o direito fundamental à boa administração sob a Ótica do estado

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O direito fundamental à boa administração sob a ótica do Estado Problemas e desafios Bruno de Oliveira Lira Publicado em 02/2011. Elaborado em 08/2010. A questão da gestão é fundamental para a real efetividade dos direitos fundamentais. Disto decorre a necessidade de se buscar identificar os problemas que afetam a gestão pública. 1.Introdução Na última década, desenvolveu-se na Europa a idéia da existência de um direito fundamental a boa administração. No âmbito do particular, este direito visa conceder uma maior proteção em face dos desmandos dos órgãos da Comunidade Européia. Uma farta produção doutrinária se debruçou sobre o tema, buscando demonstrar as bases de sua fundamentalidade e o seu real conteúdo. Percebe-se que os trabalhos produzidos miram, unicamente, a perspectiva do particular, ou seja, na definição do âmbito de proteção circunscrito por este direito. Neste trabalho, busca-se dar uma perspectiva diferenciada. Não mais mirando para o particular, mas assumindo como centro o Estado e identificando o principal dever, decorrente deste direito, que lhe cabe: exercer uma "boa gestão" dos recursos públicos. A questão da gestão é fundamental para a real efetividade dos direitos fundamentais. Em países periféricos, a falta de recursos financeiros é apontada como a principal causadora da inviabilidade dos direitos sociais. Disto decorre a necessidade de se buscar identificar os problemas que afetam a gestão pública. A partir deste ponto, pode-se buscar novos instrumentos que se mostrem hábeis a elucidar a questão. 2.A evolução da boa administração no direito comunitário europeu

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Artigo jurídico sobre o direito fundamental à boa administração

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O direito fundamental boa administrao sob a tica do EstadoProblemas e desafiosBruno de Oliveira LiraPublicado em02/2011. Elaborado em08/2010.A questo da gesto fundamental para a real efetividade dos direitos fundamentais. Disto decorre a necessidade de se buscar identificar os problemas que afetam a gesto pblica.1.IntroduoNa ltima dcada, desenvolveu-se na Europa a idia da existncia de um direito fundamental a boa administrao. No mbito do particular, este direito visa conceder uma maior proteo em face dos desmandos dos rgos da Comunidade Europia.Uma farta produo doutrinria se debruou sobre o tema, buscando demonstrar as bases de sua fundamentalidade e o seu real contedo. Percebe-se que os trabalhos produzidos miram, unicamente, a perspectiva do particular, ou seja, na definio do mbito de proteo circunscrito por este direito.Neste trabalho, busca-se dar uma perspectiva diferenciada. No mais mirando para o particular, mas assumindo como centro o Estado e identificando o principal dever, decorrente deste direito, que lhe cabe: exercer uma "boa gesto" dos recursos pblicos.A questo da gesto fundamental para a real efetividade dos direitos fundamentais. Em pases perifricos, a falta de recursos financeiros apontada como a principal causadora da inviabilidade dos direitos sociais.Disto decorre a necessidade de se buscar identificar os problemas que afetam a gesto pblica. A partir deste ponto, pode-se buscar novos instrumentos que se mostrem hbeis a elucidar a questo.

