o direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias_ disputas de...

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 ODIREITO À VIDA NO CONTEXTO DO ABORTO  E DA PESQUISA COM CÉLULAS-TRONCO  EMBRIONÁRIAS: DISPUTAS DE AGENTES  E VALORES RELIGIOSOS  EM UM  ESTADO LAICO  Naara Luna  Nós estamos à cata, em busca de um conceito jurídico,  mais especificamente um conceito jurisdicional, para o vocábulo “vida”, para o pleno significado da expressão “dignidade da pessoa humana”. Ministro Carlos Ayres Britto 1  O que importa na discussão da liberação do aborto em  gestação de anencéfalos? Quem está importando: o feto ou a mulher? O feto – disso nós já temos certeza. Elizabeth Kipman Cerqueira 2  Este artigo 3  aborda o debate público sobre o direito à vida em dois contextos distintos: a autorização da pesquisa com células-tronco embrionárias e o debate sobre o aborto, salientando a participação de atores oriundos do campo da religião e da explicitação de valores religiosos em ambos. Esses problemas de pesquisa têm sido abordados por mim em minha investigação de mestrado e de doutorado sobre novas tecnologias reprodutivas e, em estudos pós-doutorais, no mapeamento do campo e

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Direito a vida e aborto no Brasil

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  • OdireitO vida nO cOntextO dO abOrtO e da pesquisa cOm clulas-trOncO embriOnrias: disputas de agentes e valOres religiOsOs em um estadO laicO

    Naara Luna

    Ns estamos cata, em busca de um conceito jurdico, mais especificamente um conceito jurisdicional, para o vocbulo vida, para o pleno significado da expresso

    dignidade da pessoa humana.

    Ministro Carlos Ayres Britto1

    O que importa na discusso da liberao do aborto em gestao de anencfalos? Quem est importando: o feto

    ou a mulher? O feto disso ns j temos certeza.

    Elizabeth Kipman Cerqueira2

    Este artigo3 aborda o debate pblico sobre o direito vida em dois contextos distintos: a autorizao da pesquisa com clulas-tronco embrionrias e o debate sobre o aborto, salientando a participao de atores oriundos do campo da religio e da explicitao de valores religiosos em ambos. Esses problemas de pesquisa tm sido abordados por mim em minha investigao de mestrado e de doutorado sobre novas tecnologias reprodutivas e, em estudos ps-doutorais, no mapeamento do campo e

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    do contexto das pesquisas com clulas-tronco. Dois eventos estaro sob exame: 1) o processo legislativo de aprovao da Lei de Biossegurana no Congresso Nacional, com foco no debate sobre o artigo 5, que autoriza a extrao de clulas-tronco embrio-nrias humanas de embries restantes de reproduo assistida, e sua contestao no Supremo Tribunal Federal na Ao Direta de Inconstitucionalidade 3510 (ADI 3510); e 2) a audincia pblica da Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) do STF, referente autorizao da antecipao de parto de anencfa-lo. As fontes analisadas so registros do Congresso Nacional sobre a votao da Lei de Biossegurana e discursos proferidos nesse contexto contendo as palavras-chave embrio e aborto, os documentos referentes ADI 3510 no STF (a petio inicial, a transcrio da audincia pblica de instruo e os votos dos ministros) e a transcrio da audincia pblica da ADPF 54. Outras fontes so a cobertura da grande imprensa sobre a autorizao das pesquisas com clulas-tronco embrionrias e sobre o debate do aborto em geral.

    Este texto articula a anlise de diversos objetos (Luna 2009; 2010a; 2010b; Cesarino e Luna 2011), e examina os documentos, de modo a elaborar um enfoque especfico quanto ao problema da religio na esfera pblica, com respeito aos agentes e valores envolvidos. Para tal anlise, adota-se o conceito de esfera pblica conforme definido por Montero (2012:177) como um espao que se constitui discursivamente em contraposio com outras esferas.

    A pesquisa com clulas-tronco e o debate sobre a legalizao do aborto so processos independentes liderados por atores sociais distintos (no primeiro caso, a comunidade cientfica, no segundo, o movimento de mulheres) que foram conjugados no debate pblico por incidirem na interveno sobre embries e fetos humanos. A Igreja Catlica tem sido um ator fundamental em ambas as controvrsias e as agluti-nou no tema da Campanha da Fraternidade de 2008, Fraternidade e defesa da vida, impondo a fora de um discurso religioso at ento hegemnico (Luna 2010a).

    Tal influncia da Igreja Catlica perceptvel no mbito legislativo com a presena de pessoas ligadas sua orientao nos parlamentos federais e estaduais, onde tramitam os projetos de lei, e nas audincias pblicas (Cesarino 2006; Gomes 2009a; Cunha 2007; Kalsing 2002). Ocorre tambm nos processos do judicirio, em altas instncias do STF, como na ADPF 54, na ADI 3.510, e em outros processos de instncias mais baixas (quando se entra com aes para barrar autorizaes judiciais individuais de antecipao de parto de anencfalo cf. Luna 2009). O contexto que situou a Campanha da Fraternidade de 2008 representa um quadro formado com o incio dos eventos que sero aqui analisados: o desencadeamento do processo legis-lativo da Lei de Biossegurana em dezembro de 2003 e a entrada no STF da ADPF 54 em junho de 2004.

    A Igreja Catlica ator central nas disputas sobre questes reprodutivas no Brasil. Contudo a presente investigao no contexto desses dois eventos revela outros atores religiosos que tm se pronunciado no espao pblico.

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    Clulas-tronco embrionrias em questo: a nova Lei de Biossegurana e o debate no legislativo

    O debate sobre a pesquisa com clulas-tronco embrionrias humanas (CTEH) d ensejo para se verificar a centralidade do conceito de vida na enunciao de determinados valores religiosos, e identificar uma diversidade de agentes religiosos que se manifestou nesse campo de disputas referentes definio dos limites da vida a proteger, o que abrange alm da pesquisa com embries, questes como o aborto e a eutansia (cf. Gomes e Menezes 2008). No presente artigo, o enfoque se limita s clulas-tronco embrionrias, extradas de embries gerados em laboratrio, o que implica a destruio desses entes. As clulas-tronco adultas, presentes em diversos tecidos do corpo, so apresentadas como alternativa pelos contrrios ao uso de em-bries humanos, mas teriam menos plasticidade que as clulas-tronco embrionrias, e seu emprego ofereceria menos riscos e menos possibilidades (Rehen e Paulsen 2007).

