o direito penal do inimigo e o conceito de “nÃo pessoa”

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  • 8/8/2019 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O CONCEITO DE NO PESSOA

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    O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O CONCEITO DE NO PESSOA

    Jakobs defende que devem existir dois tipos de Direito, um voltado para o cidado eoutro voltado para o inimigo. Segundo o autor, no se trata de contrapor duas esferasisoladas do Direito penal, mas de descrever doisplos de um s contexto jurdico-penal1.

    O Direito voltado para o cidado caracteriza-se pelo fato de que, ao violar a norma, aocidado dada a chance de restabelecer a vigncia dessa norma, de modo coativo, mascomo cidado, pela pena2. Neste caso, o Estado no v no indivduo um inimigo, queprecisa ser destrudo, mas o autor de um fato normal3, que, mesmo cometendo um atoilcito, mantm seu status de pessoa e seu papel de cidado dentro do Direito. Alm do que,no pode despedir-se da sociedade pelo seu ato4.

    Porm, existem indivduos que pelos seus comportamentos: pelos tipos de crimes quecometem (delitos sexuais), ou pela sua ocupao profissional (criminalidade econmica,trfico de drogas), ou por participar de uma organizao criminosa (terrorismo), se afastou,de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto , que no proporcionaa garantia cognitiva mnima necessria a um tratamento como pessoa5, e portanto devemser tratados como inimigos, sendo que para este se volta o Direito Penal do Inimigo.

    Percebe-se que a tese defendida por Jakobs estruturada sobre o conceito de pessoae de no-pessoa. Para ele, o inimigo uma no-pessoa, pois um indivduo que no admiteser obrigado a entrar em um estado de cidadania no pode participar dos benefcios doconceito de pessoa6.

    Para Jakobs, indivduo e pessoa so distintos. O indivduo pertence ordem natural, o ser sensorial, tal como aparece no mundo da experincia. Os indivduos so animaisinteligentes, conduzindo-se pelas suas satisfaes e insatisfaes conforme suaspreferncias e interesses, ou seja, sem referncia a nenhuma configurao objetiva domundo externo em que participam outros indivduos7. A pessoa, por outro lado, estenvolvida com a sociedade (mundo objetivo), tornando-se sujeito de direitos e obrigaesfrente aos outros membros do grupo do qual faz parte, propiciando a manuteno da ordem

    no mesmo8

    .Portanto, a persona es algo distinto de un ser humano; este es resultado de procesosnaturales, y aqulla un producto social que se define como la unidad ideal de derecho ydeberes que son administrados a travs de un cuerpo y de una conciencia9.

    Quando comete um delito ao cidado previsto o devido processo legal que resultarnuma pena como forma de sano pelo ato ilcito cometido. Ao inimigo o tratamento diverso, a ele o Estado atua pela coao, a ele no aplicada pena e sim medida desegurana10.

    O autor afirma que o delinqente por tendncia no pode ser tratado como um cidadoque age erroneamente, pois o mesmo est intrincado numa organizao criminosacolocando em perigo a legitimidade do ordenamento jurdico pelo fato de rechaa-lo e no

    1 CANCIO MELI, Manuel, in JAKOBS, Gnter. CANCIO MELIA, Manuel, Direito Penal do Inimigo, moes ecrticas. Org. e Trad.: Andr Luis Callegari e Nereu Jos Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005,p. 21.2 Idem, p. 32-3.3 Idem, p. 32.4 Idem, p. 26-7.5 Idem, p. 35.6 Idem, p. 36.7 JAKOBS, Gnter. La idea de la normativizacin en la Dogmtica jurdico-penal, in Moiss Moreno

    Hernndez (coordenador), Problemas capitales del moderno Derecho penal a principios del siglo XXI,Cepolcrim, D. R. Mxico D.F.: Editorial Ius Peonale, 2003, p. 69 e ss.

