o encoberto de veneza: sebastianismo e cultura política no ... · 15 dentre os trabalhos mais...
TRANSCRIPT
1
O Encoberto de Veneza: sebastianismo e cultura política no século XVII
Filipe Duret Athaide1
Resumo: Dentre os inumeros aspectos que envolvem a crença sebástica, a questão
envolvendo a morte e o reconhecimento do corpo de d. Sebastião é a mais significativa, e a
que gerou mais desdobramentos. Esta comunicação tem como objeto o debate do caso que
ficou conhecido como “Falso de Veneza”, e que integrou um conjunto de aparições de falsos
d. Sebastião durante o período da União Ibérica (1580-1640). Para tanto, relacionarei o evento
ocorrido na cidade italiana com a defesa executada por Frei José Teixeira, integrante do grupo
de portugueses que acompanhou d. Antônio, o Prior do Crato contra Filipe II, por meio da
análise de sua obra “Adventure admirable par desvs tovtes les autres des siécles passez &
present”, publicada em Paris no ano de 1602.
Todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos
edifícios simbólicos precedentes, utilizando seus
materiais – mesmo que seja só para preencher as
fundações dos novos templos (…). Por suas
conexões naturais e históricas virtualmente
ilimitadas, o significante ultrapassa sempre a
ligação rígida a um significado preciso, podendo
conduzir a lugares totalmente inesperados.2
Em agosto de 1578 chega a nova do desastre de
África, e da morte do rei predestinado.
Estupefação, prantos, desespero. Tantas
esperanças perdidas em um adusto areal! Logo,
porém acode a reflexão. E as profecias? Quem
há de fazer grande a Pátria e cingir a coroa do
Mundo? Não! O rei nascido do milagre não pode
sucumbir assim! Esta certeza, mais do que as
vagas notícias vindas de África, divulga a
convicção de se achar o monarca vivo e salvo. Os
vaticínios escritos correm de mão em mão.3
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social – PPGHIS/UFRJ
2 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 147.
3 AZEVEDO, João Lúcio de. A evolução do Sebastianismo. 2. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947, p 31.
2
Em 23 de setembro de 1603, no patíbulo de Sanlucar de Barrameda, província de
Cádiz, era executado o calabrês Marco Tulio Catizzone4. Sua condenação teve como base o
embuste do qual se constituiu líder: havia se passado pelo celibatário rei português d.
Sebastião, desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir no norte da África, em agosto de 1578.
O caso, que ficou conhecido como o “Falso de Veneza”, contudo, não foi o único do
tipo de que se tem notícia. Há registros de pelo menos outros três falsos d. Sebastião
anteriores à trama veneziana. O primeiro, em Penamacor (fronteira de Portugal com Espanha)
no ano de 1584. O segundo, em Ericeira (litoral norte de Lisboa), 1585. O terceiro, em
Madrigal (arredores de Madrid), no ano de 15945. A existência destes quatro falsários, durante
o período da União Ibérica (1580-1640) sugere pelo menos uma questão, levantada, entre
outros, por Lucette Valensi: “quais imagens do rei e da batalha estas mistificações repetidas
revelam?”6. A fim de responder, ainda que de maneira provisória e parcial a indagação feita
por Valensi, destaco para análise o episódio do “Falso de Veneza”, quer pela sua trama (das
quatro, certamente é a que foi mais elaborada, envolvendo inúmeros personagens que atuaram
no combate ao controle Habsburgo sobre Portugal), quer pela abundância de registros
documentais feitos sobre o acontecido. Diante deste vasto conjunto de documentos que hora
defendiam, ora negavam veementemente a sobrevivência de d. Sebastião à Batalha de Alcácer
Quibir7, me debruçarei sobre a “Adventure admirable par desvs tovtes les autres des siécles
passez & present par laquelle il appert euidemment, que d. Sebastian, vray & legitime Roy de
Portugal, incognu depuis la bataille qu’il perdit contre les infideles em Aphrique, l’an
1578”8, publicado em Paris no ano de 1601, cuja autoria é atribuída ao dominicano português
José Teixeira.
4 SERAFIM, João Carlos Gonçalves. Elevar um rei com vaticínios: textos e pretextos no caso do Rei D.
Sebastião de Veneza (1598-1603). Letras: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras, Santa Maria, n.
49, p.77-96, 26 dez. 2014. Universidade Federal de Santa Maria, p 94. 5 Para mais detalhes sobre os casos dos falsos d. Sebastião em Penamacor, Ericeira e Madrigal, ver: HERMANN,
Jacqueline. No reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 249-268. 6 VALENSI, Lucette. Fábulas da memória: a batalha de Alcácer Quibir e o mito do Sebastianismo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 122. 7 A existência destes textos configura o que classifico como “guerra de versões”, nas quais escritores, geralmente
religiosos, defendem ou rechaçam a sobrevivência de d. Sebastião. Os possíveis usos políticos destes escritos, e
suas relações com resistência à dominação espanhola ou a defesa a ela, assim como o papel que clérigos
assumiram neste embate são questões que pretendo analisar durante a elaboração da tese. 8 TEIXEIRA, José. Adventvre admirable par dessvs tovtes les autres des siecles passez & present par laquelle il
appert euidemment, que D. Sebastian vray & legitime Roy de Portugal, incognu depuis la bataille qu’il perdit
contre les infideles en Aphrique, l’an 1578 est celuy mesme que les Seigneurs de Venise ont detenu prisionier
3
O texto de Frei Teixeira se inscreve, porém, num conjunto que se relaciona não só
com os casos de falsos reis, como o encabeçado por Marco Túlio, mas também com um
debate mais amplo, e que tinha como temas o combate ao Domínio Filipino, defendendo a
sobrevivência do rei e questionando a legitimidade dos Filipes enquanto reis de Portugal. Se
por um lado, os três primeiros falsos apareceram em territórios ibéricos, durante o reinado de
Filipe II – Primeiro de Portugal, que governou o reino luso de 1580 a 1598 – tanto o Falso de
Veneza quanto a polêmica letrada sobre o destino do reino e do monarca tiveram lugar fora
dos espaços hispânicos, e durante o governo de Filipe III (1598-1621)9.
Dentre os que se colocaram a favor da autonomia portuguesa, merece destaque, além
de Frei Teixeira, d. João de Castro, neto do homônimo vice-rei da Índia. São de autoria
atribuída a Castro o “Discurso da vida do sempre bem vindo e aparecido rei d. Sebastião” e a
“Paráfrase e concordância de algumas trovas do Bandarra”, ambos impressos em Paris, nos
anos de 1602 e 1603 respectivamente. O que aproxima, porém, os dois escritores portugueses
não é somente a produção de textos apologéticos ao rei Encoberto, mas o percurso que ambos
seguiram, em especial a relação deles com d. Antônio, Prior do Crato10
. Neto de d. Manoel o
Venturoso, d. Antônio participou da disputa sucessória ao reino português, tendo por rivais
mais próximos a Duquesa de Bragança, d. Catarina e Filipe II, ambos seus primos por via
paterna11
. Por mais que a vitória do primo espanhol ao pleito se mostrasse iminente, d.
Antônio se proclamou rei, na cidade de Santarém, em 19 de junho de 1580. No mês seguinte,
deuz ans &vingtdeux iours finis au XV Decembre dernier passé. Paris: Carlo Lauro, 1601. Abreviado para
“Adventure admirable” a partir deste ponto do texto. 9 Além da Adventure Admirable, é possível elencar ainda os escritos de D. João de Castro como integrantes do
setor pró d. Sebastião, e a “Jornada e morte de d. Sebastião”, de Antônio San Román, enquanto defensores do
falecimento do monarca português e da legitimidade dos Filipes. 10
Sobre o percurso da vida de D. Antônio e a participação de D.; João de Castro, ver: HERMANN, Jacqueline.