    O Poder Executivo, no primeiro mandato do presidente Lula, enviou ao Con-gresso Nacional em outubro de 2003 o projeto original da nova Lei de Biossegurana. A proposta legislava sobre o uso de organismos geneticamente modificados e mantinha o texto da Lei de Biossegurana de 1995 que proibia o uso de embries humanos como material biolgico disponvel (Cesarino 2006)4. O primeiro substitutivo elaborado pouco depois pelo relator do projeto, Aldo Rebelo, retirava da lei o artigo que proibia a manipulao de embries humanos, o que abriria espao para a pesquisa com clulas-tronco embrionrias. Essa reformulao foi uma resposta a presses de segmentos da comunidade cientfica e de associaes de pacientes portadores de doenas para as quais os experimentos com clulas-tronco embrionrias representavam expectativa de cura. Como no especificava o que seria permitido, o projeto daria margem inclusive produo de embries humanos para pesquisa ou seu uso para clonagem. Em reao, houve a mobilizao imediata da Frente Parlamentar Evanglica que, com o referendo da CNBB, entregou ao presidente da Cmara Joo Paulo Cunha e ao novo relator, Renildo Calheiros, um manifesto contrrio a qualquer tipo de pesquisa com embries humanos (Cesarino 2006:123ss). O parecer do novo relator voltou a vedar o uso de embries humanos para pesquisa e passou a criminalizar a atividade, modificao feita aps acordo com parlamentares cristos, uma aliana de catlicos e evanglicos. Resumo aqui o processo de alterao no Senado5, j retratado detalhadamente por Cesarino, e no final da seo ser retomada a descrio e anlise das votaes nas duas casas legislativas.

    No Senado, houve negociaes que redundaram na formulao do artigo 5, que veio a ser aprovado. O artigo 5 da Lei de Biossegurana de 2005 autorizava a extra-o de clulas-tronco embrionrias com os fins de pesquisa e de terapia de embries restantes de reproduo assistida que fossem inviveis ou estivessem congelados por pelo menos trs anos no momento de aprovao da lei, condicionado ao consentimento dos genitores (sic), sendo o processo de pesquisa fiscalizado por comits de tica6.

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    Desde o debate no Congresso Nacional para a aprovao da Lei de Biossegurana, foi destacado o papel de parlamentares com orientao religiosa (cf. Cesarino 2006). A rejeio inicial ao artigo 5 foi superada quando, em audincia pblica com peritos no Senado (conjunta da Comisso de Educao e Comisso de Assuntos Sociais), os cientistas favorveis pesquisa com clulas-tronco embrionrias conseguiram con-vencer os parlamentares atravs da tese remdio ou lixo referente ao destino dos embries de reproduo assistida7.

    No existe legislao brasileira sobre reproduo assistida. Alm do texto da lei de Biossegurana de 1995, a resoluo 1358/92 do Conselho Federal de Medicina ento vigente dava as principais balizas para o setor8. Tal resoluo autorizava a crio-preservao de pr-embries, proibia seu descarte e exigia que os cnjuges expressassem por escrito sua vontade quanto ao destino dos embries em caso de divrcio, doenas graves, falecimento ou quando desejassem do-los (para a reproduo de outras pes-soas)9. Na audincia, os cientistas informaram que a maioria dos casais no queria ver seus embries sendo gerados em outras famlias e optava por mant-los congelados. O destino de tais embries aps diversos anos de congelamento seria o descarte. Os cientistas argumentaram que seria mais nobre destin-los pesquisa, pois poderiam contribuir futuramente no tratamento de diversas enfermidades, sendo este o ncleo da tese remdio ou lixo. Alm de afirmar que tais embries no constituam formas de vida, inclusive por perda de viabilidade quanto maior o perodo de congelamento, e afastar a discusso do debate sobre o aborto, os peritos contrastavam essa situao com o caso de pacientes vtimas de doenas degenerativas que poderiam ser beneficiados pelas pesquisas com clulas-tronco embrionrias.

    Nesse sentido, outro grupo de presso foi o Movitae, uma associao de porta-dores de doenas genticas que pressionava pela liberao das pesquisas com o argu-mento da existncia de potenciais beneficirios das pesquisas. A presso dos grupos de pacientes e a audincia com peritos, todos favorveis s pesquisas com clulas-tronco embrionrias humanas, exceto pelo professor de biotica, foram essenciais no convenci-mento de grande maioria dos parlamentares no Senado (cf. Cesarino 2006) resultando na nova redao do artigo 5. A mudana de opinio de parlamentares religiosos ser explicitada atravs da descrio da primeira votao na Cmara dos Deputados, em 5 de fevereiro de 2004, e da votao final, aps as modificaes no Senado, na Cmara em 2 de maro de 2005, e por fim do debate no Senado.

    O objetivo deste levantamento e anlise das votaes foi esclarecer a observa-o de Cesarino (2006) sobre a mudana nos votos dos religiosos entre a primeira a e segunda votao da Lei de Biossegurana na Cmara dos Deputados no que se refere pesquisa com embries humanos. Na sesso da Cmara que aprovou o parecer de Renildo Calheiros em fevereiro de 2004, houve antes a votao de uma emenda de Roberto Freire, do PPS, que permitia a pesquisa com clulas-tronco embrionrias e a clonagem teraputica: a emenda foi rejeitada, com 128 votos sim, contra 279 votos no e 2 abstenes. Examinando os blocos partidrios dos votantes, a orientao

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    do PPS (partido do autor da emenda), do PFL, do PSDB e do PRONA foi pelo sim, sendo esses partidos de oposio ao governo Lula. De modo geral, os deputados se-guiram a respectiva orientao partidria. Para se elucidar a influncia dos religiosos nessa votao, buscou-se verificar os parlamentares engajados no debate, com exame em separado dos votos dos religiosos. Considerando apenas os religiosos que foram identificados10, 49 evanglicos, 67 catlicos e 1 esprita rejeitaram a emenda, mas ela foi aprovada por 6 evanglicos (2 da IURD, sendo 1 do PFL; 3 luteranos, sendo 1 do PSDB e 1 do PFL; e 1 assembleiano do PFL) e por 28 catlicos (10 do PFL, 8 do PSDB e 2 do PRONA). Ou seja, a votao da emenda mostrou ampla rejeio da pesquisa com clulas-tronco embrionrias no apenas entre identificados religiosos. provvel que nesse momento a orientao partidria explique em parte os votos favorveis desses religiosos, menos do que sua convico pessoal.

