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135 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE SER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA Andréia da Silva Daltoé UNISUL Resumo: Este artigo investiga o funcionamento da metáfora no interior da relação entre o chamado direito ao esquecimento e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), tomados aqui em seus efeitos metafóricos como ‘direito de ser esquecido’ e ‘direito de ser lembrado’, respectivamente. Tendo como base a Análise do Discurso, busca observar de que modo este deslizamento faz trabalhar as noções de ‘memória’ e ‘esquecimento’. Abstract: This paper investigates the functioning of metaphor within the relation between the so-called right to be forgotten and the work of the National Truth Commission (CNV), taken here in their metaphorical effects as ‘right to be forgotten’ and ‘right to be remembered’, respectively. Based on Discourse Analysis, it aims to observe how this gliding movement puts the notions of 'memory' and 'forgetfulness' to work. Questões introdutórias A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. (...). Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

O DIREITO DE SER ESQUECIDO,

O DIREITO DE SER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O

FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

Andréia da Silva Daltoé

UNISUL

Resumo: Este artigo investiga o funcionamento da metáfora no interior

da relação entre o chamado direito ao esquecimento e os trabalhos da

Comissão Nacional da Verdade (CNV), tomados aqui em seus efeitos

metafóricos como ‘direito de ser esquecido’ e ‘direito de ser lembrado’,

respectivamente. Tendo como base a Análise do Discurso, busca

observar de que modo este deslizamento faz trabalhar as noções de

‘memória’ e ‘esquecimento’.

Abstract: This paper investigates the functioning of metaphor within

the relation between the so-called right to be forgotten and the work of

the National Truth Commission (CNV), taken here in their

metaphorical effects as ‘right to be forgotten’ and ‘right to be

remembered’, respectively. Based on Discourse Analysis, it aims to

observe how this gliding movement puts the notions of 'memory' and

'forgetfulness' to work.

Questões introdutórias

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade. (...).

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra. (...)

Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(Carlos Drummond de Andrade)

Em junho de 2014, o Google comunicou, em São Francisco/CA, que

passaria a aplicar o direito ao esquecimento determinado pela Corte de

Justiça Europeia, a qual, em maio do mesmo ano, já havia exigido que

os sites de buscas da internet possibilitassem a eliminação de

referências desatualizadas ou fatos passados que, retomados no

presente, pudessem ferir a integridade da pessoa humana e/ou sua

privacidade. Depois da decisão, o Google disponibilizou um formulário

online para os usuários que pretendessem a eliminação de suas

informações pessoais da rede. Quatro semanas depois, a empresa havia

recebido 41 mil pedidos.

No Brasil, o debate ganhou calor com a VI Jornada de Direito Civil,

organizada pelo Conselho de Justiça Federal em Brasília, março de

2014, quando juristas de todo o país e do exterior aprovaram o

Enunciado 531, de força doutrinária, que prevê o direito ao

esquecimento, direito este não apenas restrito ao espaço da internet, mas

também estendido a qualquer outro meio de comunicação.

A discussão não é nova, mas tem tomado fôlego diante da

necessidade de abrigo legal para as questões de internet e o modo como

a disseminação de informações ganha o mundo em segundos, o que

também reascende a polêmica entre os direitos individuais e o direito

coletivo de acesso às informações.

Sem entrar nesta contenda, objetivamos relacionar, na presente

pesquisa, este direito ao esquecimento e os trabalhos que estão sendo

desenvolvidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de

investigar como estas duas instâncias fazem trabalhar a memória, o

sujeito, a história e o próprio esquecimento, a partir do movimento que

preveem, neste deslizamento, entre um dizer e um não dizer, entre um

não dizer e um dizer. Num efeito metafórico, designaremos o primeiro

como o direito de ser esquecido e o segundo como o direito de ser

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

lembrado, entendendo que não estamos colocando as duas questões

como se fossem da mesma natureza jurídica, muito menos em relação

de oposição, em que uma seria o contrário da outra no par

esquecer/lembrar.

Ambas as metáforas serão problematizadas a partir de nossa

inscrição na Análise do Discurso (AD) de linha francesa, campo teórico

que nos orienta como pesquisadora e cuja área nos permite pensar a

língua e o sujeito em sua relação com o político nas condições materiais

em que se inscrevem. Neste caso, são condições que passam por

políticas de memória, aqui compreendidas como toda determinação que

atinge o dizer a partir das formas de individualização do sujeito pelo

Estado.

Com a ajuda da noção de metáfora numa abordagem discursiva,

queremos pensar este processo na relação de nunca acabar entre

memória e esquecimento, movimento este visceral em AD para

compreendermos os processos discursivos em suas diferentes

materialidades. No caso desta pesquisa, as materialidades serão

tomadas como Sequências Discursivas de Referência (SDr)

(COURTINE, 2009), constituídas por recortes de leis, recurso jurídico,

depoimentos de alguns dos já ouvidos pela CNV e falas de ex-presos

políticos em reportagens a respeito dos temas, estes dois últimos

transcritos de vídeos disponibilizados na rede.

Neste percurso, trataremos:

Do direito de ser esquecido: metáfora que se dá a partir do direito

ao esquecimento, que, entre outras formas de a justiça brasileira regular

o uso da rede, prevê, conforme o Enunciado 531, que “A tutela da

dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o

direito ao esquecimento”1, com base no Art. 11 do Código Civil, trazido

aqui como uma SDr:

SDr 1: Os danos provocados pelas novas tecnologias de

informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao

esquecimento tem sua origem histórica no campo das

condenações criminais. Surge como parcela importante do

direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o

direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas

apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos

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MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com

que são lembrados. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.335.153 - RJ

(2011/0057428-0))2.

Do direito de ser lembrado: metáfora que se dá a partir dos trabalhos

da CNV, Comissão esta criada em 18 de novembro de 2011, de acordo

com a Lei nº 12528, e instituída em 16/05/20123 pela Presidenta Dilma

Rouseff, com o propósito de apurar violações aos direitos humanos

ocorridas no período de 1946 e 1988, que inclui a ditadura (1964-

1985)4, buscando, conforme Art. 1º, “efetivar o direito à memória e à

verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Dentre seus

objetivos previstos no Art. 3º da presente Lei, destacamos:

SDr 2: II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos

de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de

cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; (...).

SDr 3: IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e

qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e

identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos

políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro

de 1995; (...).