Um rei indesejado: notas sobre a trajetória de D. Antônio, Prior do Crato. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 30, n. 59, p.141-160, jun 2010. 11
No total, são conhecidos seis concorrentes a sucessão do Cardeal d. Henrique, que assumiu o comando do
reino após a confirmação oficial da morte do Desejado. Entretanto, o religioso também não tinha descendências
diretas, o que foi determinante para o estabelecimento da crise sucessória. Dela, além de D. Catarina, D. Antônio
e Filipe II, participaram também o Duque de Sabóia, Emanuel Filisberto, filho de Carlos III e da Infanta Beatriz,
portanto, também neto de D. Manuel; Rainúccio Farnese, filho de Alexandre Farnese, duque de Parma e de
Maria de Guimarães, sendo desse modo, bisneto por via materna do Venturoso, além de Catarina de Médicis,
com base em remota ligação com o rei D.Afonso III. Para um resumo dos debates jurídicos acerca da sucessão
ver: CUNHA, Mafalda Soares da. A questão jurídica na crise dinástica. In: MATTOSO, José (Org.). História de
Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, vol. 3, p. 552-559.
4
as tropas antonistas foram derrotadas pelo temido Duque de Alba12
, na Batalha de Alcântara.
Ferido e derrotado, fugiu pelo norte de Portugal, passando pela França e Inglaterra,
estabelecendo-se, com seu séquito, nos Açores, em 1581. De lá, tentou novamente fazer frente
à Filipe II. Mais uma vez derrotado, partiu em exílio para Paris. Morreu em 1595, na capital
francesa, pobre, solitário e abandonado por seus seguidores. Foi durante o retiro em terras
francesas que Teixeira e Castro iniciam suas produções textuais. D. João, ressentido pelo
descaso e abandono financeiro por parte do Prior (que por sua vez também teve inúmeros
problemas econômicos no desterro), acabou se transformando no que João Lucio de Azevedo
intitulou como o “futuro apóstolo do sebastianismo”13
. Tal epíteto foi dado pelo historiador
português pelo fato de ter sido Castro o primeiro a imprimir às famosas “Trovas do
Bandarra”, texto profético de destacada e inegável valor para a conformação da crença
sebástica14
.
Se o percurso da vida de d. João de Castro é mais documentado, e da mesma forma
que suas obras, mais debatida e analisada15
, sobre a trajetória de Frei Teixeira e seus escritos,
as investigações são escassas. De todo modo, as informações preliminares levantadas sobre o
12 Sobre a ação militar de Filipe II e que tinha por objetivo garantir seu direito à sucessão ao trono português,
Rafael Valladares destaca que “o que ocorreu em Portugal entre 1578 e 1583 foi, para além da óbvia crise
dinástica, uma guerra civil, em conformidade com o significado que esta expressão tinha na Idade Moderna. (…)
A violência militar exercida por Filipe II em Portugal, reforçada pelos problemas internos do país, veio a ser
muito mais importante, além de necessária para seus objetivos, do que até hoje a historiografia estabeleceu.”
VALLADARES, Rafael. A conquista de Lisboa: violência militar e comunidade política em Portugal (1578-
1583). Lisboa: Texto Editores, 2010. (Livro digital). Introdução. 13
AZEVEDO, João Lúcio de. A evolução do Sebastianismo. 2. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947, p 32. 14
D. João de Castro deixou 22 textos manuscritos, sendo que só dois deles circularam impressos. O primeiro,
intitulado “Discurso da vida do sempre bem vindo et apparecido Rey Dom Sebastian” foi editado em Paris, no
ano de 1602. Segundo Hermann, este foi “provavelmente o primeiro texto explicitamente messiânico associado à
figura do rei desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir. Além disso, foi também, do ponto de vista da cultura
letrada, a primeira vez que d. Sebastião apareceu encarnando a figura do Encoberto.” HERMANN, Jacqueline.
No reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 199. O segundo, “Paraphrase et concordância
de alguas Prophecias de Bãdarra, sapateiro de Trancoso”, também publicado em Paris, no ano seguinte (1603).
Primeira impressão de parte das trovas do Bandarra, que foram interpoladas e selecionadas por Castro com o
objetivo de comprovar sua hipótese: o destino de D. Sebastião e do reino foram vaticinados por Bandarra, sendo
o monarca desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir o rei Encoberto profetizado pelo sapateiro de Trancoso. 15
Dentre os trabalhos mais recentes sobre D. João de Castro, destacam-se os produzidos pelo historiador
português João Carlos Gonçalves Serafim, tais como: ______. Elevar um rei com vaticínios: textos e pretextos
no caso do Rei D. Sebastião de Veneza (1598-1603). Letras: Revista do Programa de Pós-Graduação em
Letras, Santa Maria, n. 49, p.77-96, 26 dez. 2014. Universidade Federal de Santa Maria; ______. A aurora da
Quinta Monarquia (1604-1605). Porto: Citcem/Edições Afrontamento, 2011; ______. D. João de Castro, "O
Sebastianista": meandros de vida e razões de obra. 2004. 3 v. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Universidade
do Porto, Porto, 2004.
5
dominicano permitem algumas considerações importantes. Segundo Martim Albuquerque16
,
Teixeira integrou a corte do Desejado, tendo inclusive, atuado como um dos agentes que
participaram das fracassadas negociações do casamento do monarca português com
Marguerite de Valois. Ao contrário de d. João de Castro, Frei Teixeira não seguiu com d.
Sebastião para a segunda jornada africana, que culminou no desaparecimento do rei. Porém,
compôs com Castro e vários outros indivíduos o séquito antonista. Participou da resistência
em Alcântara e na Ilha Terceira, além de ter seguido o Prior do Crato em seu retiro.
Provavelmente alguns de seus contatos franceses da época em que foi intermediário de d.
Sebastião nos assuntos matrimoniais foram retomados, uma vez que, à época da morte de d.
Antônio, já integrava a corte de Henrique IV de França, de quem era capelão. Foi neste
momento em que a produção textual de caráter sebastianista e anticastelhano de Teixeira se
desenvolveu. Antes de publicar a Adventure admirable, deu à impressão, em 1595 (ano do
falecimento do Prior do Crato), um folheto intitulado “Le mirroir de la procedure de Philippe
Roy de Castille em l’usurpacion du Royaume de Portugal”, no qual defendeu a tese de que o
herdeiro legítimo do trono lusitano era d. Antônio, e que Filipe II dele havia se apoderado de
maneira violenta. Para Albuquerque, a produção textual de Fei Teixeira tem relevância na
conjuntura da época devido a seu teor eminentemente político. Assim, acredito ser possível
indicar que, principalmente a Adventure admirable, é um panfleto sebastianista, e que tem
como ponto de partida a defesa do Falso de Veneza como o verdadeiro rei desaparecido no
Marrocos.
Manifestação de delimitação complexa, o sebastianismo assumiu, em variados
momentos da história portuguesa a feição ora de mito político, ora de seita popular, sem que
um formato anulasse ou eliminasse o outro. Conforme Hermann,
Não é tarefa fácil definir ou explicar o sentido dessa manifestação que
genericamente ficou conhecida como “Sebastianismo”. Cunhada com o
nome do rei desaparecido no Marrocos, essa modalidade de crença passou a
estar associada à fé na volta de um rei-salvador que viria resgatar o reino
português das mãos dos castelhanos e restaurar a honra e a soberania
perdidas. Esse sentido vulgarizado, entretanto, longe esteve de esgotar os
significados atribuídos às diferentes formas assumidas pelos discursos e
textos que passaram a pregar a necessidade da espera de um rei-messias,
16 ALBUQUERQUE, Martim. Estudos de cultura portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda,
1984, p. 286.