    Aps as alteraes no Senado, a perspectiva sobre a pesquisa com CTEH mudou radicalmente na votao final na Cmara, em maro de 2005, conforme demonstra a votao do artigo 5 que a regulamenta. A orientao de todos os partidos, exceto o PRONA, foi votar pelo sim, isto , a favor da utilizao para fins de pesquisa e terapia dos embries produzidos por fertilizao in vitro e no utilizados que fossem inviveis, ou estivessem congelados por trs anos ou mais na data de publicao da lei, sempre com o consentimento dos genitores. Essa votao, mais do que a anterior, mostra a inclinao do parlamentar acerca dessa pesquisa, em particular quando vota no. Houve 366 votos sim, 59 votos no e 3 abstenes. Mais da metade dos votos dos evanglicos migrou para a posio favorvel aos estudos com clulas-tronco embrionrias humanas: 30 votaram a favor e 24 contra. Entre os catlicos localizados, 27 permaneceram contrrios aos experimentos com embries humanos, 80 foram fa-vorveis e 1 se absteve, portanto, houve migrao dos votos tambm entre catlicos para a posio favorvel pesquisa com CTEH, enquanto o nico voto identificado esprita virou favorvel. Vale destacar que algumas igrejas mantiveram unanimemen-te ou quase a rejeio, caso dos deputados pertencentes Assembleia de Deus (15 contrrios e 3 favorveis) e dos da Igreja do Evangelho Quadrangular (todos os 3 contrrios), enquanto todos os 18 deputados pertencentes Igreja Universal do Rei-no de Deus viraram para a posio favorvel na votao final11. As denominaes do protestantismo histrico tm presena muito reduzida, sendo o maior contingente de batistas: na primeira votao 9 batistas rejeitaram e 1 votou pela obstruo, enquanto na final, 2 se mantiveram contrrios e 5 tornaram-se favorveis.

    No tocante aos discursos favorveis proferidos na Cmara sobre o tema, um total de 38 parlamentares discursou favorvel experimentao com CTEH: 6 deputados identificados catlicos e 7 evanglicos manifestaram-se em defesa da autorizao da pesquisa com clulas-tronco embrionrias humanas. Esses 13 discursos representaram pouco mais de um tero dos deputados que fizeram pronunciamentos pr-CTEH, en-quanto o restante das falas favorveis (soma de 25) provinha de deputados sem religio ou dos quais no se detectou a religio. Foi possvel identificar o pertencimento religioso

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    de todos os 26 deputados que discursaram rejeitando o uso de embries humanos em pesquisa: o nmero de evanglicos que discursou superou o nmero de catlicos (16 evanglicos e 10 catlicos). Isso mostra que o posicionamento dos religiosos no foi monoltico, com diversos parlamentares aprovando a pesquisa com clulas-tronco em-brionrias, por um lado. Por outro lado, revela que a motivao religiosa permaneceu fundamental para a rejeio na Cmara dos Deputados (ponto tambm ocorrido no Senado nas posturas de Flvio Arns e Helosa Helena), na defesa do direito vida.

    No tocante aos discursos e o processo de votao no Senado, ali foi central a audincia conjunta da Comisso de Educao e da Comisso de Assuntos Sociais no dia 2 de junho de 2004. Apenas dois senadores discursaram antes dessa data (Romero Juc PMDB-RR em abril, e Mozarildo Cavalcanti PPS-RR, em maio), ambos favorveis pesquisa com clulas-tronco embrionrias. Isso mostra a fora do argumento remdio ou lixo, usado pelos cientistas nessa audincia para afetar a posio dos senadores. Na ocasio da audincia conjunta de 2 de junho de 2004, dos 12 senadores que se pronunciaram, apenas 1 era contrrio (Arns: catlico). Os demais 11 se manifesta-ram favoravelmente a essas pesquisas, sendo que 7 se declararam catlicos quando expuseram sua opinio, e mais 1 senador (Tio Viana) declarou ter formao crist clara e convicta (ele catlico). Considero a seguir os discursos feitos no plenrio do Senado no ano de 2004, sem incluir a audincia pblica: 2 senadores se opuseram em discursos Flvio Arns (PT-PR), que questionou eticamente essas pesquisas por tratar o embrio humano como objeto e alertou para os riscos das terapias, e Helosa Helena (PSOL-AL), que props que o tema das clulas-tronco embrionrias fosse includo no debate de outra lei referente reproduo assistida. Ambos pertencem Igreja Catlica. Por outro lado, ainda em 2004, 9 senadores discursaram favoravelmente s pesquisas com clulas-tronco embrionrias humanas, dos quais 2 eram catlicos. Em 2005, dos 9 senadores que discursaram sobre clulas-tronco embrionrias humanas, apenas 1 (Arns) declarou-se contra essas pesquisas, enquanto dos demais 8 favorveis, 3 eram catlicos.

    Tanto na Cmara como no Senado, encontrou-se variao das posies dos catlicos: alguns, seguindo a orientao da Igreja, so contrrios s pesquisas com CTEH, enquanto outros so favorveis. Ambos os exemplos opem religio em termos de pertencimento e de adeso (cf. Duarte et al, 2006). Embora vrios reivindiquem o pertencimento institucional Igreja Catlica, o grau de adeso doutrina oficial da Igreja bastante variado. Na votao do substitutivo no Senado que permitiu a pesquisa com clulas-tronco embrionrias, 53 disseram sim, 2 disseram no e hou-ve 3 abstenes. Os 2 que recusaram o projeto foram Flvio Arns e Helosa Helena, ambos catlicos engajados, e dos 3 que se abstiveram, 1 catlico (Marco Maciel). 2 senadores evanglicos votaram sim12 bem como 10 identificados catlicos. A vota-o amplamente favorvel aos experimentos com CTEH mostra adeso e o poder de convencimento da tese dos cientistas (remdio ou lixo). Considerando o resultado das votaes na Cmara e no Senado, constata-se a inexistncia de unanimidade no dito

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    voto religioso, mas, pelo contrrio, percebe-se certo grau de diversidade de perspec-tivas. Os que discursaram contra as CTEH na Cmara eram todos religiosos, embora vrios religiosos tenham se manifestado a favor. Na votao no Senado, ambos os que rejeitaram a pesquisa com CTEH eram pessoas de forte engajamento religioso. Isso sugere que a formao religiosa pode solidificar posies, mas isso ocorre em funo do grau de adeso do sujeito ao contedo doutrinrio. Por outro lado, diversos usaram a justificativa religiosa para defender suas prprias convices e rejeitar as diretrizes de sua instituio.