SDr 4: VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas

para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não

repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

SDr 5: VII - promover, com base nos informes obtidos, a

reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos

humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência

às vítimas de tais violações.

Nos deslocamentos necessários, importante dizer que, no primeiro

caso, não estamos diante de uma lei, mas de um recurso legal, de caráter

doutrinário, cuja aplicação se dará pela interpretação do operador do

direito.

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

De outra natureza, a CNV não tem poderes punitivos nem

indenizatórios, mas desempenha um importante papel de reafirmação

democrática do País ao procurar voltar aos fatos deste passado e

construir, a partir de uma outra narrativa, a história que vitimizou

famílias tragicamente afetadas por um regime em que os militares,

conforme Indursky (2013), “sob o pretexto de salvarem a pátria da

corrupção, da desordem e do comunismo, empolgaram o poder, nele

perpetuando-se por 21 anos, impondo suas posições e calando vozes

discordantes” (2013, p.323).

Resguardadas as devidas diferenças, a relação que estabelecemos

entre ambos os direitos (não no sentido jurídico do termo) se justifica

pelo modo como, em ambos, podemos investigar processos de

individualização pelo Estado, e também pelo modo como cada um, à

sua maneira, mobiliza um trabalho sobre memória e esquecimento que

muito interessa à AD.

Nosso interesse é, então, relacionar estes dois direitos para

problematizá-los em relação ao modo como são afetados pelas ilusões

que nos constituem: ilusão do sujeito como origem e do sentido como

colado à língua. De qualquer modo, vale ressaltar que esta aproximação

já ocupa outros lugares de debate na mídia, por exemplo, em relação ao

temor de que o direito ao esquecimento seja usado pelos torturadores

da ditadura militar no Brasil a partir dos desdobramentos dos relatórios

da CNV, como apresenta o sujeito enunciador a seguir, que é ex-preso

político, torturado pela ditadura, hoje presidente da Comissão da

Verdade Rubens Paiva de SP:

SDr 6: O que tão querendo é usar um direito ao esquecimento

para ter impunidade, nem se fala sobre o crime cometido, mas

essa gente não foi processada, não foi condenada, não pagou a

pena. Querem ser esquecidos antecipadamente? (Ivan Seixas)5.

Filiado a uma outra Formação Discursiva (FD), que não a jurídica,

o sujeito enunciador desta SDr representa os defensores dos direitos

humanos que entendem o direito ao esquecimento como um

contraponto ao direito de memória, direito este preconizado pela

própria Lei que institui a CNV. Não entraremos neste debate de

aplicação jurídica, mas, sem dúvida, esta discussão vem reforçar a

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relação tensa entre o que estamos tratando aqui como direito de ser

esquecido e direito de ser lembrado.

1. O deslizamento dos sentidos entre um dizer e não dizer

Desde a tese (2011)6, quando analisamos as Metáforas de Lula,

temos nos debruçado sobre a noção da metáfora e seu trabalho de

deslizamento de sentidos do ponto de vista discursivo. Daí o interesse

em trazer esta questão a partir do conceito que formulamos na pesquisa

de doutorado para, agora, pensar o direito de ser esquecido e o direito

de ser lembrado.

Considerando que ambas as propostas colocam em relação um dizer

e um não dizer, conforme as SDrs de 1 a 5, observamos o modo como

o texto da lei é afetado por um imaginário que concebe o poder de as

palavras preencherem o espaço do vazio, ao passo que sua ausência

representaria um lugar em branco.

Neste efeito de sentido, em que a palavra pode ser retirada de cenário

para dar lugar ao vazio, a crença à letra da lei se reafirma na SDr 1,

considerando-se possível voltar à história de um indivíduo e reescrevê-

la, determinando não só o uso que é dado aos fatos pretéritos, mas

também o modo e a finalidade com que são lembrados. Este desejo, em

alguns momentos, se mistura aos domínios semânticos da internet, aos

modos de uma vontade realizada pelo simples toque de um botão, como

aponta a SDr 7, retirada do Recurso relatado pelo Ministro Luiz Felipe

Salomão7:

SDr 7: (...) em recente palestra proferida na Universidade de

Nova York, o alto executivo da Google Eric Schmidt, afirmou

que a internet precisa de um botão de delete. (Recurso Especial

nº 1.335.153-RJ (2011/0057428-0)).

Nesta SDr, vemos, no desejo pela tecla delete, o sentido do jurídico

se misturando aos da internet em nome da mesma vontade ou ilusão de,

com facilidade de um toque, apagar registros da rede.

A proposta da CNV também é atravessada por este imaginário em

relação à palavra que viria agora, a partir das audições dos envolvidos

na ditadura, preencher um vazio; o desejo de que a palavra viria

reconstruir a história (SDr 5) deste período no Brasil, preenchendo a

lacuna deixada pelos dizeres, à época, interditados. Trabalham estes

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sentidos os desejos de, conforme nossas materialidades, esclarecimento

dos casos (SDr 2), localização e identificação dos corpos (SDr 3),

reconstruir a história (SDr 5), não repeti-la e se reconciliar com ela

(SDr 4).

Pensando estes efeitos de sentido, que trabalham afetados por um

imaginário de que a palavra preencheria o lugar do vazio e de que,

inversamente, sua ausência seria um não sentido, neste primeiro

momento, poderíamos ler este deslizamento do seguinte modo:

a) em relação ao direito de ser esquecido:

do pleno/saturado para o silêncio/interditado

b) em relação ao direito de ser lembrado:

do silêncio/interditado para o pleno/saturado

Ou seja, no primeiro caso, parte-se do pressuposto de que o

sentido das palavras já divulgadas na rede em um determinado

momento do passado migrariam para o espaço do vazio, para que as

informações prejudiciais à dignidade da pessoa humana ou à sua

privacidade fossem deletadas dos arquivos da máquina e, assim,

apagadas da memória dos demais usuários. Já, no segundo caso, os

dizeres que sofreram a interdição da ditadura, que foram silenciados

naquele momento, seja pela tortura, pela ameaça, pela força dos atos

institucionais, migrariam, agora, para o espaço do poder dizer,

promovendo o preenchimento necessário das lacunas do passado.

A partir de tais efeitos, a metáfora trabalharia numa relação entre

elementos de oposição comutáveis, intercambiáveis, cujos sentidos

operariam na relação interditado/saturado. Todavia, este entendimento

situa a metáfora no terreno do senso comum: figura de linguagem que

estabelece relações de similitude entre palavras (mesmo que neste caso

sejam de oposição), pela ideia paralela entre os termos. Funciona aí,

portanto, a ilusão de que a presença de palavras trabalha o pleno e sua

ausência, o vazio.

