o direito constitucional fundamental de greve e a funÇÃo social da posse

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  • 8/9/2019 O DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL DE GREVE E A FUNO SOCIAL DA POSSE

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    O DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL DE GREVE E A FUNO

    SOCIAL DA POSSE: UM NOVO OLHAR SOBRE OS INTERDITOS POSSESSRIOS

    NA JUSTIA DO TRABALHO BRASILEIRA.

    Joo Humberto Cesrio(*)

    1 ITINERRIO DA ABORDAGEM

    O presente estudo tem o seu objetivo centrado na formulao de um novo olhar

    sobre os interditos possessrios manejados em face da atividade grevista dostrabalhadores.

    Para alcan-lo tratarei inicialmente de conceituar o direito de greve, bem como

    classific-lo dentro do ordenamento jurdico brasileiro, a fim de exaltar a sua

    importncia para a consecuo de outra garantia primordial da classe trabalhadora,

    situada na deflagrao e desenvolvimento da negociao coletiva, principalmente na

    conjuntura contempornea de deteriorao do poder normativo da Justia do Trabalho.

    Na seqncia buscarei demonstrar, com substrato em uma releitura do direito

    privado, que a posse somente merecer proteo a partir do momento em que cumprir

    com a funo social a que est constitucionalmente adstrita, pontuando que para

    alcanar esse desiderato, ela (a posse) dever se pautar pela observncia das

    disposies que regulam as relaes de trabalho.

    Em arremate trarei a lume, com os olhos voltados para tais ponderaes,algumas reflexes sobre os aspectos mais relevantes do processamento das aes

    possessrias no ramo laboral do Poder Judicirio, para finalmente propor uma forma

    verdadeiramente democrtica de anlise do tema.

    (*) Joo Humberto Cesrio Juiz Titular da Vara do Trabalho de So Flix do Araguaia MT.

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    2 - DIREITO DE GREVE: CONCEITUAO - NATUREZA JURDICA

    OBJETIVOS

    Numa miragem meramente positivista, lcito afirmar, a partir da leitura estrita do

    artigo 2o da Lei 7.783-89, que a greve nada mais do que a suspenso coletiva,

    temporria e pacfica total ou parcial, de prestao pessoal de servios ao

    empregador.

    J em plano doutrinrio mais abrangente, imprescindvel para a visualizao

    aprofundada do mencionado fenmeno, o professor Maurcio Godinho Delgado ensina

    que a greve deve ser compreendida como a paralisao coletiva provisria, parcial outotal, das atividades dos trabalhadores em face de seus empregadores ou tomadores

    de servios, com o objetivo de exercer-lhes presso, visando a defesa ou conquista de

    interesses coletivos, ou com objetivos sociais mais amplos.1

    Dito de outro modo, a lgica da greve reside na interrupo da prestao de

    servios pelos trabalhadores, que de tal arte criam um fato jurdico-social propcio

    abertura de negociao coletiva, que, em ltima anlise, poder garantir melhores

    condies de labuta categoria profissional envolvida.

    Assim que no dizer de Mrcio Tlio Viana, a greve ao mesmo tempo

    presso para construir a norma e sano para que ela se cumpra. Por isso, serve ao

    Direito de trs modos sucessivos: primeiro como fonte material; em seguida, se

    transformada em conveno, como fonte formal; por fim, como modo adicional de

    garantir que as normas efetivamente se cumpram2.

    A greve hoje, portanto, reconhecida como um direito. Talvez o mais dialtico

    dos direitos, j que alm de cumprir o papel de fonte jurdica material e formal,

    consegue ser, a um s tempo, norma, sano e garantia.1 Direito Coletivo do Trabalho, 1a ed., So Paulo: LTr, 2001, p. 149.2 Direitos Humanos: Essncia do Direito do Trabalho, 1 ed., So Paulo: LTr, 2007, p. 99.

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    Mas nem sempre foi assim. Sem passar pelo resgate histrico do tema, tendo

    em conta as delimitaes j estabelecidas para o presente trabalho, de se comentar,

    pelo menos a ttulo de curiosidade, que houve pocas em que o paredismo era

    considerado crime ou no mnimo era proibido3.

    Atualmente, entretanto, o direito de greve ganhou prestgio considervel, estando

    erigido, no plano internacional, condio de garantia fundamental da classe

    trabalhadora, consoante se pode aferir da leitura de algumas das ementas do Comit

    de Liberdade Sindical da Organizao Internacional do Trabalho4:

    EMENTA 363 O direito de greve dos trabalhadores e suas

    organizaes constitui um dos meios essenciais de que dispem parapromover e defender seus interesses profissionais.

    EMENTA 364 O comit sempre estimou que o direito de greve

    um dos direitos fundamentais dos trabalhadores e de suas organizaes,

    unicamente na medida em que constitui meio de defesa de seus

    interesses.

    Seguindo a esteira do direito internacional, de se notar que o artigo 9 o da

    Constituio da Repblica Federativa do Brasil garante ser assegurado o direito de

    greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exerc-lo e sobre

    os interesses que devam por meio dele defender,no sendo demais sublinhar que o

    mencionado preceptivo (artigo 9o da CRFB) est topologicamente inserido no ttulo II da

    Magna Carta, que trata dos direitos e garantias fundamentais dos cidados, dentre eles,

    obviamente, o cidado-trabalhador.

    3 Vide, por exemplo, o Cdigo Penal brasileiro de 11.10.1890, a Lei de Segurana Nacional de 1938 e oCdigo Penal editado em 1940.4 Oris de Oliveira, Juiz do Trabalho e doutor em direito, ensina, in Direito Coletivo do Trabalho em uma

    Sociedade Ps-industrial, 1a ed., So Paulo: LTr, 2003, p. 225, que os inmeros casos de greve

    examinados pelo Comit de Liberdade Sindical da Organizao Internacional do Trabalho permitiram a

    elaborao de um conjunto de princpios que constituem um verdadeiro direito internacional sobre

    liberdade sindical, uma espcie de regra direito consuetudinrio internacional.

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    A propsito, manifestando-se sobre a fundamentalidade dos direitos trabalhistas,

    o jurista Arnaldo Sussekind esclarece que a Constituio brasileira lhes atribui a

    distino de clusulas ptreas. Em tal sentido, a sua preleo:

    Na verdade, ao impedir que emendas Carta Magna possam abolir

    os direitos e garantias individuais (art. 60, 4, IV), evidente que essa

    proibio alcana os direitos relacionados no art. 7, assim como a

    liberdade sindical do trabalhador e do empresrio de organizar sindicatos

    de conformidade com as demais disposies do art. 8, e de neles

    ingressarem e desfiliarem-se. (...)

    Cumpre ponderar, nesse passo, que, se os direitos e garantias de

    ndole social-trabalhista, afirmados na Lex Fudamentalis, no podem serabolidos por emenda constitucional, certo que no ser defeso ao

    Congresso Nacional alterar a redao das respectivas normas, desde que

    no modifique a sua essncia de forma a tornar invivel o exerccio dos

    direitos subjetivos ou a preservao das garantias constitucionais

    estatudos no dispositivo emendado.5

    Entrementes, ainda que gozando do aludido status, de se esclarecer que o

    direito de greve no absoluto, devendo ser deflagrado a partir de uma conjuntura

    especfica que o justifique, estando o grevista obrigado a atender as necessidades

    inadiveis da comunidade, sujeitando-se s penas da lei quanto aos abusos cometidos

    (artigo 9o, 1o e 2o da CRFB).

    No que diz respeito ao mencionado aspecto conjuntural, vale dizer que a greve,

    no plano jurdico, deve estar a servio do fomento da negociao coletiva, tanto assim

    que o artigo 3 da Lei 7.783-89 deixa claro que frustrada a negociao ou verificada a

    impossibilidade de recurso via arbitral, facultada a cessao coletiva do trabalho.

    5 Direito Constitucional do Trabalho, 2 ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.p. 87 e 88.

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    Resta claro, pois, de todo o exposto, que a greve um direito de natureza

    fundamental e instrumental, que visa, numa perspectiva mais ampla, viabilizar outro

    direito no menos fundamental dos trabalhadores, que o de negociar coletivamente

    os seus direitos.

    Dado importncia do direito negociao coletiva, dele tratarei em apartado,

    fazendo-o no prximo tpico.

    3 - A NEGOCIAO COLETIVA COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL

    A negociao coletiva o processo de entendimento desenvolvido entre os

    patres e os empregados, no qual so delineados os direitos laborais que seroreconhecidos a uma determinada coletividade de trabalhadores, num determinado

    interregno temporal.

    Como palmar, o produto resultante do processo de negociao coletiva so os

    documentos conhecidos por Convenes Coletivas de Trabalho ou Acordos Coletivos

    de Trabalho, que, em sntese, arrolam uma srie de direitos reconhecidos a toda uma

    categoria profissional e que no poderiam ser alcanados dentro de um processo

    individualizado de negociao.

    Discorrendo sobre a importncia da negociao coletiva para o cidado-

    trabalhador, assim se pronuncia Orlando Gomes:

    As condies de trabalho sempre foram ditadas imperiosamente

    pelos detentores da riqueza social. O regime inaugurado pelo liberalismo

    assentava teoricamente no princpio da liberdade de contratar. Incumbiram-

    se os fatos de demonstrar que, no contrato de trabalho, um dos

    contratantes o trabalhador vivendo, por fora da entrosagem

    econmica, em um verdadeiro estado de menoridade social, no tinha

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    liberdade de discutir as condies de trabalho, submetendo-se, sempre, s

    imposies patronais.

    (...)

    A conveno coletiva vem remediar essa situao de flagrante

    disparidade, opondo ao patro que, por si, constitui uma coalizo, no dizer

    de Adam Smith, coalizo obreira, restaurando, assim, praticamente, o

    equilbrio de foras. So duas potncias sociais que se encontram para, no

    mesmo p de igualdade, estabelecer o seu modus vivendi.6

    Da lio retro transcrita extrai-se que entre o empregador7 e o empregado existe

    uma disparidade abissal, que, em ltima instncia, inviabiliza a negociao das

    condies gerais de trabalho por intermdio da autonomia clssica da vontadeindividual.

    Assim que a doutrina trabalhista aconselha que tais clusulas sejam pactuadas

    a partir do exerccio daquilo que denomina pelo epteto de autonomia privada coletiva,

    como tal entendido o poder social dos grupos representados autoregularem seus

    interesses gerais e abstratos, reconhecendo o Estado a eficcia plena dessa avena

    em relao a cada integrante dessa coletividade, a par ou apesar do regramento estatal

    desde que no afronte norma tpica de ordem pblica8.