2.A evoluo da boa administrao no direito comunitrio europeuSegundo Elisabetta LANZA (2010), o direito fundamental a boa administrao tem suas origens assentadas na jurisprudncia da Corte Europia. De incio, ele foi tratado como sendo um princpio especfico para a proteo da competitividade.As suas primeiras aparies deram-se no bojo de processos judiciais, onde particulares buscavam a reparao de prejuzos pretensamente causados pelos rgos oficiais da Unio Europia. Nestes casos, a corte apreciava se a conduta destes rgos falhou em obedecer alguns dos procedimentos legais.Aps um longo processo de construo jurisprudencial, esta mesma corte elevou a boa administrao ao "conceito" de princpio geral. Tal entendimento no restou isento de crticas. Joana MENDES (2010) aponta que vrios acadmicos, entre eles Azoulai e Hoffmann, colocavam que este princpio tinha problemas de ambigidade/incerteza. Como regra, ele no era utilizado de forma autnoma pela corte, mas em juno com outros princpios ou direitos, buscando-se retirar conseqncias jurdicas especficas. Com base nestas jurisprudncias, poder-se-ia concluir que o ncleo do princpio seria o exame cuidadoso e imparcial das circunstncias legais e fticas de cada caso.A discusso em prol da codificao deste princpio inicia-se com o Ombudsman Srensen. Em 2000, esta autoridade defendeu a incluso da boa administrao dentro do rol de direitos fundamentais dos cidados europeus. Tal proposta foi levada a cabo pela Conveno Europia atravs do art. 41 da Carta de Nice[01], nos seguintes termos:Artigo 41.Direito a uma boa administrao1. Todas as pessoas tm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituies e rgos da Unio de forma imparcial, equitativa e num prazo razovel.2. Este direito compreende, nomeadamente:- o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente,- o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legtimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial,- a obrigao, por parte da administrao, de fundamentar as suas decises.3. Todas as pessoas tm direito reparao, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituies ou pelos seus agentes no exerccio das respectivas funes, de acordo com os princpios gerais comuns s legislaes dos Estados-Membros.4. Todas as pessoas tm a possibilidade de se dirigir s instituies da Unio numa das lnguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma lngua.A leitura atenta deste dispositivo permite a concluso de que a positivao do direito foi alm do requisitado pelo ombudsman. Tal concluso deve-se ao fato deste artigo ser o nico, na Carta de Nice, que prescreve um direito para todas aspessoas, e no apenas para oscidados. Para LANZA (2010), h duas razes para tal distino. A primeira que o comportamento dos rgos da Unio Europia no deve ser diferenciado em funo da nacionalidade das pessoas envolvidas. Assim, a garantia deste direito para apenas os cidados da Unio Europia abriria margem a um tratamento diferenciado entre membros e no membros da unio.Segundo, o termo "cidado" est mais ligado a idia de uma pessoa natural, enquanto que o direito a boa administrao tambm deveria alcanar as corporaes. Isto se deve ao fato de que o nmero de pessoas jurdicas que lidam diuturnamente com os rgos comunitrios muito maior do que o de meras pessoas fsicas. Desta forma, a utilizao do termo "pessoas" torna-se mais apropriado, afastando possveis ambigidades.

3.O contedo do direito fundamental a boa administrao na Unio EuropiaTendo sido positivado, atravs da Carta de Nice, resta determinar qual o contedo do direito a boa administrao.Uma primeira fonte que deve ser apreciada nesta busca a prpria Carta. Atravs da leitura do art. 41, percebe-se que o direito a boa administrao engloba um conjunto de direitos procedimentais, que buscam proteger os interesses dos particulares frente aos rgos da Unio Europia. Para MENDES (2010), esta forma "guarda-chuva" seria proveniente da origem jurisprudencial deste direito.Pela fundamentao colocada na Carta de Nice, o direito a boa administrao pode ser dessumido do Estado de Direito. Sua inovao reside no fato de que ele transforma alguns elementos objetivos do princpio da legalidade em um direito subjetivo a boa administrao.Em outras palavras, o Estado Moderno tem como um dos motivos para o seu surgimento o estabelecimento da regulao das relaes sociais, tanto as horizontais (entre as pessoas) como as verticais (entre as pessoas e o prprio Estado). Desta forma, o Estado estabelece, atravs de sua atividade legislativa, o procedimento a ser utilizado pelas pessoas para interagir com os seus agentes ou rgos estatais.Paralelamente, estas mesmas regras procedimentais estabelecem um padro de comportamento ou de conduta de como estes agentes/rgos estatais devem proceder diante daquela situao. esta justa expectativa da pessoa, de que o Estado se conduzir de acordo com o procedimento padro estabelecido pelas normas do Ordenamento Jurdico, que representa o ncleo do direito a Boa Administrao. Para LANZA (p. 5, 2010), esse direitodifere dos direitos fundamentais "clssicos", tais como a dignidade humana ou a liberdade de pensamento, conscincia e religio, pelo fato de que defende o interesse no apenas reconhecendo a sua existncia, mas tambm estabelece formas e procedimentos que devem ser respeitados pelas instituies pblicas[02].Na viso de MENDES (2010), boa administrao um conceito complexo e multifacetado. Para ela, pode-se entender que o direito a boa administrao constitudo de trs diferentes camadas interconectadas entre si. Numa primeira camada, tm-se as garantias procedimentais que so, primariamente, dirigidas a proteger os direitos substantivos dos que lidam com a administrao europia. A infringncia destas regras daria azo a uma ao judicial de reparao dos prejuzos causados ou, em ltimo caso, a prpria anulao do ato violador.Em uma segunda camada, enquadrar-se-iam as regras legais que estruturam o exerccio da funo administrativa. Visam a estruturar o poder discricionrio da Administrao, para que fique alinhado com a perseguio do interesse pblico, e garantir o controle dos atos da administrao.Por fim, na terceira camada, temos as normas no legais que definem padres de conduta, dirigidos a garantir o funcionamento apropriado dos servios administrativos disponveis ao pblico. Tais normas buscam garantir, de forma precpua, a eficincia e a qualidade destes servios.MENDES (2010) aponta que esta sistematizao reflete a distino entre as funes subjetiva e objetiva das regras procedimentais. Ou seja, a diferena entre a proteo dos direitos substantivos subjetivos e a perseguio ao interesse pblico.