6
desde o final do século XVI e ao longo do século XVII, período em que,
pode-se dizer, “nasceu” o sebastianismo propriamente dito.17
É, pois, nesse “ambiente” de “estabelecimento” do messianismo régio português que o
texto de Teixeira também se insere. Se por um lado, é impossível divisar seus escritos sem
levar em conta a produção dos outros textos a ele contemporâneo, faz-se necessário atentar
para suas especificidades: a crença na sobrevivência de d. Sebastião após a batalha e a
alegação de que o Falso de Veneza era, verdadeiramente o rei extraviado no Marrocos, e que
esteve oculto até seu ressurgimento ocorrido na Península Itálica. Sobre o mito do rei
encoberto, Yves-Marie Bercé18
indica que ele não foi uma exclusividade portuguesa. A partir
do exame de episódios contemporâneos ao de d. Sebastião –Francisco III (1595) pretenso
filho de Carlos IX da França e príncipe Dimitri da Rússia (1598) – o autor identificou três
padrões de virtudes presentes nos três casos: o rei sacrificial, que influenciado pela
religiosidade, enxergava na reclusão de tipo monástica uma possibilidade e um modelo a ser
seguido; o rei tutelar, que oculto de forma quase mágica em ilhas, grutas ou outros mundos,
aguardava o momento exato para retornar ao reino; e o rei cauteloso, que sabia agir, tomando
como base as mais variadas informações que obtinha, com o objetivo de salvaguardar a coroa.
Nessa perspectiva, a Adventure de Teixeira parece investir numa argumentação que transita
entre o caráter sacrificial e tutelar de d. Sebastião. Conforme indica Bercé,
A fé na função expiatória do rei podia paradoxalmente conjugar-se com a
esperança de sua sobrevivência. Talvez, com efeito, o rei não tivesse
morrido na batalha, talvez tivesse escolhido morrer para o mundo e
encontrado o expediente da guerra para desaparecer aos olhos de todos,
súditos fiéis assim como inimigos. A louca esperança começava com a busca
do corpo do rei. Quando o silêncio caíra sobre os lugares dos combates, à luz
de lanternas, servidores sobreviventes iam percorrer o campo de batalha,
examinando as túnicas ensanguentadas dos cadáveres e escrutando seus
rostos imóveis. Esses companheiros devotados queriam dar uma sepultura
cristã ao príncipe mártir, mas desejavam no fundo de si mesmos não
descobrir a macabra evidência do infortúnio da nação. A ausência do corpo
do rei no monte de corpos era um índice de esperança; ela evocava a
possibilidade de uma fuga oportuna, de um abrigo inesperado e de uma
sobrevivência extraordinária.19
17 HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 178.
18 BERCÉ, Yves-Marie. O Rei oculto. Bauru / São Paulo: Edusc / Imprensa Oficial, 2003.
19 Ibid., p. 194. Grifo meu.
7
Da mesma maneira, é possível analisar o messianismo régio português e a produção de
seu discurso à luz das contribuições de Bronislaw Backzo em seu tour de force para a
delimitação do conceito de “imaginário social”. De acordo com o autor, é “através dos seus
imaginários sociais que uma coletividade designa a sua identidade; elabora uma certa
representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e
impõe crenças comuns”20
. Obviamente, seria um equívoco mobilizar concepções como
“identidade”, “povo” ou “nação” para o período histórico aqui em análise, uma vez que, nele,
não operavam da forma como são apreendidos atualmente. Todavia, esta questão não impede
a reflexão sobre a existência de um “imaginário social” sebastianista. Na verdade, creio que a
manifestação cultural que teve seu nome associada ao penúltimo dos Avis é um exemplo claro
de constituição de imaginário social, uma vez que tal formulação trata
de um aspecto da vida social, da atividade global dos agentes sociais, cujas
particularidades se manifestam na diversidade de seus produtos. Os
imaginários sociais constituem outros tantos pontos de referências no vasto
sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através do qual, como
disse Mauss, ela se percepciona, divide e elabora seus próprios objetivos.21
Embora sejam perceptíveis as inúmeras matrizes culturais que influenciaram a
composição do Sebastianismo, como por exemplo, a base judaica perceptível pelo viés
messiânico que o movimento assumiu22
, o fato é que ele assumiu seus contornos mais nítidos
a partir de uma crise predominantemente política: o desaparecimento de um rei sem
descendência, celibatário, retratado pelos cronistas da época como imaturo e inconsequente, e
que lançou seu reino numa disputa pela coroa que culminou na perda da autonomia
administrativa. Este contexto de crise é bastante semelhante àquele delimitado por Backzo
para o surgimento ou alterações no imaginário social. É, conforme o próprio autor define, um
“tempo quente”23
. Para ele,
20 BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. Volume 5, p.309. 21
Ibid., p.309. 22
A matriz judaica da crença sebástica, relacionada à tópica messiânica, é identificada por AZEVEDO, João
Lúcio de. A evolução do Sebastianismo. 2. ed. Lisboa: Livraria Clássica, 1947, p. 7-8; e debatido por
HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 33-41 e por
BERCÉ, Yves-Marie. O Rei oculto. Bauru / São Paulo: Edusc / Imprensa Oficial, 2003, p. 322-328. 23
BACZKO, Bronislaw. op.cit, p.320.
8
Designar a identidade coletiva corresponde, do mesmo passo, a
delimitar o seu “território” e as suas relações com o meio ambiente e,
designadamente, com os “outros”; e corresponde ainda a formar as
imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados, etc. O
imaginário social elaborado e consolidado por uma coletividade é
uma das respostas que esta dá aos seus conflitos, divisões e
violências reais ou potenciais. Todas as coletividades têm os seus
modos de funcionamento específicos a este tipo de representações.
Nomeadamente, elaboram os meios de sua difusão e formam os seus
guardiães e gestores, e suma, o seu “pessoal”. O imaginário social é,
deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. (…). O
imaginário social é, pois, uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de
controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e
do poder, ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos
conflitos.24
Desta maneira, os imaginários sociais podem ser tomados como pontos de referências
do universo simbólico de uma sociedade, uma vez que é por meio daqueles que a coletividade
produz seus objetivos, identidades e representações de si e dos outros. Dessa maneira, o
Sebastianismo engendrou a produção de inúmeros discursos, que foram ao longo do tempo
tomados como identitários, expressões da “alma portuguesa”, seja de maneira positiva ou
negativa. Tais expressões, eruditas ou populares, letradas ou não, caminhavam juntas, quando
não imbricadas numa disputa pelo retorno da autonomia política, quer por meio da crença na
sobrevivência do rei, quer na vinda de outro monarca salvador.