Pêcheux e Fuchs (1997 [1975]), relendo os trabalhos da AAD 69 e

refletindo se as substituições mudam ou não os sentidos, admitiram que,

no início, “estas substituições eram necessariamente índices de

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equivalência, em outros termos, que as n seqüências de um domínio

constituem n formas semânticas equivalentes de uma mesma

proposição, no sentido lógico do termo” (1997, p.211).

Pensada nesta dualidade, o funcionamento da metáfora não faz

intervir as condições históricas, sociais e ideológicas de um e outro

momento do deslizamento e assim também não considera o modo como

a memória que os atravessa vai além de um caráter temporal.

Courtine (2009) levanta um problema central para esta questão: “o

da definição de critérios permitindo determinar as ‘orientações’ entre

comutáveis (2009, p.191). Conforme o autor, esta concepção inicial de

paráfrase desenvolvida por Pêcheux pressupunha uma noção de

identidade semântica entre as formulações, e a trazemos aqui porque,

neste momento, as substituições simétricas funcionavam, segundo

Pêcheux e Fuchs (1997), no nível da metáfora, designada como uma

metáfora adequada (um termo por outro). Ou seja, a metáfora era

pensada como uma substituição simétrica, atuando num trabalho de

equivalência a partir da seguinte definição: “A é contextualmente

sinônimo de B, ou então, é uma sua metáfora adequada (e

reciprocamente para B em relação a A)” (1997, p.212). Neste caso, a

metáfora adequada da AAD 69 seria o resultado de uma comparação

“perfeita” de elementos com características em comum.

Nesta revisita, Pêcheux e Fuchs (1997) apresentam duas

contribuições importantes: a primeira, em observar que a definição dos

pontos de comparação como algo natural é, antes, bastante arbitrária; e

a segunda se coloca, particularmente, em saber “se a identidade ou a

não-identidade entre dois “conteúdos” deve revestir-se da mesma

significação, quaisquer que sejam estes conteúdos” (1997, p.216). Ou

seja, Pêcheux e Fuchs reconhecem que a questão é mais complexa,

considerando que os fenômenos semânticos de substituição “não se

reduzem, de qualquer maneira, a uma ‘identidade da interpretação

semântica’” (1997, p.218).

Estas questões nos ajudam a pensar que o deslizamento dos pares

saturado/interditado e interditado/saturado trabalham uma noção de

metáfora reduzida a fenômenos semânticos equivalentes, a partir do

jogo opositivo esquecer/lembrar como elementos comutáveis. Todavia,

no funcionamento do discurso, esta possibilidade do dizer saturado (a

não ser enquanto ilusão) e a garantia de que o silêncio é ausência de

sentido precisa ser problematizada. Em AD, nem tudo pode ser dito,

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assim também o silêncio não significa a ausência de sentido. Conforme

Orlandi (2007), o silêncio:

(...) não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio

significante. (...) possibilidade para o sujeito de trabalhar sua

contradição constitutiva, a que o situa na relação do ‘um’ com o

‘múltiplo’, a que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos

deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso

que lhe dá realidade significativa. (2007, p.23-24).

Sendo assim, consideramos que os pares esquecer/lembrar,

vazio/palavra, silêncio/palavra, dizer/não dizer, saturado/interditado,

do ponto de vista discursivo, não são termos que se opõem, um não é o

sentido contrário do outro, o que reafirma que os sentidos da metáfora

não se justificam no que cada palavra, a priori, à luz de uma semântica

geral, significa. Por isso, julgamos que é preciso fazer intervir os

pressupostos da AD para explicar porque, para nós, é impossível pensar

que os sentidos trabalham em determinados lugares e não em outros

pela força de políticas de memórias ou mesmo pela vontade soberana

do sujeito.

Para dizer o que, então, observamos no funcionamento da metáfora

a partir de nosso corpus, trazemos antes algumas questões sobre sujeito,

memória e esquecimento.

2. O sujeito de direito(s)

Falar em sujeito na AD é retirá-lo do seu espaço de dono do dizer,

de origem em si, de autonomia diante da língua e do real. É, conforme

Pêcheux (2011, p.156), deixá-lo de pensar como eu-consciência mestre

do sentido para reconhecê-lo como assujeitado ao discurso. A forma-

sujeito pela qual o sujeito se identifica com a FD vai, porém, segundo

Pêcheux (1988), mascarar este assujeitamento, esta determinação, ao

absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, organizando, desse

modo, “a unidade (imaginária) do sujeito, sua identidade presente-

passada-futura” (1988, p.167). Se o sujeito aparece como senhor de seu

discurso é somente enquanto unidade imaginária, o que o autor vai

chamar de efeito ideológico elementar (1988, p.153), expressão trazida

de Althusser para tratar a própria condição de ser sujeito no mundo.

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

Esta ilusão do sujeito como origem está ao lado de uma outra: a

ilusão do sentido como reflexo do real. Estas duas questões são tratadas

pelo autor como esquecimento nº 1 e nº 2: o primeiro, da ordem do

inconsciente e afetado pelo ideológico, nos dá a ilusão de estarmos na

origem do dizer. Trata-se do apagamento produzido pela ideologia, que,

ao mesmo tempo em que nos toma, nos esconde sua “captura”; e o

segundo, da ordem da língua, conforme Pêcheux (1988), representa o

processo segundo o qual “todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da

formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados,

formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase”

(1988, p.173).

Estes dois esquecimentos nos constituem sem que tenhamos pleno

acesso sobre seu funcionamento. É assim que julgamos que somos a

origem do que dizemos (esq. nº 1), esquecendo-nos de que retomamos

o tempo todo sentidos já-lá, bem como julgamos que nossa fala

estabelece relação direta com nossos pensamentos (esq. nº 2).

Com isso, vimos que o acobertamento da causa do sujeito no próprio

interior de seu efeito, tratados pela noção de esquecimento, não tem a

ver com uma falta de memória, com o esquecido, mas sim com sua

constituição enquanto sujeito do/no discurso, causando-lhe a ilusão do

eu sei o que estou dizendo, eu sei do que estou falando (PÊCHEUX,

1988, p.174).

