o direito da crianÇa a ter direito: a educaÇÃo infantil

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O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL EM MATO GROSSO DO SUL (1991-2002) Mariéte Félix Rosa * Tratar da Educação Infantil, é, também, para mim, falar de conceitos de solidariedade, companheirismo, respeito ao diferente e ao outro e apreço aos direitos básicos que todo cidadão deve ter: à vida, à educação, a viver em uma casa, a ter um emprego e salário digno. É falar de canções, adultos, terras, meninos e meninas e direito à educação. É escrever com o coração empírico e analisar cientificamente com a cabeça. É fazer com que a paixão sobreviva e o sonho permaneça aceso, tal como nós – Educadores Infantis. Afinal, foram com esses conceitos que cheguei à docência, primeiro na Educação Infantil e, posteriormente, no Ensino Superior. O trabalho na periferia permite viver o limite entre o sonho, a fantasia e a realidade, pois a miséria, a violência, a fome, o desrespeito e as violações apresentam-se durante cinco dias da semana, nos 200 dias letivos, dizendo “estou aqui, faça alguma coisa”. É pegar no colo uma criança da periferia e afagar seus cabelos e depois fazer o mesmo com seus sobrinhos, primos ou seu filho em casa e perceber todos os dias a diferença. No brilho dos cabelos, da tez, do peso entre uma criança bem alimentada e a outra que, provavelmente, retornou no dia seguinte com a alimentação realizada no dia anterior, na Educação Infantil 1 . No entanto, essas mesmas crianças se divertem, brincam, ouvem e contam histórias, levantam hipóteses sobre o mundo e a natureza, dançam, pintam, desenham, cantam * Doutora em Educação pela FEUSP, Técnica Pedagógica do CEE-MS. 1 Mayara come na Creche – “Quando ela volta da creche, pergunto a minha filha se ela comeu”, diz a mãe de Mayara Castro, 3, e de Gabriela, que tem sete meses. Elas moram em Vargem Grande, nome oficial da cratera. À noite, geralmente não há o que comer na casa de Mayara. “Hoje de manhã ela pediu pão, e meu marido chorou, porque nem dez centavos a gente tem para comprar”, diz a mãe. In: Folha de São Paulo, Folhinha. Com fome: menino ouve a barriga roncar. F4, sábado, 6 de setembro de 2003. Ovo é dividido no almoço – Bruna Luiza de castro e Silva, 2, é prima de Mayara e Gabriela e está desnutrida, como elas. As famílias vizinhas chegam a dividir um ovo para almoçar, com arroz e feijão, quando tem. “A pior coisa do mundo é minha filha me pedir uma fruta e eu não ter dinheiro para comprar” diz a mãe de Bruna. A menina também freqüenta a creche em Vargem Grande. In: Folha de São Paulo, Folhinha. Com fome: menino ouve a barriga roncar. F4, sábado, 6 de setembro de 2003.

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Page 1: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL EM MATO

GROSSO DO SUL (1991-2002)

Mariéte Félix Rosa*

Tratar da Educação Infantil, é, também, para mim, falar de conceitos de

solidariedade, companheirismo, respeito ao diferente e ao outro e apreço aos direitos básicos

que todo cidadão deve ter: à vida, à educação, a viver em uma casa, a ter um emprego e

salário digno. É falar de canções, adultos, terras, meninos e meninas e direito à educação. É

escrever com o coração empírico e analisar cientificamente com a cabeça. É fazer com que a

paixão sobreviva e o sonho permaneça aceso, tal como nós – Educadores Infantis.

Afinal, foram com esses conceitos que cheguei à docência, primeiro na Educação

Infantil e, posteriormente, no Ensino Superior. O trabalho na periferia permite viver o limite

entre o sonho, a fantasia e a realidade, pois a miséria, a violência, a fome, o desrespeito e as

violações apresentam-se durante cinco dias da semana, nos 200 dias letivos, dizendo “estou

aqui, faça alguma coisa”. É pegar no colo uma criança da periferia e afagar seus cabelos e

depois fazer o mesmo com seus sobrinhos, primos ou seu filho em casa e perceber todos os

dias a diferença. No brilho dos cabelos, da tez, do peso entre uma criança bem alimentada e a

outra que, provavelmente, retornou no dia seguinte com a alimentação realizada no dia

anterior, na Educação Infantil1.

No entanto, essas mesmas crianças se divertem, brincam, ouvem e contam

histórias, levantam hipóteses sobre o mundo e a natureza, dançam, pintam, desenham, cantam

* Doutora em Educação pela FEUSP, Técnica Pedagógica do CEE-MS. 1 Mayara come na Creche – “Quando ela volta da creche, pergunto a minha filha se ela comeu”, diz a mãe de Mayara Castro, 3, e de Gabriela, que tem sete meses. Elas moram em Vargem Grande, nome oficial da cratera. À noite, geralmente não há o que comer na casa de Mayara. “Hoje de manhã ela pediu pão, e meu marido chorou, porque nem dez centavos a gente tem para comprar”, diz a mãe. In: Folha de São Paulo, Folhinha. Com fome: menino ouve a barriga roncar. F4, sábado, 6 de setembro de 2003. Ovo é dividido no almoço – Bruna Luiza de castro e Silva, 2, é prima de Mayara e Gabriela e está desnutrida, como elas. As famílias vizinhas chegam a dividir um ovo para almoçar, com arroz e feijão, quando tem. “A pior coisa do mundo é minha filha me pedir uma fruta e eu não ter dinheiro para comprar” diz a mãe de Bruna. A menina também freqüenta a creche em Vargem Grande. In: Folha de São Paulo, Folhinha. Com fome: menino ouve a barriga roncar. F4, sábado, 6 de setembro de 2003.