Quando Frei Teixeira seguiu D. Antônio em seu exílio e nos anos imediatamente
posteriores ao falecimento do Prior do Crato, o dominicano passou a defender a sobrevivência
do Desejado, uma vez que era biológica e cronologicamente possível que d. Sebastião
estivesse vivo. Em 1601, ano da publicação de Adventure admirable, o Encoberto teria 47
anos. A dúvida sobre o destino real, por sua vez, foi alimentada por uma sequência
rocambolesca de episódios e informações que se seguiram a 4 de agosto de 1578. Os informes
da batalha custaram a chegar até Lisboa, devido à distância, ao numero reduzido de
sobreviventes e a significativa cifra de cativos. Segundo cronistas da época, as primeiras
notícias sobre o trágico desfecho do combate chegaram ao reino entre de 10 e 12 de agosto25
,
24 BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. Volume 5, p.309. Grifo meu. 25
Para maiores informações sobre a circulação das informações sobre o desfecho da batalha, ver: HERMANN,
Jacqueline. Monarquia lusitana: a sacralidade do rei. In: ______. No reino do Desejado. São Paulo: Companhia
9
e sofreram forte censura oficial. Conesttagio (um dos mais conhecidos escritores do período)
registrou a confusão e tristeza que tomaram as ruas do reino:
Não havia vivalma em Lisboa que não tivesse interesse nessa guerra: aquele
que ali não tinha o filho tinha o pai, uma o marido e outra o irmão; os
negociantes e manufatureiros que ali não tinham parentes, enquanto muitos
dentre eles os tinham também, ali tinham seus dinheiros, os quais, em parte
para ganhar, e em parte por não ter podido retirar, haviam emprestado aos
fidalgos e soldados. Por esta razão, tudo era tristeza; cada um parecia
prognosticar ter perdido as pessoas e os bens que tinha na África; e, embora
estivesse ainda incertos, ouviam-se entretanto gemidos surdos.26
Enquanto as informações chegavam desencontradas, não dando certeza do paradeiro
dos combatentes e do rei, multiplicou-se nas praças e ruas, toda a sorte de práticas
divinatórias. Os súditos queriam saber o que teria ocorrido com seu monarca, e
principalmente, com seus próprios filhos, irmãos, pais e maridos. Durante os dias imediatos
após a batalha, a incerteza sobre o resultado do combate fomentou especulações sobre o
destino do rei. Muitos afirmavam que ele havia sido gravemente ferido, mas que conseguiu
escapar do campo de batalha. Frei Teixeira, embora não tendo participado do confronto,
afirmou, anos depois, na Adventure admnirable: “meu tio, Manoel Teixeira (…) me disse que
o rei Sebastião se retirou da batalha e embarcou em seu galeão, e que certamente, estaria
vivo”27
. Finalmente, em 24 de agosto chegou a Lisboa o comunicado sobre o do sepultamento
do rei português em Fez. Nos dois dias seguintes, os sinos do reino anunciaram a morte de seu
soberano e na manhã do dia 27, teve lugar o ritual de “quebra dos escudos”, que era encenado
em frente a Sé de Lisboa, quando do falecimento dos reis de Portugal. Era a primeira etapa da
celebração de aclamação do novo monarca. Mas a falta do corpo real nas cerimônias iniciais
acabou por alimentar ainda mais a desconfiança sobre o paradeiro do Desejado,
principalmente pelo fato de poucos terem visto o rei morto. Ao longo do século XVII,
surgiram alguns escritos que, das mais variadas formas e tomando como referência fontes de
informações diversas, afirmavam estar vivo o rei desaparecido no Marrocos. Tal prática
seguiu pelo quarto de século seguinte. Dessa maneira, os escritos de Teixeira podem ser
das Letras, 1998, cap. 3, p125-176. VALENSI, Lucette. Murmúrios, gemidos, silêncio. In: ______. Fábulas da
memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, cap. 1, p. 17-39. 26
CONNESTAGIO, Ieronimo de Franchi. L’union du royaume de Paris à la couronne de Castille. Besançon,
1596, p. 570. Apud: VALENSI, Lucette. Ibid., p. 19. 27
TEIXEIRA, José. Adventure admirable. Paris, 1601, p. 16. No original: “Mon oncle (…) il me dit que le Roy
Sebastian s’estoit retiré de la bataille & s’estoit embarqué dans son galion, que pour certain il estoit en vie”.
10
inscritos nessa tradição letrada. E da mesma forma que os escritos do dominicano, a maioria
destas obras foram escritas e publicadas fora de Portugal, geralmente em francês ou italiano.
Durante este período, acreditou-se na derrota, mas não na morte do rei.
Por mais que as primeiras exéquias não tenham contado com a presença do cadáver
real, tempos depois outros ritos foram executados diante dele (ou daquele a ele atribuído), que
peregrinou por vários espaços – norte Africano, Espanha e Portugal. Os relatos que dão conta
do falecimento de d. Sebastião comunicam que no dia 7 de agosto de 1578 o corpo foi
inumado por portugueses cativos, sob as ordens do alcaide de Alcácer Quibir. Este primeiro
sepultamento seguiu todo o protocolo fúnebre: colocação em ataúde, cortejo, velório, missa,
enterro e anúncio oficial do evento. Este teria, portanto ocorrido, longe dos olhos da maioria
dos súditos, e antes mesmo da quebra dos escudos e “alevantamento” do Cardeal. A esta
segunda, que ocorreu em Lisboa no dia anterior à aclamação do novo rei, seguiu-se uma
terceira em Belém, também sem a presença do cadáver real. Em dezembro de 1578, os restos
mortais de d. Sebastião foram transportados para Ceuta, onde foi realizada a quarta solenidade
fúnebre. Finalmente, em 1582, já sob o reinado Habsburgo, os despojos foram repatriados,
por ordens de Filipe II. A longa viagem do cadáver até Portugal foi entrecortada por inúmeras
paradas e formalidades, como as ocorridas, por exemplo, no Algarve e em Évora. Nesta
última, foram exumados os restos mortais dos infantes descendentes de Manoel I e João III, e
juntos, conduzidos ao Mosteiro dos Jerônimos. A quinta celebração ocorreu nos dias 10 e 11
de dezembro de 1582. Finalmente sepultado junto aos seus, o esquife de d. Sebastião,
entretanto, foi posicionado não na galeria que abrigava os jazigos dos reis portugueses, e sim
no pavilhão dos infantes28
. Esta breve digressão sobre a crise sucessória e as questões
envolvendo os sepultamentos de d. Sebastião levantam aspectos relevantes para a análise do
discurso produzido por Frei Teixeira, principalmente no que tange à esperança de
sobrevivência do Desejado.
Ao examinar de maneira mais minuciosa a Adventure admirable, alguns pontos
relativos à sua produção, possíveis objetivos de sua escrita e formas de circulação devem ser
levados em consideração. O primeiro diz respeito à língua da obra e do local de sua
impressão: escrito em francês, foi publicada em 1601. No entanto, acredito ser impossível
lidar com este documento sem levar em consideração a provável existência de seu original ou
28 VALENSI, Lucette. Fábulas da memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 33-34.
11
alguma versão em português. A falta deste texto em língua portuguesa acaba por reforçar a
hipótese que já fora previamente exposta de que os escritos de teor sebastianistas foram
produzidos e circularam, inicialmente e predominantemente, fora dos espaços ibéricos, em
línguas outras que não a portuguesa.
A publicação francófona, disponível na seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro29
traz consigo algumas informações: seu editor, Carlo Lauro, adverte que
tomou conhecimento em Veneza, via uma carta em castelhano, da existência dos escritos de
Frei Teixeira:
Assim, como ele teve a obrigação e interesse neste fato, desde a recepção
desta carta, eu tenho como dever compreender as notícias de seu estado e
situação. Então eu havia entendido que um religioso da Ordem dos Irmãos
Pregadores (de nome Frei Jose Teixeira Português, personagem conhecido
dos grandes e dos pequenos na Europa e por ela) escreveu desta cidade a um
bispo seu amigo, um discurso das coisas que se passaram desde que o dito
Rei começa a empreender a viagem à África até o presente: eu fui tão
importunado [por] um sobrinho do dito Bispo, que tomei este discurso de
suas mãos para enviá-la a seu tio, que ele não se desculpou de me enviar as
mesmas. A leitura me foi tão agradável e prazerosa, que ela me deu
coragem, e me facilitou a pena de traduzi-la rapidamente.30
Esta passagem inicial traz à tona não só a questão de a impressão ter sido feita em
território francês, mas também sobre a circulação do texto, em forma manuscrita, por vários
espaços geográficos até o momento de sua publicação31
. Tendo o autor participado do séquito
que seguiu d. Antônio em seu exílio, provocado pela derrota imprimida pelas tropas de Filipe
II na Batalha de Alcântara, não é de se espantar que seus textos tenham sido divulgados pelos
29 Sob a cota 946.02 W1, BIS, 20, n.1. Seção de Obras Raras. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
30 TEIXEIRA, José. Adventure admirable par dessus toutes les outres des siecles passez e presentes. Paris: Carlo
Lauro, 1601. pp. 3-4. No original: “Ainsi, comme luy ayant de l’obligation, & de l’interest en ce faict, depuis la
reception de cette lettre, je me suis toujours mis en devoit d’entendre des nouuelles de son estat & succés. Ayat
donc appris qu’um Religieux de l’Ordre des frères Prescheurs (nommé frère Joseph Terxere Portugais,
personage conu des grands & des petis em l’Europe, & par-delà) avoit escrit de cette ville à um Evesque sien
amy, um discours des choses qui se sont passes depuis que ledit Roy comença d’entreprender le Voyage
d’Aphrique, jusqu’à present: i’ay tant importune vn neueu dudit Eusque, qui tenoit ce discours em ses mains
pour l’enuoyer à son oncle, qu’il ne s’est peu excuser de me le remettre és miennes. La lecture m’em fut si
agreable & plaisante, qu’elle me donna courage, & me facilita la peine de le traduire em diligence.” 31
Sobre a importância da circulação de textos manuscritos nos séculos XVI e XVII ibéricos, ver: BOUZA
ÁLVAREZ, Fernando. Corre manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001.