4.Direito fundamental a boa administrao no BrasilConforme visto nas sees anteriores, o direito fundamental a boa administrao baseia-se no Estado de Direito. Desta forma, todos os pases que assumam esta forma de Estado atribuiriam, sua populao, este direito fundamental.Olhando para o caso especfico do Brasil, o direito a boa administrao deve ser visto como um direito implcito, j que no h, no ordenamento jurdico brasileiro, nenhuma positivao dele. Nesta linha de raciocnio, surge, de imediato, a questo da fundamentalidade deste direito, ou seja, ser que ele atende aos caracteres mnimos necessrios para que o mesmo possa ser visto como um direito fundamental em "terras tupiniquins"?Para tentar responder a esta pergunta, utilizar-se- os caracteres, definidos por Robert Alexy, como necessrios para que um direito seja positivado entre os direitos fundamentais. Manoel Gonalves FERREIRA FILHO (2010) discrimina as caractersticas que Alexy entende serem essenciais: universalidade; fundamentalidade; abstratividade; moralidade e prioridade.Um direito universal quando pertence a todos os seres humanos. Ou seja, aqueles que so vlidos para todos, independentemente de qualquer caracterstica individual da pessoa, seja cultural, religiosa, racial ou do grupo a que se faa parte.Um direito fundamental quando protege apenas os interesses e carncias essenciais do homem. Desta forma, quando estes objetos de proteo no forem devidamente salvaguardados, estar-se- diante da possibilidade de morte, padecimento grave ou afetao do ncleo da autonomia.Um direito abstrato quando suscetvel de restrio. Tal restrio s pode ser obtida atravs da ponderao, buscando assegurar que a reduo seja mnima ou menor possvel.Por sua vez, um direito moral quando a sua validade no decorre da sua positivao, mas de que a norma que compe a sua base seja vlida moralmente. E, por fim, um direito prioritrio quando ele tem prioridade em face do direito positivo. Ou seja, as normas ou decises judiciais que se oponham aos direitos fundamentais so juridicamente viciadas.No necessrio muito esforo para comprovar que o direito a boa administrao atende a caracterstica da universalidade. De fato, v-se que o Estado estabelece as regras procedimentais de forma impessoal, pretendendo atingir a sociedade como um todo ou apenas parte dela. Estas mesmas regras geram, no pblico alvo daquela legislao, uma expectativa de um comportamento estatal padro. Esta justa expectativa o prprio ncleo do direito a boa administrao, conforme dito alhures. Assim, o direito de cobrar este comportamento padro caber a todos queles que forem alvo da legislao estatal.V-se que o direito a boa administrao visa a proteger o cidado contra os desmandos dos Poderes Estatais. Resta claro, portanto, a sua fundamentalidade e prioridade. Sem ela, o cidado estaria merc das decises/atos teratolgicos dos Poderes Estatais.No tocante a abstratividade, no resta dvidas que a boa administrao passvel de sofrer restries, quando diante de um conflito com outros direito fundamentais. Um exemplo disso so as recorrentes decises judiciais que alteram a alocao de verbas oramentrias destinadas para a rea de sade, em face do risco de morte de algum paciente necessitando de uma medicao cara, especfica e ainda no prevista no SUS.Por fim, no se pode negar a base moral que o direito a boa administrao possui. Um dos princpios fundamentais que rege a Administrao Pblica no seu agir dirio , justamente, o princpio da moralidade. Logo, este princpio tambm permeia a interao entre o Estado e o particular.Em face do atendimento dos requisitos especificados por Alexy, conclui-se que o direito a boa administrao , de fato, um direito fundamental. Na viso de Juarez FREITAS (2007, p.20), este direito pode ser compreendido como:o direito fundamental administrao pblica eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparncia, motivao, imparcialidade e respeito moralidade, participao social e plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas.Pela definio do direito a boa administrao, FREITAS (2007) conclui que este direito abriga, em seu bojo, um plexo de direitos subjetivos que englobam o direito a uma administrao pblica transparente, dialgica, imparcial, proba, respeitadora da legalidade temperada, eficiente e eficaz, alm de econmica e teleologicamente responsvel.