Desse modo, a forma-sujeito de cada FD é, portanto, um efeito e não

a origem e, neste trabalho, interessa-nos pensar sobre o modo como nos

identificamos à forma-sujeito histórica do capitalismo, compreendo-

nos como livres e responsáveis, de direitos e deveres: um sujeito-de-

direito conforme Haroche (1992, p.30). É desse modo que somos

individualizados pelo Estado, que, para “garantir” nossos direitos,

antes, conforme a autora, nos faz uniformes, regulares, determinados,

previsíveis e mensuráveis (1992, p.30). É assim que as práticas jurídicas

contribuem silenciosamente com as práticas de individualização do

Estado (ORLANDI, 2005)8, ao mesmo tempo em que mascaram ao

sujeito os efeitos do jurídico na sua subjetividade, em outras palavras,

simulando ao sujeito que ele não é controlável. Esta determinação,

segundo Orlandi (2005), nos leva a tratar de maneira complexa a

questão do sujeito, da ideologia e da resistência “como algo que não se

dá apenas pela disposição privilegiada de um sujeito que então poderia

ser livre e só não o é por falta de vontade” (2005, p. 4,5).

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

Guardadas as diferenças, é preciso problematizar o modo como as

políticas de memória, que atravessam ambos os direitos tratados aqui,

trabalham este sujeito responsável e esta memória como um arquivo de

lembranças a ser acessado, pois, conforme Pêcheux (2006), não há

identificação plenamente bem sucedida, o que o leva a dizer que todo

ritual está sujeito à falha, à incompletude, aos apagamentos, à

contradição. Olhar para isso é poder encontrar vestígios do

funcionamento da ideologia no sentido.

Pensando a questão do sujeito em AD, vimos que o esquecimento

do direito ao esquecimento não é da mesma natureza que os

esquecimentos 1 e 2, no sentido de que, neste caso, não seria possível

controlar plenamente aquilo de que se pode lembrar, aquilo de que se

pode esquecer. Aliás, é preciso justamente esquecer para que os

sentidos sejam lembrados e retomados como nossos, intervindo a partir

de um já-lá do interdiscurso. Enfim, esquecer para lembrar, o que aqui

não representa uma relação opositiva, binária, em que as palavras se

equivaleriam. Desse modo, só podemos falar em alguma relação, mas

de funcionamento bem distinto, do seguinte modo: o direito de ser

esquecido é compreendido como uma garantia ao sujeito justamente

porque este, desconhecendo o funcionamento de sua dupla

determinação (esquecimentos 1 e 2), crê-se protegido pelo Estado, que,

ao lhe garantir o direito à privacidade, apaga as contradições do social

e do jurídico, fazendo crer que, pelo toque de um delete, sejam apagadas

suas informações, e não só: que este apagamento deixe de produzir

sentido.

Trabalha aí uma vontade onipotente do sujeito de direito em, a partir

da retirada de seus dados da internet ou de outras formas de mídia,

controlar a memória da sua vida e a memória dos outros sobre sua vida.

Esta “garantia” apaga ao sujeito as contradições de que é causa e

este apagamento não deixa de produzir sentidos, o que nos ajuda a

problematizar as políticas de memória. Ou seja, a crença do abrigo da

lei mascara ao sujeito o modo como o sistema capitalista o impulsiona

à mercantilização de sua imagem. Os dados de qualquer usuário da

internet hoje formam arquivos que são negociados por grandes

empresas e retornam o tempo todo a estes clientes/consumidores no

formato de vendas e ofertas. Estamos expostos ao mundo da internet,

por isso o desafio jurídico em encontrar formas de proteção ao sujeito

que, paradoxalmente, se vende o tempo todo na rede. Nas palavras de

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Gadet e Pêcheux (2004), é a língua de madeira do direito se enroscando

com a língua de vento da publicidade e da propaganda (2004, p.23).

Outra contradição que se mascara é o próprio de toda atividade

jurídica, que é feita de palavras, de entendimentos dos operadores, o

que aparece ao sujeito como efeito da pura aplicação da lei a cada caso.

Estas contradições são apagadas pelo efeito da ideologia e é assim que

nos identificamos a dizeres como:

SDr 8: Quem pretende ir à Justiça com a intenção de apagar essas

marcas negativas do passado pode invocar o direito ao

esquecimento. 9

SDr 9: Ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros do

passado. (Quarta Turma do STJ).10

SDr 10: Essa é a origem da teoria do direito ao esquecimento,

consagradora do right to be let alone, ou seja, do direito a

permanecer sozinho, esquecido, deixado em paz (Rogério Fialho

Moreira, desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª

Região).11

SDr 11: As pessoas têm o direito de ser esquecidas pela opinião

pública e pela imprensa. (Guilherme Magalhães Martins, Autor do

Enunciado 531, o promotor de Justiça do Rio de Janeiro).12

Apesar de nos identificarmos com esta garantia de tutela pelo direito

ao esquecimento, isso não apaga as contradições a que estamos

expostos. Por exemplo, as relações de poder que entram em jogo na

hora de um julgamento sobre a procedência ou não do pedido de

retirada de dados da internet, ou o argumento a favor deste direito,

trazido na SDr 1, como condição de ressocialização de um ex-detento,

o que sabemos que vai muito além do peso de sua memória. Ou seja,

ignoram-se (e não é por descuido), a partir de uma garantia de

igualdade, as desigualdades que nos constituem. Do ponto de vista da

AD, ignoram-se as determinações ideológicas e materiais que atingem

a memória e que, justamente por isso, não se deixa engendrar por

determinações legais.

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

A problematização que fazemos em torno dos trabalhos da CNV é

de outra ordem, mas não deixa de passar pelo modo como somos

afetados aí também por uma ideia de memória que se deixaria

organizar.

Do mesmo modo que o esquecimento do primeiro direito não é da

mesma ordem que os esquecimentos 1 e 2, também o esquecimento que

a CNV busca conter e/ou impedir, ao voltar aos fatos do passado e

contá-los de novo, não o é. Isso não diminui, em absoluto, sua proposta,

que, conforme Indursky (2013), “está produzindo um trabalho

importante que consiste em não deixar os fatos ocorridos durante a

ditadura militar caírem no esquecimento” (2013, p.341). Todavia,

compreendendo que este esquecimento que a CNV procura conter está

determinado pelo funcionamento dos esquecimentos 1 e 2, passamos a

entender esta volta à história fora da ilusão de agora, então, ser possível,

efetivamente, se fazer justiça e se reconciliar com o passado. Eis a

contradição com a qual precisamos lidar.

