer de
nenhum material silicoso ser utilizado nesse processo, pois como a faiança era composta de
sílica, ela combinaria com o carbonato de cálcio, de sódio e de potássio. A faiança é utilizada
do período pré-dinástico até a dominação Islâmica. Provavelmente, os objetos feitos com esse
material serviam para imitar a turquesa e o lápis-lazúli.
68 Molde para o feitio de escaravelho em faiança. Objeto encontra-se no Fitzwilliam Museum, Cambridge, UK, sob o número
de referência E.40.1887
118
6.1.2. Rochas
Para a fabricação dos escaravelhos-coração os egípcios antigos utilizavam uma grande
quantidade de rochas, que podiam ser ígneas, sedimentares ou metamórficas. Essas rochas se
diferenciam pelos processos de formação.
As rochas ígneas são formadas a partir do resfriamento do magma. Essas rochas
podem ser divididas em dois tipos principais. As intrusivas que se formam no interior da
Terra quando o magma é empurrado para dentro de fendas ou entre camadas rochosas. As
rochas ígneas aqui descritas são granito, feldspato, diorito e basalto. O outro tipo são as
rochas chamadas extrusivas, que se formam a partir da lava que é depositada na superfície
terrestre. Essas rochas possuem granulação fina, pois são formadas rapidamente com o
resfriamento da lava vulcânica.
As rochas sedimentares são constituídas por processos que ocorrem na superfície da
Terra, basicamente o intemperismo, que pode ser físico (desagregação) ou químico
(decomposição). A formação delas se dá com a sedimentação e compactação dos fragmentos
de rocha, o que a torna uma nova rocha. Essas rochas fornecem várias informações sobre as
mudanças ambientais ocorridas.
As rochas metamórficas se formam basicamente em locais profundos, onde há o
encontro de placas tectônicas ou magma, em local onde a pressão e a temperatura podem ser
alteradas em relação ao local onde a rocha se originou.
As técnicas de exploração e retirada da matéria-prima variam de acordo com sua
composição. A maneira mais comum era recolher blocos do fundo de oásis e vales.
No Antigo Império, o processo de obtenção dessas matérias é feito de maneira
sistemática e em larga escala. Essas rochas eram retiradas em blocos, facilitando o transporte
119
e confecção de templos, tumbas, estatuaria e amuletos, entre outros. Na rocha in situ eram
feito buracos e depois com um cinzel ou machado esse bloco era separado dos demais.
A confecção dos escaravelhos-coração em rocha é basicamente a mesma para todos os
materiais, moldagem no formato desejado com ferramentas metálicas e a incisão de
hieróglifos com ferramentas nesse material. Para finalizar, a rocha era polida por meio de
atrito. Esse polimento era feito com o auxílio de uma ferramenta de metal em conexão com
um material silicoso e água ou óleo.
O calcário era retirado com a ajuda de um instrumento metálico e outro de madeira
que servia como percutor. Essa rocha é macia, mas somente no momento em que está
recentemente escavada. As rochas mais duras como granito, diorito e quartzito eram
manufaturados com técnicas especiais de picote, perfuração, fricção e demolição.
A esteatita é um material que era trabalhado com o auxílio de uma agulha e com
pequena pressão. Após ter sido moldada no formato do escaravelho, a esteatita era levada ao
fogo, onde recebia o acabamento de vitrificação de diferentes cores. Contudo, geralmente era
azul ou verde. Os escaravelhos desse material encontrados com uma coloração branca ou
marrom perderam a sua vitrificação em processo de desgaste temporal ou de conservação.
Os escaravelhos feitos de argila são moldados e depois levados ao forno para queima.
Encravar os hieróglifos e detalhes no artefato de xisto era mais complicado e uma ferramenta
de metal era utilizada para marcá-lo.
6.1.2.1. Ardósia
A ardósia é uma rocha metamórfica composta por argila e cinza vulcânica e com grãos
finos.
120
6.1.2.2. Arenito
O arenito é uma rocha sedimentar, composto principalmente por quartzo, feldspato e
mica. A presença de impurezas em sua composição determina sua coloração. Costuma se
formar em ambientes com água, como rios e lagos. O gradativo acúmulo de material arenoso
na base desses rios e lagos e a compactação formam o arenito.
6.1.2.3. Amazonita ou Feldspato Verde
A amazonita ou Hsg ou nSmt .
É um mineral de coloração verde ou turquesa clara, opaca ou translúcida. Sua
coloração não é uniforme e sua composição é silicato de alumínio e silicato de potássio.
Essa rocha era comumente encontrada no deserto sul oriental de Gebel Migif e na
região do Wadi el-Gemal ,Wadi Abu Rusheid, Wadi Nugrus e Wadi Higelig.
Era utilizada desde o período Neolítico para a fabricação de contas e comumente usada
na 12ª dinastia nas jóias de Dashur e Lahun.
6.1.2.4. Calcário
O calcário inr HD.