    8 JAKOBS. Gnter apud MARTN, Luis Gracia. Consideraciones crticas sobre el actualmente DerechoPenal del enemigo. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologa. 2005, n. 07-02. Disponvel em: Acesso em: 02 jun.2005, p. 25.

    9 JAKOBS. In Moiss Moreno Hernndez. Op. Cit., p. 72.10 JAKOBS. In JAKOBS;CANCIO MELI. Op. Cit., p. 24.

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    se adaptar a ele11. Assim, quem inclui o inimigo no conceito de delinqente-cidado nodeve assombrar-se quando se misturarem os conceitos de guerra e processo penal12. Comestas afirmaes, Jakobs sustenta que a separao entre Direito Penal do cidado e DiretoPenal do inimigo visa proteger a legitimidade do Estado de Direito, certamente voltado parao cidado.

    Jakobs defende o Direito Penal do Inimigo afirmando que, o Estado tem o direito deprocurar a segurana frente aos inimigos, sustentando que a custdia da segurana umainstituio jurdica. E argumenta que os cidados tm o direito de exigir do Estado asmedidas adequadas a fim de fornecer esta segurana13. Portanto, o Estado no deve tratar oinimigo como pessoa, pois do contrrio vulneraria o direito segurana das demaispessoas14.

    Cncio Meli crtica o nome utilizado por Jakobs para descrever a teoria em anlise,ele argumenta que, Direito penal do cidado pleonasmo, e Direito penal do inimigo umacontradio em seus termos15. Alm disso, ele constitui to s a reao do ordenamento jurdico contra indivduos perigosos, e que para tanto a reao desproporcional e nocondiz com a realidade. Alega que, mesmo sem levar-se em conta os estudos de psicologiasocial em casos importantes para o Direito Penal do Inimigo, como trfico de drogas,criminalidade de imigrao, terrorismo, por exemplo, percebe-se na prtica que as reaes

    de combate dirigem-se mais para de inimigos em sentido pseudo-religioso do que naacepo tradicional- militar do termo16.Uma crtica pode ser feita quanto afirmao de Jakobs de que o inimigo uma no

    pessoa. Desse conceito decorre uma indagao, se o conceito de Direito Penal do Inimigoparte do pressuposto de que existiriam no-pessoas, resta saber se este conceito de no-pessoas prvio ao Direito Penal do Inimigo ou se uma criao do mesmo. Dito de outromodo, ou os inimigos estariam identificados antes da incidncia do Direito Penal do Inimigoou somente seriam classificados como tais aps a incidncia do mesmo. Resta que aresposta afirmativa deva ser dada pela segunda opo, conforme afirma Jakobs, pois docontrrio, estar-se-ia supondo que o Direito Penal do Inimigo pudesse ser aplicado tambmaos cidados, pois como saberia-se se tratar realmente de um inimigo?17.

    Ocorre que, num Estado de Direito, e garantidor da dignidade do ser humano, o statusde pessoa no pode ser ou deixar de ser atribudo a algum, ou seja, ningum pode serclassificado como no-pessoa18. Assim, em no podendo existir no-pessoas, tambm, nopoder existir Direito Penal do Inimigo.

    Seguindo na anlise do conceito de inimigo, o qual seria um indivduo que abandonoude forma permanente e duradoura o Direito, e partindo da a afirmao de que o Direito emquesto o dos cidados, e que este Direito somente possa ser infringindo por quem sejadestinatrio de suas normas, e, conforme afirma o Direito Penal do Inimigo este s pode seruma pessoa, por certo se chega concluso de que o inimigo tambm uma pessoa, poisinfringe reiteradamente as normas de Direito dos cidados. E para que se comprove queeste indivduo em questo tenha infringido realmente o Direito dos cidados ele ter que ser

    submetido necessariamente a um processo penal que por certo dever ser o dos cidados,pois ele entra no processo como cidado e protegido pelas garantias desse Direito19.