    Como fcil intuir, alis, no por outra razo que a Organizao Internacional

    do Trabalho vaticina que a liberdade sindical e a negociao coletiva so direitos

    fundamentais no trabalho e essenciais para o exerccio da democracia e do dilogo

    social.96 Orlando Gomes apudEnoque Ribeiro dos Santos, in Direitos Humanos na Negociao Coletiva, 1a ed.,

    So Paulo: LTr, 2004, p.p. 101 e 102.7 Estabelece o artigo 2 da Consolidao das Leis do Trabalho brasileira que considera-se empregador a

    empresa, individual ou coletiva, que assumindo os riscos da atividade econmica, admite, assalaria e

    dirige a prestao pessoal de servios.8 Arnaldo Sussekind et al, in Instituies de Direito do Trabalho, Vol. 2, 21a ed., So Paulo: LTr, 2004, p.

    1178.9 Extrado do stio www.oit.org.brem 03.11.2007

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    http://www.oit.org.br/http://www.oit.org.br/
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    Para demonstrar a extraordinria importncia que a OIT atribui ao instituto em

    exame, trago um excerto da sua Declarao de Direitos Fundamentais do Trabalhador

    de 1998:

    La Conferencia Internacional Del Trabajo (...) declara que todos los

    miembros , aun cuando no hayan ratificado los convenios aludidos, tienen

    um compromisso que se deriva de su mera pertenencia a la Organizacin

    de respetar, promover y hacer realidade, de buena f y de conformidad con

    la Constituicn, los princpios relativos a los derechos fundamentales que

    son objeto de esos convenios, es decir:

    (a) la libertad de asociacin y la libertad sindical y el reconocimientoefectivo del derecho de negociacin colectiva10 (destaque meu)

    Finalizando o presente tpico, merece meno o fato da Constituio brasileira,

    seguindo a diretriz do direito internacional, ter referendado, expressamente, o carter

    fundamental do direito negociao coletiva.

    Tanto assim que elencou, no seu artigo 7, XXVI, como direito dos

    trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem a melhoria de sua condio

    social, o reconhecimento das convenes e acordos coletivos de trabalho, para logo

    depois anunciar como obrigatria, no seu artigo 8, VI, a participao dos sindicatos nas

    negociaes coletivas de trabalho11.

    De todo o estudado at aqui, devo sublinhar, em virtude da importncia desta

    concluso para o avano do estudo que vem sendo desenvolvido, que a greve e a

    negociao coletiva so direitos fundamentais dos trabalhadores, sendo consagrados

    10 Extrado do stio www.ilo.orgem 03.11.2007 .

    11 Nunca demais lembrar que os artigos 7 e 8 da CRFB esto inseridos no ttulo II da Magna Carta,

    que, por sua vez, trata dos direitos e garantias fundamentais.

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    http://www.ilo.org/http://www.ilo.org/http://www.ilo.org/
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    no plano externo pelos regramentos jurdicos internacionais e no interno pela

    Constituio da Repblica.

    No menos importante, ainda, atentar para o carter adjetivo da greve, j que

    ela o instrumento de presso utilizado pelos obreiros nos contextos em que o

    patronato se recusa a negociar.

    Antes de passar a discorrer sobre o prximo eixo do presente texto, centrado na

    funo social da posse, traarei previamente algumas consideraes sobre o chamado

    poder normativo da Justia do Trabalho brasileira, j que no sero poucos aqueles

    que, por certo, redargiro as concluses retro, ao argumento de que os dissdios

    coletivos so preferveis ao exerccio do direito de greve nos contextos de impassenegocial.

    4 - A EMENDA CONSTITUCIONAL 45 E A DETERIORAO DO PODER

    NORMATIVO DA JUSTIA DO TRABALHO

    Como sabido, o constituinte originrio de 1988 homenageou o poder normativo

    do Judicirio Trabalhista, ao estatuir na redao original do 2o do artigo 114 da CRFB

    que, recusando-se qualquer das partes negociao ou arbitragem, facultado aos

    respectivos sindicatos ajuizar dissdio coletivo, podendo a Justia do Trabalho

    estabelecer normas e condies, respeitadas as disposies convencionais e legais

    mnimas de proteo ao trabalho.

    Diante da intimidade que os operadores jurdicos possuem com a matria, torna-

    se despiciendo discutir os contornos desta modalidade atpica de jurisdio, sendo mais

    proveitoso adentrar, sem delongas, nas modificaes que a E.C. 45 acarretou no

    assunto.

    Ocorre que a novel redao do 2o do artigo 114 da Magna Carta traz

    substancial alterao quanto ao tema, estando a dizer, hodiernamente, que recusando-

    se qualquer das partes negociao ou arbitragem, facultado s mesmas (sic), de

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    comum acordo, ajuizar dissdio coletivo de natureza econmica, podendo a Justia do

    Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposies mnimas legais de proteo ao

    trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

    Salta aos olhos, pois, que embora o constituinte derivado continue a conceber a

    existncia do dissdio coletivo econmico, condicionou sua propositura aquiescncia

    recproca dos interessados, assim optando por diminuir a sua incidncia no mundo

    juslaboral, fazendo-o com arrimo nas mais saudveis tradies democrticas.

    Ocorre que o poder normativo no passa de malfazeja herana autoritria,

    portanto sem paradigmas no mundo livre, que sempre cumpriu o repugnante papel de

    inibir a organizao coletiva dos trabalhadores, impedindo a gestao de umaconscincia classista mais aguada.

    A bem da verdade, o aconchego da jurisdio normativa relegou o direito

    fundamental de greve a um plano inferior, impedindo-o de cumprir sua funo de

    vigoroso instrumento fomentador da negociao.

    Afinal, sempre foi cmodo s direes sindicais menos compromissadas,

    aboletadas na sinecura da unicidade e do financiamento sindical no-espontneo,

    justificar perante as bases o fracasso de suas campanhas salariais naquilo em que j

    se proclamou, no sem alguma razo, como sendo o rano conservador da Justia do

    Trabalho.

    Desnudando a gnese antidemocrtica do dissdio coletivo e do poder normativo

    que dele emana, colho a lio do membro do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro

    Maurcio Godinho Delgado:

    A presente frmula de resoluo de conflitos coletivos trabalhistas

    [referindo-se ao dissdio coletivo] corresponde a figura quase singular no

    Direito do Trabalho brasileiro, nos dias atuais.

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    Este instituto, regra geral, mostrou-se restrito a pases cujas ordens

    justrabalhistas tiveram formao doutrinria e legal autoritrias, de

    inspirao organicista ou corporativista, como prprio s experincias

    autocrticas de natureza fascista da primeira metade do sculo XX, na

    Europa. Suplantadas aquelas experincias no continente europeu, a

    frmula judicial de soluo de conflitos coletivos trabalhistas tendeu a ser

    extirpada das respectivas ordens jurdicas.

    (...)

    Esse padro, que repele a gesto democratizante das relaes de

    trabalho e no assimila a uma estruturao democrtica da sociedade

    poltica, identifica-se sob o ttulo de modelo de normatizao subordinada

    estatal.Essa ltima vertente jurdico-poltica repudia, frontalmente, a noo

    e a dinmica do conflito, que considera incompatvel com a gesto

    sociopoltica da comunidade. A rejeio do conflito faz-se em duas

    dimenses: quer de modo direto, mediante uma legislao proibitiva

    expressa [como o impedimento e a criminalizao do direito de greve], quer

    de modo indireto, ao absorv-lo, sob controle, no aparelho de Estado, que

    tece, minuciosamente, as prticas para a sua soluo [como no poder

    normativo da Justia do Trabalho].

    (...)

    Tais experincias vieram forjar um sistema bsico de elaborao e

    reproduo de normas justrabalhistas, cujo ncleo fundamental situava-se

    no aparelho de Estado. O conflito privado pressuposto da negociao e

    foco da criao justrabalhista era negado ou rejeitado pelo Estado, que

    no admitia seus desdobramentos autnomos, nem lhe construa formas

    institucionais de processamento. Os canais eventualmente abertos pelo

    Estado tinham o efeito de funcionar, no mximo, como canais de sugestes

    e presses controladas, dirigidas a uma vontade normativa superior,

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    distanciada de tais presses e sugestes.12 (meus os destaques e

    comentrios entre colchetes)

    Corroborando dita preleo, o jurista Orlando Gomes ensina, reportando-se aos

    dissdios coletivos, que a maioria dos ordenamentos jurdicos desconhece essa

    categoria processual, dizendo, ainda, que em muitos pases a greve nasce e morre no

    mundo social como conflito coletivo de interesses, apenas aplacada pelo complexo

    mecanismo de negociao coletiva13.

    Atento a essa realidade, o Tribunal Superior do Trabalho vem vigorosamente

    implementando, no plano jurisprudencial, a novidade trazida pela E.C 45, de modo a

    inibir a utilizao dos dissdios coletivos e assim estimular a soluo natural dosconflitos coletivos de trabalho. A propsito do asseverado, trago as seguintes ementas:

    COMUM ACORDO. ART. 114, 2, DA CONSTITUIO DA

    REPBLICA, COM A REDAO DADA PELA EMENDA

    CONSTITUCIONAL 45. PRESSUPOSTO PROCESSUAL. SUA AUSNCIA

    IMPORTA EXTINO DO PROCESSO. A Emenda Constitucional 45, de 8

    de dezembro de 2004, trouxe mudanas significativas no mbito dos

    dissdios coletivos. A alterao que vem suscitando maiores discusses diz

    respeito ao acrscimo da expresso "comum acordo" ao 2 do art. 114 da

    Constituio da Repblica. O debate gira em torno do consenso entre

    suscitante e suscitado como pressuposto para o ajuizamento do dissdio

    coletivo. A jurisprudncia desta Corte consagra o entendimento segundo o

    qual o comum acordo exigido para se ajuizar dissdio coletivo de natureza

    econmica, conforme previsto no 2 do art. 114 da Constituio da

    Repblica, constitui-se pressuposto processual cuja inobservncia acarreta

    a extino do processo sem resoluo do mrito, nos termos do inc. VI do

    art. 267 do CPC. Recurso Ordinrio de que se conhece e a que se d

    12Op. cit., p.p. 32 e 110.13 Curso de Direito do Trabalho, 14a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 645.

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    provimento para extinguir o processo, sem resoluo do mrito, nos termos

    do art. 267, inc. VI, do CPC.14

    RECURSO ORDINRIO EM DISSDIO COLETIVO.