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e querem colo, afeto e carinho, entre tantas outras coisas que se propõem nas instituições de

Educação Infantil e quando estão fora dela2.

Assim, tratar da Educação das crianças pequenas é, também, falar de música e de

sonhos, alguns possíveis e outros impossíveis, mas são sonhos. Por isso, sempre lembro da

letra de uma música3 da qual Chico Buarque e Ruy Guerra fizeram uma versão para um

musical da ópera de Dom Quixote, apresentado aqui no Brasil. O começo é assim:

Sonhar, mais um sonho impossível; Lutar quando é fácil ceder; Vencer o inimigo invencível; Negar, quando a regra é vender (...)

Acreditar que o sonho pode ser possível tem me levado a defender a educação das

crianças menores de seis anos de idade, por mais de 23 anos, atuando no magistério. O

trabalho com a Educação Infantil dá muitas alegrias, mas também, algumas tristezas. E aqui

vou me ater ao período da Promulgação da Constituição da República, em 1988, quando nós,

educadores infantis, pais e atores de vários movimentos sociais, defendendo os direitos das

crianças e adolescentes, conseguimos demonstrar a importância da educação infantil e

garantir a educação dos menores de sete anos, em creches e pré-escolas, enquanto direito da

criança e não somente da mulher que trabalha fora. Essa garantia foi reafirmada pela Lei nº

8.069/90, que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e, posteriormente, pela Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº 9394/96. Isso foi, com certeza, uma

grande alegria.

Em seguida, resultante da Emenda Constitucional nº 14, foi aprovada a Lei Nº

9.424/96, que dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério - FUNDEF e, com ela, vieram muitas tristezas,

pois os nossos sonhos, tais, como: ampliação das redes de oferta do atendimento, oferta com

qualidade, profissionais formados, especificamente, para Educação Infantil, plano de carreira

etc, pareciam afastar-se cada vez mais das possibilidades de concretização, já que dos 25%

destinados à educação, 15% ficam para o Ensino Fundamental, e dos 10% “restantes”, pouco

ou quase nada se aplica na, educação infantil, o que pode ser observado nas pesquisas sobre o

2 Em uma pesquisa do Datafolha, apresentada pela Folhinha – Folha de São Paulo. As crianças dizem: em casa ou na rua, hora de diversão é sagrada. In: Folha de São Paulo, Folhinha. Com Fome: Menino ouve a barriga roncar. F8 e F9, sábado, 6 de setembro de 2003. 3 Música: Sonho Impossível - j. Darion/H. Leigh/ Versão: Chico Buarque/ Ruy Guerra)

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Fundef que têm demonstrado a grandiosidade do seu impacto na Educação Infantil. E, assim,

restou-nos, como diz a música, na versão do Chico :

Sofrer a tortura implacável Romper a incabível prisão Voar no limite improvável Tocar o inacessível chão (...)

Apesar da tortura de saber que todas as ações esbarram no fator financiamento,

continuamos rompendo e reivindicando mais e melhor educação para as crianças de zero a

seis anos. É o ato de romper que faz a diferença. Como a Educação Infantil tem sido

concretizada nos atos dos adultos para com as crianças, é primordial que os atos de alguns

possam convencer outros adultos e, em rede, todos com o mesmo objetivo, universalizar o

direito das nossas crianças, cidadãs de direito, mas que, pela pouca idade, ainda não

conseguem reivindicar sua cidadania. Por isso, precisam que os adultos façam valer esses

direitos.

Assim somos nós, pais e mães, educadores/as, conselheiros/as, promotores/as,

pesquisadores/as da infância, aqui me refiro a todos e a todas que atuam nos Fóruns de

Educação Infantil, nos Centros e/ou Escolas de Educação Infantil, nas Universidades, nas

Secretarias e nos Conselhos de defesa dos direitos das crianças, pois cada um e cada uma,

dentro do seu campo de atuação, voam ao “limite improvável” para que nossas crianças

tenham o máximo, com os parcos repasses de recursos destinados a cada instituição de

Educação Infantil e com a situação de miséria das famílias e das crianças, espalhadas por este

Brasil afora. Essa, como diz o Chico:

É minha Lei; É minha questão; Virar esse mundo, cravar esse chão. (...)

Alguns pesquisadores têm demonstrado que a sociedade civil vem, há muito

tempo, utilizando vários recursos jurídicos para garantir o acesso ao ensino fundamental. Isso

me instigava: Será que esses mesmos mecanismos têm sido utilizados, favoravelmente, para

aqueles que não têm acesso à Educação Infantil? Precisava cravar esse chão!

Oliveira (1995), que foi minha referência neste trabalho de doutorado4, realizou

um estudo sobre: “O direito à educação na Constituição Federal de 1988 da República 4 Em 1995, assisti à apresentação de sua pesquisa, em um Seminário, na Faculdade de Educação da USP e, me questionava sobre a possibilidade de realizar o mesmo trabalho, só que voltado para a Educação Infantil. Este fato foi, reforçado pela convivência pessoal e respeito intelectual durante todos estes anos.