    A ao de inconstitucionalidade: ADI 351013

    A Lei de Biossegurana foi aprovada pelo Congresso Nacional em maro de 2005 e sancionada pelo presidente da Repblica em outubro do mesmo ano. Em maio de 2005, o ento procurador geral da Repblica, Cludio Fonteles, entrou com uma ao de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, alegando que o artigo 5 da Lei de Biossegurana feriria a garantia constitucional do direito vida e faria ruir o princpio da dignidade humana, fundamento do estado democrtico de direito. A cobertura da imprensa imediatamente chamou o procurador de catlico. Ele respon-deu que sua argumentao foi estritamente tcnica14. A petio inicial do processo solicitava uma audincia pblica com especialistas e sugeria uma lista a convocar. Na petio, argumentava-se que a vida humana embrionria seria atingida com seu emprego para extrao de clulas-tronco. Entre os argumentos para fundamentar essa condio humana inicial estava a existncia de identidade gentica nica a partir da fecundao, o que conferiria ao embrio capacidade de desenvolvimento autnomo. A me representada como tero e meio de desenvolvimento (Luna 2010b).

    A ADI 3510 proporcionou a primeira audincia pblica de instruo na hist-ria do STF no dia 20 de abril de 2007. Compareceram 22 especialistas sendo metade contrria constitucionalidade da lei (rejeio do uso de embries em pesquisa) e metade favorvel (aprovao da pesquisa com CTEH). Os primeiros se designavam defensores da vida. O relator, ministro Carlos Ayres Britto, disse estar em busca de um conceito jurdico, mais especificamente um conceito jurisdicional, para o vocbulo vida, para o pleno significado da expresso dignidade da pessoa humana (Brasil 2007:2). O prprio relator comentou que a CNBB participou da indicao de nomes de especialistas para a audincia.

    Quanto aos especialistas convocados, exceto por uma antroploga com ps-doutorado em biotica, todos eram ligados s cincias biolgicas ou medicina. Os defensores da vida tinham dois argumentos bsicos: mostrar que o embrio constitua uma vida humana desde o momento da fertilizao e garantir que a pesquisa com clulas embrionrias era dispensvel dado o grande avano dos tratamentos com clulas-tronco adultas, o que no implicava ferir vida nem riscos (desenvolvimento de tumores e cncer devido dificuldade de controlar a pluripotencialidade da clula

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    embrionria). A necessidade de defender o uso de embries em pesquisa conduziu o outro bloco de cientistas para uma postura relativista apresentando os seguintes ar-gumentos: havia vrias concepes de vida em religies e culturas distintas; possvel identificar outros marcos biolgicos para o incio da vida que no a fecundao; ou afirmar a definio da vida como processo contnuo (espermatozoide e vulo seriam vida tambm). O destino mais nobre para os embries, a queda da viabilidade destes, a prioridade aos enfermos possveis beneficirios e o risco de atraso cientfico do pas tambm foram argumentos invocados.

    Analiso a autoapresentao dos especialistas no incio de sua exposio. Os 11 depoentes do bloco favorvel ao uso de embries em pesquisa declararam sua formao acadmica, insero em instituies cientficas e experincia de pesquisa. No bloco defensor da ao, 1 deles definiu-se apenas como professor de medicina, enquanto 2 outros no mencionaram formao e insero profissional. Na tentativa de mapear os peritos, verifiquei o currculo do sistema Lattes de todos os convocados15. No bloco favorvel pesquisa com clulas-tronco embrionrias, os intimados tinham envol-vimento na rea de pesquisa com clulas-tronco16, exceto pela antroploga. Todos tinham doutorado, eram professores ativos ou aposentados de universidades pblicas, membros de associaes de pesquisa cientfica, e publicaram quantidade aprecivel de artigos cientficos (6 especialistas recebiam bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq)17. O primeiro bloco tem representantes de destaque na comunidade cientfica, com grande produtividade. So cientistas com bastante crdito (cf. Latour e Woolgar 1997), alguns deles dominantes no campo cientfico (Bourdieu 1983). Esse grupo dominante defende os valores constitucionais da liberdade de pesquisa cientfica e do afastamento de cincia e religio no Estado laico.

    No grupo defensor da ADI, 1 expositor, professor emrito da UFF, no tinha currculo Lattes. Outra expositora, declarada mdica ginecologista-obstetra, especia-lista em logoterapia e professora de biotica, tinha apenas o cadastro na plataforma Lattes, sem currculo. Dos 9 restantes, 7 eram doutores e 2 tinham mestrado. Dos 9 cientistas com currculo Lattes, 4 tinham envolvimento em pesquisa com clulas-tronco. Nenhum tinha bolsa de produtividade em pesquisa. Em termos da produtividade e publicaes em peridicos cientficos, o resultado era desigual18. Em 4 currculos Lattes, havia meno a atividades ligadas Igreja Catlica; 1 dos especialistas era membro da Pontifcia Academia Pro Vita do Vaticano, e participou de eventos liga-dos Igreja Catlica ou s pastorais e tinha trs artigos em peridicos de divulgao catlicos, sendo tambm assessor de biotica da CNBB. Outra especialista orientou como cientista a abertura da ADI 3510, a pedido do procurador Cludio Fonteles ela tinha carta da CNBB de reconhecimento pelos servios prestados em defesa da vida humana, ganhou o prmio da CNBB no tema Biologia Molecular, e publicou artigo em peridico catlico de divulgao. Outra cientista publicou cinco artigos em revistas catlicas; o quarto participara de dois eventos para mdicos catlicos. O professor emrito da UFF desprovido de currculo Lattes foi palestrante no seminrio Vida: o

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    primeiro direito da cidadania promovido pela Pastoral Universitria da CNBB19. Dos convocados, 5 eram autores do livro de mesmo ttulo que o seminrio, usado para fundamentar os argumentos da petio inicial da ADI 351020. Uma cientista tornou-se, em 2008, presidente do movimento Brasil sem Aborto. Essa sequncia soma 8 cientistas engajados com instituies catlicas ou movimentos relacionados. Desses cientistas, 7 foram sugeridos na petio inicial para participar da audincia pblica. Quanto produo cientfica, esse grupo mais heterogneo que o anterior. Checou-se no currculo dos cientistas favorveis ao uso de embries em pesquisa vnculos com entidades e publicaes religiosas. Apenas a antroploga participara de evento do grupo Catlicas pelo Direito de Decidir.