    EXIGIBILIDADE DE ANUNCIA PRVIA. A manifestao expressa da

    empresa em contrrio ao ajuizamento do Dissdio Coletivo torna inequvoca

    a ausncia do comum acordo, condio da ao prevista no art. 114, 2,

    da Constituio da Repblica. Preliminar que se acolhe para extinguir o

    processo sem resoluo do mrito, conforme o disposto no art. 267, VI, do

    CPC.15

    Feito este recorte acerca da runa do poder normativo, passarei doravante adiscorrer sobre a posse e sua funo social, para a partir da atingir o ponto nevrlgico

    do presente estudo, consistente na construo de um novo olhar sobre os interditos

    possessrios eriados na Justia do trabalho brasileira em face do exerccio do direito

    de greve.

    5 A POSSE E SUA FUNO SOCIAL

    Tendo em vista os contornos propostos para o presente estudo, no me deterei

    em questes de alta indagao doutrinria, tais como as teorias justificadoras da posse,

    h tempos divididas entre as vises de Savigny e Ihering.

    Alis, consoante advertem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, as

    teorias de Savigny e Ihering no so capazes de explicar o fenmeno possessrio luz

    de uma teoria material dos direitos fundamentais. Mostram-se envelhecidas e

    dissonantes da realidade social presente. Surgiram ambas em momento histrico no

    14 Processo n TST-RODC-3.612/2005-000-04-00.5, Relator Ministro Joo Batista de Brito Pereira.

    15 Processo n TST-RODC-992/2005-000-04-00.6, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula.

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    qual o fundamental era a apropriao de bens sob a lgica do ter em detrimento do

    ser16.

    Assim, minha tarefa aqui ser meramente a de aclarar, sem maiores divagaes,

    o que se deve entender por posse, para depois fincar a ateno nos requisitos que ela

    dever cumprir para merecer proteo judicial.

    Muito se tem discutido se a posse seria um fato ou um direito. Nada obstante,

    como bem explica Humberto Theodoro Jnior, o problema questo de simples

    nomenclatura.

    Nesse diapaso, o mencionado jurista escreve que normalmente a linguagemjurdica dispe de denominaes distintas para os fatos geradores e para os direitos

    produzidos, como se distinguem entre contrato e crdito, ou entre tradio e

    propriedade. J na posse, uma s palavra empregada para exprimir o fato aquisitivo e

    o direito que dele decorre, o qual tambm se chama de posse17.

    Com efeito, numa perspectiva simples, e por isso eficiente, a posse pode ser

    compreendida como o exerccio, de fato, dos poderes constitutivos do domnio, ou

    propriedade, ou de alguns deles somente18.

    Ao presente trabalho, porm, importa discutir, com maior nfase, os requisitos

    que a posse ter que cumprir para merecer a tutela jurdica. Convm assim ressaltar,

    logo de plano, que os Cdigos Civil e de Processo Civil do Brasil, estabelecem,

    respectivamente nos seus artigos 1.210 e 926, que o possuidor ter direito a ser

    segurado de violncia iminente se tiver justo receio de ser molestado, de ser mantido

    na posse no caso de turbao e nela restitudo na hiptese de esbulho.

    16 Direitos Reais, 4a ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.p. 33 e 34.17 Curso de Direito Processual Civil: Procedimentos Especiais, Vol. III, 38 a ed., Rio de Janeiro: Forense,

    2007, p. 124.18 Clvis Bevilqua apudHumberto Thedoro Jnior, idem, p. 119.

    13

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    Nada obstante, tal discusso comporta outros elementos, vez que apenas a

    posse justa que poder ser blindada por intermdio dos interditos possessrios.

    Dentro de uma concepo conservadora, pode-se dizer, com estribo no artigo

    1.200 do Cdigo Civil brasileiro, que justa ser a posse que no for violenta, clandestina

    ou precria. Todavia, o referido preceptivo clama por interpretao conforme a

    Constituio brasileira, para se entender que concretamente justa ser a posse que,

    alm de reunir essas trs qualidades (no ser violenta, clandestina ou precria),

    respeitar fielmente a funo social a que est destinada.

    Almejando chancelar a concluso acima, veiculo a preleo de Cristiano Chaves

    de Farias e Nelson Rosenvald:

    Atualmente, a cincia jurdica volta o olhar para a perspectiva da

    finalidade dos modelos jurdicos. No h mais um simples interesse to

    evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu

    papel e misso perante a coletividade, na incessante busca pela

    solidariedade e pelo bem comum. Enfim, a funo social se dirige no s

    propriedade, aos contratos e famlia, mas reconstruo de qualquer

    direito subjetivo, incluindo-se a a posse, como fato social, de enorme

    repercusso para a edificao da cidadania e das necessidades bsicas do

    ser humano.19

    Alis, o cumprimento da funo social da posse to valorizado hodiernamente,

    que a doutrina mais arrojada anuncia, com firmeza, que nem mesmo o proprietrio

    merecer a tutela estatal possessria, quando se abstiver de emprestar destinao

    social ao seu empreendimento.

    Comprovando tal assertiva, trago, vez mais, o esclio de Cristiano Chaves de

    Farias e Nelson Rosenvald:

    19Op. cit., p. 38.

    14

  • 8/9/2019 O DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL DE GREVE E A FUNO SOCIAL DA POSSE

    15/45

    Tradicionalmente, a propriedade era classificada como um direito

    subjetivo perptuo e, conseqentemente, s se constatava a prescrio da

    pretenso do proprietrio em recuperar o bem ao tempo do advento da

    usucapio pela prpria perda do direito subjetivo de propriedade em

    razo da aquisio de domnio pelo usucapiente. Hoje possvel aferir que

    a perda da pretenso reivindicatria ou reintegratria pelo proprietrio pode

    produzir-se muito antes, pela simples constatao da inexistncia material

    e real do direito subjetivo de propriedade que se alega, posto que

    destitudo de utilizao econmica ou social pelo seu titular.

    H muito se sabe da eficcia vertical dos direitos fundamentais. Ou

    seja, pelo art. 5, 1, da Constituio Federal, os direitos fundamentais

    so de aplicao imediata para o legislador e o juiz. Aquele no podeinovar no mundo infraconstitucional de forma lesiva ao princpio da funo

    social, sob pena da norma subalterna ser tida por inconstitucional. J o

    magistrado dever incorporar os direitos fundamentais como fundamento

    hbil a legitimar qualquer deciso, mesmo que o princpio no se encontre

    positivado em qualquer norma processual.

    Porm, atualmente, a grande questo que circunda o Direito Civil-

    Constitucional concerne eficcia horizontal dos direitos fundamentais, ou

    seja, a influncia dos direitos fundamentais na rbita das relaes entre

    particulares, e at que ponto ela afeta a autonomia privada, princpio

    fundamental das relaes civis. Sem entrar na discusso se o ingresso dos

    direitos fundamentais ocorre de forma imediata a maneira da eficcia

    vertical ou pela mediao das clusulas gerais que se encontram no

    Cdigo Civil, tem-se que a funo social se impe como prprio freio que

    delimitar a extenso da autonomia privada do proprietrio em hipteses

    que as suas pretenses reivindicatria e possessria perdem a legitimidade

    constitucional (...).

    Normalmente, o proprietrio ajuza uma ao reivindicatria, com

    base na demonstrao do ttulo de propriedade, ou opta pela via

    possessria, pleiteando a liminar de reintegrao, amparado na tese da

    15

  • 8/9/2019 O DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL DE GREVE E A FUNO SOCIAL DA POSSE

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    consumao do esbulho. Nos dois casos, as pretenses so consideradas

    procedentes, na medida em que a simples exibio do registro (na

    reivindicatria) e a produo de prova quanto perda da posse (na

    reintegratria) so requisitos legais para o xito de tais demandas. Essas

    solues conservadoras apenas agravam o quadro de injustia social

    presente no campo.20 (destaques meus)

    Vale repisar, aqui, embora dizendo de outro modo, que o direito contemporneo

    to comprometido com o pleno atendimento da funo social da posse, que a doutrina

    moderna no teme afirmar que a pura e simples demonstrao do esbulho no ser

    suficiente para justificar a concesso de liminar ao proprietrio na ao de reintegrao.

    certo, porm, que o termo funo social da posse no muito mais do que

    um conceito jurdico indeterminado a demandar integrao construtiva por parte do

    magistrado. Assim que os multicitados Cristiano Chaves de Farias e Nelson

    Rosenvald asseveram que a tarefa da jurisprudncia criativa consistir em definir a

    funo social da posse, com base nos valores metajurdicos vigentes. Este o nico

    modo de dar vazo ao art. 5 da LICC, ao impor que o juiz atenda s finalidades sociais

    da lei quando de sua aplicao, preservando o bem comum21.

    Com a mente voltada para o objetivo do presente trabalho, centrado na

    edificao de um novo olhar sobre os interditos possessrios manobrados em face do

    exerccio do direito fundamental paredista, acredito, de minha parte, que o desempenho

    social possessrio deva ser buscado nos dispositivos da Constituio brasileira que

    tratam da funo da propriedade, j que sempre com lastro na privao fsica da

    posse dela decorrente (da propriedade) que o empresrio busca retomar o comando do

    seu empreendimento nos contextos das chamadas greves de ocupao. Passo

    tarefa, portanto.

    Como curial, se por um lado certo que a propriedade um direito

    fundamental do cidado (art. 5o, XXII da CRFB), por outro no menos verdade que ela20Idem, p.p. 52, 53 e 54.21Idem, p. 52.

    16

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    deva cumprir uma inequvoca funo social (art. 5o, XXII da CRFB), somente alcanada

    no mbito rural, por exemplo, quando atenda, simultaneamente, os requisitos de

    observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho, com a explorao

    que favorea o bem-estar dos trabalhadores (artigo 186, III e IV da CRFB).

    Ademais, trata-se de verdadeiro trusmo que tambm a propriedade urbana,

    tanto quanto a rural (como visto no pargrafo anterior), est constrangida observncia

    de uma a funo social, devidamente arrimada, dentre outras pilastras, na centralidade

    do mundo do trabalho.

    No por outra razo que a Constituio da Repblica estabelece que a ordem

    econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fimassegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, devendo

    acatar os princpios da funo social da propriedade e da busca do pleno emprego

    (artigo 170, caput, incisos III e VI).