O calcário é uma rocha sedimentar utilizada para fazer os escaravelhos-coração.
Possui uma composição homogênea, com granulometria compacta ou muito fina, ficando com
superfície lisa e brilhante ao ser polida. O material é composto de calcita em diferente estágio
de cristalização, o que o diferencia do alabastro e do mármore. Essa rocha possui como
cimento também um carbonato de cálcio, a aragonite e, portanto, o que a define é sua
composição química e não a granulometria. A sua formação ocorre em regiões marinhas.
121
Essa rocha é encontrada em toda a extensão do território egípcio. Esse material era
amplamente utilizado na arte e arquitetura faraônica desde o Período Pré-Dinástico até a
Baixa Época.
6.1.2.5.Cornalina
A cornalina Hrst.
A cornalina é um mineral semiprecioso, um derivado do quartzo de coloração laranja
translúcida. Não é encontrada com frequência em escaravelhos-coração.
Ela era extraída na região do Deserto Oriental, mas não era explorada
sistematicamente. A sua utilização se dá do Período Pré-Dinástico até a Baixa Época.
6.1.2.6. Diorito
O diorito ou com sua transliteração mntt ou ibhty.
O diorito é uma rocha ígnea, heterogênea, com coloração escura e com variação
granulométrica que pode chegar a medir centímetros e seus grãos podem vistos a olho nu. As
jazidas são localizadas principalmente ao Sul de Assuã e algumas estão nos desertos do Sinai.
Seu uso começa no Período Pré-Dinástico e vai até a Baixa Época.
6.1.2.7. Esteatita
A esteatita vitrificada é tida como um dos mais antigos produzidos pelos egípcios.
Provavelmente ela começou a ser utilizados no período Badariense, em forma de contas. A
esteatita é uma rocha metamórfica, composta por silicato de magnésio hidratado, com
granulação pequena, que pode ser facilmente cortada com uma faca ou marcada com as
unhas. Suas cores são, geralmente, branca ou cinza. Por sua maciez ela era utilizada para
122
moldar pequenos artefatos, como amuletos, contas e escaravelhos que são largamente
produzidos durante o Período Faraônico. A esteatita pode ser encontrada em Gebel Fatira, a
160 km de El Badari, Hamr, que está localizada próxima a Assuã e Wadi Gulan na costa do
Mar Vermelho.
6.1.2.8. Granito
O granito, ou e suas transliterações são, mAT ou mAT rwD.
Dependendo da composição, textura e estrutura, há vários tipos de granito, como o
granito vermelho de Assuã e o porfirítico. O granito é uma rocha ígnea intrusiva composta
principalmente por feldspato, quartzo e mica, com medida granulométrica visível a olho nu. O
granito de Assuã foi extensamente utilizado em estruturas arquitetônicas desde o Antigo
Império e é facilmente reconhecido. Sua duração como matéria-prima foi até a Baixa Época.
O granito é retirado principalmente de Assuã e Elefantina.
Nos escaravelhos estudados ele aparece nos pilonos de Sennedjem [73] e [74] e o
granito utilizado é o chamado pelos Egiptólogos de granito escuro, que possui minerais
máficos, ou seja, silicatos ferro-magnesianos.
6.1.2.9. Grauvaque
A grauvaque bxn.
A grauvaque é uma rocha sedimentar, constituída principalmente por grãos angulares
de quartzo, feldspato e pequenos fragmentos de rochas compactados. Possui textura imatura e
é encontrado geralmente no estrato referente à era Paleozóica. Por causa de sua coloração,
cinza, marrom, amarela ou preta, é confundido com o basalto.. Essa rocha era encontrada
123
principalmente em Wadi Hammamat, no deserto oriental. Sua utilização se inicia
provavelmente na 2ª dinastia, em uma estátua do Faraó Khasekhemwy, e vai até a Baixa
Época.
6.1.2.10. Jaspe
A jaspe xnmt.
Essa rocha se apresenta como um material compacto, na maioria das vezes homogêneo
com granulometria muito fina e coloração variada. Nos escaravelhos é utilizada basicamente a
jaspe verde. Quando polida essa rocha fica com a superfície lisa e brilhante.
Os autores Thierry de Putter e Christina Karlshausen (1992) afirmam que não se sabe
exatamente onde estavam as jazidas dessas rochas. O jaspe é utilizado desde o Período Pré-
Dinástico até a Baixa Época.
6.1.2.11. Lápis-Lazúli
O lápis-lazúli xsbD .
O lápis-lazúli é uma rocha metamórfica, com coloração azul intensa. A rocha é
composta principalmente de lazurita (silicato de feldspatóide), calcita, sodalita e pirita. Essa
rocha não era encontrada no Egito, mas vinha por meio de comércio com a região hoje
conhecida por Afeganistão. Seu uso começa nas primeiras dinastia e vai até a Baixa Época.
6.1.2.12. Mármore
O mármore aAt HDt.