5.As garantias ao direito a boa administrao no BrasilA afirmao de que o direito a boa administrao um direito implcito, albergado pelo Ordenamento Jurdico brasileiro, implica que este mesmo plexo normativo possibilite a proteo a este direito. H de se convir que qualquer direito restaria invivel, caso no houvesse mecanismos que garantissem a sua defesa.De fato, observando a nossa Carta Maior, percebe-se que o sistema de controle, estabelecido pela Constituio Federal o principal meio de proteo a este direito. Controle, aqui, deve ser entendido na forma ampla, assim como Paulo BULGARIN entende. Para este autor:Controle da administrao pblica, em sentido amplo, tem por finalidade precpua a constatao da compatibilizao dos mltiplos atos e programas de gesto estatal, tanto nos seus aspectos de regularidade formal como de resultado social, com amplo elenco de vetores normativos, em sua maioria de natureza principiolgica, que regem a atuao legtima do poder pblico. (BULGARIN, 2004, p. 28)Nota-se, atravs deste conceito, que a verificao dos atos de gesto bem mais ampla, possibilitando at a mensurao da efetividade das medidas adotadas com relao perseguio do interesse pblico.Neste ponto especfico, deve ser destacado importante papel exercido pelas Cortes de Contas (TCs). A atual Constituio Federal aumentou, e muito, as atribuies destes tribunais. Segundo o seu art. 70, compete a elas realizarem a fiscalizao contbil, financeira, oramentria, operacional e patrimonial.Em especial, a auditoria operacional (ou auditoria de natureza operacional - ANOP) tem, por fim, verificar se os resultados obtidos pela entidade fiscalizada esto de acordo com as metas e objetivos previstos. Para o TCU, esta auditoria pode ser dividida em duas modalidades: aAuditoria de Desempenho Operacional, que objetiva examinar a ao governamental quanto aos aspectos da economia, da eficincia e da eficcia; e aAvaliao de Programa, que busca examinar a efetividade dos programas e projetos governamentais. Gustavo LIMA (2010, p. 73) coloca que "a ANOP a maneira atravs da qual os TCs fiscalizam a boa aplicao dos recursos pblicos, analisando o desempenho da administrao pblica, mensurando e comparando os resultados alcanados com os resultados planejados nos programas de governo". Tal verificao, acrescida com a auditoria formal da legalidade, garante a verificao da concreo do direito fundamental a boa administrao.Assim, os TCs passam a zelar, no apenas pela obedincia legalidade, mas tambm pela efetividade dos atos de governo, em atingirem o interesse pblico. LIMA traz um interessante caso prtico, o julgamento das contas do Fundo Municipal de Sade de Caets - exerccio de 2003, que reflete tal tendncia:Nessa auditoria, alm de se analisar o cumprimento dos procedimentos legais nas despesas pblicas realizadas, observaram-se os indicadores de qualidade do atendimento sade da populao.A anlise operacional demonstrou que, apesar de o Municpio cumprir o limite constitucional de gastos com a sade, acabou contratando com a rede privada diversos servios disponibilizados pelo SUS, alm de priorizar os gastos com procedimentos de alta complexidade a custos elevadssimos, beneficiando apenas uma pequena parcela da populao, em detrimento do atendimento bsico ao maior nmero de cidados.Tudo isso resultou no recrudescimento do ndice de mortalidade infantil, diminuindo as aes de preveno do cncer de colo de tero, no atendimento das metas estabelecidas pelo Programa da Sade Familiar, levando o Municpio de Caets a ocupar o penltimo lugar do ranking do IDH pernambucano.A rejeio das contas levou em considerao que a escassez de recursos pblicos exige dos administradores o dever de eficincia, atendendo igualitariamente o maior nmero de pessoas possvel. (LIMA, 2010, p. 53)