O sujeito aqui também se identifica à proteção do Estado, que, neste

momento, abre-lhe a possibilidade de dizer, quando antes o negou,

todavia, dadas as condições de produção de todo e qualquer discurso,

que é regulado não somente por força da censura de um regime de

governo, é importante pensar que, mesmo com a condição de dizer de

agora, a interdição se dá de diferentes modos, exigindo, por sua vez,

que o sujeito, ainda assim, resista e diga.

Fazendo intervir a contradição na assunção do sujeito interpelado,

esquecimento ganha, para nós, um caráter poroso e litigioso, pelo modo

como haverá sempre, em torno dele, uma luta por palavras a tentarem

garanti-lo ou impedi-lo.

Julgamos que problematizar este sujeito diante dos dois direitos

tratados aqui pode ajudar a pensar nas formas de individualização pelo

Estado e o modo como, a partir da contradição, da falha, encontram-se

vias de resistência aos meios que regulam o dizer. Com isso, não

conseguimos nos colocar, conforme Pêcheux (2006), fora do jogo ou

fora do Estado, mas nos posicionar diante de uma história que não é o

relato fiel de um tempo, mas sempre uma “disciplina de interpretação”

(2006, p.42).

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

3. A memória que se esburaca

Nas materialidades que trouxemos até aqui, a história significa como

um conjunto de fatos a que se pode voltar/não voltar, uma memória

compreendida como um depósito cognitivo de acumulados do passado,

aonde podemos retornar ou para deletar certos arquivos ou para trazer

de volta novas informações que possam nos ajudar a reconstruí-lo.

Bom, podemos e não podemos fazer isso.

Podemos ser atendidos juridicamente pelo direito ao esquecimento,

mas não podemos acreditar que os “apagados” deixem de produzir

sentidos; do mesmo modo, podemos voltar aos momentos de chumbo

da ditadura e tentar reconstruir a história, desde que compreendamos

que, conforme Pêcheux (2006), a história é interpretação e, portanto, a

verdade nunca deixa passar mais do que sua metade, conforme o poema

que abre estes escritos.

Importante ressaltar, conforme o autor, que isso não elimina em nada

nosso desejo pelas coisas-a-saber (2006, p.43), o desejo pela verdade

dos acontecimentos, pela história a que se pode ter acesso no mundo

dos livros. Sem dúvida, a história da ditadura deve ser recontada longe

da ameaça da captura, da tortura, da asfixia do não dizer, mas

precisamos entender este retorno como um processo de interpretação,

sujeito a recortes, fragmentos, esquecimentos, interdições que

continuam afetando o dizer. São outras as condições de produção hoje,

todavia não estão isentas das dificuldades que se colocam às

investigações da CNV: documentos queimados ou que não aparecem,

restos mortais dispersos e decompostos, traições da memória, traumas

que impedem o tudo dizer, enfim, interesses diversos para os quais o

calar é necessário. Além disso, há mesmo o esquecimento que precisa

acontecer: não podemos de tudo lembrar e muita coisa precisa, de fato,

ficar no passado.

A história que reclama interpretação não nos fornece a felicidade das

coisas-a-saber, como fazem muito bem, conforme Pêcheux (2006), o

Estado e as instituições; “polos privilegiados de resposta a esta

necessidade” (2006, p.34), por isso nos organizam, nos segmentam, nos

massificam. A história que pensamos aqui está subordinada ao fato de

que:

(...) todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas

filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele

Andréia da Silva Daltoé

149

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um

trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou

não, mas de todo modo atravessado pelas determinações

inscientes) de deslocamento no seu espaço (2006, p.56).

Nesta movência, a memória distingue-se de Achard (2010), que a

apresenta a partir do par implícito/explícito, cujas repetições “estão

tomadas por uma regularidade” (2010, p.14). Pêcheux (2010), na

mesma obra Papel da Memória, interroga: “a questão é saber onde

residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’

na leitura da seqüência: estão eles dispostos na memória discursiva

como em um fundo de gaveta, um registro do oculto?” (2010, p.52).

Do ponto de vista da AD, a resposta à pergunta (que já vem na

própria pergunta) seria não, não há este escondido da memória, onde se

armazenam fatos do passado, trazidos ao presente, ou não, pela vontade

do sujeito. Não estamos falando, conforme Indursky13 (2011, p.71), de

uma memória cuja regularização lhe comanda, permitindo que os

discursos sejam retomados e repetidos. Repetir em AD, segundo a

autora, “não significa repetir palavra por palavra algum dizer, embora

frequentemente este tipo de repetição também ocorra. Mas a repetição

também pode levar a um deslizamento, a uma ressignificação, a uma

quebra do regime de regularização dos sentidos” (2011, p.71).

Por este motivo, conforme Pêcheux (2010),

[...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera

plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo

conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de

um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de

divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de

conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos,

réplicas, polêmicas e contra-discursos (2010, p.56).

Há um já-lá, um antes no dizer que vem pela memória, que traz as

marcas de um tempo, de uma história, mas isso não é linear, nem

cronológico, aparece, conforme Pêcheux (1988), “como um processo

não-unificado, atravessado por desigualdades e por contradições”

(1988, p.275). São estas contradições que intervêm no político e que

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MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

permitem o espaço do aberto, dos sentidos outros, apesar de que,

conforme Corten (1999), “a narrativa do poder determina,

efetivamente, o fechamento do espaço ‘político’ (1999, p.40).

Os trabalhos da CNV, sem dúvida, podem recuperar informações

que permitirão uma nova possibilidade de leitura do passado, mas não

como o encontro com a verdade inteira, do tudo que agora será dito,

pois, desse modo, segundo Fonseca (2013), a leitura tende “à

ingenuidade ou à obsessão quando não percebe que determinadas faltas

e apagamentos merecem ser vistas não como falhas ou acidentes de

percurso, mas enquanto materializações de um outro ritual que nos

remete à esquivocidade dos sujeitos, à sua prática política” (2013, p.59).

É, então, a partir destas considerações que fizemos sobre sujeito,

esquecimento, memória e história que compreendemos a metáfora. E a

ela voltamos.

4. Quando a metáfora se estilhaça: um ritual que falha

Ao questionarmos anteriormente o deslizamento entre os pares

pleno/silêncio no funcionamento da metáfora, queríamos alertar para o

modo como não víamos ali uma relação que justificasse o simbólico, o

político, o ideológico. Fazendo intervir estas questões, o que observamos no

funcionamento de ambos os direitos é um deslizamento que não trabalha

este nível do relacional, do linear. No caso do direito ao esquecimento,

mesmo marcado pela página em branco da internet, este dizer, ou

melhor, o não dizer, não deixa de produzir sentidos, efeitos de memória,

logo, o vazio é saturado e este silêncio significa.