124
É uma rocha metamórfica, bastante homogênea e opaca, constituída de calcário
submetido a altas temperaturas e pressão.
Essa rocha era encontrada principalmente na região de Gebel Rokham, que se situa
próximo a Edfu, na região do Deserto Ocidental emWadi Dib, Wadi Dagbag e Wadi Mia e ao
sul de Assuã em Wadi Maryia e Wadi Allaqi.
Na 1ª dinastia já se encontram recipientes feitos com essa matéria-prima e seu uso vai
até a Baixa Época. Essa rocha é rara de ser utilizada para a fabricação de escaravelhos-
coração.
6.1.2.13.Quartzito
O quartzito é uma rocha metamórfica constituído de pequenos grãos de quartzo que se
recristalizam sob efeitos da pressão e temperatura. Comumente extraído da jazida de Gebel
Ahmar na região de Assuã.
6.1.2.14. Serpentina
A serpentina ou ou e nmHf ou nSmt
ou shwt.
Se levar em consideração a primeira forma de se escrever esse tipo de rocha, essa será
a rocha designada para a confecção de todos os escaravelhos-coração, apresentado na rubrica
do Capítulo 30b quando diz “...faze um escaravelho em pedra verde...”69
. Nos hieroglifos essa
pedra verde está escrita como nmHf.
A serpentina é um mineral encontrado em várias cores, mas na fabricação dos
escaravelhos-coração são utilizados os de coloração verde escura. Ela é composta por um
69 Ver Capítulo 3.
125
grupo de minerais de filossilicato hidratado de magnésio e ferro. A sua extração era feita
principalmente nas regiões de Barramiya, próxima a Edu e Wadi Shaït, a oeste de Kom
Ombo. A sua utilização começa no Período Pré-Dinástico e se estende até a Baixa Época.
6.1.2.15. Xisto
O xisto é composto de várias rochas metamórficas que apresenta uma foliação
claramente visível a olho nu e se caracteriza pela granulometria média de seus grãos.
6.1.3. Outros materiais
O ouro, a prata e o cobre também estão presentes, contudo eles eram utilizados como
anéis que envolviam o escaravelho, como podem ser vistos nos números [39], [24] e [27] que
possui a placa de ouro onde eram escritos os hieróglifos. Imagina-se que os escaravelhos-
coração que não possuem nenhum tipo de inscrição tinham uma placa com um desses
materiais metálicos que foi retirada para um posterior derretimento e fabricação de outro
artefato.
A madeira é utilizada nos pilonos, não forma necessariamente o escaravelho, mas faz
parte da constituição final do amuleto.
Na tabela 1 podemos observar os escaravelhos-coração utilizados nesse trabalho
divididos de acordo com os materiais utilizados em sua manufatura. Todavia, há escaravelhos
que são fabricados com mais de um elemento, então a numeração desses aparecerá em todos
componentes de sua manufatura.
126
Material Número no Catálogo
Ardósia 09 50 53 54
Argila 11
Arenito 46
Amazonita, Feldspato 30 71 75
Calcário 34 37 58 66
Cobre 39
Cornalina 75
Diorito 32 33 35 64 65 68 69 70
Esteatita 24 38 56 67
Faiança 12 13 28 39 45
Granito 73 74
Grauvaque 48
Jaspe 17 27 42
Lápis-Lazúli 24 29 72 75
Madeira 73 74
Mármore 06
Ouro 24 27 29 44 71 72 74 75
Prata 66
Quartzito 41
Resina Preta 29
Serpentina 01 03 10 18 31 40
Xisto 49
Desconhecida
02 04 05 07 08 14 15 16 19 20
21 22 23 25 26 36 43 44 47 51
52 55 57 59 60 61 62 63
Tabela 1. Matéria-prima e seu número correspondente no volume II.
127
Capítulo 7. Escaravelho-coração
Diversos amuletos eram colocados na múmia para assegurar proteção a certas partes
do corpo ou assegurar uma caminhada tranqüila rumo ao Mundo Inferior. O escaravelho-
coração é tido como o amuleto funerário mais importante. Isso ocorria porque esse amuleto
evitaria que o coração se levantasse contra seu dono e proferisse contra ele falsos testemunhos
na pesagem do coração no Tribunal de Osíris.
O coração como berço de todos os sentimentos poderia nesse momento se rebelar e
contradizer o seu dono, o que resultaria na segunda morte. Os egípcios antigos almejavam se
tornar um justificado e para isso precisariam passar pela Sala do Julgamento de Osíris. Nesse
momento entram em ação os poderes das palavras escritas no escaravelho-coração. O coração
era o órgão que recebia a primeira vitalidade do segundo nascimento, era por ele que o morto
revivia.
A pessoa que viveu de acordo com Maat teoricamente não precisaria do amuleto do
escaravelho-coração. No caminho para a Sala do Julgamento o morto passa por vários portões
e seus guardiões, onde ele declara as Confissões Negativas. A confissão Negativa II se
encontra no papiro de Nebseni:
1. Ó tu, Espírito, que marchas a grandes passadas e que surge em Heliópolis,
escuta-me! Eu não cometi ações perversas.
2. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Keraha e cujos braços estão rodeados de um fogo que arde! Eu não trabalhei com violência.
3. Ó tu, Espírito, que te manifesta em Hermópolis e que respiras o Alento
divino! O meu coração detesta a brutalidade.
4. Ó tu, Espírito, que te manifestas nas Fontes do Nilo e que te alimentas à sombra dos Mortos! Eu não roubei.
5. Ó tu, Espírito, que te manifestas no rosetau e cujos membros apodrecem e
empestam! Eu não matei meus semelhantes. 6. Ó tu, Espírito, que te manifestas no Céu sob a dupla forma de leão! Eu não
diminuí o alqueire de trigo.
7. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Letópolis e cujos olhos ferem como punhais. Eu não cometi fraudes.
8. Ó tu, Espírito, da deslumbrante máscara, que andas lentamente
retrocedendo! Eu não subtraí o que pertencia aos deuses.
9. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Heracleópolis e que esmagas e trituras os ossos! Eu não menti.
128
10. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Mênfis e que fazes surgir e crescer
as chamas! Não subtraí o alimento de meus semelhantes.
11. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Amenti, divindade das duas fontes do Nilo! Eu não difamei.
12. Ó tu, Espírito, que te manifestas na região dos Lagos (região do Faium) e
cujos dentes brilham como o Sol! Eu nunca fui agressivo.
13. Ó tu, Espírito, que surges junto do cadafalso e que, voraz, te precipitas sobre o sangue das vítimas! Sabe-o: Eu não matei os animais do templo.
14. Ó tu, Espírito, que te manifestas na vasta Sala dos trinta juizes e que te
nutres das entranhas dos pecadores. Eu não defraudei. 15. Ó tu, Espírito, Senhor da Ordem Universal que te manifestas na Sala da
Verdade-Justiça. Conhece! Eu nunca monopolizei os campos de cultivo.
16. Ó tu, Espírito, que te manifestas em Bubatis e que andas retrocedendo,
Conhece! Eu nunca escutei às portas. 17. Ó tu, Espírito Aati, que apareces em Heiópolis! Eu nunca pequei por
excesso de palavras.
18. Ó tu, Espírito, Tutuf, que apareces em Ati! Eu nunca pronunciei maldições quando me causaram qualquer dano.
19. Ó tu, Espírito Uamenti, que apareces nas covas da tortura! Eu nunca
cometi adultério. 20. Ó tu, Espírito, que te manifestas no templo de Amsu e que olhas com
cuidado as oferendas que te levam! Sabe-o: eu nunca me masturbei.
21. Ó tu, Espírito, que apareces em Nehatu, tu, chefe dos deuses antigos! Eu
nunca aterrorizei qualquer pessoa. 22. Ó tu, Espírito-destruidor, que te manifestas em Kaui! Eu nunca violei a
ordenação dos tempos.
23. Ó tu, Espírito, que apareces em Urit, de quem ouço a voz que salmodia! Eu nunca cedi à cólera.
24. Ó tu, Espírito, que apareces na região do Lago Hekat sob a forma de uma
criança! Eu nunca fui surdo às palavras da Justiça. 25. Ó tu, Espírito, que apareces em Unes e cuja voz é tão penetrante! Eu
nunca promovi querelas.
26. Ó tu, Espírito Basti, que apareces nos mistérios! Eu nunca fiz derramar
lágrimas aos meus semelhantes. 27. Ó tu, Espírito, cujo rosto se encontra na parte traseira da cabeça e que
sais da tua morada oculta! Eu nunca pequei contra a natureza dos homens.
28. Ó tu, Espírito com a perna envolta em fogo e que sais de Akhekhu! Eu nunca pequei por impaciência.
29. Ó tu, Espírito que sais de Kenemet e cujo nome é Kenemti! Eu nunca
injuriei ninguém.
30. Ó tu, Espírito, que sais de Sais e que levas nas tuas mãos as tuas oferendas! Eu nunca fui briguento.
31. Ó tu, Espírito, que apareces na cidade de Djefit e cujos rostos são
múltiplos! Eu nunca agi com precipitação. 32. Ó tu, Espírito, que apareces em Unth e que estás cheio de astúcia! Eu
nunca faltei com respeito aos deuses.
33. Ó tu, Espírito ornado de cornos e que sais de Satiú! Nos meus discursos nunca usei demasiadas palavras.
34. Ó tu, Nefertum, que sais de Mênfis! Eu nunca defraudei nem agi com
perversidade.
35. Ó tu, Tum-Sep, que sais de Djedu (Busíris)! Eu nunca amaldiçoei o Rei. 36. Ó tu, Espírito, cujo coração está ativo e que sais de Debti! Eu nunca
poluí as águas.
37. Ó tu, Hi, que apareces no Céu!Sabe-o: As minhas palavras nunca foram altaneiras.