6.Gesto como dever do Estado em face do direito boa administraoAt este momento, levou-se em conta, apenas, a viso do ponto de vista do particular. Como se sabe, o principal objetivo dos direitos fundamentais conferir, aos indivduos, uma posio jurdica de direito subjetivo, com vistas a limitar a atuao dos poderes estatais. Assim, o que para o indivduo constitui um direito fundamental, para o Estado, ter-se- um dever de fazer ou de abster-se de fazer algo.Cabe, portanto, responder a uma pergunta: sabendo que a boa administrao um direito fundamental, qual o dever "fundamental" que ele gera para o Estado? Para FREITAS, ele vincula o Estado com o "dever de observar, nas relaes administrativas, a cogncia da totalidade dos princpios constitucionais que a regem" (FREITAS, 2007, p. 20). Praticamente, o doutrinador gacho, com este posicionamento, apenas refora o papel da legalidade, ao qual a Administrao est jungida.Neste ponto, acreditamos que o Estado tem um dever muito mais importante para a garantia da efetividade dos direitos fundamentais do que o mero obedecimento aos princpios constitucionais. Cabe a ele prover os meios necessrios para que estes direitos concretizem-se. Tal s pode ser feito atravs da gesto apropriada dos recursos pblicos.Pode-se ver este dever da boa gesto como um complemento natural do trabalho de Jos NABAIS (2010). Nele, o autor portugus demonstra uma realidade inexorvel: todos os direitos fundamentais possuem um custo financeiro associado. Disto decorre que os direitos no subsistem em um estado falido ou financeiramente incapacitado. Assim, para a garantia de uma efetividade mnima dos direitos, faz-se mister que os membros da sociedade cumpram com os seus deveres fiscais.Complementando esta idia, de nada adianta ter um estado marcadamente arrecadador, que aufere vultosas rendas, se ele no as gere de forma apropriada. Uma gesto pobre tende a sufocar o desenvolvimento do pas e a impedir qualquer tendncia de concreo dos direitos fundamentais, especialmente os sociais. Nesta situao, os direitos perdem a sua natureza de fundamental e viram privilgios concedidos pelo Estado.Tal realidade, os brasileiros sentem na prpria pele. A nossa carga tributria uma das maiores do mundo. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributrio (IBPT), a carga tributria brasileira, em 2009, correspondeu a 35,02% do PIB[03], ou seja, cerca de 1,09 trilhes de reais. Em termos per capita, cada brasileiro pagou cerca de R$ 5.706,36 em tributos naquele ano. Tal valor equivale a mais de 12 vezes o salrio mnimo vigente no perodo de anlise (R$465,00).Se por um lado, o Estado brasileiro arrecada grandes somas, por outro, a gesto destes recursos no to eficiente. Os problemas a serem atacados so muitos. Entre estes, podemos destacar a captura poltica dos recursos pblicos, o baixo nvel de transparncia e a prpria qualidade dos gastos pblicos.Deve-se entender a "captura poltica" de verbas pblicas como sendo a utilizao ou concesso de recursos pblicos com vistas ao aumento da influncia poltica da autoridade que a libera ou concede, ao invs de se privilegiar o interesse pblico. Um exemplo disso ocorreu, recentemente, na distribuio das verbas destinadas para a preveno de catstrofes. O Dirio de Pernambuco, em 23 de junho de 2010, noticiou que:De 2004 a 2009, a Defesa Civil reservou R$ 933 milhes no Oramento da Unio para obras preventivas de desastres. Desse total, apenas R$ 357 milhes foram pagos. Mas 37% desse dinheiro foram parar na Bahia, estado do ento chefe da pasta de Integrao Nacional, o deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA). Os dois estados mais afetados pelas enchentes desta semana receberam poucos recursos. Pernambuco ficou com 8,9% do total, enquanto a Alagoas foram destinados escassos 0,3%. Em 2010, a situao se mostra ainda pior. A Bahia ganhou mais dinheiro que todos os demais estados juntos (56% do total). Pernambuco ficou com 0,24% e Alagoas no recebeu um nico centavo[04].Todos sabem qual foi o impacto desta alocao de recursos. Municpios como Palmares (PE) e Unio dos Palmares (AL) restaram destrudos. Mais de 5.000 pessoas vivendo, literalmente, na lama, sem nenhuma esperana. Sem dvidas, houve um aviltamento da dignidade humana.Outro problema a falta de transparncia dos gastos pblicos. H de ser colocado aqui que transparncia no se confunde com publicidade. Satisfaz-se a publicidade com a mera publicao dos atos do poder pblico nos meios de comunicao. Por sua vez, a transparncia visa a garantir que a sociedade compreenda o real significado deste mesmo ato. Em outras palavras, a transparncia confere visibilidade ao ato.Ao dar-se transparncia aos gastos pblicos, o Estado permite um nvel de escrutnio maior, em suas aes, por parte da sociedade. Ao proporcionar o desenvolvimento do controle social, o Estado tende a utilizar o seu poder de forma mais lcida, diminuindo a carga de arbitrariedade.A realidade brasileira est longe de ser transparente, apesar de existirem alguns setores pblicos onde h uma maior preocupao com esta caracterstica. Na maioria das vezes, temos um despreparo em relao a essa questo, que pode ser atribuda no s mentalidade/formao dos gestores pblicos, de modo geral, como a baixa concepo de cidadania que grassa no seio da nossa sociedade.Se por um lado os gastos pblicos no so transparentes, por outro, h uma baixa qualidade dos mesmos. As despesas efetuadas deveriam coadunar-se com as metas e atividades de planejamento pblico e a formulao de polticas sociais em diferentes reas de atuao (sade, educao, segurana pblica, entre outras). O objetivo final seria a elevao do nvel de bem-estar da populao.No entanto, a realidade aponta para uma direo diametralmente oposta. H uma verdadeira falncia generalizada dos servios pblicos. Por exemplo, a educao mngua falta de recursos. De h muito tempo que o setor de segurana pblica beira o caos. A violncia se espalha, tornando-se um problema comum tanto nos centros urbanos como nos rurais.Outrossim, a aquisio de bens e servios por parte do governo demorada, custosa e ineficiente. Entre os fatores apontados como geradores deste problema, pode-se destacar o prprio procedimento licitatrio. Devido a sua importncia e os problemas que ela carrega em si, deixar-se- para atacar em uma seo especfica.