    Constata-se que o grupo favorvel aos estudos com embries tem volume de produo cientfica bem maior do que o grupo questionador da Lei de Biossegurana, ou seja, a despeito de o nmero igual de convocados sugerir diviso na comunidade cientfica quanto ao tema da pesquisa com embries humanos, o grupo mais desta-cado de cientistas a favor do uso de clulas-tronco embrionrias, enquanto o grupo contrrio pouco representativo dessa comunidade.

    A religio foi pouco mencionada na audincia. O relator falou sobre as rami-ficaes do tema em vrias reas do saber, inclusive pelo prisma da religiosidade. No grupo favorvel ao uso de embries em pesquisa, Mayana Zatz citou os pais evanglicos de duas meninas com atrofia espinhal que defendiam as pesquisas com clulas-tronco embrionrias. Stevens Rehen afirmou que a definio do incio da vida dependia do momento histrico, da formao cultural e da formao religiosa de quem se posicio-nasse. Segundo Dbora Diniz, o questionamento sobre o incio da vida tinha cunho metafsico e religioso, pouco susceptvel de julgamento razovel. No encerramento da audincia, o relator considerou que houve contribuies de ordem religiosa. Alm do relator, apenas expositores do bloco favorvel ao uso de CTEH mencionaram religio.

    O bloco questionador do artigo 5 da Lei de Biossegurana no mencionou religio. Elizabeth Kipman Cerqueira afirmou que o debate no seria teolgico, mas a discusso era de dados da Biologia. Os favorveis ao uso de embries em pesquisa relativizam a religio como um dado cultural ou a consideram um fator que atrapalha o julgamento razovel em um Estado laico. Os expositores alinhados com a posio da CNBB no falaram em Deus nem em religio, a fim de mostrar que seus argumentos eram fundados na Cincia. O carter religioso que permeia as questes do debate reside no conceito de vida, conforme se explicita na afirmativa de Cerqueira sobre o embrio: ele traz uma unidade interior, essa unidade que a vida e que o faz um ser vivo (Brasil 2007:113). Essa unidade interior remete a valores transcendentes e no ao mero processo fsico e biolgico. A FIV e a discusso sobre o uso de embries em pesquisa retomam o debate do aborto entre os grupos pr-vida e os pr-escolha: os grupos pr-vida prosseguem a tradio judaico-crist que reputa a vida como dom de Deus, da a necessidade de defend-la (Franklin 1995). Para esses grupos antiaborto, a vida dom supremo merecedor de respeito, excluindo qualquer possibilidade de

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    escolha. Os grupos pelo direito de decidir, dentro do marco liberal, afirmam que sua prpria perspectiva permitiria a existncia de vrias posies em relao ao aborto, inclusive sua recusa (Boltanski 2004). A tentativa de esboar um estatuto legal a partir da atribuio de dignidade ao embrio fora do corpo levanta a questo das fronteiras da humanidade.

    O julgamento da ADI 3510

    O julgamento da ao de inconstitucionalidade contra o artigo 5 da Lei de Biossegurana ocorreu em trs sesses. A primeira, em maro de 2008, foi interrompida quando o ministro Carlos Menezes Direito pediu vistas do processo. O julgamento foi retomado e concludo em duas sesses, nos dias 28 e 29 de maio de 2008. A imprensa chamou-o de juiz catlico21 e comentou sobre sua ligao com associaes de juristas catlicos22. Com respeito atuao de magistrados, reconhece-se, no a interferncia direta da instituio, mas a tenso entre o catolicismo como formador de valores e o vnculo dessas associaes e indivduos Igreja Catlica. Embora o resultado do julga-mento tenha sido de 6 votos favorveis constitucionalidade da lei e 5 considerando a lei parcialmente inconstitucional (2 pediam rgos de regulamentao), apenas 3 juzes acataram a tese da ao de violao da garantia do direito vida e do atentado contra o princpio da dignidade humana: Carlos Menezes Direito, Ricardo Lewando-wski e Eros Grau. Eles s admitiram a obteno de clulas-tronco embrionrias por meio da tcnica de bipsia, quando se extrai apenas uma clula do embrio de trs dias sem destru-lo e depois se cultiva essa clula at a formao das linhagens. Houve 4 juzes que negaram a relevncia de discutir a tese sobre o incio da vida (Ellen Gracie, Carmem Lcia Rocha, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes) como marcos para definir a proteo pessoa humana. Outros 4 juzes discutiram o incio da vida rejeitando a tese que a fertilizao seria o momento inaugural da vida humana e da condio de pessoa: o relator Carlos Ayres Britto, os ministros Marco Aurlio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso.

    Valores religiosos subjazem ao contexto do julgamento. Com respeito oposio entre a perspectiva da f e a concepo jurdica, e contra a polarizao entre ideologi-zao da cincia e obscurantismo, Menezes Direito afirmou ser a pluralidade a marca de sociedades livres. Reconhecendo a existncia de valores religiosos, vrios insistiram no carter cientfico de sua argumentao acerca da conceituao dos embries e das CTEH, ou enfatizaram a argumentao tcnica jurdica para chegar a seu voto. Apenas Eros Grau admitiu que valores religiosos estavam presentes em sua formao pessoal, mas prometeu resposta tcnica. A ministra Carmem Lcia dirigiu a devoo ao pas: o Brasil minha religio e a Constituio minha Bblia. Essa comparao remete a Durkheim (1989), repetindo a ideia de que valores laicos da nao sucedem os re-ligiosos. Cezar Peluso reconhece que: pretensas concepes cientficas e de posturas racionais se confundem [...] com a adeso apaixonada das crenas religiosas (Brasil

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    2008a:12 4)23. Foi possvel constatar a presena de sentimentos relativos a verdades transcendentes de ambos os lados.

    O sagrado na religio corresponde ao inviolvel no direito disse em seu voto o relator, o ministro Carlos Britto (Brasil 2008a:26). Alm de a vida humana ser invio-lvel, logo, sagrada, houve referncias por 3 ministros (Carlos Britto, Carmem Lcia e Ricardo Lewandowski) declarao da UNESCO sobre o genoma humano, que prope a intangibilidade do patrimnio gentico humano. Noes de vida sagrada no embrio remetem s abordagens de Mauss (2003) e de Durkheim (1989) sobre o poder contido em objetos mgicos. Durkheim (1970) j havia apontado o indivduo como objeto de culto nas sociedades ocidentais modernas, hiptese que reflete a afirmao do indivduo como valor (Dumont 1992). Em seguida, sacraliza-se a natureza biolgica humana, conforme se v nas declaraes do genoma como patrimnio da humanidade e a as leis protetoras do embrio. Um ponto em comum no processo judicirio da ADI 3510 foi a recusa tanto na petio, como na audincia pblica e no julgamento no STF em assumir a prpria posio como de origem religiosa. Isso mostra a prevalncia do dado cientfico como condio para se ganhar o debate pblico em um Estado laico.