129
38. Ó tu, Espírito, que dás as ordens aos Iniciados! Eu nunca amaldiçoei os
deuses.
39. Ó tu, Neheb-neferet, que sais do lago! Eu nunca fui impertinente ou insolente.
40. Ó tu, Neheb-Kau, que sais da cidade! Eu nunca intriguei para me fazer
valer.
41. Ó tu, Espírito, cuja cabeça é santificada e que sais, de repente, do teu esconderijo! Sabe-o: eu não enriqueci de um modo ilícito.
42. Ó tu, Espírito, que sais do Mundo Inferior e levas diante de ti o teu braço
cortado! Eu nunca desdenhei o deus da minha cidade. (BUDGE, 2002, p.325)
Essas são algumas das confissões feitas pelos mortos onde eles negam qualquer ato
que possam ter cometidos. Após a recitação das Confissões Negativas, o coração poderia se
levantar e contradizer o seu dono caso ele tenha feito algo que fora negado.
O escaravelho-coração deveria ser feito em pedra verde70
que provavelmente seria
jaspe71
, a coloração escolhida para esse amuleto não foi aleatória. O verde é o símbolo da
vida, da ressurreição. Osíris é associado com essa cor quando ele aparece mumificado na
iconografia. O único problema era que a jaspe era difícil de ser encontrada e entalhada, por
isso que foram utilizados outros materiais.
7.1. Período de utilização
O escaravelho-coração mais antigo encontrado até hoje pertenceu a Nebankh, um
oficial que serviu durante o reinado do faraó Sobekhotep IV na 13ª dinastia. Esse amuleto era
feito em Xisto e no local da cabeça do animal havia uma cabeça humana, como os
escaravelhos-coração dessa época. Na sua base havia a inscrição do Capítulo 30b.
Em equivalência o escaravelho-coração real do faraó Sobekemsaf da 17ª dinastia é
tido por diversos estudiosos como o mais remoto. Na simbologia egípcia o faraó não
precisaria do escaravelho-coração para proteger o coração, porque ele já é um glorificado.
Mas, a partir do Novo Império os faraós aparecem com esses amuletos. A respeito desse fato
70 Ver Capítulo 3. 71 Ver Capítulo 6.
130
podem ser supostas duas hipóteses, ou os escaravelhos-coração reais são mais antigos que o
da 13ª dinastia, mas nunca foram encontrados; ou esse amuleto fez o caminho contrário da
democratização da religião, iconografia e simbologia egípcias. Ele era primeiramente
utilizado pelos cidadãos comuns e depois foram usados pelos faraós. A segunda opção faz-se
mais viável porque poucas múmias reais continham esse amuleto. Mais uma vez os nobres e
cidadãos faziam mais uso desse recurso para garantir a sua vida no Mundo Inferior.
Para Petrie (1917) o escaravelho-coração só aparece na 18ª dinastia, quando a
simbologia do escaravelho já estava consagrada na cultura. Ikram e Dodson (1998) datam o
início de seu uso no Médio Império, momento esse em que os amuletos funerários são
utilizados em maiores quantidades.
Outro ponto de discussão é o momento em que esse amuleto deixa de ser utilizado.
Ikram e Dodson (1998, p.140) dizem o escaravelho-coração é usado até o Período Romano.
Contudo, é comum argumentar que ele deixa de ser fabricado progressivamente, de mesmo
modo que o Livro dos Mortos por volta da 26ª dinastia. Para Malaise (1970, p.77) na 26ª
dinastia os escaravelhos-coração se tornam cada vez mais raros e são anepigráficos, o que
dificulta em atestar a sua simbologia.
A maior dificuldade em se datar os escaravelhos-coração que não são encontrados em
contextos arqueológicos é que os recursos estilísticos não seguem uma padronagem temporal.
Os escaravelhos reais72
ou amuletos utilizados em vida podem ser classificados e assim
atestados as suas datações.
A comprovação dessa tese se dá no fato do escaravelho-coração com o élitro estriado.
Ele poderia pertencer à Baixa Época [17] como não. Os escaravelhos-coração [01] e o [46]
72 Ver Capítulo 5.
131
são do Novo Império, o [50] é da 20ª a 25ª dinastias, os [25] e [26] não possuem datação
cronológica.
O prototórax alongado, linha divisória do prototórax com élitro e clípeo alongado ou
curto também não são parâmetros para datação. Esses estilos de manufatura variavam de uma
oficina a outra, assim como o material também é importante. Se a rocha for muito dura a
dificuldade em se fazer o entalhe é maior e formato do escaravelho será diferenciado, assim
como uma mais macia terá mais detalhes.
O reaproveitamento de escaravelhos-coração também acontecia [33] na primeira linha
o nome do morto anterior foi sobrescrito pelo de Sem-Ne-Pa-Nay. Além do reaproveitamento
tem escaravelhos-coração cujo nome da pessoa fora apagado [31] onde a primeira linha
claramente foi extinta.