    Vale dizer, com efeito, que se a propriedade no explorada de modo que

    favorea o bem-estar dos trabalhadores, olvidando as disposies que regulam as

    relaes de trabalho, no estar cumprindo com sua funo social, ficando exposta, em

    determinados casos, at mesmo desapropriao por parte da Unio, para fins de

    reforma agrria. Justamente por isso que o artigo 184 da Magna Carta estabelece

    que compete Unio desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o

    imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social.

    Estabelecidas tais premissas, incumbe-me, nessa quadra do estudo, deixar claro

    que para atender a contento o cnone da funo social, a empresa dever, alm de

    cumprir outros requisitos, no se recusar a participar dos procedimentos trabalhistas de

    negociao coletiva.

    Ocorre que esta (negociao coletiva), como j exaustivamente visto, uma das

    garantias constitucionais fundamentais da classe trabalhadora, sendo ainda certo que

    17

  • 8/9/2019 O DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL DE GREVE E A FUNO SOCIAL DA POSSE

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    no atendimento da funo social, a propriedade dever respeitar as disposies que

    regulam as relaes de trabalho, alm de se pautar por um padro exploratrio hbil a

    favorecer o bem-estar dos trabalhadores.

    Ora, consoante j visto alhures, o direito de greve a mais eficaz e democrtica

    vlvula de presso para garantir a deflagrao e a continuidade da negociao coletiva,

    sendo imprescindvel, dessarte, para que os trabalhadores atinjam um padro setorial

    de direitos mais encorpado.

    Logo, se a empresa se recusa a negociar, est a maltratar um dos mais

    sagrados direitos dos trabalhadores, sendo iniludvel, diante de todos os meandros

    constitucionais j estudados, que no cumpre com a sua funo social.

    Ao agir assim, estar o empresrio justificando a cessao coletiva do trabalho

    (artigo 3 da Lei 7.783-89) e at mesmo abdicando, nos contextos mais agudos, de ser

    beneficiado pela tutela estatal possessria, se o movimento paredista se desenvolver

    sob o modelo da greve de ocupao.

    Ser dentro desta tica que, no prximo tpico, atingirei o cume do presente

    trabalho, ocasio em que discorrerei sobre os aspectos processuais mais relevantes

    dos interditos possessrios aforados na Justia do Trabalho brasileira.

    6 ASPECTOS PROCESSUAIS DOS INTERDITOS POSSESSRIOS NA

    JUSTIA DO TRABALHO BRASILEIRA

    Como j reiteradamente afirmado, o objetivo primordial deste artigo o de

    sugerir um novo olhar sobre as aes possessrias no mbito da Justia do Trabalho.

    Para um desenvolvimento mais harmnico da pretenso, cuidarei, primeiramente, de

    diferenci-las, em virtude das peculiaridades que comportam.

    6.1 As Aes Tipicamente Possessrias

    18

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    So trs as aes tipicamente possessrias no direito processual brasileiro. O

    interdito proibitrio, a ao de manuteno de posse e a ao de reintegrao de

    posse. Todas elas so passveis de serem manejadas na Justia do Trabalho, nos

    variados contextos do exerccio do direito de greve.

    O interdito proibitrio possui previso do artigo 932 do Cdigo de Processo Civil

    brasileiro, nele estando prescrito que o possuidor que tiver justo receio de ser

    molestado na posse, poder impetrar ao juiz que o segure da turbao ou esbulho 22

    iminente, mediante mandado inibitrio, em que se comine astreintes ao ru para o caso

    de transgredir o preceito.

    De sua vez, as aes de manuteno ou reintegrao de posse esto previstasno artigo 926 do mesmo cdigo, que estatui que o possuidor tem o direito de ser

    mantido na posse em caso de turbao e reintegrado no de esbulho.

    O estudo de uma ocorrncia trazida pela doutrina poder facilitar o entendimento

    das ocasies em que cada uma dessas aes haver de ser ajuizada. Extraio-a da obra

    de Raimundo Simo de Melo:

    No raro ocorrem conflitos durante a greve sobre o direito de

    propriedade, quando os trabalhadores fazem a paralisao acampados no

    estabelecimento do empregador. (...) Essa ocupao pode ser pacfica ou

    no. Pode ainda ser acompanhada de atos impeditivos da entrada de

    pessoas e coisas no interior do estabelecimento23.

    Passo, com efeito, a partir da situao transcrita, a exemplificar as zonas de

    interesse jurdico capazes de explicar o aproveitamento tecnicamente correto de tais

    aes.

    22 Turbao possessria todo fato impeditivo do livre uso da posse, ou que venha tornar duvidoso o

    exerccio dela. J o esbulho possessrio todo ato violento, em virtude do qual uma pessoa despojada

    daquilo que lhe pertence ou est em sua posse. Vide, a propsito, DE PLCIDO E SILVA. Vocabulrio

    Jurdico, 3 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991.23 A Greve no Direito Brasileiro, 1a ed., So Paulo: LTr, 2006, p.p. 163 e 164.

    19

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    Inicialmente necessrio ver que, dado o seu carter preventivo, o interdito

    proibitrio dever se intentado no contexto em que o possvel esbulho ou turbao no

    se consumaram, ou seja, naquele momento em que o empregador demonstre justo

    receio de que o movimento grevista venha a se materializar na forma de ocupao do

    estabelecimento.

    De sua vez, a ao de manuteno dever ser utilizada na pressuposio da

    posse do proprietrio estar sendo turbada, sem que ainda tenha sido aperfeioado

    eventual esbulho, ou seja, naquela hiptese em que os grevistas, embora j

    acampados na empresa, no esto subtraindo de terceiros e proprietrios o direito e ir e

    vir.

    J por outro giro, a ao de reintegrao ser manejada no caso do esbulho se

    concretizar, ou seja, quando os trabalhadores, alm de acamparem na fbrica,

    passarem a proibir o acesso de pessoal ao local.

    Insta esclarecer, ainda, que nos termos do artigo 920 do CPC, os interditos

    possessrios so dotados de fungibilidade ampla, de sorte a permitir que no caso da

    propositura de uma ao em vez de outra, o juiz conhea do pedido e outorgue a

    proteo correspondente quela cujos requisitos estejam comprovados.

    Demais disso, nos termos do artigo 933 do CPC, a completude do regramento

    das aes de reintegrao e manuteno de posse se aplica figura do interdito

    proibitrio, motivo pelo qual, no dizer de Humberto Theodoro Jnior, uma vez

    verificada a consumao do dano temido, a ao transforma-se ipso iure em interdito

    de reintegrao ou de manuteno, e, como tal, ser julgada e executada24.

    Como se no bastasse, h de se destacar, antes de encerrar o presente tpico,

    que de acordo com o artigo 921 do CPC, ser lcito ao autor cumular ao pedido

    possessrio o pleito de condenao em perdas e danos, dentre outros.

    24Op. cit.,p. 148.

    20

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    Por fim, merece ser esclarecido que todas as exemplificaes acima foram

    construdas nica e exclusivamente visando demonstrar quais seriam, em tese, as

    situaes que justificariam o interesse jurdico abstrato no manejamento das aes

    enfocadas, haja vista que no plano concreto o elemento que justificar o deferimento ou

    no da tutela possessria ser o cumprimento da funo social da posse, hiptese que

    ser mais bem analisada no tpico em que tratarei dos requisitos da concesso de

    liminar.

    6.1 Competncia Para a Cognio das Aes Possessrias Oriundas do

    Exerccio do Direito de Greve

    Muito embora de toda a exposio at aqui desenvolvida sobressaia cristalina a

    competncia da Justia do Trabalho para a cognio da matria estudada, algumas

    palavras, mais profundas, merecem ser agora redigidas sobre o tema.

    Ocorre que no obstante o Supremo Tribunal Federal brasileiro vir pronunciando,

    desde 1991, que para a determinao da competncia da Justia do Trabalho no

    importa que a soluo da lide dependa de questes de direito civil, mas sim que o

    fundamento do pedido seja oriundo da relao individual ou coletiva entre empregados

    e empregadores25, o certo que at o advento da Emenda Constitucional n 45 pairava

    no universo jurdico brasileiro inexplicvel celeuma sobre qual dos ramos do Poder

    Judicirio deveria conhecer os interditos possessrios aforados em virtude de

    movimentos paredistas, controvrsia esta que propiciava a usurpao da competncia

    da Especializada por parte dos rgos da Justia Comum.

    Felizmente, entretanto, a disputa j se encontra quase que de todo sepultada

    atualmente, na medida em que a novel redao do artigo 114, II, da CRFB passou a

    estabelecer a partir de 08.12.2004, com tintas fortes, que compete Justia do

    Trabalho processar e julgar, sem excees, as aes que envolvam o exerccio do

    direito de greve.25 Vide o julgado STF, Ac. Pleno, Conflito de Jurisdio n 6.959, Relator Ministro Seplveda Pertence,

    DJU de 22.05.1991, p. 1259.

    21

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    Atenta inovao trazida pelo constituinte derivado, at mesmo a doutrina

    civilista j vem se dobrando evidncia dos fatos. Nesse, sentido, trago o esclio de

    Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

    A outro turno, a ampliao da competncia da Justia do Trabalho,

    desde a promulgao da Emenda Constitucional n 45, de 2004, atrai o

    exame do interdito proibitrio quando relacionado ao exerccio do direito de

    greve das categorias profissionais. Se antes o julgamento competia a

    Justia Estadual, com a nova redao do art. 114, II, da Constituio

    Federal, qualquer ato de ameaa a posse dos bens do empregador e do

    direito de ir e vir de empregados e veculos no exerccio do direito de greveser aferido pela Justia do Trabalho. No raro que os chamados

    piquetes impedem o acesso do pblico s empresas e de trabalhadores

    que no tenham aderido paralisao.26

    Seguindo a esteira doutrinria, tambm a Justia Comum est atualmente a

    reconhecer a mudana ocorrida. Para demonstrar o asseverado, trago um trecho de

    deciso oriunda de rgo de primeira instncia do Tribunal de Justia do Distrito

    Federal:

    Sabe-se que a atual reforma do Poder Judicirio, concretizada pela

    EC n 45, ao dar maior proeminncia Justia do Trabalho, modificou

    profundamente a sua configurao anteriormente conferida pela

    Constituio de 1988 quanto sua competncia material.

    Atribui-se Justia do Trabalho competncia para julgar outras lides

    de natureza diversa, estranhas sua clssica competncia constitucional

    at ento vigente.

    Conclui-se, ento, que, com o advento da nova sistemtica

    constitucional, ampliando-se a competncia da Justia do Trabalho para o

    26Op. cit., p. 130.