Page 4: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

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Federativa do Brasil”, onde assinala que a grande inovação explicitada na Constituição de

1988 é a previsão dos mecanismos capazes de garantir os direitos ali anunciados, concluindo

que: “[...] representa um salto de qualidade relativamente à legislação anterior, deslocando o

debate da efetivação deste direito, da esfera jurídica para a esfera da luta social; [...]”(1995,

p.03).

Então, os direitos, previstos na Constituição, são passíveis de serem reivindicados,

através dos seguintes mecanismos: mandado de segurança coletiva5, mandado de injunção6 e

ação civil pública7. Tais mecanismos permitem que a sociedade civil recorra ao poder

judiciário, exigindo providências, quando o sistema público de ensino deixar de atender a

determinado direito Constitucional.

Dessa forma, faltava saber se no Estado de Mato Grosso do Sul - MS8, a sociedade

civil havia buscado garantir o direito à educação das crianças de zero a seis anos, através dos

Conselhos Tutelares, em primeira instância, por ser um órgão permanente e autônomo, não

jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da Criança e

do Adolescente9, e de ações no âmbito do sistema de Justiça, recorrendo ao preceito

Constitucional do direito à educação, quando não efetivada a matrícula ou o acesso das

crianças à Educação Infantil.

Com esse intuito, cheguei e conclui o doutorado na Faculdade de Educação da

Universidade de São Paulo -FEUSP, com o propósito de verificar se a garantia do direito à

educação, prescrito no art. 6º da Constituição de 1988 e nas demais leis, no que concerne

5 Artigo 5º , incisos LXIX e LXX, estabelece o mandado de segurança, nos seguintes termos: “LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas-corpus’ ou ‘habeas-data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: partido político com representação no Congresso Nacional; organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses dos seus membros ou associados.” 6 Artigo 5º, inciso LXXI, nos seguintes termos: “LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” 7 Artigo 129, inciso III, ao estabelecer as funções do Ministério Público: “São funções institucionais do Ministério Público: (...) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. (...) § 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei”. 8 Doravante, utilizarei a sigla MS, quando me referir ao Estado de Mato Grosso do Sul. 9 Conforme art. 131, Título V, Capitulo I do ECA Lei nº 8.069/90

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especificamente à educação infantil, havia se efetivado, uma vez que, como afirma Bobbio

(1992, p. 01), “O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das

Constituições democráticas modernas”.

Na qualidade de técnica da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do

Sul – SED/MS, respondendo pela educação infantil, por várias vezes fui solicitada a dar

parecer sobre o direito das crianças menores de sete anos freqüentarem o Ensino fundamental,

e, na época, anterior à pesquisa, me perguntava: por quê tantas famílias, pais de crianças

menores de seis anos, solicitavam na justiça o direito de essas crianças freqüentarem o Ensino

Fundamental e não exigiam, conforme o prescrito Constitucional, o atendimento na Educação

Infantil? Onde estavam essas solicitações? Havia solicitações ou até mesmo ações contra os

municípios por não atenderem à demanda existente para a Educação Infantil?

Busquei então, neste estudo, responder os seguintes questionamentos, sobre a

Educação Infantil, no Estado de MS:

- Existiam vagas para todas as crianças/famílias que procuraram a rede pública em Mato Grosso do Sul?

- Existiam critérios de seleção? Se existiam, eles contemplavam os direitos das crianças?

- As famílias e/ou responsáveis procuravam garantir o direito de acesso através dos Conselhos Tutelares, quando não o conseguiam nas instituições?

- Os mecanismos legais, previstos constitucionalmente, eram utilizados, no que concerne à falta de vagas e/ou instituições de educação infantil?

Ao andar pelos bairros da capital do Estado de MS, fazendo uma estimativa

empírica, verificava que havia no mínimo duas casas, em cada bairro, com placas “Cuida-se

de Crianças”, “Cuido do seu filho, enquanto trabalha”. Isso era e, continua sendo, um indício

de que havia e, ainda há, uma demanda por espaços que cuidam e eduquem as crianças

pequenas, ou seja, instituições de Educação Infantil.

Resolvi, então, comparar os dados do IBGE, referentes à população infantil, do

Estado de MS, com o número de crianças matriculadas nas redes de ensino público e nas

escolas privadas, e constatei que, em 2000, das 291.977 crianças de zero a seis anos, apenas

13.694 estavam em creches e 46.217 tiveram acesso à pré-escola. Esses dados indicavam que

havia demanda, e com esta as seguintes questões: será que havia uma expansão

correspondente? Se não havia, como ficava o acesso às instituições de educação infantil e o

direito à educação?

Page 6: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

6

Os dados instigaram-me a procurar saber se as iniciativas dos dirigentes estaduais

e municipais do Estado de MS, estavam voltadas para um processo de inclusão das crianças

de zero a seis anos, em instituições públicas e gratuitas de caráter educativo, principalmente,

das crianças das camadas populares, já que essas não têm acesso às instituições privadas.

Apesar de acreditar que o aspecto quantitativo não deve ser visto isolado do

aspecto qualitativo, pois nem sempre o avanço de um significa o do outro10, considerei que

conseguiria verificar a expansão da Educação Infantil em todo o Estado. Mas não daria conta

de consultar os aspectos que demonstrariam a qualidade do atendimento na Educação Infantil,

nos 77 municípios, como, as propostas pedagógicas, formação de professores e estrutura

física. Dessa forma, optei por verificar a expansão das matrículas, para observar o aspecto do

acesso e do direito à educação.