Assim, a crença no deletar da SDr 7 atua senão enquanto ilusão, uma

vez que o sentido e a memória não se deixam engendrar. Este suposto vazio

dá lugar a outros sentidos, como apresenta a SDr a seguir, retirado do Jornal

espanhol El País14 sobre consequências do direito ao esquecimento:

SDr 12: O denominado efeito Streisand, como se denomina

quando a tentativa de silenciar algo termina por torná-lo ainda

mais conhecido. (18/07/2014).

Com isso, questionamos também a ideia de interditado/saturado das

SDrs a seguir, retiradas de depoimentos à Comissão Estadual da

Verdade (CEV)15 Paulo Stuart Wright de SC, na cerimônia de

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

Audiência Pública em Florianópolis em Homenagem a P. S. Wright,

que dá nome à Comissão:

SDr 13: Nós queremos a verdade, nós não vamos aceitar nada

menos que a verdade.

SDr 14: Que esta comissão da verdade seja realmente de verdade.

A partir das SDrs 13 e 14, observamos o efeito do saturado da verdade.

Portanto, do mesmo modo que o silêncio no direito de ser esquecido não

significa vazio, também aqui os sentidos não deslizam do silêncio para o

tudo. Se o silêncio está neste deslizamento é tanto no antes quanto no depois,

como fundante (ORLANDI, 2006). Os sentidos podem sempre ser outros

e, conforme Pêcheux (2011), “construir ‘o’ sentido da história arrisca ao

mesmo tempo em fixá-la em uma eternidade administrativa” (2011, p.160-

161). É preciso, portanto, suportar os sentidos no plural e, no caso dos

levantamentos de informações que a CNV está possibilitando, entender que

este processo sofrerá determinações que afetam sempre o trabalho de um

dizer por outro: o trabalho da metáfora. Portanto, conforme o autor,

precisamos frustrar nosso desejo de uma historicidade homogênea e

“suportar a categoria da contradição” (2011, p.161), tal como se apresenta

na SDr a seguir, que traz o depoimento de um ex-preso político ouvido

pela CEV de SC, ao defender os trabalhos da Comissão Popular da

Verdade:

SDr 15: Senhores da burguesia, nós haveremos não com a

comissão da verdade, que não vai apurar nada, com a comissão

da anistia, que é uma farsa. Enganam-se aqueles que pensam que,

do seio do estado terrorista, vai surgir uma comissão que vai

apurar a verdade.

Diferente de outros muitos depoimentos, bem como do que prevê a

Lei que institui a Comissão, nesta SDr, podemos verificar como a

contradição se marca, fazendo ouvir outros sentidos possíveis que vão

problematizar a própria verdade da CNV.

A partir dessas considerações, vimos que a metáfora ganha um outro

tratamento, que não se limita a observar a relação estabelecida entre

dois termos por relações de similitude, num trabalho linear de um antes

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

e de um depois, até porque a memória que intervém no dizer, para a

AD, não trabalha nesta correspondência.

É porque, segundo Indursky (2007), “certos sentidos que são

constituídos a partir de uma determinada interpelação/identificação, a

partir de um certo momento, podem ser questionados e um sentido pode

tornar-se um outro” (2007, p.170), que se instaura a instabilidade, a

heterogeneidade no interior de uma língua. No caso da representação

que fizemos anteriormente, de um sentido passar do pleno para o vazio

ou do vazio para o pleno, não estávamos ainda lidando com esta

heterogeneidade de que fala Indursky, pois, para que isso seja possível,

precisamos lidar com as condições de produção desse dizer e confrontar

as evidências do discurso com sua opacidade, com os

desentendimentos, com as contradições, com as possibilidades de o

sentido ser sempre outro, construindo-se, como história, não mais do

que um efeito de relato, conforme Corten (1999, p.49), em meio à

concorrência de outras tantas versões narrativas.

Nessa perspectiva, metáfora não é tratada como um sentido

figurado, decorrente de uma base linguística, mas como, segundo

Pêcheux (1988), um “processo sócio-histórico que serve como

fundamento da ‘apresentação’ (donation) de objetos para sujeitos, e não

como uma simples forma de falar que viria secundariamente a se

desenvolver com base em um sentido primeiro, não-metafórico” (1988,

p.132).

Sendo assim, o deslizamento promovido pela metáfora não se

justifica na superfície da língua, a partir da qual um dizer é tomado,

substituído por outro. Conforme Pêcheux (1988) “‘uma palavra por

outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual

se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos

são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no processo jurídico, na

lição pedagógica ou no discurso político” (1988, p.301).

Concebendo a metáfora como constitutiva do sentido e determinada

pelas condições de produção que promovem o encontro de uma

memória e de uma atualidade, é que consideramos o direito de ser

esquecido e o direito de ser lembrado a partir do tratamento teórico que

demos à noção de Metáfora Discursiva (MD) na tese: “a substituição de

um sentido por outro, justificada no interdiscurso e materializada no

intradiscurso sob a forma de uma estrutura metafórica” (DALTOÉ,

2011, p.138).

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

No caso do direito de ser esquecido, a MD trabalha sim a relação

entre um antes e um agora, mas não significa que, neste deslizamento,

o sentido passe para o espaço onde nada mais será dito ou significado.

O interdiscurso estará neste depois também perfurando o espaço “em

branco”, atualizando o não dizer no dizer. De aproximada maneira, no

direito de ser lembrado, a MD produz um efeito de novo, um novo que

guarda os vestígios do passado: um já outro da história.

Para nós, é por este motivo que o silêncio também é espaço de

resistência, resistência da língua que também não se deixa engendrar

por determinações de individualização pelo Estado e é, a partir desta

irrupção de sentidos que escapam às determinações do poder, que se

abrem brechas para sentidos e sujeitos outros, que resistem.

A memória convocada por este tratamento da MD representa,

conforme Pêcheux, uma divisão da identidade material do enunciado,

fazendo com que “sob o ‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se

então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação

discursiva...” (2010, p. 53). Diferentemente das relações parafrásticas,

que se dão num plano horizontal, no nível do enunciado, a metáfora

funciona, conforme Pêcheux, como uma “espécie de repetição vertical,

em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-

se em paráfrase” (2010, p.53).