    22

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    processamento e julgamento de outras lides, que no apenas trabalhistas

    stricto sensu, atrai-se para a Justia Especializada a aplicao de outros

    direitos materiais que regulam essas relaes.

    Desta maneira, no apenas os conflitos oriundos das relaes de

    emprego so da competncia da Justia do Trabalho, mas, tambm,

    aquelas surgidas em decorrncia do exerccio do direito de greve, nos

    termos do art. 9 c/c art. 114, inciso II, ambos da CF/88.

    Vale lembrar que nem sempre as aes que decorrem do exerccio

    do direito de greve envolvem empregados e empregadores, pois agora

    alada da Justia do Trabalho todo litgio que decorra do exerccio do

    direito de greve, ainda que envolvam terceiros e/ou aes possessrias

    entre sindicato e empregador em face do exerccio do direito de greve.Diante do exposto, em face da nova ordem constitucional

    concernente competncia da Justia Trabalhista, implementada pela EC

    n 45, uma vez reconhecida a incompetncia absoluta deste Juzo para

    processar e julgar o feito, com fulcro no art. 113 do CPC, declino da

    competncia em favor de uma das Varas da Justia do Trabalho, qual,

    decorrido o prazo recursal e feitas as devidas anotaes, devero ser

    remetidos os autos, via distribuio.27

    Outrossim, colocando uma p de cal no assunto, trago a lume a posio

    expressa do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que carrega em si o condo de

    dissipar qualquer dvida que ainda possa reinar na mente dos mais renitentes:

    27 Deciso proferida na Stima Vara Cvel do Distrito Federal, nos autos do processo n

    2005.01.1.096701-4, em 04.05.2006.

    23

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    Agravo de instrumento de deciso que inadmitiu RE contra acrdo

    do Tribunal de Alada de Minas Gerais que declarou a competncia da

    Justia Estadual para julgar ao de interdito proibitrio proposto entre

    empregado e empregador, em face do exerccio do direito de greve.

    No caso, os funcionrios do agravado, em campanha salarial,

    impediam o acesso s agncias bancrias locais.

    De acordo com o Tribunal a quo, em suma, o interdito proibitrio

    discute to-somente matria de natureza possessria, ou seja, trata de

    questo de direito civil, razo pela qual deve ser apreciada pela Justia

    Comum.

    Alega o RE violao do art. 114, II, da Constituio. Aduz a

    competncia da Justia do Trabalho para o julgamento do feito.Decido.

    Tem razo o recorrente.

    O acrdo recorrido diverge do entendimento do STF: originando-se

    da relao de emprego, a presente controvrsia deve ser julgada pela

    Justia do Trabalho, no importando a circunstncia de fundar-se o pedido

    em regra de direito comum.

    (...)

    Provejo o agravo, que converto em recurso extraordinrio (art. 544,

    3 e 4, do C.Pr.Civil) e, desde logo, dou provimento a este (art. 557, 1-

    A, do C.Pr.Civil), para reformar o acrdo recorrido e reconhecer a

    competncia da Justia do Trabalho para o julgamento do feito.28

    Pois bem. Demonstrada com flego a inelutvel competncia da Justia do

    Trabalho para a cognio da matria, passo, no tpico seguinte, a tecer algumas

    breves consideraes sobre a legitimidade e o procedimento nas aes possessrias.

    6.2 Legitimidade Procedimento28 Agravo de Instrumento n 630440, Relator Ministro Seplveda Pertence, julgamento ocorrido em 12 de

    maro de 2007.

    24

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    As questes em epgrafe no suscitam maiores controvrsias, o que me

    conduzir a trat-las de modo mais ligeiro.

    No caso, evidentemente, a legitimidade ativa pertencer pessoa fsica ou

    jurdica que estiver experimentando algum tipo de constrangimento na sua posse, em

    virtude de movimento paredista protagonizado por seus empregados. De outro tanto, a

    legitimidade passiva ser do sindicato que representa a categoria profissional em greve.

    J o procedimento ser varivel, a depender da ao ser de fora nova ou de

    fora velha.

    Assim, nos termos do artigo 924 do CPC, quando a ao possessria for

    intentada dentro de ano e dia da turbao ou esbulho, o rito ser o especial, na forma

    em que previsto nos artigos 920 e seguintes do CPC. Por outra vertente, quando

    ajuizada depois desse prazo (ano e dia), o rito ser o ordinrio, embora a demanda no

    perca a sua natureza jurdica possessria.

    A grande e substancial diferena entre as duas formas de desenvolvimento

    processual reside na possibilidade do ofendido ser agraciado com liminar no

    procedimento especial29, fato que se mostra invivel no rito ordinrio, muito embora

    algumas vozes se animem a asseverar que a partir da primeira onda de reforma

    processual, operada em 1994, tambm nas aes de fora velha seria possvel a

    concesso de liminar satisfativa, na forma de tutela antecipada30, j que a partir de

    ento o aludido instituto foi incorporado ao rito ordinrio.

    29 Art. 928 do CPC Estando a petio inicial devidamente instruda, o juiz deferir, sem ouvir o ru, aexpedio do mandado liminar de manuteno ou reintegrao; no caso contrrio, determinar que o

    autor justifique previamente o alegado, citando-se o ru para comparecer audincia que for designada.

    Art. 929 do CPC Julgada procedente a justificao, o juiz far logo expedir mandado de manuteno ou

    reintegrao.30 A respeito, vide Luiz Guilherme Marinoni, in Tcnica Processual e Tutela dos Direitos, 1a ed., So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 575.

    25

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    Discordo desse ponto de vista. Procurando justificar a minha posio, trago,

    novamente, a lio de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

    A outro giro, no admitimos a extenso da tutela antecipada

    genrica do artigo 273 do Cdigo de Processo Civil s aes possessrias

    de fora velha. A tutela antecipada de fato o maior indicador da adoo,

    pelo nosso legislador, do princpio da efetividade. Veio, porm, para

    imprimir celeridade ao procedimento comum, nos ritos ordinrio e sumrio,

    s podendo atingir o rito especial quando houver compatibilidade (art. 272,

    pargrafo nico, do CPC).

    Vale dizer, muito antes da introduo da tutela antecipada genricana reforma processual de 1994, o ordenamento j reconhecia

    determinadas aes que, em seu bojo, contavam com tutela antecipada

    especfica. Trata-se de aes de rito especial, dotadas de liminares

    satisfativas prprias, dentre elas o mandado de segurana, a ao popular,

    a ao civil pblica e, incluindo-se nesse seleto grupo, as aes

    possessrias. Essas aes detm sistemtica peculiar e, por um princpio

    de hermenutica, a nova regra que se estabeleceu para o processo comum

    no alcana as aes especiais, exceto se houver expressa disposio

    legal nesse sentido.

    Nestes termos, acreditamos que, caso concedida a antecipao de

    tutela genrica no bojo de uma ao de fora velha, incidiria verdadeira

    burla por vias transversas sistemtica das aes possessrias que j

    comportam um termo ad quem para a concesso de liminares.

    (...) Pensamos que o princpio da instrumentalidade nos ensina que

    o processo uma tcnica a servio de uma tica de direito material. Se a

    dicotomia procedimental das aes de fora nova e fora velha derivada

    da fico emanada do direito civil quanto perda da posse aps a

    passagem do prazo decadencial e o sistema das aes possessrias

    retrata de forma fidedigna tal ciso, no se poder admitir que uma norma

    26

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    27/45

    genrica como a tutela antecipada possa desvirtuar os alicerces desta

    construo.31

    H de registrar, todavia, que na Justia do Trabalho, dado o carter efmero dos

    movimentos paredistas, a ao possessria de fora velha ser quase impossvel de

    ser manejada.

    Concluda mais essa parte do texto, chego ao ponto nevrlgico do presente

    trabalho, que ser a apreciao dos requisitos necessrios para a concesso ou no de

    liminar, quando finalmente poderei propor uma nova forma - mais comprometida com a

    funo social da posse - de se encarar os interditos possessrios eriados em face do

    exerccio do direito fundamental de greve.

    6.3 Medida Liminar

    Visando uma melhor compreenso da matria, dado as peculiaridades do

    assunto, analisarei a questo correlata concesso (ou no) de medida liminar32

    primeiramente sob a tica do interdito proibitrio, para somente depois discorrer na

    perspectiva das aes de manuteno e reintegrao de posse.

    6.3.1 Interdito Proibitrio

    31Op. cit., p.p. 139 e 140. Registre-se, todavia, que os mencionados autores, na seqncia, trazem uma

    alternativa em que a antecipao de tutela poderia ser usada, no para resguardar a posse, mas a

    propriedade. Dizem eles, na mesma p. 140: A ttulo de sugesto, sendo o possuidor igualmente

    qualificado como proprietrio, ser aconselhvel o ajuizamento de ao reivindicatria, depois de

    escoado o prazo de ano e dia, podendo o autor lograr xito com a demonstrao de sua titularidade.

    Nestas circunstncias poder obter a tutela antecipada do art. 273, do Cdigo de Processo Civil, sendoda essncia da dita ao petitria o rito ordinrio. Aqui no se verifica qualquer burla ao sistema, pois a

    pretenso do autor se assenta em remdio jurdico ligado violao de direito de propriedade. Ao

    contrrio da ao possessria, a reivindicatria tramita com procedimento comum, sem previso legal

    especfica para a concesso de tutela antecipatria.32 Devo esclarecer que centrarei ateno na deciso da liminar, pois em virtude do carter efmero da

    greve, o interesse processual do autor geralmente se exaure antes da deciso definitiva de mrito.

    27

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    Numa viso mais conservadora, meramente patrimonialista, poder-se-ia dizer

    que bastaria a notcia da possibilidade de realizao de greve, para que, uma vez

    ajuizado o interdito proibitrio33, a medida liminar inibitria fosse concedida ao autor,

    com a incontinente expedio de mandado proibitrio, adensado pela cominao de

    pena pecuniria em caso de desrespeito ao preceito mandamental.

    Nada obstante, j sob uma tica comprometida com os fundamentos

    republicanos da cidadania plena, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais

    do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1, II, II e IV da CRFB), a simples notcia da

    iminente deflagrao de movimento paredista no pode ser tida como libi para a

    concesso do interdito cominatrio.

    Ocorre que consoante exaustivamente visto, a greve uma garantia

    constitucional fundamental da classe trabalhadora, sendo certo, ainda, que sempre

    militar presuno favorvel categoria profissional envolvida, no sentido que

    exercitar o seu direito de maneira no abusiva.