    As descries do debate no Legislativo e no Judicirio centram-se na importncia da Igreja Catlica ou de pessoas alinhadas sua orientao. No debate parlamentar, constatou-se a presena de deputados evanglicos. Esses relatos omitem outro grupo que se posicionou publicamente. Os espritas representados pela Associao Mdico-Esprita do Brasil tm posio contrria pesquisa com clulas-tronco embrionrias, conforme a Carta de Princpios do V Congresso Mdico-Esprita, de 28/05/2005, posio pblica assumida pouco depois da aprovao da Lei de Biossegurana pelo Congresso Nacional. Mesmo admitindo o maior potencial das clulas embrionrias, eles argumentam a partir dos riscos, da falta de respeito ao embrio, da ideia que no se pode interromper uma vida (a do embrio) em favor de outra, e apoiam as pesquisas com clulas-tronco adultas24.

    O debate sobre antecipao de parto de anencfalo pode revelar outros aspectos dessa controvrsia sobre o estatuto de embries e fetos.

    Aborto a ADPF 54: antecipao de parto de anencfalo

    A audincia pblica sobre a ao de Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 no Supremo Tribunal Federal outro exemplo de evento relacionado ao debate pblico sobre o direito vida no qual os agentes religiosos tm atuao significativa, embora a hegemonia seja dos atores oriundos do campo cientfico. Sero aqui analisados os argumentos usados na audincia pblica no STF de instruo sobre a ADPF 54 referente antecipao teraputica de parto de anencfalo.

    A anencefalia decorre de uma falha no desenvolvimento do embrio quando no se fecha o tubo neural. O feto que se desenvolver no apresenta os hemisfrios cerebrais e a parte remanescente do encfalo fica exposta, sem a cobertura de ossos

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    ou pele. So conhecidos vulgarmente como bebs sem crebro. Muitas vezes a gesta-o no chega a termo, e quando isso ocorre, o beb na maior parte dos casos nasce morto ou tem sobrevida inferior a 24 horas (Fernandes 2007; Fernndez et al. 2005). O discurso biomdico constri a anencefalia como anomalia incompatvel com a vida, tese questionada pelo movimento antiaborto.

    A Confederao Nacional de Trabalhadores da Sade props a ADPF 54 ao Supremo Tribunal Federal para assegurar s gestantes de feto anenceflico o direito de se submeterem antecipao teraputica de parto, e garantir aos mdicos o direito de realizar esse procedimento, uma vez atestada essa anomalia incompatvel com a vida, sem necessidade de autorizao prvia judicial (Fernandes 2007).

    O relator da ADPF 54, ministro Marco Aurlio Mello, em 2004, deferiu medida liminar reconhecendo o direito da gestante antecipao teraputica de parto de anencfalo em 1 de julho de 2004, medida que foi revogada pelo plenrio do Supremo em 20 de outubro do mesmo ano com sugesto de se convocar uma audincia pblica para esclarecimento. Atribuiu-se a demora do relator para convocar a audincia pblica postura de aguardar a deciso final do STF sobre a ADI 3510 que autorizou o uso de embries excedentes de reproduo assistida para a produo de clulas-tronco, julgamento encerrado em 29 de maio de 200825.

    A audincia pblica da ADPF 5426

    Na audincia pblica da ADPF 54, houve ntida oposio entre expositores de linha pr-escolha, tese defendida pela ADPF 54 com respeito gestao de anenc-falo, e outros pr-vida. Ambos os lados acionaram tpicos oriundos do discurso dos direitos humanos.

    As quatro sesses da audincia foram realizadas nos dias 26 e 28 de agosto, e 4 e 16 de setembro de 2008, quando foram ouvidos 27 expositores, sendo 11 pr-vida e 16 pr-escolha. Cada palestrante teve 15 minutos para falar. Dos 11 expositores pr-vida, 3 compareceram na qualidade de especialistas (2 em ginecologia e obsttrica e 1 em pedia-tria e neurologia peditrica) e os demais representaram 6 entidades e associaes. Duas entidades religiosas se manifestaram do lado pr-vida: pela CNBB, 2 representantes dividiram o tempo (Luiz Antnio Bento, Assessor Nacional da Comisso Episcopal para a Vida e a Famlia da CNBB e Paulo Silveira Martins Leo Jnior tambm presidente da Unio dos Juristas Catlicos da Arquidiocese do Rio de Janeiro), e pela Associao Mdico-Esprita do Brasil, 2 tambm dividiram o tempo (Irvnia Luza de Santis Prada e Marlene Rossi Severino Nobre). Falaram representantes da Associao Pr-Vida e Pr-Famlia (Rodolfo Acatauass Nunes) e da Frente Parlamentar em Defesa da Vida (deputado federal Luiz Bassuma), do Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida Brasil Sem Aborto (Lenise Aparecida Martins Garcia), da Associao para o Desenvolvimento da Famlia (Ieda Therezinha do Nascimento Verreschi). Os espe-cialistas foram: Cnthia Macedo Specian, (especialista em pediatria, com habilitao

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    em neurologia peditrica), Dernival da Silva Brando (especialista em ginecologia e obstetrcia), Elizabeth Kipman Cerqueira (especialista em ginecologia e obstetrcia).

    Entre os 16 que se manifestaram pr-escolha, 2 eram autoridades pblicas: o ministro da sade Jos Gomes Temporo e a ministra da Secretaria Especial de Polticas para as Mulheres e tambm presidente do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), Nilca Freire, e um terceiro compareceu na qualidade de especialista em ginecologia e obstetrcia, mas tambm de autoridade pblica, o deputado federal Jos Aristodemo Pinotti. Houve cinco representantes de ONGs: Anis Instituto de Bio-tica, Direitos Humanos e Gnero (Debora Diniz, antroploga e professora da UnB), Escola de Gente Comunicao em Incluso (Cludia Werneck), Rede Feminista de Sade (Lia Zanotta Machado, antroploga e professora da UnB), CEPIA (Jacqueline Pitanguy, tambm pelo CNDM), e Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos (Eleonora Menicucci de Oliveira, professora de sade coletiva da UNIFESP). Representantes de associaes cientficas e conselhos profissionais se manifestaram pr-escolha: Conselho Federal de Medicina CFM (Roberto Luiz Dvila), Federao Brasileira das Associaes de Ginecologia e Obstetrcia FEBRASGO (Jorge Andalaft Neto), Sociedade Brasileira de Medicina Fetal (Heverton Neves Pettersen), Sociedade Brasileira de Gentica Mdica (Salmo Raskin), Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia: SBPC (Thomaz Rafael Gollop), Associao Brasileira de Psiquiatria (Tal-vane Marins de Moraes). Houve dois representantes de entidade religiosa entre os pr-escolha: pela Igreja Universal do Reino de Deus falou o pastor Carlos Macedo de Oliveira, e a coordenadora Maria Jos Fontelas Rosado Nunes apresentando a ONG Catlicas pelo Direito de Decidir.