Segundo o autor, a existência de textos impressos não eliminou os manuscritos, que seguiram sendo produzidos
e propagados, e que tinham uma lógica de produção e consumo própria. Para Alvarez, é necessário compreender
as formas de trabalho que geravam os textos manuscritos, uma vez que na grande maioria dos casos, eles foram
executados a várias mãos, de maneira simultânea. Tal diversidade de “produtores” simultâneos seria, segundo o
autor, um sintoma da grande demanda por cópias de textos dos mais diversos gêneros.
12
espaços que percorreu junto àquele que acreditava ser o legitimo sucessor do trono português.
Contudo, não encontrei até o momento nenhum outro vestígio da existência deste texto
publicado em português, ou em Portugal, ou em outra língua ou local. Uma vez que os
antonistas se dispersaram a partir do ultimo local de estadia de D. Antônio, a impressão em
Paris, e não em Lisboa, também corrobora a tese de que tais escritos tiveram, também, um
papel politico na resistência à dominação Habsburgo.
O segundo aspecto a ser considerado quando da análise de Adventure admirable é a
sua relação com os casos de falsos reis que proliferaram na Europa nos anos inicias da
Dominação Filipina. Nesse sentido, refiro-me especificamente ao caso do Falso de Veneza.
Executado em forca a 23 de setembro de 1603, em Sanlucar de Barrameda, vilarejo da
província de Cádiz, a trama enredada por Marco Tulio Catizone foi certamente a mais ousada,
se levado em consideração o alcance, os envolvidos, e o desfecho dado ao caso32
. Os
primeiros registros da história envolvendo o calabrês remontam a 1598, e informavam que um
indivíduo havia se instalado num bairro pobre de Veneza e que se dizia português. Aos que o
questionavam o fato de não falar a língua natal, era respondido que não o fazia devido a um
juramento. Os boatos correram rápidos, e a suspeita de que se trataria de d. Sebastião
cresceram a ponto de chamar a atenção do embaixador espanhol. A esta altura, já reinava em
Espanha Filipe III, que delegou a investigação do caso à d. Inigo de Mendonça, e que este
alertasse o governo de Veneza sobre o impostor. As autoridades locais acataram a denúncia, e
decidiram pela expulsão do impostor, o que não foi por ele acatado, resultando na solicitação
do emissário espanhol às autoridades italianas, de que fosse o falsário preso. A favor de sua
tese, d. Inigo argumentava que era necessário a apuração dos boatos e que, caso se
comprovasse ser o acusado o verdadeiro rei, seu senhor Filipe III não hesitaria em lhe restituir
a coroa, mas caso fosse comprovado o engodo, deveria o acusado ser exemplarmente punido.
Em 24 de novembro de 1598 o suposto rei foi preso. Nesse momento, sua história já
tinha alcançado inúmeros ex-integrantes da corte de d. Antônio, como d. João de Castro e Frei
José Teixeira, que partiram para Veneza, a fim de se inteirarem e, caso necessário,
defenderem o rei que havia retornado. Marco Túlio ficou preso até 15 de dezembro de 1600.
32 Para maiores detalhes sobre o Falso de Veneza, ver: BERCE, Yves-Marie. O rei oculto. Bauru/São Paulo:
EDUSC/Imprensa Oficial, 2003, p. 48-67; HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 194-199; VALENSI, Lucette. Fábulas da memória. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1994, p. 120-124.
13
Ao longo deste quase um ano, foi imensa a movimentação de seus acólitos, que tentaram a
todo custo, comprovar-lhe a autenticidade, assim como promover sua soltura. Ao que tudo
indica, não foi somente a trajetória antonista que mobilizou Frei Teixeira a se envolver neste
caso; teria ido à Veneza como enviado de seu senhor à época, Henrique IV. O rei francês
tinha especial interesse no caso, uma vez que comprovada a identidade do suspeito, a
restauração do reino português seria prejudicial à Espanha. Por outro lado, por mais que
Henrique IV tenha recomendado a seu capelão toda a prudência no caso, Frei Teixeira buscou
aproximar ao máximo seu senhor do caso. O apoio do rei francês à causa poderia significar a
confirmação da legitimidade do postulante ao trono português.
A soltura do prisioneiro em dezembro de 1600 não foi, porem, um benefício. Ao
contrário, fazia parte de sua punição: deveria deixar Veneza dentro de um dia, sob pena de ser
condenado às galés caso descumprisse a sentença, decisão que desagradou imensamente
Filipe III. Por sua vez, o exílio não foi cumprido pelo Falso de Veneza, que retornou a casa
onde inicialmente se escondeu, e finalmente, foi reconhecido por seus seguidores. De lá,
pretenderam levar o falso monarca até a França. No trajeto, passaram por Pádua, Livorno e
Florença, onde foi novamente preso. Desta vez, repassado às autoridades espanholas, no
inicio de 1601, retornado a Nápoles, onde foi novamente julgado. Neste derradeiro processo,
assumiu sua real identidade, e confessou ter se envolvido no embuste após ter sido
confundido algumas vezes com d. Sebastião por soldados italianos que participaram da
batalha de Alcácer Quibir. Marco Túlio foi então condenado às galés perpétuas em meados de
1602, tendo sido embarcado para a Espanha. Após nova fuga, foi capturado em Sanlucar de
Barrameda. Em setembro de 1603, o calabrês foi finalmente executado em público, tendo
antes a sua mão direita decepada, como punição por se fazer passar por rei, e seu corpo
esquartejado após sua descida da forca.
Por mais que após sua primeira fuga fracassada não tenha sido acompanhado por Frei
Teixeira, ele desempenhou papel fundamental na divulgação do caso, defendendo de maneira
peremptória a identidade de Marco Túlio como o rei Desejado. O meio utilizado por frei
Teixeira nesta empreitada, foi dentre outras, a edição da Adventure admirable. Para além
disso, conforme já indicado anteriormente, o conjunto da produção textual do dominicano tem
relevância não só para o estabelecimento do que se pode classificar como sebastianismo
“letrado”, mas também deve ser considerado como um dos textos centrais para a observação e
14
delimitação da cultura política da época, quer pelo seu caráter de debate sobre a legitimidade
da identidade do falso de Veneza, quer pela posição religiosa da qual o autor parte.
O terceiro aspecto, ao que me deterei agora, diz respeito à própria forma e estrutura do
texto. Neste, após a justificativa do editor para a publicação, segue uma carta atribuída a um
certo Giovanne Capugnano, recebida por Teixeira. Nela, consta a defesa da tese de que o
preso em Veneza era, de fato, o rei desaparecido no Marrocos, pois “ele tem as mesmas
feições, as mesmas mãos, pés (sabemos ser os direitos maiores que os esquerdos) grandes,
marcados e com a mesma mancha, com os joelhos recurvados para dentro, como D.
Sebastião, Rei de Portugal”33
.Além desta, Teixeira afirmou ter recebido inúmeras outras
cartas provenientes da cidade italiana e que afirmavam categoricamente ser o prisioneiro
veneziano o rei português desaparecido em Alcácer, por mais que que seja praticamente
impossível determinar se estas realmente existiram e foram a ele enviadas. Dessa forma, a sua
obra teria como objetivo responder às incertezas sobre a sobrevivência do Encoberto, além de
confirmar a sua identidade. Para tanto, o religioso se debruçou sobre seis pontos para embasar
a sua tese, a saber: 1) a negação da morte de d. Sebastião na batalha; 2) a dúvida sobre a
identidade do corpo sepultado em Lisboa; 3) o desaparecimento do monarca após a batalha; 4)
em quais locais esteve perdido ou cativo; 5) como conseguiu escapar após a batalha de
Alcácer; 6) sendo o prisioneiro de Veneza o verdadeiro rei, quando este retornaria ao seu
reino?