O objetivo desta pesquisa foi, portanto, analisar a garantia do direito das crianças

de zero a seis anos à educação infantil, no Estado de MS, após a Constituição de 1988 e a

legislação criada a partir do preceito constitucional, desvelando os mecanismos utilizados

pelas famílias, para garantirem o acesso e/ou a permanência das crianças em instituições

públicas educativas. Verifiquei se através das redes públicas de ensino, o poder público havia

primado pela efetivação do princípio do direito à educação, conforme prescrito em lei.

Nessa perspectiva, estive, primeiramente, averiguando se houve expansão da

educação infantil em todo o Estado de MS, após a promulgação da Constituição de 1988, do

Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA/1990 e, particularmente, da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional - LDBEN nº 9394/96, ou seja, no período de 1988 a 2002.

A partir de então, fui verificar se os pais ou responsáveis pelas crianças de zero a

seis anos recorreram, em primeira instância, aos Conselhos Tutelares para garantir o acesso às

instituições educativas. Em seguida, procurei saber se foram utilizados os mecanismos do

sistema jurídico, tais como, liminares judiciais, ações coletivas e mandado de injunção,

quando não era garantida a matrícula ou o acesso à educação infantil em instituições públicas.

Considerando o direito à educação, previsto a partir da Constituição de 1988, e,

ainda, que:

10 Durante o Mestrado, observamos, aqui, no Estado de MS, o quanto o PROAPE, implantado no início da década de 80, ampliou o atendimento às crianças em idade pré-escolar, mas não primou pelo aspecto qualitativo da sua oferta. Sobre o assunto consultar: ROSA, Mariéte Félix. A Educação das Crianças em Idade Pré-Escolar em Campo Grande – MS (1980 a1992). Dissertação de Mestrado, FEUSP, 1999 e, SILVA, Anamaria Santana da. Políticas de Atendimento à Criança Pequena em MS /1983-1990. Dissertação de Mestrado. FE-UNICAMP, 1997.

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O Estado tem deveres também para com a educação da criança de zero a seis anos, devendo criar condições para expansão do atendimento e à melhoria da qualidade, cabendo ao município a responsabilidade de sua institucionalização, com o apoio financeiro e técnico das esferas federal e estadual (MEC, 1998, p.10)11

Ao desenvolver a pesquisa, não considerei apenas as questões numéricas mas,

principalmente, a possibilidade de captar, como afirma Gamboa (1995), o significado, o teor

qualitativo das informações, não como afirmações fechadas sobre a realidade, mas como

elementos construtores de uma história e que, portanto são pensados e efetivados a partir de

interesses políticos e econômicos, com concepções diferenciadas.

Fiz uma revisão da bibliografia e analise documental no que se refere aos direitos

humanos e aos direitos sociais, focalizando o direito à educação e à educação infantil.

Busquei compreender as Constituições e Legislações Educacionais, em âmbito nacional e

estadual, com o intuito de apontar aspectos importantes relacionados à garantia do direito à

educação e cuidado às crianças de zero aos seis anos de idade. Nessa linha de investigação,

também, estudei os Conselhos Tutelares e sua atuação, enquanto órgãos de controle social na

efetivação dos direitos legais. Esse levantamento contemplou o acervo referente ao Estado de

MS, assegurando continuidade e ampliando o já realizado no período de Mestrado (1980 –

1992) e, assim, avançou para a década de 1990 até 2002.

No que se refere ao trabalho de campo, fiz um exaustivo levantamento dos dados

da expansão da Educação Infantil, nos 77 municípios do Estado, junto à Secretaria de Estado

de Educação, para conhecer: a rede pública de educação infantil de MS; suas taxas de

cobertura, matrículas, salas/turmas; políticas públicas educacionais; os índices relativos ao

acesso e expansão; os critérios para matrícula de ingresso. Levantei ainda, os dados do IBGE

sobre a população de zero a seis anos de idade, dos 77 municípios, individualmente, nos

Censos de 1991 e 2000 e a Contagem Populacional de 1996 para possível comparação entre

demanda, matriculados e expansão.

Coletei e analisei dados empíricos, junto aos 78 Conselhos Tutelares12 e ao

Sistema de Informação para Infância e Adolescência - SIPIA, com o intuito de identificar:

quantas violações de direito ocorreram; o número de fatos registrados solicitando vagas na

Educação Infantil; se houve encaminhamentos para o sistema judiciário; quais foram os

11 Conforme consta nos Subsídios para Credenciamento e Funcionamento de Instituições de Educação Infantil, Vol. I , MEC, 1998, pág.10 12 Campo Grande possui dois Conselhos Tutelares, o Norte e o Sul.

Page 8: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

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mecanismos jurídicos utilizados pelos pais para garantirem o direito à educação, acesso e

permanência das crianças de zero a seis anos de idade em instituições públicas educativas e,

ainda, apontar se houve ou não reconhecimento dos direitos da criança à educação nos

primeiros anos de vida, em termos de oferta em instituições educacionais.

Recorri a entrevistas não estruturadas, sempre que foi necessário, para entender o

momento vivido e ampliar as informações a respeito do objeto de pesquisa. Para isso, escolhi

o Coordenador da campanha eleitoral do partido que venceu as eleições em 1998, uma técnica

da Educação Infantil que esteve presente na Secretaria de Assistência Social durante os

governos do Estado de 1990 até 2002 e a Técnica responsável pelo Núcleo de Apoio aos

Conselhos Tutelares de MS, onde são alimentados os dados do SIPIA.