Ou seja, não se trata de retornar ao mesmo dizer e recolocá-lo – é o

não-idêntico que trabalha aí, em que a memória é ressignificada,

sofrendo o efeito dos furos de sua retomada. Segundo Pêcheux, isto

produz um “efeito de opacidade (correspondente ao ponto de divisão do

mesmo e da metáfora), que marca o momento em que os ‘implícitos’

não são mais reconstrutíveis” (2010, p.53). Por isso, entendemos a MD,

aos modos de Pêcheux (2011), como um curto-circuito simbólico, que

“se produz entre dois termos sem que nenhum discurso justificativo o

subentenda: as explicações e as justificações virão após” (2011, p.159),

dado o modo como se justificam no interdiscurso.

No caso dos dois direitos analisados, temos pistas do funcionamento

da MD, em cuja materialidade, conforme Orlandi (2010), “o real

histórico faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade

material contraditória (ideologia)” (2010, p.67), ao trabalhar as relações

de repetição/transformação. Não estamos, com isso, negando, no caso

da CNV, o papel da memória também enquanto lembrança de fatos,

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

cujos depoimentos podem esclarecer e ajudar a montar este outro modo

de contar a “mesma” história. Todavia, sejam todos os dados

levantados, é preciso entender esta repetição de memória, conforme

Courtine (2006), como uma repetição vertical, em que se repete

também:

(...) um não-sabido, um não-reconhecido, deslocado e

deslocando-se no enunciado: uma repetição que é ao mesmo

tempo ausente e presente na série de formulações: ausente porque

ela funciona aí sob o modo do desconhecimento, e presente em

seu efeito, uma repetição na ordem de uma memória lacunar ou

com falhas (2006, p.21).

Entre o mesmo e o diferente, algo se move e o mesmo já é outro, o

que faz com que o deslizamento dos sentidos entre um enunciado X e

um enunciado Y produza um efeito de memória, não porque estaria

recuperando um discurso de outro momento passado, mas porque faz

trabalhar uma memória que atinge uma atualidade e se justifica pela

força das condições materiais em que se dá.

Conforme Indursky (1999), este é o funcionamento da memória

discursiva, que “promove o encontro de práticas passadas com uma

prática presente” (1999, p.174) e que, segundo Pêcheux (2010): “seria

aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem

restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-

construídos, elementos citados e relatos, discursos-transversos, etc.) de

que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio

legível” (2010, p.52).

Nesse sentido, a MD promove uma ressignificação/desestabilização,

que, pelo deslizamento de sentido que provoca, guarda algo da

memória, ao mesmo tempo em que a faz aparecer de outro modo, em

outro lugar. Queremos observar esta proposta a seguir, tomando de

empréstimo uma metáfora trazida por Indursky (2013, p. 42) no

Posfácio As outras vozes e as feridas ainda abertas à reedição de seu

livro, quando ela trata dos trabalhos das Clínicas do Testemunho: a

escuta da dor. Voltamos ao Recurso do Ministro Salomão16 na parte

que trata do tema desta peça jurídica:

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

SDr 16: No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que

só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado

momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que

o tempo passa e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”,

na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o

fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora

possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes (grifo

nosso).

Neste Recurso, o sujeito enunciador da SDr 16 vota contra o pedido

de reparação de danos feito pela família de Ainda Curi, morta em 1958,

contra a TV Globo Ltda, por ter explorado o caso no Programa Linha

Direta-Justiça. A partir desta materialidade, podemos observar que o

direito de ser esquecido, enquanto garantia à dignidade da pessoa

humana, está subordinado ao trabalho de interpretação que não está

isento das relações de força, de poder, que atingem todo dizer. É com

este material, a língua, que se legisla, se decide e se justifica que a dor

de antes não é a dor de agora.

Pensando a metáfora da escuta da dor e o funcionamento da MD,

consideramos que não se trata aqui de pensar o deslizamento de uma

dor maior para uma menor, ou comparar ambas as dores, mas de

relacioná-las às determinações ideológicas que as atingem e as fazem

não ser tratadas como sentidos que se substituem simplesmente.

Em relação à CNV, a escuta da dor, como um sentido que desliza,

pode ser pensada a partir de inúmeros significantes, mas queremos aqui

trazê-la a partir da metáfora do corpo, este corpo que se procura para

ser enterrado e por cujo direito familiares e amigos lutam até hoje. Um

corpo que, para nós, pode representar, como efeito de sentido, também

uma presença que vem preencher uma ausência. Vejamos:

SDr 17: Não é dado o direito de enterrar os mortos. (Anita,

CEV/SC)17.

SDr 18: O desaparecimento é um crime continuado. (Derlei

Catarina de Luca, CEV/SC)18.

Podemos observar nestas SDrs, que a dor de antes e a dor de

agora não significam necessariamente que, mesmo encontrando-se

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

novas pistas e até o próprio corpo (e o livro-relatório Direito à Memória

e à Verdade da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

Políticos (2007) vem para confirmar o quanto isso é difícil), que esta

dor se amenizasse e produzisse o fechamento desta história. Em alguma

medida, sem dúvida, encontrar o corpo representaria uma forma de

justiça, mas não se trata de um deslizamento de uma falta a uma

presença que abrandaria as feridas: a dor continua a doer e dificilmente

se pode fazer as pazes com um passado de tortura.

Mesmo que este corpo seja encontrado, sua presentificação não

atingiria o tudo poder dizer, não tamponaria a dor por completo, nem

traria a verdade dos fatos, ao mesmo tempo em que, em não aparecendo,

esta ausência significa, significa a dor que persiste. E vamos sempre

lutar pelo direito de enterrar nossos mortos.

A questão do corpo, em sua presença/ausência, portanto, não

trabalha numa relação de oposição, não há deslizamento que saia do

nada para o tudo, da dor para a alegria. Haverá sempre o sentido da dor.

Esta metáfora do corpo pode ajudar a pensar a própria ilusão pela

verdade da CNV: mesmo que ela aconteça, tal como trabalha nosso

desejo do tudo querer saber, seria sempre uma construção pela palavra,

sujeita às brechas do sentido, sujeito aos dizeres que não se deixam

dizer barrados pelo trauma. Haverá sempre verdade no plural, neste

caso, no mínimo: a dos torturados e a dos torturadores.