Uma vez que toda a argumentação de Teixeira se direcionou para a defesa do Falso de
Veneza, destaco para observação os dois primeiros questionamentos aos quais o dominicano
tenta responder. Sobre o primeiro ponto, Teixeira caracteriza o Desejado como um verdadeiro
rei cruzado:
A principal causa que levou o rei D. Sebastião a passar à África, foram
(como ele era Príncipe fortemente cristão, bom e justo) os grandiosos
desejos que nele brotam de expandir o cristianismo, e de disseminar o nome
de Deus por todo o universo.34
33 TEIXEIRA, José. Adventures admirables. Paris, 1602, p. 7. No original: “Il a la mesme effigie , les mesmes
mains, pieds (sçavoir est les droits plus longs que les gauches) lage, marques, & la mesme démarche, avec les
genoux recoubez em-dedãs, que D. Sebastian Roy de Portugal”. 34
Ibid., p. 10. No original: “La principalle cause que poussa de Roy d. Sebastian à passer en Áphrique, furent
(comme il estoit Prince fort Chretien, bon & iuste) les grandissimes desirs qui bouilloyent en luy d’accroistre le
Chrestianisme & de faire esclater le nom de Dieu par tout l’Vniuer.”
15
A partir dai o autor começa a descrever a conjuntura da batalha africana, que envolveu
outros dois nobres marroquinos, e que por conta disso, também ficou conhecida como a
“Batalha dos três reis”. Fruto da segunda expedição de d. Sebastião às praças africanas35
e que
teve como objetivo recuperar e expandir os domínios lusitanos na região, a Batalha de Alcácer
Quibir foi decisiva não só para o reino português, mas para o marroquino também. Este
confronto deve ser, portanto, apreendido a partir dos quadros políticos distintos dos dois
reinos. O sultanato do Marrocos era palco da disputa que envolvia o tio Moulay Abd Al-
Malik (chamado de Mulei Moluco pelos portugueses) e o sobrinho, Moulay Mohamad36
. No
lado português, d. Sebastião, que aceitara a proposta de aliança feita por Mohamad37
. Sobre
este aspecto “cruzado” do jovem rei, Bercé destaca que
Os romances de cavalaria e os contos nos ensinam que o costume para os
jovens príncipes, antes de serem dignos de sua coroa hereditária, era
lançarem-se primeiro em aventuras longínquas para onde partiam de bom
grado para descobrir a diversidade das coisas, ou que deveriam enfrentar por
injunção de um pai, de um padrinho ou de um bom gênio querendo libertá-
los das ingenuidades da juventude. Dessa viagem iniciática, em que provas
assustadoras lhe eram prometidas, o jovem cavaleiro de escudo não
identificável voltaria, pleno de existência e razão, para assumir no momento
desejado o peso da coroa.38
Levando em conta o contexto dos anos inicias do reinado de d. Sebastião,
compreendidos entre a morte de seu avô, d. João III, e as regências de sua avó, d. Catarina e
de seu tio avô, o Cardeal d. Henrique, fica evidente que a formação do jovem rei foi
35 A primeira expedição à África teve Ceuta e Tânger como destino, e ocorreu em 1574. As notícias desta
jornada foram mandadas imprimir pelo próprio D. Sebastião, com o título de Relação da Primeira Jornada que
fez a Africa no anno de 1574 O Sereníssimo Rey D. Sebastião Escritas pelo Mesmo Principe. Este documento
está presente em: MACHADO, Diogo Barbosa. Memorias para a história de Portugal que comprehendem
governo del rey d. Sebastião, unico em nome e decimo sexto entre os monarcas portugueses. Lisboa Occidental:
Joseph Antonio da Sylva, 1736. 4 v. liv II, cap. XX, pp.1-53. 36
Segundo Lucette Valensi, a crise sucessória marroquina teve inicio quando do falecimento do pai de
Mohamad, Moulay Ab-dallah al-Ghalib, em 1574. Segundo a tradição saadina, quem deveria suceder al-Ghalib
era seu irmão mais velho, no caso, Mulei Moluco, o que não aconteceu. Com seus outros irmãos, refugiou-se em
Argel, e depois em Istambul, onde auxiliou os turcos no cerco de Túnis contra os espanhóis. De lá, com o apoio
conquistado aos turcos, retorna ao Marrocos, onde bane o sobrinho em 1576. VALENSI, Lucette. Fábulas da
memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p.12. 37
Incialmente, Mohamad havia procurado o rei espanhol, Filipe II. Sem conseguir seu apoio, voltou-se para d.
Sebastião, que desejava, com esta aliança, dominar o Marrocos. Para a análise do contexto marroquino, as
alianças entre Malik e o Império Turco, e depois de Malik com Filipe II, assim como os motivos que levaram D.
Sebastião a mobilizar tropas portuguesas para a Batalha de Alcácer Quibir e os detalhes da mesma, ver:
HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 105-109. 38
BERCÉ, Yves-Marie. O Rei oculto. Bauru / São Paulo: Edusc / Imprensa Oficial, 2003, p. 261.
16
fortemente influenciada pela ideia de que ele teria como função defender e expandir os limites
da cristandade. Nesse sentido, tantos os críticos de seu reinado, quanto seu biógrafos,
salientam a quase fixação do penúltimo dos Avis em combater os mouros e retomar os
domínios portugueses perdidos no norte africano39
. Para isso, d. Sebastião recorreu ao tio,
Filipe II, buscando suporte para o confronto previsto na segunda jornada, o que não foi
concedido. Secretamente, o monarca espanhol já havia se comprometido com Mulei Moluco.
Ao fim da tarde de 4 de agosto de 1578, o exército português havia sido derrotado, e os três
nobres envolvidos, desaparecidos. Ao descrever as alianças estabelecidas para a batalha, Frei
Teixeira apontou que “Mulei Mohamad foi um príncipe muito sábio e de muito grande valor,
que reuniu a seu domínio todos os reinos da Berbéria, que ele dominava quanto os que ele
desejava”40
, e que ofereceu benefícios ao rei português em troca de seu apoio. Além disso, o
dominicano destaca não só as qualidades positivas de d. Sebastião, mas também a presença,
em suas tropas, de vários nobres portugueses. É essa associação de predicados e presença de
grandes nobres na batalha que, segundo Teixeira, teriam impedido que o Desejado morresse.
Em relação ao segundo ponto rebatido pelo dominicano, seu posicionamento é
categórico. Uma vez que o rei não havia perecido na batalha, o corpo trasladado a Lisboa não
poderia ser o dele. O autor estrutura a sua argumentação em duas bases. A primeira, de que a
jornada foi acompanhada de religiosos de várias ordens, inclusive a dos Dominicanos (da qual
ele prórpio fazia parte), que havia enviado cerca de 30 clérigos. Estes acompanharam todos os
preparativos da batalha, assim como seu desenrolar. Entre eles, encontrava-se o tio do autor,
Manoel Teixeira, que relatou ter visto D. Sebastião “se retirar da batalha e embarcar em seu
galeão, e que por certo ele estava vivo.”41
Tal declaração foi confirmada por vários outros
testemunhos, que afirmam terem combatido ao lado do rei, e que mesmo ele estando ferido no
braço, sobreviveu ao combate.
Entra aqui a segunda consideração: as qualidades positivas do monarca, que
impediriam seu fracasso. Teixeira afirma que
39 Para as análises sobre a menoridade política de d. Sebastião e dos aspectos envolvidos em sua formação, ver:
HERMANN, Jacqueline. Op. cit., p. 76-96. 40
TEIXEIRA, José. Adventures admirables. Paris, 1602, p. 11. No original: “Muley Mahamet fut vn Prince tres-
sage, & de tres-grande valeur, qui ioignit à son domaine tous les Royaumes de Barbarie, lesques il domina
tandis qu’il vesquit.” 41
Ibid., p. 16. No original: “Le Roy Sebastien s’estoit retiré de la bataille, & s’estoit embarque dans son galion;
que pour certain il estoit em vie.”