    Como palmar, o requisito especfico para a concesso de medida liminar

    satisfativa no caso ser, nos termos do artigo 932 do CPC, o justo receio do autor em

    ser molestado em sua posse. Assim que a simples notcia da possibilidade de

    ocorrncia de greve no suficiente para conced-lo, at mesmo porque nos termos do

    artigo 153 do Cdigo Civil brasileiro no se considera coao a ameaa do exerccio

    normal de um direito.

    Justamente por isso que o jurista Humberto Theodoro Jnior ensina que para

    manejar o interdito proibitrio, dever, outrossim, demonstrar o interessado um fundado

    receio de dano, e no apenas manifestar um receio subjetivo sem apoio em dados

    concretos aferveis pelo juiz. (...) Qualquer outro tipo de receio, que no seja de

    33 Esclarece Humberto Theodoro Jnior (op. cit., p. 148) que a estrutura do interdito proibitrio de uma

    ao cominatria, para exigir do demandado uma prestao de fazer negativa, isto , abster-se da

    molstia posse do autor, sob pena de incorrer em multa pecuniria.

    28

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    violncia iminente, portanto, no configura o justo receio, de que fala o artigo 932 do

    Cdigo de Processo Civil34.

    Felizmente, alis, tanto a doutrina quanto a jurisprudncia j cumpriram a tarefa

    de desconstruir o mito edulcorado do juiz neutro, mero servidor autmato da letra fria da

    lei e servial conformado das elites econmicas.

    O magistrado contemporneo, principalmente o trabalhista, embora imparcial,

    no deixa se levar pelas concepes arcaicas de organizao social, que sempre

    privilegiaram o patrimnio em detrimento do ser humano. Tem os olhos atentos e

    conhece bem o mundo ao seu redor. Sabe, assim, que no mais das vezes o interdito

    proibitrio manejado como forma de intimidao para que os trabalhadores noadiram greve.

    Nesse sentido, so lapidares as palavras do Juiz Nicanor Fvero Filho, titular da

    7 Vara do Trabalho de Cuiab MT, manifestando-se em caso concreto submetido ao

    seu poder jurisdicional, no qual uma instituio bancria pugnava pela concesso de

    liminar em ao possessria:

    Tenho, data mxima venia e salvo melhor juzo, que a utilizao do

    instituto, com sua concesso em carter liminar, no pode ser utilizado

    como meio de ameaa ou amedrontamento daqueles que pretendem fazer

    uso de seu direito de greve, tambm garantido constitucionalmente,

    tampouco como meio de resistncia para qualquer possibilidade de

    conversao e possvel negociao.35

    J de minha parte, acredito que o requerente somente se mostrar digno da

    liminar perseguida quando demonstrar que a greve engendrada pelos trabalhadores

    possui o escopo nico de esgarar gratuitamente as relaes empregatcias, como34Op. cit., p.p. 148 e 149.

    35Deciso interlocutria proferida em 27 de setembro de 2005, no interior dos autos do processo n

    01012.2005.007.23.00-3, cujo curso deu na 7 Vara do Trabalho de Cuiab MT.

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    naqueles casos em que reste claro ter sido a sua realizao decidida com grande

    antecedncia, muito tempo antes da data-base, quando sequer se cogitava da abertura

    do processo de negociao coletiva.

    Movendo-se em tal diretriz, trago a ementa n 372 do Comit de Liberdade

    Sindical da Organizao Internacional do Trabalho:

    EMENTA 372. As greves de carter puramente poltico36 e as

    decididas sistematicamente muito tempo antes de encetar as negociaes

    no se situam no mbito dos princpios da liberdade sindical.

    Elaboradas tais avaliaes, passo, doravante, a desafiar a questo das liminares

    nas aes de manuteno e reintegrao de posse.

    6.3.2 Aes de Manuteno e Reintegrao de Posse

    36 evidente que todas as greves so inegavelmente dotadas de contundente carter poltico.

    Procurando, todavia, explicar o uso da expresso carter poltico no corpo da ementa transcrita, trago a

    lio de Marilena Chaui, in Convite Filosofia, 13a

    ed., So Paulo: Editora tica, 2005, p.p. 347 e 348:Em certos casos, compreensvel que a expresso greve poltica parea uma acusao. Quando, por

    exemplo, se trata de trabalhadores de uma fbrica de automveis que, em nome de melhores salrios,

    entram em greve contra a direo da empresa, considera-se que a greve como tem de ser, ou seja,

    simplesmente econmica. Ao critic-la como greve poltica est-se querendo dizer que os grevistas, sob

    a aparncia de uma reivindicao salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e

    ilegtimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns sindicalistas. A palavra

    poltica , assim, empregada para dar um sentido pejorativo greve. H casos, porm, em que a

    expresso greve poltica, usada como crtica ou acusao, surpreendentemente descabida.

    Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de um pas faam uma greve geral contra o planoeconmico do governo. Esto, portanto, recusando uma poltica econmica e, nesse caso, a greve e s

    pode ser poltica. Por que, ento, acusar uma greve por ser o que ela ? O motivo simples: para o

    senso comum social, dizer de alguma coisa que ela poltica fazer uma acusao. A crtica s em

    aparncia est dirigida contra a greve, pois, realmente, est voltada contra a poltica, imaginada como

    algo malfico.

    30

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    Aqui poderia parecer, mais uma vez em olhar padronizado e nada crtico, que

    para a posse merecer a tutela jurisdicional, bastaria ao interessado comprovar em juzo

    ser ela justa - como tal entendia aquela que no violenta, clandestina ou precria

    (artigo 1.200 do CC) - bem como a turbao na ao de manuteno, ou o esbulho na

    ao de reintegrao (artigo 926 do CPC).

    Mas a questo, como j visto alhures, muito mais intrincada quando a

    analisamos pelos vetores da cidadania plena, da dignidade da pessoa humana e dos

    valores do trabalho e da livre iniciativa, que juntos compem o ncleo essencial da

    Magna Carta brasileira.

    Basta remoer que o artigo 1.200 do Cdigo Civil clama por interpretaoconforme a Constituio, a fim de se entender que somente ser justa a posse que,

    alm de no ser violenta, clandestina ou precria, cumprir fielmente a funo social a

    que est destinada, situao que conduz a doutrina a prenunciar, sem temor, que nem

    mesmo o proprietrio merecer a tutela estatal possessria, quando se abstiver de

    emprestar destinao social ao seu empreendimento.

    Outrossim, tambm como j repassado, o conceito aberto da funo social da

    posse h de ser colmatado pelos dispositivos constitucionais que tratam da

    propriedade, pois com substrato na privao fsica da posse dela emanada que os

    patres invariavelmente colimam retomar o comando do empreendimento nos

    contextos das greves de ocupao.

    Assim que se chega concluso de que a posse, para cumprir a sua funo

    social, e assim ser tida por justa a ponto merecer a tutela estatal possessria, dever

    atender, simultaneamente, aos requisitos de observncia das disposies que regulam

    as relaes de trabalho e de explorao que favorea o bem-estar dos trabalhadores

    (artigos 186, III, IV e 170, caput, III, VI, ambos da CRFB), condio que somente

    atingir se dispuser a respeitar o direito fundamental de negociao coletiva

    reconhecido aos obreiros.

    31

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    Com efeito, na medida em que, nos termos do artigo 3 da Lei 7.783-89, a

    deflagrao do movimento paredista sempre estar envolta no contexto de recusa dos

    empregadores a iniciar, continuar ou retomar a negociao coletiva, ou seja, no cenrio

    em que, pelo menos transitoriamente, o empreendimento no estar cumprindo

    plenamente com a sua funo social, parece-me insofismvel a concluso de que

    mesmo que a greve venha assumir a forma de ocupao, no haver como se

    reconhecer a proteo possessria ao proprietrio, na medida em que a sua posse no

    poder, naquele instante, ser classificada como justa.

    certo que o vaticnio acima poderia ser infirmado sob a alegao de que, uma

    vez ocupada a fbrica, restaria consumada, nos termos da conjuno dos artigos 14,

    capute 6, 1o e 3, ambos da Lei 7.783-89, a figura jurdica do abuso do direito degreve, haja vista que no curso do movimento paredista os meios adotados por

    empregados e empregadores no podem violar ou constranger os direitos e garantias

    fundamentais de outrem, sendo ainda vedado que as manifestaes e atos de

    persuaso utilizados pelos grevistas impeam o acesso ao trabalho ou causem ameaa

    ou dano propriedade, tudo isso conspirando a favor da concluso de que a

    desocupao haveria de ser imediatamente ordenada pelo magistrado.

    O desate do imbrglio, todavia, no to simplista quanto possa parecer

    primeira vista. Ocorre que, como j elucidado, somente a posse justa, como tal

    entendida aquela que cumpre a sua funo social, que merece a tutela jurisdicional,

    de sorte que a simples recusa dos empregadores em negociar coletivamente o conflito

    trabalhista instaurado capaz de aconselhar que a celeuma seja enfrentada com maior

    acuidade.

    Assim que os 1o e 3 do artigo 6o da 7.783-89 merecem ser interpretados a

    partir do cotejo dos interesses constitucionais fundamentais que neles conflitam. Para o

    melhor desenvolvimento deste raciocnio, tenho por bem em trazer, antes de tudo,

    algumas consideraes doutrinrias acerca do princpio da proporcionalidade.

    32

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    Para tanto colho as palavras de Mauro de Azevedo Menezes:

    Tendo em vista o contedo freqentemente aberto e varivel dos

    direitos fundamentais, sua expresso, por vezes, ocorre justamente no

    confronto com outros direitos ou bens igualmente tutelados pela

    Constituio. Com efeito, a incorporao dos direitos humanos, nas suas

    vrias dimenses, positividade constitucional, necessariamente repercute

    num deslocamento ou numa reduo do raio de alcance de poderes

    estatais ou no estatais, cuja matriz jurdica encontra-se, tambm,

    constitucionalizada. Da porque a coliso provocada pelo exerccio dos

    direitos fundamentais no constitui anomalia alguma, mas sim um resultado

    ordinrio da sistemtica de proteo constitucional do seu contedo.(...)