Os escaravelhos-coração que possuem o texto em sua base podem ser analisados para
uma possível seriação, essa feita com base nos hieróglifos. Todavia os que são anepigráficos
continuariam com datação desconhecida.
7.2. Funções e simbologia
A função principal do escaravelho-coração é por meio do texto contido em sua base
tentar silenciar o coração para que esse não testemunhe contra o seu dono perante o Tribunal
de Osíris. Quando analisada a sua forma, ele é o símbolo do renascimento, da renovação, por
ser o amuleto do deus Khepri. Com base na sua coloração ele é a regeneração diária do morto
assim como Osíris.
O escaravelho-coração era visto como o coração de Ísis, a mãe do morto, deste modo o
morto é identificado com Hórus, o coração que pertenceu às transformações ou formações
para sua vida futura, na ordem de dar estabilidade para seus membros e seu feitiço asseguraria
sua justificação no Julgamento. (PETRIE, 1917, p.122)
132
Meulenaere (1972) diz que o escaravelho por si é um amuleto que sugere o
renascimento ou a renovação, então essa seria a forma mais indicada para reanimar o coração
e impedir que as palavras dele e do morto não fossem contraditórias no momento do
Julgamento.
A definição de sua função e simbologia é citada por vários egiptólogos de uma forma
superficial. Em Ikram (1998) assim como Shaw (2002) acrescentam a essas discussões pontos
que até então não eram comentados, como, caso o coração fosse retirado por descuido dos
embalsamadores, o escaravelho-coração era colocado em seu lugar e não sobre as bandagens.
Assim como, descrevem de maneira sucinta a função do escaravelho no julgamento.
Para Bury (1940) as palavras escritas na base do escaravelho-coração eram tão
poderosas que silenciariam a voz acusadora do coração porque essa não perceberia o mal que
iria testemunhar. Andrews (1996) quando não se tinha o Capítulo 30b nos escaravelhos-
coração, teria outro texto cuja função seria a de prevenir que o morto perdesse um de seus
mais importantes órgãos.
Shaw e Nicholson (2002) dizem que após a descoberta que o coração poderia revelar o
verdadeiro caráter de uma pessoa, o órgão era deixado dentro do corpo.
O escaravelho-coração protegia o coração do morto e, servia como um substituto caso
o coração original fosse arrancado da cavidade torácica.
7.3. Posição na múmia
Antes de ser colocado na múmia, o escaravelho-coração passava por dois rituais: o
embalsamador borrifava mirra e posteriormente um óleo de boa qualidade no amuleto.
O escaravelho-coração deveria ser colocado entre a 17ª e 18ª camadas de bandagens da
múmia, essa informação provém dos estudos feitos através das tomografias computadorizadas
133
(JANOT, 2008, p.225). Quando por descuido o coração fosse tirado de dentro do corpo, o
amuleto era então inserido em seu lugar. O amuleto poderia ser colocado na múmia como um
colar, por meio de ganchos que se encontravam na frente da peça [27], [30], [37], [45]. O
cordão poderia ser feito de ouro ou contas. O escaravelho-coração sempre era colocado na
região torácica.
A partir da 21ª dinastia o escaravelho-coração é colocado dentro da cavidade
abdominal da múmia, mas também aparece em meio às bandagens. Como pode ser vista na
(figura 40) múmia Sha-Amun-en-su onde o escaravelho-coração, destacado na coloração azul
se encontra nas bandagens em uma posição não usual, provavelmente essa mudança de
posicionamento ocorreu durante o processo de mumificação.
Figura 36. Sha-Amun-en-su73
73 A múmia está no Museu Nacional do Rio de Janeiro, com numeração 157. A tomografia computadorizada realizada em
2004 na CDPI (Clínica de Diagnóstico por Imagem), sob supervisão do Museu Nacional com o apoio da FIOCRUZ
(Fundação Oswaldo Cruz), COPPE/UFRJ e INT (Instituto Nacional de Tecnologia)
134
O escaravelho-coração é feito em rocha e com um tamanho variável entre 5-10cm ou
seja, com essa mudança de posição ele pode fraturar um osso. Os trabalhos hoje realizados
com tomografias computadorizadas mostram os amuletos contidos nas múmias e percebe-se o
seu deslocamento.
7.5. Textos
Os escaravelhos-coração em sua maioria possuem o Capítulo 30b do Livro dos Mortos
em sua base. Quando não era possível escrever o capítulo inteiro, os artesãos colocavam
trechos que tinham as palavras mais poderosas. Erroneamente há a definição que só é
escaravelho-coração aquele que possui esse capítulo. Os estudos atuais mostram que o
importante não era o capítulo escrito nele e sim, as palavras. Alguns escaravelhos, como o de
Tutankhamun [29] possuíam outros capítulos. No caso aqui é o Capítulo 13 comumente de
Shabits.