17
Deus então deu (meu pai) aos cristãos um príncipe valente, ousado, corajoso,
sábio, bom e justo, e sua ousadia em tão pouco tempo (ele estava na idade de
24 anos, sete meses e 15 dias) ele se mostra cruel e inútil em seu lugar, e
quanto a mim, eu o levaria para tal.42
Associadas às virtudes, originadas e legitimadas por Deus, havia também as profecias
que justificavam a sobrevivência do rei. Se as origens dos vaticínios de cunho sebastianista
podem ser relacionadas ao texto cuja autoria é atribuída à Bandarra, cogitar quantas outras
que se seguiram a ele, e as que poderiam ter lhe influenciado previamente, apesar de tarefa
extensa, pode apontar o sentido que tais textos assumiram nos distintos momentos em que
foram elaborados. Além disso, tal “arqueologia” profética, por mais que se mostre
praticamente impossível, dada a dificuldade de localização, acesso e projeções sobre a
circulação também permite refletir sobre a circulação desses textos (e das imagens e símbolos
por eles operados), nos mais diferentes cenários sociais. Esta digressão sobre a tradição
divinatória e profética lusitana pode explicar, por exemplo, o fato de que Teixeira recorreu
não só aos vaticínios relativos à trajetória de Afonso Henriques e o desfecho da Batalha de
Ourique (1139), mas também a outros vaticínios conhecidos, como a de San Isidoro de
Sevilha e de São Cirilo. Em contrapartida, não faz nenhuma referencia às tradicionais Trovas
do sapateiro de Trancoso.
As reflexões do religioso sobre estes tradicionais textos proféticos teriam, portanto,
como objetivo sustentar a argumentação de que não só o Desejado não havia morrido, mas,
principalmente de que ele não poderia morrer. Ao colocá-lo como herdeiro da tradição de
Ourique, por exemplo, Teixeira investiu numa linha argumentativa que valorizava o aspecto
salvacionista, ou sacrificial do monarca como define Bercé. Da mesma forma, as reflexões do
religioso dominicano se aproximaram à imortalidade real analisada por Ernst Kantorowickz.
Para o historiador inglês, apesar da simbiose entre o que chamou de “corpo natural” e o
“corpo político” dos monarcas, há prevalência do político sobre o natural, e a capacidade que
aquele tem em encobrir as fraquezas deste. Nesta perspectiva, a crença e divulgação de que o
corpo natural de D. Sebastião teria sobrevivido à Batalha de Alcácer Quibir se relacionaria
com a teoria política dos dois corpos, que Kantorowickz destaca como possível de ser
observada em outros espaços e tempos europeus, não sendo uma inovação exclusivamente
42 Ibid., p. 17. No original: “Dieu doncques ayant donné (mom Pere) aux Chrestiens vn Prince si vaillant, hardi,
courageux, sage, bon, & le seur ostant em si peu de temps (il estoit em l’age de 24 ans, 7 mois &15 jours)il se
monstre cruel & iniuste em leur endroit, & quando à moy j ele prendrois pour tel.”
18
inglesa43
. A imortalidade do político garantiria, pois, a imortalidade do natural44
.
Consequentemente, a vida regrada do monarca desejado, sua conhecida condição celibatária
em associação com tais aspectos à doutrina da imortalidade do corpo politico, propiciaram a
divulgação e a crença de que, ainda no governo de Filipe III, o então rei português encoberto
estivesse de vivo. Política e biologicamente.
Desta forma, a articulação entre relatos de religiosos que acompanharam a batalha,
profecias conhecidas e os outros cinco questionamentos levantados por Frei Teixeira e não
analisados aqui, fundamentaram a defesa de que o falso de Veneza era, de fato, o rei
desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir, e que todos os outros anteriores se tratavam de
engodos. Ele afirma que
Nós sabemos que em Castela um pasteleiro de Madrigal se fez acreditar que
ele era o rei D. Sebastião, e ele divulga inicialmente em segredo, depois
como ele convenceu a cada um esta falsa opinião, ele foi reconhecido como
um embusteiro, e por ter cometido um crime muito grave, executado pela
justiça. Estes exemplos são revelados aos olhos, pois depois da perda do rei
D. Sebastião em África, todos os portugueses sempre consideraram vivo e
por este meio ele aparece suficientemente, que ele não estava morto, e que
seu corpo não é o dele que foi enterrado como seu em Belém. De qualquer
forma, por estes mesmos exemplos, V.S. ilustríssima poderá facilmente
julgar, que este homem que está preso em Veneza, é o rei D. Sebastião
mesmo, esperado em dois anos e cinco meses que passaram depois que ele
começa a se manifestar, esta senhoria sempre retornava dia após dia, e mais
parecia verdade, sem poder encontrar algum vestígio que o levaria a crer que
certamente o que o embaixador de Castela disse contra este prisioneiro. 45
43 Para o autor, “embora não haja nenhuma dúvida de que a ficção legal dos Dois Corpos do Rei foi um aspecto
característico do pensamento político inglês na era elisabetana e dos primeiros Stuarts, seria impróprio inferir
que tais especulações se limitassem aos séculos XVI e XVII ou carecessem de antecedentes.”
KANTOROWICKZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre a teologia política medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 48. 44
Ibid., p. 18. 45
TEIXEIRA, José. Adventures admirables. Paris, 1602, p. 22. No original: “Nous sçauons qu’em Castille vn
patissier de Madrigal se fit accroire qu’il estoit le Roy Sebastian, & le publia du commencement ens ecret; puis
comme il eut abreuué chacun de cette faulse opinion, il fut reconu comme vn abuseur, & pour auoir commins vn
crime tres-grief, excecuté par iustice. Ces exemples sont conoistre à l’œil, que depuis l aperte du Roy Dom
Sebastian em Aphrique, tous les Portugaiz l’ont toujours estimé viuant, & par ce moyen il appert susfisamment,
qu’il n’est point mort, & que son corps n’est point celuy qui fut enterré comme sien em Bethlehem. D’ailleurs,
par ces mesmes exemples V. S. Tres-illustre pourra facilement iuger, que cet homme qui a este Prsionnier à
Venise, est le Roy Dom Sebastian mesme; attendu qu’em deux ans & cinc mois qui sont passez depuis qu’il
commença de se manifester, cette Segneurie a toujours trouué de iour em iour plus d’apparence de verité, sans
pouuoir rencontrer aucune chose qui l’ait induit à croire pour certain ce que l’Ambassadeur de Castille alleuoit
contre ce Prisionnier.”
19
Por mais que o caso tenha posteriormente sido julgado como farsa, e numa primeira
condenação à expulsão de Veneza e quando em Espanha condenado ao enforcamento seguido
de esquartejamento46
, e ainda que não se tenha até o momento, notícias de outros falsos
depois de Marco Túlio Catizone, o fato é que não diminuiu a espera sebástica. Ao longo do
século XVII vários episódios associados ao sebastianismo tiveram lugar na Península Ibérica
e mesmo fora dela. Por sua vez, a restauração da autonomia portuguesa em 1640 pelas mãos
do Duque de Bragança não extinguiu a crença no retorno do monarca perdido no norte da
África. Se para o jesuíta Antônio Vieira, o rei desejado prometido nas trovas de Bandarra era
o restaurador D. João IV47
, entre os populares, a figura de D. Sebastião se manteve como
detentor do binômio régio desejado/encoberto e de todo o simbolismo a ele associado, o que
pode ser percebido, por exemplo, nos fenômenos de visionárias processadas pela Inquisição,
sob a acusação de, através do estabelecimento de pacto demoníaco, viajarem até as ilhas
encobertas, incógnitas ou afortunadas, e nelas, manterem contato com o Encoberto48
.
Face o exposto até aqui, acredito que a identificação da crença sebástica como um
movimento cultural amplo e complexo permite destacar, dentre vários, o seu aspecto
messiânico e mitológico. Na mesma medida, a análise sucinta de um dos textos produzidos no
alvorecer do século XVII possibilita rastrear as bases da cultura política que esteve associada
ao aspecto milenarista do sebastianismo.