    A coliso de direitos fundamentais se resolve maneira da coliso

    de princpios. (...) No caso dos princpios, semelhana dos direitos

    fundamentais, e ao contrrio das meras regras [segundo o autor as regras,

    ao contrrio dos princpios e dos direitos fundamentais, no colidem, mas

    sim entram em conflito, motivo pelo qual a que no prevalente

    imediatamente revogada], ocorre autntica coliso, devendo cada caso

    concreto ser analisado particularmente, mediante a atribuio de peso

    especfico a cada um dos princpios envolvidos. Se um princpio cede a

    outro, como resultado desse procedimento conhecido por ponderao -,

    nem por isso perde a sua validade. Em outras palavras, o afastamento de

    um princpio constitucional por outro, na anlise especfica de um caso, no

    implica a sua revogao. A soluo do choque suscita a necessidade de

    levar em conta o peso ou a importncia relativa de cada princpio, a fim de

    se escolher qual deles no caso concreto prevalecer ou sofrer menos

    constrio do que o outro.37 (sem a observao entre colchetes no original)

    37 Constituio e Reforma Trabalhista no Brasil: Interpretao na Perspectiva dos Direitos Fundamentais,

    1 ed., So Paulo: LTr, 2004, p.p. 152, 154 e 155.

    33

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    Esquadrinhada de tal modo a discusso, de se ver, logo de incio, que o

    prefalado 1 do artigo 6 da Lei 7.783-89 dirige no s aos empregados, mas tambm

    aos empregadores, a obrigao de no violar ou constranger os direitos fundamentais

    de outrem.

    Com efeito, se por um lado certo que os empregados a princpio no poderiam

    colocar em xeque a posse do estabelecimento, tambm correto dizer que os

    empregadores no poderiam dilacerar o direito inalienvel dos empregados

    negociao coletiva38.

    De tal arte, no balano da proporcionalidade dos interesses em jogo, a soluo

    mais correta seria a de privilegiar o interesse coletivo dos grevistas na negociaocoletiva em detrimento do interesse individual do proprietrio na manuteno ou

    restituio da sua posse. Primeiramente porque o centro vital da Constituio brasileira

    reside na dignificao do ser humano e no na defesa incondicional do patrimnio 39. Em

    segundo plano pelo fato de que a posse no estaria homenageando a funo social a

    que est constitucionalmente adstrita.

    Demais disso, a greve um fenmeno transitrio, nela no existindo,

    ordinariamente, qualquer inteno dos paredistas na ocupao perptua do

    estabelecimento - at porque o intento primordial deles a abertura ou a retomada da

    negociao coletiva -, no havendo que se vislumbrar, dessarte, qualquer perigo de

    privao eterna da posse atribuda ao empregador pelo exerccio da propriedade.

    De outro vis, o 3 do artigo 6 da Lei 7.783-89, que diz na sua primeira parte

    que as manifestaes e atos de persuaso utilizados pelos grevistas no podero

    38 Nunca demais repisar que a greve somente se justifica nos contextos de recusa dos empregadores negociao coletiva (artigo 3 da Lei 7.783-89).39 O professor de direito constitucional e Procurador do Trabalho, Manoel Jorge e Silva Neto, in Direitos

    Fundamentais e o Contrato de trabalho, 1 ed., So Paulo: LTr, 2005, p. 21, ensina que a dignidade da

    pessoa humana o fim supremo de todo o direito; logo, expande seus efeitos nos mais distintos

    domnios normativos para fundamentar toda e qualquer interpretao. o fundamento maior do Estado

    brasileiro.

    34

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    impedir o acesso ao trabalho, h de ser analisado tanto sob a tica do trabalhador que

    no deseja ser privado do direito de trabalhar, bem como de terceiros, j que no raro a

    sociedade, difusamente considerada, tambm experimenta os efeitos colaterais das

    paralisaes.

    Quanto ao trabalhador que desejasse laborar, no se pode negar que a

    Constituio, pelo menos a princpio, lhe garante o direito de ir e vir. Mas o assunto

    mais complexo do que parece. Para tanto, basta lembrar, como j visto acima, que no

    so raros os casos em que os vrios direitos fundamentais entram em rota de coliso,

    ocasies em que o dissenso entre eles demanda acomodao pelo princpio da

    proporcionalidade. Parece-me que aqui se tem um caso de tal natureza.

    Ocorre que o direito individual de ir e vir desse trabalhador - conhecido no jargo

    operrio como fura-greve -, no pode se sobrepor ao direito fundamental coletivo de

    paralisao da categoria profissional a que ele pertence.

    Por bvio, absolutamente legtimo que aquele que no deseja a suspenso dos

    trabalhos participe da assemblia40 em que a classe deliberar sobre a paralisao,

    para nela defender o seu ponto de vista, votando, ao final, contra o movimento.

    Nada obstante, uma vez convencionada a interrupo dos servios pelo

    quorum41 previsto no estatuto da entidade sindical, o direito individual do interessado

    em trabalhar dever ceder ao interesse maior da categoria em promover a greve, sendo

    absolutamente legtimo, pois, que os piquetes o impeam - evidentemente sem

    violncia - de sabotar o movimento paredista democraticamente discutido e aprovado.

    40 Diz o artigo 4 da Lei 7.783-89: Caber entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu

    estatuto, a assemblia geral que definir as reivindicaes da categoria e deliberar sobre a paralisao

    coletiva da prestao de servios.41 Estatui o 1 do artigo 4 da Lei 7.783-89: O estatuto da entidade sindical dever prever as

    formalidades de convocao e o quorum para deliberao, tanto da deflagrao quanto da cessao da

    greve.

    35

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    A propsito da perniciosa figura do fura-greve, vale trazer baila, mais uma

    vez, as palavras sempre lcidas do jurista Mrcio Tlio Viana:

    Ao exercer o seu suposto direito, ele [o fura-greve] dificulta ou

    inviabiliza o direito real da maioria. O que faz no apenas trabalhar, mas

    com o perdo do trocadilho infame atrapalhar o movimento. Ele

    realmente fura a greve, como se abrisse um buraco num cano de gua. E o

    seu gesto tambm tem algo de simblico: mostra que a identidade operria

    no coesa, que h resistncias internas.

    Tal como o grevista, o fura-greve fala: pe em cheque (sic) o

    movimento, denuncia a prpria greve. Mas ao resistir resistncia revela

    dupla submisso. Ele luta contra os que lutam por um novo e maior direito;esvazia o sindicato, dificulta a conveno coletiva e fere o ideal de

    pluralismo jurdico e poltico.42 (minha a observao entre colchetes)

    Como se no bastasse tudo o que j foi dito, o fato que o artigo 1.210, 1 do

    Cdigo Civil brasileiro garante ao possuidor turbado ou esbulhado o direito de manter-

    se ou restituir-se pela prpria fora, contanto que o faa logo e desde que os atos de

    defesa ou desforo no superem o indispensvel manuteno ou restituio da

    posse.

    Ora, se mesmo com o ncleo capital da Constituio brasileira residindo na

    promoo da dignidade da pessoa humana - e no na defesa cega da propriedade - o

    regramento infraconstitucional permite ao possuidor turbado ou esbulhado defender seu

    patrimnio por intermdio da autotutela, no se mostra razovel que impea a classe

    trabalhadora de promover, por via de piquetes, a legtima defesa do seu direito

    fundamental de greve.

    Diante de todas essas ponderaes, no posso concluir de outro modo, a no

    ser para entender que h flagrante inconstitucionalidade, por ponderao inadequada

    42Op. cit., p. 100.

    36

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    dos interesses conflitantes, na parte do artigo 6o, 3 da lei 7.783-89 em que se probe

    as manifestaes e atos de persuaso utilizados pelos grevistas de impedirem o acesso

    ao trabalho.

    Alis, como adverte a constitucionalista Ktia Magalhes Arruda a histria do

    direito do trabalho est intimamente vinculada com o associacionismo. A concretizao

    da chamada conscincia de classe pelas exploradas massas de trabalhadores

    europeus, no sculo XIX, foi responsvel pela grande maioria dos direitos que vieram a

    ser garantidos em leis isoladas e posteriormente considerados como direitos

    fundamentais43.

    Partindo dessa constatao histrica, correto afirmar que as compreensesindividualistas de mundo sempre devero ser veementemente rechaadas pelos

    juslaboralistas, pois que estribadas em uma concepo filosfica liberal ultrapassada,

    invariavelmente conspiram contra a lgica de construo coletiva dos direitos

    trabalhistas.

    Mas a discusso no termina por a, devendo ser enfrentada, ainda, pela tica

    dos terceiros. Aqui o debate se mostra muito mais duro, vez que no caso defrontam-se

    dois interesses coletivos fundamentais, um dos trabalhadores e outro da sociedade.

    Creio, todavia, que tambm estes (os terceiros) devero sofrer algum desgaste para

    que o movimento paredista logre xito.

    Tome-se o exemplo dos correntistas de agncias bancrias que desejem realizar

    operaes em caixas eletrnicos. Na hiptese, o irrestrito acesso deles ao interior das

    agncias paralisadas, viria a ferir de morte a lgica da greve.

    Como por demais sabido, nos ltimos anos os bancos promoveram no mundo,

    balizados pelo intento de maximizao dos seus lucros, uma avassaladora onda de

    43 Direito Constitucional do Trabalho: Sua Eficcia e o Impacto do Modelo Neoliberal, 1 ed., So Paulo:

    LTr, 1998, p. 102.

    37

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    automatizao das suas agncias. Tal movimento traz consigo um componente

    altamente perverso e ainda pouco estudado.

    Ocorre que na medida em que a automao avana, os correntistas, sem

    perceberem, passam a praticar atos que, tempos atrs, eram de responsabilidade dos

    bancrios. Verdadeiro trusmo que esse arranjo altamente conveniente para os

    banqueiros, j que, de uma nica tacada, demitem a grande maioria de seus

    empregados, enxugam a sua folha de salrios e tributos, e passam a se valer da mo-

    de-obra gratuita dos seus incautos correntistas, que ainda pagam taxas abusivas para

    executarem tais operaes.

    Justamente por isso que as greves cada vez mais importam menos para osbanqueiros, pois ainda que seus trabalhadores cruzem os braos, muito da mquina

    bancria continuar em movimento, tudo isso sem contar as movimentaes passveis

    de serem realizadas pela internet.

    Logo, permitir o acesso incondicional dos terceiros no interior da agncia

    paralisada seria conspirar letalmente contra o direito constitucional fundamental de

    greve. No caso a classe trabalhadora seria duplamente punida. Primeiro porque a

    automao, como j visto, causa desemprego. Segundo porque os trabalhos de

    interesse do banco continuariam a ser feitos, sem que assim a greve atingisse

    plenamente os seus objetivos tticos e estratgicos.