    Em termos de categoria profissional, salienta-se a predominncia dos mdicos: eram 16, dentre os 27 expositores. Tal composio contrasta com a ocorrida na audi-ncia pblica da ADI 3510: foram convocados 22 expositores, sendo metade de cada lado. Na audincia da ADI 3510, no compareceram na qualidade de representantes de associaes cientficas ou profissionais, nem como integrantes de ONGs ou movi-mentos sociais, mas como peritos quase todos da rea biomdica com forte presena de especialistas em biotica entre opositores ao uso de embries.

    Alguns especialistas foram expositores em ambas as audincias pblicas de ins-truo da ADI 3510 e da ADPF 54. Do lado favorvel ADPF 54 e pesquisa com embries, compareceu Debora Diniz da ONG Anis Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero e, do lado oposto, Lenise Aparecida Martins Garcia presidente do Movimento Nacional de Cidadania em Defesa da Vida Brasil sem Aborto, Rodolfo Acatauass Nunes presidente da Associao Nacional Pr-Vida e Pr-Famlia, e a mdica Elizabeth Kipman Cerqueira.

    possvel delinear ncleos temticos a partir das diferentes exposies, ncleos em que os argumentos se apresentam vrias vezes de forma simtrica, mas que reve-lam sua origem em uma configurao comum de valores. Os temas listados so: vida; a relao entre vida, anencefalia e morte enceflica; condio humana; dignidade;

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    autonomia/escolha; deficincia fsica, eugenia, graus de anencefalia; descrio tcnica da anencefalia; direito vida; direito da gestante/famlia; outros direitos; o contraste entre aborto e antecipao teraputica de parto; risco materno e sofrimento; laicidade do Estado. De modo geral, os questionamentos giraram em torno do carter de ser humano vivo do feto anenceflico e do mesmo ser ou no dotado de direitos.

    Comento aqui primeiramente as colocaes dos expositores da primeira sesso da audincia pblica de 26/08/2010, dedicada aos representantes das religies, acrescida dos depoimentos de outros expositores dos quais se constatou relao com entidades religiosas como a Igreja Catlica ou a CNBB (no foram identificadas outras) que se apresentaram em sesses distintas. Tambm em outra sesso ocorreu o depoimento do deputado federal Luiz Bassuma, presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida, adepto do espiritismo kardecista.

    Na sesso voltada para os representantes das religies (26/08), Luiz Antnio Bento, Assessor Nacional da Comisso Episcopal para a Vida e a Famlia da CNBB pretendeu falar de uma perspectiva crist. Ele declarou que: A vida de cada indivduo no apenas um bem pessoal inalienvel, mas tambm um bem social. Portanto, um bem social que pertence a todos, e a sociedade tem a obrigao de promover e de defender esses direitos da pessoa humana, do feto que est com uma anomalia (Brasil 26/08/2008b:4)27. O fato de uma deficincia, de uma anomalia, no diminui ou nega a dignidade de uma pessoa (idem). Para ele, o valor intrnseco da vida no poderia ser julgado por sua deficincia. Defende a condio humana do feto anenceflico em virtude da presena do genoma humano e por haver chance de nascimento com vida. O outro representante da CNBB, Paulo Silveira Martins Leo Jnior, presidente da Unio dos Juristas Catlicos da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Ele distinguiu as situaes de anencefalia e de morte enceflica pela variedade de condies da primeira que vai de formas menos graves s mais graves. Esse um dado estabilizado na cincia e no h de ser retrucado (idem:10). Ambos equiparam a anencefalia condio de deficincia fsica e negam a tese da anomalia incompatvel com a vida.

    Rodolfo Acatauass Nunes (representante da Associao Nacional Pr-Vida e Pr-Famlia) mdico. Para ele, a criana com anencefalia que est respirando no est em morte enceflica. Ele defende a tese de um ncleo de conscincia primitivo estar presente em parte mais baixa entre o diencfalo, o mesencfalo e o tronco enceflico, portanto, abaixo do crtex. Por isso no se poderia aquilatar com certeza o grau de relao dessa criana com o mundo exterior.

    Irvnia Luza de Santis Prada (Associao Mdico-Esprita), com base em estu-dos da filogenia, afirma que a conscincia no anencfalo apenas no se expressa pela ausncia de crtex. No se trata de uma conscincia primitiva, mas a conscincia de um ser humano.

    A neurocincia vem demonstrar [...] que o anencfalo tem substrato neural para desempenho de funes vitais e delegao com a conscincia,

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    o que contra-indica o aborto desse feto e a disponibilizao do anencfalo recm-nascido para transplante de rgos (Brasil 26/08/2008b:29).

    Marlene Rossi Severino Nobre, a segunda representante presidente da Asso-ciao Mdico-Esprita Internacional e da Associao Mdico-Esprita do Brasil. Ela descreve a teoria do livro A caixa preta de Darwin [teoria do design inteligente]28. A vida assim, como ns estamos falando, um bem outorgado, um bem indisponvel. E isso no a religio que est dizendo; a cincia (idem:30). Questionada pelo advogado da ao, dr. Lus Roberto Barroso, se concordava com a letalidade de 100% na anencefalia, Marlene Nobre responde: Concordo, sim, mas como coloquei: a vida do anencfalo sobrepe qualquer direito do ser j formado no caso, a me. A vida um bem fundamental. A vida um bem outorgado. a cincia que nos diz (idem:31).

    Nessa sesso com representantes de movimentos religiosos, assumiram posies pr-escolha a ONG Catlicas pelo Direito de Decidir e a Igreja Universal do Reino de Deus. Maria Jos Fontelas Rosado Nunes (Catlicas pelo Direito de Decidir) afirmou a importncia do Estado laico: muitos dos argumentos contrrios liberdade de deciso das mulheres no campo reprodutivo, embora se apresentem como oriundos de um campo laico, cientfico, so, na verdade, a expresso de uma doutrina e de uma moral religiosa especfica (Brasil 26/08/2008b:22). Defendeu o direito de deciso sobre a gravidez como uma questo de dignidade humana e o recurso prpria conscincia como parte da tradio crist.