7.Licitaes e alguns dos seus problemasA busca pela eficincia dos gastos pblicos passa, necessariamente, pela melhoria do procedimento estatal utilizado para adquirir os bens e insumos necessrios ao seu agir. Isto faz com que este mesmo procedimento seja um dos pontos mais nevrlgicos da Administrao Pblica. Alguns dados empricos servem para demonstrar esta criticidade.As tabelas[05]abaixo foram construdas a partir de dados do Tribunal de Contas de Pernambuco. Nelas, foram totalizadas, apenas, as prestaes de contas julgadas do executivo municipal (PCMs).A primeira tabela mostra que o percentual de PCMs que contenham alguma meno ao instituto da licitao - seja na fundamentao da deciso (como considerando apontando o cometimento de uma irregularidade mais grave), seja como uma recomendao (irregularidades mais simples ou formais) cresce gradualmente.AnoQtd. PCMsQtd. PCMs cuja deciso contenha alguma meno ao instituto da licitaoPercentagem

20054005614

20063486318,10

20073557120

20083008327,67

20092877726,83

20101364835,29

Quando focamos a nossa ateno para as PCMs que tiveram julgamento pela irregularidade das contas (segunda tabela, abaixo), o peso do desvio de conduta no procedimento licitatrio apresenta um crescimento percentual ainda maior. Pelos nmeros pode-se concluir que, em mdia, nos ltimos cinco anos, cerca de um tero das PCMs irregulares tiveram problemas com licitao.AnoPCMs irregularesPCMs irregulares com meno a licitaoPercentagem