A delimitação do período de 1988 a 2002, fundamentou-se no fato de ter se dado

nesse período a promulgação da Constituição Federal, a implantação do ECA, a aprovação da

LDBEN nº 9394/96 e o a criação do Fundef. Foi dentro desse período, mais especificamente a

partir de 1999, que o poder executivo estadual implementou políticas que resultaram na

municipalização da Educação Infantil; que os dados estatísticos sobre creche começam a

constar dos censos escolares e, ainda, que os dados sobre violação de direitos começaram a

ser registrados no SIPIA. Assim sendo, considerei:

1. matrícula e quadros estatísticos das Secretarias de Educação que demonstram a

evolução do atendimento à educação infantil;

2. dados do IBGE sobre população Censo 1991 e 2000 e contagem populacional

1996, Índices Sociais Municipais;

3. dados dos Conselhos Tutelares sobre à violação de direitos – Direito específico

por categoria: ausência e ou impedimento de acesso à Creche ou Pré-escola-

Do Direito Fundamental: Educação/Cultura/Esporte/Lazer, falta de vagas em

creches e pré-escolas, a partir de 1999, implantação do SIPIA, quando há

registros de dados;

4. documentos ou Leis de criação dos Conselhos Tutelares;

5. uma Ação Civil Pública, da Promotoria da Infância contra o município de

Campo Grande-MS, solicitando vagas para crianças de zero a seis anos em

instituições das redes públicas de ensino, no ano de 2000.

Page 9: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

9

A tese foi organizada em três capítulos, denominados de “canções”, pois como diz

o poeta Pablo Neruda (2001, p.73) “Falo de coisas que existem, Deus me livre de inventar

coisas quando estou cantando!”. Assim a primeira canção é a do direito a ter direitos, tratei

sobre os direitos dos homens e as mulheres grandes e pequenas, ou seja, direito da criança,

dos direitos sociais - direito à educação e à educação infantil, e ainda, do Conselho Tutelar,

enquanto o órgão responsável pela garantia destes, buscando respaldo na história e na

legislação que garantem os direitos das crianças de zero a seis anos de idade à educação.

A segunda “Canção” é a da Terra, a terra em que vivem os sul-mato-grossenses:

homens e mulheres grandes e pequenos. Tratei do Estado de MS, desde sua criação,

centrando-me mais nos períodos de 1988 a 2002, governos de Pedro Pedrossian (1991/1994),

Wilson Barbosa Martins (1995/1998) e Zeca do PT (1999/2002), período proposto para o

estudo, discutindo o processo de implementação das Políticas para a Educação no MS,

especificamente para a educação infantil. Nesse capitulo, foram trabalhadas todas as propostas

para Educação Infantil na Educação e na Assistência, em âmbito estadual, e todo o processo

de expansão ou retração da Educação Infantil no Estado e nos 77 municípios. Cruzei os

dados: do universo da população infantil de zero a seis anos; dos censos populacionais do

IBGE - 1991, 2000; Contagem Populacional de 1996; matrícula nas Redes de Ensino Público,

municipal, estadual e escolas particulares. Esse cruzamento universo/criança/matriculadas

gerou os mapas, que evidenciam a expansão até 1996 e a retração da Educação Infantil, até

2000, bem como, a demanda fora das instituições, município por município.

Os mapas foram gerados com dados de 1988 a 1998, tratando da Educação Infantil

– pré-escolar, com atendimento às crianças de quatro a seis anos, das redes de ensino: público

e escolas particulares, pois as crianças de zero a três anos não eram computadas nos Censos

Educacionais. Essas se encontravam em creches da Secretaria de Assistência Social onde não

havia registro oficial das matrículas. Somente a partir de 1999, os registros das creches, com

atendimento das crianças de zero a três anos, passam a constar dos dados dos Censos

Escolares e, assim, com os dados de 2000 foi gerado o mapa de atendimento para crianças de

zero a três anos.

Nos mapas podemos visualizar que apesar da prioridade do atendimento em

educação infantil ser do município, muitas prefeituras deixaram de investir em creches e pré-

escolas, privilegiando o ensino fundamental. Assim, a Educação infantil – Pré-escola, no

Estado de Mato Grosso do Sul, que vinha em processo de expansão de 1991 a 1996, regride

Page 10: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

10

de 1996 a 2000 e, quando observado a educação para a população de zero a três anos de

idade, o atendimento é ínfimo. Vejamos a questão nos mapas que se seguem:

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Mato Grosso do Sul% de Matriculas 91

51 para 62,4 (1)39,7 para 51 (3)28,4 para 39,7 (22)17,1 para 28,4 (27)

5,8 para 17,1 (19)

Mato Grosso do Sul

Mato Grosso do Sulparticular 91

26,1 para 34,8 (1)17,4 para 26,1 (1)8,7 para 17,4 (5)0 para 8,7 (65)

Mapa 1 - Ano 1991 - dados referentes às crianças de 4 |-- 6 anos matriculadas na pré-escola.

O mapa13 acima indica o percentual de crianças matriculadas na pré-escola pública e privada, nos municípios de Mato Grosso do Sul no ano 1991

13 Os municípios marcados na cor cinza não possuem informações de matriculas na pré-escola.

Mato Grosso do Sulpública 91

34,2 para 41,1 (3)27,1 para 34,2 (17)20 para 27,1 (17)12,9 para 20 (21)5,8 para 12,9 (14)

Page 12: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

12

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Mato Grosso do Sul% de Matricula 96

61,7 para 75,7 (6)47,9 para 61,7 (12)34,1 para 47,9 (21)20,3 para 34,1 (25)

6,5 para 20,3 (13)

Mato Grosso do Sul

Mapa 2 - Ano 1996 - Dados referentes as crianças de 4 |-- 6 anos matriculadas na pré-escola.