No que diz respeito ao mito, Mircea Eliade aponta que
O mito conta uma história sagrada (…). Em outros termos, o mito narra
como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a
existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma
ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É
sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo
foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu,
do que se manifestou plenamente.49
46 BERCE, Yves-Marie. O rei oculto. Bauru / São Paulo: Edusc / Imprensa Oficial, 2003, p.48-67.
47 Para uma biografia de Antônio Vieira, ver: AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo:
Alameda, 2008. 2 v.; VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras,
2011. Sobre a escrita profética de Vieira, ver: HERMAN, Jacqueline. O império profético de Antônio Vieira:
notas para um debate. In: Anais de história de além-mar, Lisboa, v. 12, p.213-234, 2011. 48
Sobre as visionárias processadas pela inquisição, sob a acusação de fingir visões (relacionadas com d.
Sebastião), ver: HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
273-301. 49
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.11
20
Por mais que as reflexões de Eliade levem em consideração o que ele chama de
“sociedades tradicionais”, elas servem de ponto de partida para pensar o papel do mito
também naquelas sociedades que não são privilegiadas por sua análise. Isto permite uma
aproximação aos pensamento de Backzo, que afirma:
Os mitos preservam e transmitem os paradigmas, os modelos exemplares,
para todas as atividades responsáveis a que o homem se dedica. Em razão
desses modelos paradigmáticos, revelados ao homem em tempos míticos, o
Cosmo e a sociedade são regenerados de maneira periódica.50
Dessa forma, é possível apreender o sebastianismo como uma manifestação de caráter
mitológico, sem contudo, ignorar sua base política. Assim, retomo Backzo, quando afirma
que
O mito traduz, segundo as suas próprias modalidades, uma experiência
particularmente rica em emoções intensas que se confundem com as
expectativas e as esperanças de que está rodeada. Experiência coletiva por
excelência: vivida com uns e com os outros no calor humano de uma
multidão que se está a descobrir a si própria como uma realidade.51
Por fim, é o mesmo autor que conecta o conceito de mito e o de imaginário social
quando diz:
Os imaginários sociais não funcionam isoladamente, entrando, sim, em
relações diferenciadas e variáveis com outros tipos de imaginários e
confundindo-se, por vezes com eles e com a sua simbologia (por exemplo, a
utilização do simbolismo sagrado a fim de legitimar um poder). (…) Nos
tempos modernos, os mitos políticos propriamente ditos, as ideologias e
as utopias formam lugares privilegiados em que se constituem os
discursos que veiculam os imaginários sociais.52
Ao considerar o sebastianismo como um mito político, acredito ser possível relacionar
seus processos de apropriação cultural, como a base messiânica judaica, a ilha encoberta de
origem celta e a sua conjugação com as imagens relativas ao paraíso terreal53
. Porém, esses
50 Id., Mito do eterno retorno: arquétipo e representação. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 9.
51 BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. Volume 5, p.322. Grifo do autor. 52
Ibid., p.312. Grifo meu. 53
Para uma análise mais aprofundada destes temas e suas relações, ver: DELUMEAU, Jean. Une histoire du
Paradis: le Jardin des délices. Paris: Fayard, 1992. (em especial os capítulos 3 a 8, p. 59-228); HERMANN,
Jacqueline. No reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 280-303. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos
21
sentidos simbólicos, expressões do imaginário social da época dos seiscentos, não podem ser
dissociados de seu caráter político. É, portanto, nesse ponto de confluência que se inscreve a
produção textual de Frei José Teixeira. A análise – ainda que breve – de seus escritos permite,
por conseguinte, depreender o seu papel de destaque na produção e consolidação deste
imaginário social relacionado à crença sebástica.
Referências bibliográficas:
1. Fontes impressas:
CASTRO, João de. Discvrso da vida do sempre bem vindo et apparecido Rey Dom Sebastian
nosso senhor o Encuberto. Paris: Martin Verac, 1602.
______. Paraphrase et concordançia de alguas prophecias de Bandarra. Paris: [s.n.], 1603.
TEIXEIRA, José. Adventure admirable par dessus toutes les outres des siecles passez e
presents. Paris: Carlo Lauro, 1601.
______. Le miroir de la procedure de Philippe Roy de Castille en l'usurpation du Royaume de
Portugal. Paris: [s.n.], 1595.
2. Obras de referência: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da
Companhia de Jesus, 1712-8. 10 v. REY, Alain. Dictionnaire historique de la langue française. Paris: Le Robert, 1992. 2 v.
3. Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Martim. Estudos de cultura portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional /
Casa da Moeda, 1984.
AZEVEDO, João Lúcio de. A evolução do Sebastianismo. 2. ed. Lisboa: Livraria Clássica,
1947.
______. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda, 2008. 2 v.
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopédia
Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. Volume 5, p. 296-332.
BERCÉ, Yves-Marie. O Rei oculto: salvadores e impostores. Mitos políticos populares na
Europa moderna. Bauru / São Paulo: Edusc / Imprensa Oficial, 2003. Tradução Maria Leonor
Loureiro.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II. Rio de
Janeiro: Martins Fontes, 1984, v.2.
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Corre manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro.
Madrid: Marcial Pons, 2001.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982. Tradução de Guy Reynaud.
CUNHA, Mafalda Soares da. A questão jurídica na crise dinástica. In: MATTOSO, José
(Org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1993, vol.3, p. 552-559.
DELUMEAU, Jean. Une histoire du Paradis: le Jardin des délices. Paris: Fayard, 1992.
edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996; e LEGOFF, Jacques. O
Ocidente medieval e o oceano Índico. In: ______. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e
cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980. p. 263-280.
22
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno: arquétipo e representação. Lisboa: Edições 70,
1985. Tradução Manuela Torres. ______. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. Tradução Pola Civelli. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociedade da realeza e da
aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Tradução Pedro Süssekind.
FRANÇA, Eduardo D'oliveira. Portugal na época da Restauração.São Paulo: Hucitec, 1997.
GINZBURG, Carlo. Representação: a palavra, a ideia, a coisa. In: ______. Olhos de madeira:
nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 85-103.
Tradução Eduardo Brandão. HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal
(séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. O império profético de Antônio Vieira: notas para um debate. In: Anais de história
de além-mar, Lisboa, v. 12, p.213-234, 2011.
______. Um rei indesejado: notas sobre a trajetória de D. Antônio, Prior do Crato. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 30, n. 59, p.141-160, jun. 2010.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
KANTOROWICKZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre a teologia política
medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Tradução Cid Knipel Moreira.
LEGOFF, Jacques. O Ocidente medieval e o oceano Índico. In: ______. Para um novo
conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980. p.
263-280. Tradução Maria Helena da Costa Dias. MACHADO, Diogo Barbosa. Memorias para a história de Portugal que comprehendem
governo del rey d. Sebastião, unico em nome e decimo sexto entre os monarcas portugueses.
Lisboa Occidental: Joseph Antonio da Sylva, 1736. 4 v.
MARQUILHAS, Rita. A faculdade das letras: leitura e escrita em Portugal no século XVII.
Bragança Paulista: Edusf, 2003.
MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a
Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. SERAFIM, João Carlos Gonçalves. A aurora da Quinta Monarquia (1604-1605). Porto:
Citcem/Edições Afrontamento, 2011. 500 p. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10325.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2016. ______. D. João de Castro, "O Sebastianista": meandros de vida e razões de obra. 2004. 3 v.
Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2004. Disponível em:
<https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/67021> . Acesso em: 17 ago. 2016.
______. Elevar um rei com vaticínios: textos e pretextos no caso do Rei D. Sebastião de
Veneza (1598-1603). Letras: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras, Santa
Maria, n. 49, p.77-96, 26 dez. 2014. Universidade Federal de Santa Maria. Disponível em:
<http://periodicos.ufsm.br/index.php/letras/article/view/16591>. Acesso em: 10 ago. 2016.
VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011
VALENSI, Lucette. Fábulas da memória: a batalha de Alcácer Quibir e o mito do
Sebastianismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. 314 p. Tradução Maria Helena Franco
Martins.
VALLADARES, Rafael. A conquista de Lisboa: violência militar e comunidade política em
Portugal (1578-1583). Lisboa: Texto Editores, 2010. (Livro digital).