2005892831,46

20061273729,13

20071675532,93

20081646036,60

20091486040,54

2010863338,37

Este aumento gradual da relevncia das irregularidades em licitao na apreciao das prestaes de contas reflete o prprio aumento da complexidade social. De fato, medida que o tempo passa, a sociedade brasileira torna-se mais consciente de seus direitos fundamentais. Isto faz com que a presso pela concretizao dos referidos direitos se torne cada vez maior.Como resultado desta presso, o Estado v-se forado a modernizar-se e a buscar melhorias em sua gesto. Como consequncia direta deste processo, o Estado providencia a aquisio, no mercado, de novos bens e servios, nunca dantes utilizados ou requeridos, com vistas a criar os meios necessrios para a concreo dos direitos. Naturalmente, a inovao dos objetos da licitao provoca um aumento do risco da existncia de irregularidades na licitao (direcionamento, objeto genrico, especificao incompleta, etc).Quando se fala em problemas da licitao, h um certo consenso na doutrina que aponta os seguintes itens como os principais: a complexidade da legislao, a burocracia do procedimento, o custo de transao associado e a corrupo.Devido a nossa tradio romanstica, h uma clara opo por se tentar normatizar tudo que envolve este procedimento. Isto faz com que a utilizao do instituto seja extremamente complexa, necessitando-se de pessoas que detenham um conhecimento tcnico especializado. Infelizmente, esta no a realidade em todo o territrio brasileiro.Por outro lado, em funo da grande quantidade de princpios constitucionais que a licitao tem de obedecer (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, vinculao ao instrumento convocatrio, objetividade do julgamento, etc), o procedimento licitatrio torna-se lento e burocrtico. Eduardo FIUZA (2010, p. 8) lembra que, "na Unio Europia, os nicos princpios a serem observados (Diretiva 2004-17-CE, Artigo 14) so to-somente a igualdade de tratamento; a no discriminao; e a transparncia".Outrossim, deve-se levar em conta que os contratos administrativos so, na sua maioria, incompletos, ou seja, os planos iniciais e as especificaes dos bens e servios procurados so mudados e refinados aps a adjudicao do bem. Vrios so os motivos para isso: especificao inadequada do objeto, mudanas ambiental ou ftica, ou a prpria incompletude do contrato inicial. Isto faz com que as propostas incluam este risco de adaptao e os custos da renegociao, o que aumenta ainda mais o preo final praticado. Neste ponto, a teoria econmica dos contratos poderia trazer insumos valiosos para a prtica licitatria.Os custos de transao associados a uma licitao so inmeros. Entre os custos da Administrao, pode-se contabilizar os econmicos (direto e indiretos, tais como papel, computadores, comunicao, entre outros), as horas de trabalho dos servidores alocados para proceder com oiterprocessual (construo do edital, acompanhamento dos feitos, construo de pareceres, etc), taxas, seguros, garantias, fretes, etc.Alm destes, temos os custos incorridos pelos licitantes, que fatalmente sero transferidos para o preo final do bem/servio a ser adquirido. Neste grupo, incluem-se os custos de cadastramento, obteno de certides necessrias para a prova de qualificao ou regularidade, deslocamento de pessoal e material para amostra, etc. FIUZA (2010, p. 3) coloca que "quanto mais trmites burocrticos e quanto maior a incerteza sobre a concluso do processo de compra, maiores ficam sendo os custos das firmas participantes da licitao".Por fim, um dos principais problemas das licitaes a corrupo. Por envolver um ambiente em que a capacidade de deciso do gestor por demais ampla, adicionado ao fato de que os controles so escassos e a visibilidade pblica bastante limitada, as licitaes transformam-se num ambiente propcio para o desenvolvimento de tal prtica. Em alguns setores, o principal fator de competitividade torna-se a capacidade da empresa em corromper o sistema. Estima-se que, em alguns casos, a corrupo representa mais de 30% dos custos governamentais derivados dos processos licitatrios.Hodiernamente, as licitaes tem sido alvo de uma forma mais elaborada de fraude: a cartelizao. Os cartis, ao fraudarem o carter competitivo das licitaes, prejudicam substancialmente os esforos governamentais na busca do desenvolvimento do pas, beneficiando indevidamente as empresas participantes do conluio. Ainda que a Administrao busque racionalizar suas compras por meio de controles oramentrios mais estritos e de melhoria nas formas de contratao como por meio do uso do prego eletrnico , isso no impede a ao dos cartis, que provocam transferncia indevida de renda do Estado para as empresas.Dia a dia, v-se que as prticas de cartis nas compras pblicas se tornam cada vez mais comuns. Tal concluso evidenciada, nos ltimos anos, pela grande quantidade de operaes policiais que buscam combater tal ilcito (Vampiro [2004], Sentinela [2004], Sanguessuga [2006], Carta Marcada [2006], Fox [2006], Alcaides [2006], Jaleco Branco [2007], Castelo de Areia [2009], entre outras).O prejuzo causado, ao estado brasileiro, por essa prtica pode ser estimado na ordem das centenas de milhes de reais, considerando que as compras de bens, servios e a construo de obras pblicas pelo Estado representam parcela expressiva do seu PIB. Alm disso, a experincia da Secretaria de Direito Econmico (SDE) e de outras autoridades concorrenciais estrangeiras demonstra que o formato de licitaes pode facilitar a formao de cartis.No entanto, no existem muitos trabalhos jurdicos que procurem estudar, com mais afinco, esta problemtica. Assim, deve-se buscar um tratamento cientfico adequado para a caracterizao do conluio nas licitaes.