O mapa acima indica o percentual de crianças matrícula das na pré-escola: pública e particular, nos municípios de Mato Grosso do Sul no ano 1996

Mato Grosso do Sulparticular 96

26,8 para 33,5 (1)20,1 para 26,8 (2)13,4 para 20,1 (7)

6,7 para 13,4 (10)0 para 6,7 (57)

Mato Grosso do Sulpública 96

60,9 para 74,5 (3)47,3 para 60,9 (9)33,7 para 47,3 (17)20,1 para 33,7 (32)

6,5 para 20,1 (16)

Page 13: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

13

Mapa 3 - Ano 2000 - Dados referentes às crianças de 4 |-- 6 anos matriculadas na pré-escola.

O mapa acima indica o percentual de crianças matriculadas nas pré-escolas: pública e particular dos municípios de MS2 no ano 2000

2 Campo Grande é o único município no Estado de Mato Grosso do Sul que possui educação infantil (creche e pré-escola), sob responsabilidade do Estado.

0

20

40

60

80

LD

LC

EDMNSQ

TAPR

CS

AM

AB

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NVJU

GDJT NH TQ

BTIV

AGDE

CPPP

AJ

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RB

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BG

BSSR

TLSL

AT

PBIN

CLCH

GLJD

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PM

MI

BD

BO

AS DB

SD

CGTR

SGRN

CN RO BA

JR RP

AC

CM

CR

AL

SNPG

CX

RV

AQ

CO

Mato Grosso do Sul% de matriculas 2000

62,1 para 77,2 (2)47 para 62,1 (11)31,9 para 47 (26)16,8 para 31,9 (33)1,7 para 16,8 (5)

Mato Grosso do Sul

Mato Grosso do Sulpública 2000

49,3 para 61,2 (7)37,4 para 49,3 (9)25,5 para 37,4 (27)13,6 para 25,5 (28)

1,7 para 13,6 (6)

Mato Grosso do Sulparticular 2000

18,4 para 22,8 (2)13,8 para 18,4 (1)

9,2 para 13,8 (9)4,6 para 9,2 (12)0 para 4,6 (53)

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14

0

10

20

30

Mapa 4- Ano 2000 – Dados referentes às crianças de 0 |-- 3 anos matriculadas na creche.

O mapa acima indica o percentual de crianças matriculadas em creches: pública e particular nos municípios de Mato Grosso do Sul2 no ano 2000

2 Campo Grande é o único município no Estado de Mato Grosso do Sul que possui educação infantil (creche e pré-escola) sob responsabilidade do Estado.

JT

MNSQ

CS

PR TA ED

LD

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SG

RN

CN ROBA

JR

CGRP

AC

TLSL

AT

PBIN

CLCH

CR

ALPG

SN

CO

Mato Grosso do Sul% de matricula 2000

27,6 para 34,3 (1)20,7 para 27,6 (2)13,8 para 20,7 (9)

6,9 para 13,8 (26)0 para 6,9 (39)

Mato Grosso do Sul

Mato Grosso do Sulpública 2000

27,6 para 34,3 (1)20,7 para 27,6 (2)13,8 para 20,7 (8)

6,9 para 13,8 (21)0 para 6,9 (45)

Mato Grosso do Sulparticular 2000

7,68 para 9,62 (1)5,76 para 7,68 (1)3,84 para 5,76 (2)1,92 para 3,84 (6)0 para 1,92 (67)

Page 15: O DIREITO DA CRIANÇA A TER DIREITO: A EDUCAÇÃO INFANTIL

Um dos aspectos, entre tantos evidenciados nos mapas é que o município que

apresenta os melhores índices de atendimento em Educação Infantil, nem sempre o faz pela

instituição pública e sim pela instituição de privada, indicando que o poder público municipal

se eximiu da oferta da Educação Infantil, mesmo sendo sua obrigação conforme prescrito

Constitucionalmente.

A falta de instituições educativas infantis atinge, sobremaneira, as famílias e as

crianças das classes com menor poder aquisitivo, pois são as instituições públicas que elas

procuram. Quando o poder público deixa de expandir seus serviços, são esses meninos e

meninas os mais destituídos do direito e do acesso à educação. E aqui assinalamos o aspecto

contraditório da Lei.

A Educação Infantil14, enquanto um direito das crianças de zero a seis anos15,

ganhou status na Constituição de 1988, demarcando o direito e não mais o amparo e

assistência como nas Constituições anteriores. No campo legislativo educacional, em 1996,

aprovou-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394, que referenda o

preceito constitucional quanto ao direito da criança de zero a seis anos à educação, inovando,

as leis educacionais, até então, existente no Brasil, ao romper com a normatização,

evidenciando, em seus art. 21, Inciso I e 29, que a educação infantil compõe a educação

básica, sendo a sua primeira etapa.