Vejamos isso, passando a dizeres de uma FD antagônica a dos

direitos humanos: a FD do regime militar, a partir do depoimento de

Paulo Malhães (P.M), coronel reformado do exército, à CNV,

respondendo a quantas pessoas teria matado:

SDr 19: Tantos quantos foram necessários. (P.M.)19.

E, ao ser perguntado por que não entregavam os corpos, o sujeito

enunciador justifica:

SDr 20: Porque era o senhor deixar um rastro, e isso não foi

técnica nossa, foi técnica aprendida. (P.M.)20.

Ao ver o vídeo deste depoimento, a metáfora da escuta da dor se

transforma, inevitavelmente para nós, em a dor da escuta a partir do

modo como P.M. responde, de forma bastante tranquila, aos

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

questionamentos da Comissão sobre como torturavam e

descaracterizavam os presos antes de serem jogados no rio.

Do lado deste sujeito enunciador, esta é a sua verdade, daí ele

mesmo dizer que a CNV é apenas “meia comissão da verdade” e,

perguntado sobre arrependimento, ele reafirma:

SDr 21: Eu cumpri meu dever. [CNV: Não tem arrependimento?]

Não, eu não tinha outra solução. (...) isso era feito normalmente,

eu acho que todos os serviços de informações faziam. (P.M.) 21.

A SDr 21 significa o modo como o sujeito enunciador se identifica

à FD do regime militar e se reconhece no papel que desempenha na

posição-sujeito de torturador. Em seu depoimento, em mais de uma vez,

ele se defendia, dizendo que este trabalho era um trabalho como outro

qualquer e ele o fazia do melhor modo porque devia obediência às

forças armadas. Isso reafirma o modo como o sujeito se reconhece no

processo de individualização de um Estado que regia à força, no modo

como se identifica à FD que o determina até hoje e à posição que

ocupava.

Nestas condições, tortura, morte, abuso sexual, ditador, violência

são palavras que assumem um sentido litigioso em relação ao que

significam em uma FD antagônica: a dos direitos humanos, com a qual

se identificam as vítimas e todos que se horrorizam com este passado.

As casas de tortura, por exemplo, no depoimento do coronel, são

designadas como: casa de Petrópolis, sistema de informações, casa de

conveniência, lugar para ganhar os presos22. Ou seja, conforme Barthes

(2004) “as mensagens ou os significantes têm um único sentido, que é

o certo” (2004, p.111). A próxima SDr aponta para este litígio, quando

o presidente da CNV, advogado Dr. José Carlos Dias, perguntou a P.

M. se o presidente Médici, e Dias acrescenta, o ditador, sabia desses

fatos. A resposta foi:

SDr 22: Não era ditador, era presidente. (P.M.)23.

Estas materialidades reafirmam o entendimento que trouxemos aqui

de memória, que, segundo Orlandi (2010), atua “como um espaço

móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de

conflitos de regularização. Um espaço de desdobramentos, réplicas,

O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

polêmicas e contra-discursos” (2010, p.65), marcado a seguir pela

resposta de Dias a P.M.:

SDr 23: O senhor chama de presidente, eu chamo de ditador. (J.

C. Dias)24.

Este litígio em torno da palavra, nos termos de Rancière (1996), não

cessará e segue construindo a história, a nossa história. E é assim

mesmo que precisamos enfrentá-la, como uma disciplina de

interpretação, como um cenário que se mostra sempre pela meia porta

da verdade de Drummond. É nessa perspectiva que a metáfora trabalha,

estabelecendo relações, conforme Rancière, entre “coisas que não têm

relação, é fazer ver junto, como objeto do litígio, a relação e a não-

relação” (1996, p.52).

Considerações finais

No texto Maio de 1968: os silêncios da memória (2010), Orlandi

trabalha a falha como constitutiva da memória e do esquecimento, mas

também trata da falta, uma falta por interdição, daquilo que é tirado do

sentido para não significar, provocando, desse modo, furos, buracos na

memória para que os sentidos censurados não formem um já-dito: “há

faltas – e não falhas” (2010, p.65).

Para nós, a CNV precisará lidar com falhas e também com faltas,

pois a interdição ao dizer se marca de outros modos fora do regime

militar, mas continua. É preciso se dispor a isso e interpretar a história,

caso contrário, segundo Indursky (2013), esta recusa “implica

amordaçar aqueles que desejam e clamam por justiça” (2013, p.340),

bem como impede a explicitação política da tortura de que trata Orlandi

(2010).

Problematizar esta memória é significá-la agora de um outro modo,

trazendo o que está fora dela, conforme Orlandi (2010), “como uma sua

margem que nos aprisiona nos limites dos sentidos. O que está fora da

memória não está nem esquecido nem foi trabalhado, metaforizado,

transferido. Está in-significado, de-significado” (2010, p.66). É preciso

ressignificar este passado.

Serão, pois, sentidos re-inscritos num agora que apontam para o

modo como é preciso esquecer para dizer e é preciso dizer para

lembrar, num trabalho em que memória e esquecimento não deslizam

Andréia da Silva Daltoé

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

do vazio para o pleno, do nada para o tudo, mas que funcionam pelo

modo como a língua e o sujeito precisam ser expostos às contradições

que os determinam, fazendo intervir o político, o histórico, o

ideológico.

É preciso enfrentar esta escuta e aceitar que as palavras teimam em

dizer mesmo quando ali não estão. E, como eu já trouxe na tese: como

é importante a possibilidade de dizer de novo, dizer de outro modo.

Acrescento agora: como é importante dizer quando antes não se podia.

E como é necessário esquecer e lembrar.

Notas

1 In: BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento.

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10/07/2014. 17 Trecho extraído da carta que Anita, sobrinha de P. S. Wright, que dá nome à CEV de

SC, fala sobre o tio, deputado de SC, que teve seu mandato cassado com a instauração

do Ato Institucional nº 5. In: http://www.youtube.com/watch?v=qYKU2tOoGLU>

Acesso em 10/07/2014. 18 Derlei C. De Luca é membro da CEV/SC. Idem. 19 In: http://www.youtube.com/watch?v=T7oSIE5pm3Y > Acesso em 20/07/2014. 20 Idem. 21 Idem. 22 Ganhar os presos significava convencê-los a se infiltrar de volta nos movimentos

chamados revolucionários e, então, delatar seus companheiros de luta aos militares. P.

M. diz que esta foi a arma que ganhou a guerra. 23 Idem. 24 Idem.

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Palavras-chave: esquecimento, memória, discurso

Keywords: forgetfulness, memory, discourse