8. ConclusesA "boa administrao" um direito de origem europia. De incio, foi tido como um princpio especfico para garantir a competitividade. Com o passar do tempo, evoluiu atravs da jurisprudncia da Corte Europia para ser visto como um princpio geral at que, em 2000, foi sufragado como um direito fundamental na Carta de Nice.Neste diploma legislativo, o direito a boa administrao foi justificado como uma decorrncia do prprio Estado de Direito. Logo, todo e qualquer Estado que assuma esta forma, j alberga este direito, no mnimo, de forma implcita.O Brasil no exceo. Alm de alberg-lo, viu-se que a Constituio Federal prov todo um conjunto de institutos e rgos para a sua proteo. Em especial, os Tribunais de Contas possuem um papel especial na proteo deste direito, ao utilizar as tcnicas da auditoria operacional para avaliar a efetividade das medidas adotadas pelos gestores pblicos.Este "novo" papel dos TCs visa a garantir, de forma transversa, que o Estado cumpra com o dever ao qual ele est vinculado, por decorrncia do direito fundamental a boa administrao: a boa gesto. Sem uma gesto eficiente dos recursos pblicos, boa parte dos direitos fundamentais, especialmente os sociais, esto fadados a serem meras "letras mortas".Os desafios para o Estado so enormes. Vrios so os problemas que devem ser evitados para que se garanta uma boa gesto: a captura poltica, a falta de transparncia e a baixa qualidade dos gastos pblicos.Focando, especificamente, na qualidade dos gastos pblicos, percebe-se que uma melhoria nesta rea passar, necessariamente, por uma melhor compreenso do ambiente que envolve o procedimento adotado para as aquisies de bens e servios. Neste ponto, uma grande contribuio pode ser trazida pela utilizao do instrumental adotado pela economia, tais como, teoria dos contratos incompletos, teoria dos jogos, racionalidade econmica dos agentes, etc.Os benefcios trazidos por esta viso multidisciplinar possibilitar o surgimento de um Estado mais eficiente com relao utilizao dos seus recursos. Isto facilitar o atendimento das demandas sociais por novos direitos e a efetiva concretizao do direito fundamental a boa administrao. Eis o grande desafio da modernidade brasileira.

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Notas1. Texto obtido no site , em 01/07/2010.2. Livre traduo de "It differs from classic fundamental rights, such as the human dignity or freedom of thought, conscience and religion, due to the fact that it defends the interest not only by recognizing its existence, but in also establishing forms and procedures that must be respected by the public institutions".3. Informao obtida no sitio em 08/07/2010. PIB o acrnimo de Produto Interno Bruto.4. Informao obtida no stio em 09/07/2010.5. A quantificao do ano de 2010 considerou, nas duas tabelas, apenas as prestaes existentes e julgadas at o dia 10/07/2010. O critrio usado para obter o quantitativo geral de prestaes de contas foi a utilizao da consulta de deliberaes no stio do TCE-PE, com o seguinte filtro: ["Deciso T.C. n */XX" e "Prestao de Contas" e "Prefeitura"], onde XX era substitudo pelo ano (05, 06, .., 10).J para restringir o quantitativo de prestaes para aqueles que contivessem alguma meno ao instituto da licitao, acrescentou-se o parmetro ["licit*"] no filtro anterior.Por fim, para considerar apenas o universo das prestaes julgadas irregulares, acrescentou-se o termo ["julgar irregular*"] aos filtros utilizados na construo da primeira tabela (pargrafos anteriores desta nota).

Autor Bruno de Oliveira LiraAdvogado. Especialista em Direito Processual. Mestrando em Cincia Jurdica pela Faculdade de Direito do Recife.Textos publicados pelo autorFale com o autor

Informaes sobre o textoComo citar este texto(NBR 6023:2002 ABNT)LIRA, Bruno de Oliveira.O direito fundamental boa administrao sob a tica do Estado.Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2787, 17 fev. 2011. Disponvel em:. Acesso em:22 maio 2015.