No aspecto legal, se pode dizer que houve avanços, mas, é necessário ressaltar

que reconhecer os direitos das crianças de zero a seis anos de idade à educação não implicou

estabelecer uma política especifica de recursos financeiros, de expansão, de políticas públicas

que viesse beneficiá-las. Isso ficou evidente, quando da implantação do FUNDEF – Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, que

segundo especialistas em educação infantil, este nível educacional ganhou um novo vilão, já

que em 1998 (ano de implantação do Fundo em todo o Brasil), houve uma queda de 5,5% em

relação a 1997 nas matrículas em escolas públicas de educação infantil, que atendem crianças

de quatro a seis anos. Isso significa cerca de 180 mil matrículas a menos na rede pública

(GOIS, 2000, p.43).

14 O termo “Educação Infantil” : Creche para crianças de zero a três anos e Pré-escolar para crianças de quatro a seis anos de idade é adotada na LDBEN, nº 9394/1996 (Seção II Da Educação Infantil Art. 30 ). 15Artigo 208º : inciso IV O dever do Estado com a educação será efetivado mediante garantia de: (...) atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. Alterado pela Emenda Constitucional Nº 53, de 19 de dezembro de 2006 - DOU de 20/12/2006 (...) IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade.

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16

Isso se evidencia no Estado de Mato Grosso do Sul, quando cruzados os dados de

população infantil e de matrículas, já que a demanda é alta.

Tabela 1 - Demanda reprimida População Infantil Matrículas Demanda Reprimida

Zero a três Quatro a Seis 0 a 6 anos Ano População

Infantil zero a seis anos

Zero a três anos

Quatro a Seis anos

Creche Pré-escola Nº

Absol. % Nº

Absol. % Nº Absol. %

1991 295.128 168.286 126.842 - 35.675 - - 91.167 71,87% - - 1996 286.702 163.105 123.597 - 49.002 - - 74.595 60,35% - - 2000 291.977 161.110 130.867 13.694 46.217 147.416 91% 84.650 64,68% 232.066 79,48% * Tabela elaborada a partir de dados da SED-MS/SUPAE/COPROP/ Estatística (Somatória de Matrículas das redes pública: Federal (até 1996), Municipal e Estadual e Escolas Particulares) e IBGE (Censo 1991 e 2000, Contagem Populacional 1996).

Embora saibamos que a Educação Infantil é uma opção da família, este

atendimento é um dever do Estado e um direito da criança, assim sendo, basta que metade das

famílias do Mato Grosso do Sul opte por deixar seus filhos em Centros de Educação Infantil,

pelos dados que vimos acima é evidente que esse acesso é negado. O déficit é grande quando

considerado o direito e a garantia legal à educação em creches, às crianças de zero a três anos

e, em pré-escolas, de quatro a seis anos, ambas em instituições de Educação infantil.

Essa situação indica a necessidade premente de ampliação da rede física, por parte,

especialmente, do poder público municipal, a quem cabe, segundo a lei, a responsabilidade do

oferecimento da EI. No entanto, isso não significa que o Estado vai se eximir dele, pois a

própria Constituição em seu Artigo 30, inciso VI a prescreve.

Outro aspecto relevante a se lembrar é que o acesso não deve se referir

restritamente, ao ingresso da criança na instituição, mas deve pressupor a qualidade das ações

pedagógicas e no papel mediador exercido pelo professor junto às crianças. E esse

pressuposto decorre necessariamente da formação do docente que trabalha em instituições de

educação infantil. A Educação Infantil deve ser um espaço de acesso, de qualidade e de

direito à educação em instituições educacionais públicas.

A terceira “canção” é a da busca. Aqui foi contextualizada a garantia do direito à

educação no Estado de MS, foi feito um estudo sobre os Conselhos Tutelares, sua criação, seu

papel e suas contribuições no que se refere à denúncia de violação, de garantia do direito à

educação das crianças de zero a seis anos de idade, bem como à ação encaminhada pela

Promotoria da Infância contra a Prefeitura de Campo Grande-MS, por falta de atendimento na

Educação Infantil. Apresentei os dados obtidos sobre a utilização dos mecanismos de direito,

pela sociedade civil, no que se refere ao objeto de estudo. Para isso, pesquisei o SIPIA, onde

levantei os dados sobre as violações de direito, no caso “falta de vaga e de acesso à creche e

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17

pré-escola”, em todos os Conselhos Tutelares do Estado de MS que a ele estão interligados e,

aqui apresento um dos mapas gerados evidenciando essa violação:

Mapa 1 - Dados de violação de direito, registrados por municípios de MS, no período de 1999 a 2002. Falta de vagas em creche ou pré-escola.

Os mapas anteriores apontavam que o Município de Campo Grande havia

expandido seu atendimento via ensino privado, o que significava que o poder não havia

investido em educação infantil enquanto política pública de educacional e, que este fato, havia

gerado uma grande demanda, principalmente pela população mais pobre, usuária dos serviços

públicos. Já, os mapas de dados de violação apontavam a capital do Estado com o maior

registro de violação de direito, assim sendo, fui aos Conselhos Tutelares em busca de maiores

evidencias, para as possíveis análises.

Os dados confirmaram que uma parcela da população infantil, residente em

Campo Grande estava “sem acesso à Educação Infantil”, e que foi essa demanda reprimida

que gerou os registros nos Conselhos Tutelares e resultou na Ação Civil Pública contra a

prefeitura, no ano 2000.

Acompanhei a Ação Civil Pública até a defesa do doutoramento e em 03/03/2004,

a sentença foi publicada no Diário Oficial nº 756, pág.38, em 26/04/2004 foi remetida ao

4.3.02.0- Falta de Vagas em Creche ou Pré-escolaMunicípios com registros de violação de direito nos

Conselhos Tutelares.