    Alis, de se ressaltar que a prpria Constituio brasileira adota postura tuitiva

    a favor dos trabalhadores nesse campo, j que o seu artigo 7, XXVII, diz, com todas as

    letras, que so direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem a

    melhoria de sua condio social, a proteo em face da automao, na forma da lei.

    E nem se argumente, em sentido contrrio, que os trabalhadores no poderiam

    implementar, na prtica, aquilo que a CRFB somente garante na forma da lei. Quem

    assim o fizesse estaria absolutamente equivocado, pois como j visto alhures, os

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    direitos fundamentais so dotados de eficcia vertical (art. 5, 1, CR), razo pela qual

    so de aplicao imediata.

    A corroborar dita tese, colaciono o esclio do constituinte originrio de 1988,

    deputado Michel Temer, que embora se referindo aos direitos previstos no artigo 5 da

    Carta Magna, elaborou uma lio que se amolda perfeio tambm para os

    interesses veiculados no seu artigo 7:

    importante observar que os direitos e garantias fundamentais

    previstos no artigo 5o tm aplicao imediata, segundo o comando

    expresso no pargrafo 1o do aludido dispositivo.

    Significa, a nosso ver, que os princpios fundamentais ali

    estabelecidos podem ser invocados na sua plenitude, at que sobrevenha

    legislao regulamentadora, quando for o caso de sua utilizao.44

    Como se no bastasse, necessrio se ver que o artigo 7, XI, da Lei Maior,

    garante ainda aos empregados, excepcionalmente, a participao na gesto da

    empresa. Tambm a, portanto, a greve de ocupao estaria constitucionalmente

    respaldada, tratando-se esta de uma conjuntura excepcionalssima que justificaria quea gesto da empresa permanecesse transitoriamente nas mos dos trabalhadores,

    podendo eles, por imperativo lgico, at mesmo limitar, em proporo razovel, o

    acesso de correntistas s agncias bancrias paralisadas.

    Claro que devero os trabalhadores, na administrao provisria do

    empreendimento, cumprir com a obrigao do artigo 11 da Lei 7.783-89, garantindo

    comunidade, seno plenamente, mas em propores aceitveis, a prestao dos

    servios indispensveis ao atendimento das suas necessidades inadiveis, sob pena

    de, em no o fazendo, permitir que o Poder Judicirio venha a declarar o carter

    abusivo da paralisao, e nesse caso deferir a liminar de reintegrao de posse ao

    proprietrio.

    44 Elementos de Direito Constitucional, 16a ed., So Paulo: Malheiros, 2000, p. 25.

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    Por fim, algumas palavras devem ser ainda proferidas em relao parte do 3o,

    do artigo 6, da Lei 7.783-89, na qual dito que a greve no poder causar ameaa ou

    dano propriedade.

    Inicialmente de se sublinhar que a ocupao operada nos contextos em que o

    empresrio esmaece a funo social do seu empreendimento, no se dispondo a

    respeitar o direito fundamental de negociao coletiva da classe trabalhadora, no h

    de ser considerada como ameaadora da propriedade, pois que na greve no existir o

    intento dos trabalhadores em usucapi-la.

    Demais disso, eventual dano causado propriedade ser remediado pelaveiculao de pedido de condenao em perdas e danos, formulado no bojo da prpria

    ao possessria, j que como visto, o artigo 921 do Cdigo de Processo Civil brasileiro

    permite a cumulao dos interditos mandamentais com pleitos de outra natureza

    cognitiva.

    De todo o argumentado at aqui, resta tangvel que o requisito fundamental para

    que a posse seja restituda ao empresrio ser a comprovao da boa vontade da

    empresa em abrir ou retomar a negociao coletiva, pois somente assim convencer o

    magistrado que respeita os direitos fundamentais dos trabalhadores e cumpre

    plenamente com a sua funo social.

    Da a importncia de no se conceder a liminar possessria irrefletidamente. O

    mais adequado nesses casos ser que o juiz se apegue s melhores tradies da

    Justia do Trabalho, para, na perspectiva de intermediao do conflito e aproximao

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    dos litigantes, inserir o processo em pauta45 e fomentar a negociao coletiva, de tel

    modo abdicando de impor uma deciso autoritria pendncia.

    Corroborando o contedo do pargrafo anterior, reproduzo as palavras de Luiz

    Melbio Uiraaba Machado, digno desembargador do Tribunal de Justia do Rio Grande

    do Sul:

    O juiz no deve, nos litgios possessrios coletivos, conceder ou

    no pedidos liminares: deve negociar, ir at o conflito e no trato

    democrtico buscar a soluo dialogal pendncia. Eis o novo: o Juiz sair

    de seu gabinete, sentir o conflito, nele ingressar e juntamente com os

    litigantes buscar soluo lide.46

    Alis, haver determinadas conjunturas em que a situao convergir para a

    manuteno definitiva da posse nas mos dos trabalhadores. Quanto ao afirmado

    existem no pas pelo menos trs relatos, embora extrajudiciais, em que os

    trabalhadores assumiram a administrao da fbrica, j que os proprietrios se viram

    sem condies de continuar a explorao econmica e garantir os empregos.

    So os casos das empresas Cipla e Interfibra47, ocorridos em Joinville - SC, em

    outubro de 2002, quando os mil trabalhadores das mencionadas fbricas de material

    plstico entraram em greve por tempo indeterminado, em virtude dos seus salrios e

    demais direitos, como frias, dcimo terceiro salrio e FGTS no estarem sendo

    respeitados.

    45 A insero do feito em pauta poder ser realizada com substrato no artigo 765 da Consolidao das

    Leis do Trabalho, que confere ao Juiz do Trabalho ampla liberdade na direo do processo. Demais

    disso, o fato que a inteligncia dos artigos 928 e 929 do Cdigo de Processo Civil permite, naqueles

    casos em que a liminar no deva ser concedida inaudita altera pars, que o processo seja inserido em

    pauta, para realizao de audincia de justificao, ocasio em que o magistrado evidentemente poder

    buscar a abertura ou retomada da negociao coletiva.46 Luiz Melbio Uiraaba Machado apudAmilton Bueno de Carvalho, in Magistratura e Direito Alternativo,

    5 ed., Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 104.47 Os casos a seguir so narrados a partir de uma adaptao livre de texto obtido, na data de 07.11.2007,no stiohttp://www.fabricasocupadas.org.br.

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    http://www.fabricasocupadas.org.br/http://www.fabricasocupadas.org.br/http://www.fabricasocupadas.org.br/
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    No episdio os relatos do conta que com muita disposio os operrios se

    organizaram para defender mil postos de trabalho, tendo suportado, durante oito dias,

    todo o tipo de presso e violncia policial, como gases e cassetetes, o que s fez

    aumentar a solidariedade popular e a organizao dos piquetes.

    Ao final do conflito, todavia, os patres reconheceram que no poderiam mais

    pagar os salrios e os dbitos trabalhistas, fiscais e previdencirios, razo pela qual

    entregaram as aes aos trabalhadores, que passaram a administrar a empresa e

    retomaram a produo. Os proprietrios foram afastados da direo administrativa e a

    empresa e os trabalhadores elegeram uma comisso, que partir de ento passou a

    gerir a fbrica.

    Em circunstncias muito similares, existe ainda o caso da empresa Flask, que

    foi ocupada por 70 trabalhadores em junho de 2003, na cidade de Sumar SP, bem

    como o da empresa Flakepet, localizada em Itapevi SP, que foi ocupada em

    dezembro de 2003.

    7 CONCLUSO

    J ao trmino da minha tarefa, cumpre-me esboar uma sntese conclusiva,

    capaz de resumir tudo aquilo que de essencial foi dito at aqui. Assim que merecem

    destaque os seguintes pontos:

    - A greve um direito constitucional fundamental da classe trabalhadora,

    reconhecido tanto no plano internacional quanto no interno. Sua compleio ampla e

    dialtica, pois ao mesmo tempo em que norma, consegue ser ainda sano e

    garantia.

    - A funo primordial da greve a viabilizao de outro interesse no menos

    fundamental da classe trabalhadora, tambm externa e internamente consagrado, que

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    a garantia de negociao coletiva dos seus direitos laborais. Pode-se dizer, pois, que

    o paredismo possui funo instrumental.

    - Por ocasio do advento da E.C. 45 o poder normativo da Justia do Trabalho foi

    amainado, fato que merece ser comemorado, j que o dissdio coletivo no passa de

    uma herana autoritria, sem paradigmas no mundo democrtico. Com efeito, correto

    afirmar que, em tal contexto, o direito de greve foi ainda mais prestigiado pelo

    constituinte derivado.

    - Para merecer a tutela jurisdicional possessria, a posse dever cumprir

    concretamente com a sua funo social, a qual somente ser alcanada, no plano

    empresarial, quando o empreendimento se comprometer com um padro exploratrioque favorea o bem-estar dos trabalhadores, bem como com o respeito dos direitos

    laborais bsicos, dentre eles o de negociao coletiva.

    - So trs as demandas tipicamente possessrias, quais sejam, o interdito

    proibitrio, a ao de manuteno de posse e a ao de reintegrao de posse, sendo

    da Justia do Trabalho a competncia para delas conhecer, quando manejadas em face

    do exerccio do direito de greve.

    - No interdito proibitrio, a simples notcia do intento dos trabalhadores de

    promoverem a paralisao dos servios no ser motivo para que o Juiz do Trabalho

    defira a liminar perseguida pelo empresrio, vez que sempre militar presuno de que

    os obreiros no exercitaro o direito de greve abusivamente. Cabe ressaltar, entretanto,

    que a concesso da tutela satisfativa ser plausvel na hiptese do interessado

    demonstrar que o movimento paredista foi engendrado muito tempo antes da data-

    base, com o objetivo gratuito de esgarar as relaes empregatcias.

    - No caso dos interditos de manuteno e reintegrao, a liminar no dever ser

    concedida sem que o empregador demonstre a sua disposio real e sria de participar

    do processo de negociao coletiva, pois somente assim convencer o Juiz do

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    Trabalho de que a sua posse se presta concretizao da funo social a que est

    constitucionalmente adstrita.

    - O mais adequado, sempre, ser que o magistrado se apegue s melhores

    tradies da Justia do Trabalho, para, na perspectiva de intermediao do conflito e

    aproximao dos litigantes, inserir o processo em pauta e fomentar a negociao

    coletiva, de tal modo abdicando de impor uma deciso autoritria pendncia.

    BIBLIOGRAFIA

    ARRUDA, Ktia Magalhes. Direito Constitucional do Trabalho: Sua Eficcia e o

    Impacto do Modelo Neol