Os textos diferentes do Capítulo 30b comumente faziam alusão a importância do
coração ou a proteção do coração do morto. Portanto, não se deve classificar um escaravelho-
coração somente pelo seu texto. Podem aparecer os Capítulos 21, 29b e 27 que são
relacionados ao coração. As palavras que costumam tem o maior poder de persuasão ao
coração eram “não se levante contra mim em testemunho”, “não crie oposição no tribunal”,
“não seja hostil com o guardião da balança”, “não faça meu nome cheirar mal” e “não diga
mentiras na presença dos deuses”.
Os escaravelhos-coração anepigráficos [01-26] podem nunca ter recebido texto ou
esses foram arrancados. Mas se colocados na região do coração, continuariam a exercer a sua
função.
135
7.6. Variações
7.6.1. O pássaro Benu
A ave Benu (nome egípcio) ou garça aparece nos escaravelhos-coração [24] e [29]
feita em material vítreo de diversas cores e lápis-lazúli. Os detalhes que compõe as partes da
ave são preenchidos cuidadosamente seguindo seu contorno anatômico.
No início do período faraônico, essa ave era deificada. O que provavelmente levou a
essa associação foi que após a inundação do rio Nilo, essas aves ficavam nas águas rasas e
barrentas. Assim foram associadas com a criação porque a vida surgiu das Águas Primordiais
e elas são as primeiras aves a habitar o leito do rio após a inundação. O epíteto dado as aves
Benu era “aquele que vem à vida completamente de si próprio”.
Ao colocar a ave Benu em um escaravelho-coração o morto teria a proteção para que
não fosse traído por seu coração no Tribunal de Osíris, além dos símbolos de ressurreição que
era a ave e o deus Khepri. Seria então um modo do morto regenerar a si mesmo. Assim como
ocorre com o amuleto do escaravelho de uso cotidiano que ao somar palavras poderosas está
enfatizando a proteção, o mesmo ocorreria nesse caso.
No Capítulo 29b do Livro dos Mortos, o morto proclama a sua identidade com a ave
Benu.
7.6.2. Escaravelhos com cabeça humana
Os escaravelhos com cabeça humana são tidos como os exemplares mais antigos desse
amuleto. O início de sua fabricação é no Segundo Período Intermediário, entretanto poucos
escaravelhos-coração restaram dessa época. No Novo Império eles ainda são produzidos.
O escaravelho-coração de Sobekemsaf [27] é tido como o mais antigo escaravelho real
encontrado. O faraó governou na 17ª dinastia. Diferentemente do escaravelho-coração do
faraó, os escaravelhos [46] e [50] possuem a cabeça proeminente, como se fossem esfinges.
136
Amuleto com esse tipo de cabeça são mais incomuns que os com a cabeça humana
substituindo a do animal sem elevação. O [46] tem a sua datação no Novo Império, momento
em que esse recurso era utilizado na fabricação dos escaravelhos-coração. O escaravelho-
coração [50] possui a datação entre 20ª e 25ª dinastias, época em que há a retomada de antigas
tradições.
Os três escaravelhos-coração com cabeça humana apresentados no volume II [27, 46 e
50] possuem trechos do Capítulo 30b.
Para Malaise (1970) eles possuíam a cabeça humana como forma de conferir ao
escaravelho-coração o poder da palavra, um fenômeno tão essencial que a Cerimônia de
Abertura da Boca só era praticada após a colocação do escaravelho na múmia.
7.6.3. Ouro e sua representação
Na rubrica do Capítulo 30b fala-se para fazer um escaravelho-coração de pedra verde e
colocá-lo em uma base de ouro. Como nem todos possuíam providências para ter a base de
ouro [27] fazia-se um anel com ouro e circundava a peça [43-44], [55], o amuleto [39] possui
o anel feito em cobre. O escaravelho-coração [65] tem o anel em prata. O que pode atestar que
quem não poderia fazer em ouro utilizaria outra espécie de metal.
A importância de se empregar o ouro nesses amuletos é que o ouro é inalterável, com
duração infinita. A matéria dourada vem do corpo do Sol, participa da natureza do céu, o que
propõe o seu valor vivificador.
7.6.4. Pilonos
Os pilonos são peitorais [70-75] que tem como destaque central o escaravelho-
coração. Começam a ser utilizados após o reinado do faraó Tutankhamun na 18ª dinastia, mas
eles se tornam mais populares durante o Período Raméssida.
137
O morto poderia ter vários peitorais com escaravelhos-coração. O artesão Sennedjem
da Vila de Deir el-Medina possuía dois peitorais com escaravelhos-coração [72-73]. O [72]
era feito em madeira com o escaravelho em granito e o [73] era de madeira, com granito e
ouro.
O escaravelho é identificado com o Sol nascente, consequentemente assimilado com
Osíris, aquele que renasceu. Por estar flanqueada por Ísis e Néftis a sua identificação Osiríaca
é reforçada. Caso ele apareça com a barca solar abaixo [72] [75] esse escaravelho remete a Rê
e não somente ao deus Khepri. Os peitorais [70-73 e 75] possuem as deusas postadas em pé,
uma de cada lado do escaravelho e com suas mãos em sinal de adoração.