    Conseqentemente, se ao fim do processo ficar comprovado que o indivduo cometeuo ato ilcito dever sofrer as conseqncias jurdicas do Direito Penal dos cidados, pois foieste Direito que o mesmo infringiu e pelo qual foi julgado. E, mesmo que seja com oprocesso que o indivduo perca sua condio de pessoa e passe a ser um inimigo, no resta

    11 Idem, p. 36.12 Idem, p. 37.13 Idem, p. 29.14 Idem, p. 42.15 Idem, p. 54.16 Idem, p. 70-1.17 MARTN, Op. Cit, p. 27- 8.18 CONDE, Muoz. Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Estudios sobre el Derecho penal en

    el nacionalsocialismo, Ed. Tirant lo Blanch: Valencia, 2002, p. 118.19 MARTN. Op. Cit., p. 29.

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    dvida de que o mesmo dever transcorrer coberto das garantias processuais prprias doscidados, resultando logicamente que o indivduo ao ser condenado permanece na condiode pessoa20. Desse raciocnio conclui Luis Garcia Martn que,

    en principio, al Derecho penal del enemigo slo le es posible partir de laexistencia previa de personas, y que si esto es as, entonces los contenidos y lasreglas materiales de ese Derecho no podrn ser otras distintas a las del Derechopenal del ciudadano. La argumentacin desarrollada, sin embargo, y como he dichoal principio, no tiene ms valor que el dialctico, y por consiguiente no puede ser

    acogida como decisiva en contra del Derecho penal del enemigo21.

    Outrossim, pode-se alegar que o Direito Penal do Inimigo uma reao do sistemajurdico, frente aos problemas sociais como os riscos do mundo ps-modernos, internamentedisfuncional22. Pois, os fenmenos, frente aos quais reage o Direito penal do inimigo, notem esta periculosidade terminal pra a sociedade como se apregoa deles23. A importnciadada a estes fenmenos est em que tratam-se de comportamentos delitivos que afetamelementos essenciais e vulnerveis da identidade das sociedades, principalmente num planosimblico24. Assim, uma resposta juridicamente-funcional deveria estar na afirmao doDireito Penal da normalidade, e no na afirmao de um Direito Penal para o inimigo.Portanto, a resposta idnea no plano simblico, ao questionamento de uma norma

    essencial, deve estar na manifestao de normalidade, na negao da excepcionalidade25.Ao afirmar-se o sistema jurdico-penal normal se nega ao infrator a capacidade de

    questionar o sistema, e principalmente seus elementos essncias ameaados. Se pelocontrrio, se entender possvel e legtimo um Direito Penal do Inimigo, ter-se- quereconhecer, tambm, a capacidade do infrator de questionar a norma, pois este Direitoexcepcional prescinde de uma demonizao de certos grupos de autores, implcita em suatipificao da reprovao de seus atos26, porm baseada em critrios de periculosidade,configurando um Direito Penal do autor, desprovido das garantias e prerrogativasprocessuais de um Estado de Direito.

    Para concluir, bom frisar a lio de Prittwitz, que reconhece o sucesso incrvel doEstado de Direito nos ltimos dois sculos, ainda que considerando muitos retrocessos,como o nazismo, por exemplo, e as variadas velocidades desse processo em diversaspartes do mundo. O autor reafirma este sucesso mesmo frente s polticas dos EUA quedefendem a liberdade por meio da violao do direito liberdade. Este sucesso, afirma oautor, deve ser observado na busca por uma reposta aos riscos da sociedade atual, nodevendo dar espao para outro que no seja o Direito compatvel com um EstadoDemocrtico de Direito27.

    20 Idem, ibidem.21 Idem, p. 20 e 30.22 CANCIO MELI. In JAKOBS;CANCIO MELI. Op. Cit., p. 76.23 Idem. Ibidem.24 Idem, p. 77.25 Idem, p. 78.26 Idem, p. 80.27 PRITTWITZ. Op. Cit., p. 45.