* Dados obtidos no SIPIA,-MS, referentes as crianças de zero a seis anos

1.459 registros (1)

427 registros (1)

De 43 a 47 registros (2)

De 12 a 24 registros (6)

Até 10 registros (18)

Não apresentaram nenhum registro

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18

Tribunal de Justiça – TJ-MS, protocolo-A, folhas 70 vs. Em 1ª instância a Ação foi

considerada parcialmente procedente, cabendo recurso até chegar ao Supremo Tribunal

Federal – STF. A Prefeitura, então entrou com um recurso extraordinário, no TJ, para o STF,

em 01/09/2004, sendo este, o último recurso possível, o qual foi negado, pelo Tribunal, com

publicação no Diário de Justiça, nº 921 09/11/2004. A Ação Civil Pública foi favorável a

Promotoria, em abril de 2005, e a Carta de Sentença ainda estava para ser expedida quando da

defesa da tese.

E, finalmente, no que chamo de “Canção Final”, apresento as reflexões sobre as

características e tendências da expansão e retração da educação infantil no Estado de MS e da

utilização dos mecanismos disponíveis para as famílias, no sentido de garantir o direito à

educação das crianças de zero a seis anos. É um trabalho que analisa a realidade e anuncia

possibilidades de superação, pois:

Não importa saber se é terrível demais Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz E amanhã este chão que eu deixei For meu leito e perdão Vou saber que valeu delirar e morrer de paixão (...)

É com a paixão do sonho, que parece impossível, mas que às vezes se tornam

possível, que nos deleitamos e nos deliciamos. Foi com a paixão do sonho da educadora, de

ver toda criança de zero a seis anos de idade freqüentando instituições educacionais, que

pesquisei a problemática sobre a garantia do direito à educação da criança pequena.

Acreditarmos que é possível nos faz mais apaixonados. E o fato de ser apaixonado

reafirma e justifica o porquê e o como da paixão. E, ainda, se vale a pena, como diz o Chico

“delirar e morrer de paixão”.

No entanto, só paixão não basta, há muito a se fazer, há muito a se pesquisar, é

preciso que mais adultos se unam em prol da criança, para que se possa ter uma Educação

Infantil de boa qualidade e em quantidade suficiente para todas as crianças, cujas famílias a

queiram, pois, só assim, terá fim a infinita aflição:

- dos pais que procuram uma vaga e ficam na fila de espera aguardando,

- dos diretores que não sabem onde colocar tanta criança;

- dos professores que trabalham com um número de crianças que muitas vezes

extrapola o exigido legalmente;

- dos profissionais que ainda não possuem formação, plano de carreira e

valorização profissional;

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19

- dos técnicos que operacionalizam o trabalho e que não sabem o que fazer com as

parcas verbas e a demanda que cresce ano a ano; e,

- particularmente, das crianças que, por direito adquirido constitucionalmente,

deveriam ter acesso à Educação Infantil.

Esta pesquisa, sobre a garantia do direito à educação infantil às crianças do Estado de

MS, vem afirmar que, tanto a Constituição Federal de 1988, quanto o Estatuto da Criança e do

Adolescente e demais legislações indicam a tendência para uma perspectiva de qualidade

voltada para os direitos sociais e de cidadania das crianças de zero a seis anos de idade, mas

que precisa sair do papel. E, ainda, é uma tentativa de colaborar, de alguma forma, para:

- que a educação básica seja universalizada;

- que se dissemine o propósito de incluir em instituições educativas todos aqueles que

ainda a elas não tiveram acesso ou que delas foram excluídos, tendo em vista a

forma como a sociedade capitalista tem se organizado ao longo dos tempos;

- que se faça valer o direito à educação das crianças de zero a seis anos de idade,

garantido constitucionalmente, como um direito da criança e não somente da mãe

trabalhadora

- que se demonstre a possibilidade de mudança na trajetória da Educação Infantil; e

- que se ofereça dados sobre a expansão, desvelando os mecanismos de garantia dos

direitos das crianças à educação infantil, utilizados pelas famílias, para o acesso à

educação infantil, e a necessidade de formulação de Políticas Educacionais que

venham contemplar a primeira etapa da educação básica, conforme o estabelecido

constitucionalmente.

“E assim” , terminando a versão do poeta/cantor, poderemos dizer:

Seja lá como for vai ter fim a infinita aflição E o mundo vai ver uma flor brotar do impossível chão (..)

Referências BRASIL. Constituição Federal. Promulgada em 1988. SP, Cone Editora, 13ª edição. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA Lei nº 8.069/90,Brasília, 1990.

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BRASIL, Ministério da Educação.LDN nº 9394/96. Brasília, 1996. BRASIL, Ministério da Educação. Plano Nacional de Educação. Brasília, 2001. BRASIL. Emenda Constitucional nº 14, de 1996. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999. 217 p. GAMBOA, Silvio Sanches. Tendências Epistemológicas: dos tecnicismos e outros “ismos” aos paradigmas científicos. In: SANTOS Filho, José Camilo dos e GAMBOA, Silvio Sanches (org.). Pesquisa educacional: quantidade-qualidade. São Paulo: Cortez, Questões da Nossa Época, V.42, 1995. GOIS Antonio. As Flores do Jardim da Infância. In: Revista Educação. São Paulo: Segmento, Ano 27, nº 232, Agosto/2000. p. 40 – 50 OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O direito à educação na Constituição Federal de 1988 da República Federativa do Brasil. Tese de doutorado, FEUSP, 1995.