O pilono [75] traz entre as deusas e o escaravelho a iconografia dos amuletos tit e
pilar-djed, remetendo ainda mais o sentido Osiríaco do conjunto. Os pilonos eram as fachadas
dos templos.
7.6.5 Escaravelho-coração e amuleto do coração
O escaravelho-coração tinha função de não deixar que o coração se levante contra seu
dono, ou seja, ele pedia para o ib não fazer o nome do seu dono cheirar mal. O amuleto do
coração por outro lado, protegia o hAti porque ao proteger o órgão, os movimentos corporais
estariam assegurados.
Os dois amuletos atuam paralelamente, mais uma vez ao se levar em consideração o
pensamento egípcio que, quanto mais enfatizada, mais potencializada seria a fórmula. Por que
não juntar os dois amuletos em um só. Os escaravelhos-coração juntamente com o amuleto
do coração [32], [36] e [53] datam do Novo Império, cronologia desconhecida e 25ª a 26ª
dinastias respectivamente.
138
Os três exemplares de amuletos unidos possuem trechos do Capítulo 30b em sua base.
Conclui-se que o escaravelho-coração atuaria pelo seu formato e também por suas palavras e
o amuleto do coração cumpriria o seu papel por causa da sua forma.
7.7 Múmias de animais
Assim como os seres humanos, alguns animais mumificados também carregavam em
suas bandagens escaravelhos-coração. Duas múmias do touro Mnevis que datam do período
de reinado de Ramséss II tinham escaravelhos-coração feitos em quartzo e com a seguinte
inscrição: “seu coração pertence a ti, o Osíris Mnevis.”
139
Conclusões
O estudo aqui realizado esbarrou na dificuldade de se encontrar fontes textuais que
remetessem a escavações onde poderiam ter sido encontrados esses escaravelhos-coração,
assim como estudos específicos sobre o tema. O trabalho que trata diretamente de
escaravelhos-coração é o de Malaise (1970), até o presente momento são encontradas citações
em estudos sobre religião, mumificação e amuletos egípcios. Portanto, as lacunas resultantes
são frutos da pouca documentação produzida até hoje. Acreditamos que com a utilização de
tecnologias como o CT-scan o estudo do escaravelho-coração se tornará mais concreto,
porque as imagens o mostraram em contexto.
A cronologia para os escaravelhos-coração não pode ser estabelecida por meio de
seriação, porque como mostrado no capítulo anterior os recursos estilísticos são praticamente
utilizados ao longo de várias das dinastias. Com base em pequenas exceções a datação precisa
do material se torna uma tarefa praticamente impossível.
O objetivo proposto no trabalho era o de mostrar as funções e a simbologia do
escaravelho-coração acreditamos ter sido alcançado pela demonstração da sua inserção na
religião, textos funerários e processos de mumificação.
Podemos concluir que o escaravelho-coração é o amuleto funerário mais importante
para a proteção da múmia, porque esse protegia o seu ib e não deixava que por vontade
própria ele se levantasse contra o seu dono no Julgamento de Osíris. Esse amuleto recebia
seus próprios rituais antes de ser colocado na múmia. A Cerimônia de Abertura da Boca só
poderia ser realizada após a colocação do escaravelho-coração na região torácica do morto.
A ligação do escaravelho-coração com o Capítulo 30b está no fato que um foi criado
em função do outro. Apesar do Capítulo 30b também ser encontrado em papiros juntamente
com os capítulos da pesagem do coração, é mais comum encontrá-lo em escaravelhos. Alguns
140
possuem uma versão maior e outros uma menor, dependendo de seu tamanho e do modo de
fabricação (sabe-se que alguns amuletos eram feitos em série nas oficinas especializadas). O
poder mágico dos dois é incontestável, pois eles são utilizados basicamente a partir da 12a
dinastia, até o Período Romano, quando se tem o último vestígio do Livro dos Mortos e que
começa a ser substituído pelo Livro das Respirações. Complementando, o escaravelho-
coração começa a ser usado juntamente com o Capítulo 30b, um não teria efeito sem o outro,
então quando deixa de usar um invariavelmente o outro também desaparece.
A diferenciação do escaravelho-coração com o amuleto do coração está para qual
coração cada um se dirigiria. O amuleto do coração remetia à proteção do coração hAti aquele
que não poderia ser destruído e assim traria novamente movimento aos membros. E o
escaravelho-coração era usado para impedir que o coração ib se levantasse contra seu dono na
pesagem do Tribunal de Osíris. Todavia, assim como ocorre com o Capítulo 30b os amuletos
precisavam atuar paralelamente assim garantiriam ao morto as faculdades terrenas e abstratas.
Permitindo ao morto atingir o “Belo Ocidente” com as suas faculdades físicas estabelecidas.
141
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