    O bispo representante da IURD Carlos Macedo de Oliveira defendeu o laicis-mo do Estado e a liberdade de culto (Brasil 26/08/2008b:11). Criticou a sociedade como tradicionalmente machista e afirmou que o aborto de anencfalo diz respeito predominantemente sade e ao direito da mulher.

    Deus d a todo ser humano o livre arbtrio. Defendemos que, nesses casos, deva prevalecer o desejo da mulher que passa ou venha a passar por esse drama. So elas que passam pelo habitual desconforto da gravidez, e, talvez, nenhum de ns consiga dimensionar os agravos de uma gravidez acometida por anencefalia e que, por fora da lei, a mulher estaria ou est penalizada a carregar durante nove meses algum que ela no ter a felicidade de ver crescer e de ter vida extra-uterina (idem:12).

    Ressalta que descriminalizar no tornar obrigatrio, por isso a descrimina-lizao desse tipo de aborto no deveria esbarrar nas radicalizaes conceituais ou religiosas (idem). A atitude de contestao pblica das posies oficiais do magistrio catlico pela IURD j foi identificada h tempos (Machado 2000). Verifica-se uma posio mais aberta quanto a aborto e planejamento familiar por parte do bispo Edir Macedo, seu principal lder (Gomes 2009b).

    O deputado Luiz Bassuma (presidente da Frente Parlamentar em Defesa da

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    Vida Contra o Aborto) falou na sesso de 28/08, composta por especialistas e por representantes da sociedade civil. Citando da Constituio o direito inviolvel vida, ele equipara a condio do anencfalo ao que est definido na conveno dos direitos das pessoas com deficincia. Ele argumenta que esse tipo de aborto eugnico e se-melhante eutansia de idosos. Bassuma autor de projeto que criminaliza o aborto em caso de estupro. Indagado pelo subprocurador-geral da Repblica, dr. Mrio Gisi, se a afirmao que nenhum ente pode deixar de ser respeitado faz referncia aos seres humanos ou a todos seres vivos, Bassuma compara com a proteo ao ovo de tartaruga: destruir um ovo de tartaruga leva priso porque o animal sofre risco de extino. Pede coerncia quanto ao respeito ao direito vida de um ser humano, que [...], muito mais complexo e muito mais importante que uma tartaruga (Brasil 28/08/2008b:30).

    Na mesma sesso, falou Lenise Aparecida Martins Garcia, presidente do Movi-mento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida Brasil Sem Aborto. Ela argumentou a partir da variabilidade da anencefalia. Citou dados estatsticos de sobrevivncia: 1% de 3 meses ou mais. Referindo-se ao caso de Marcela de Jesus reputada como anencfalo que sobreviveu por um ano e oito meses, a expositora argumenta que se o diagnstico de anencefalia de Marcela questionvel, muito mais difcil ser um diagnstico dentro do tero. Considera o anencfalo um deficiente. Informaes distorcidas levariam gestantes a optar pelo aborto. Ela invoca a igualdade perante lei prevista pela Constituio.

    A partir do momento em que comeamos a abrir brechas, a dizer que uma vida, porque fragilizada, no merece ser vivida, no tem o direito de ser vivida, ns entramos em um campo tico, de uma tica de oportunismo, de uma tica utilitarista, em lugar da tica da dignidade humana, a que embasa a nossa Constituio (Brasil 28/08/2008b:50).

    Na sesso de 4/09, falou Ieda Therezinha do Nascimento Verreschi da Asso-ciao para o Desenvolvimento da Famlia, endocrinologista, professora associada da disciplina de endocrinologia da Escola Paulista de Medicina e chefe do laboratrio de esteroides29. Ela considera o anencfalo uma vida humana sob ameaa e remete ao juramento hipocrtico de respeito pela vida humana. Ela chama o processo gestacional de unidade feto-placentria.

    O acolhimento proposto pelo Sistema de Sade tem de ser seguido por uma opo de acolhida, de fato, do nascituro, acolhida, de fato, da me doente, porque a unidade feto-placentria que nica e tem um componente doente tem de ser respeitada, e essa criana, se tiver uma afeco muito permanente, vai morrer no momento do parto (Brasil 4/09/2008b:26). Assinala-se mais uma vez o englobamento da gestante pelo feto, tpico comum

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    nos debates sobre o direito vida. Dernival da Silva Brando (especialista em ginecologia e obstetrcia, presidente

    da comisso de biotica da Academia Fluminense de Medicina)30 criticou o uso do termo antecipao de parto em vez de aborto e afirmou que esse tipo de gestao no causa mais risco que uma gestao gemelar. Ele questiona o aborto teraputico: A cincia tcnica deve se colocar sempre a favor da vida e do bem-estar do ser humano no seu direito inquestionvel de nascer e existir, princpio solenemente consagrado em todos os atos mdicos (Brasil 4/09/2008b:55). Comparou a situao do anencfalo com a de pessoas em estado vegetativo.

    Na ltima sesso, de 16/09, Elizabeth Kipman Cerqueira (especialista em Ginecologia e Obstetrcia, professora adjunta, diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos Bioticos do Hospital So Francisco) foi a expositora. Ela perguntou:

    O que importa na discusso da liberao do aborto em gestao de anencfalos? Quem est importando: o feto ou a mulher? O feto disso ns j temos certeza. Sinceramente, ns temos que ser cientistas. J foi provado [...] que dentro do tero [...] no possvel determinar a morte enceflica. Quem fala isso est passando por cima de critrios cientficos (Brasil 16/09/2008b:1). Considerou que o aborto prejudicava mais a me do que a continuidade da ges-

    tao de anencfalo. Exibiu filmes com dois depoimentos de gestantes de anencfalos que resolveram levar a termo o nascimento (inclusive da me da Marcela) e de uma terceira que fez o aborto e apresentava problemas emocionais. Ela responsabilizou o Estado por permitir mulher pensar que pode fazer aborto diante de uma gestao indesejada.

    Alguns pontos se salientam na argumentao desses expositores relacionados a instituies religiosas: a lder do grupo Catlicas pelo Direito de Decidir e o bispo da IURD, nico evanglico assumido nesse debate, defendem a autodeterminao da mulher para definir a continuidade da gravidez. Os depoimentos dos demais repre-sentantes aqui analisados tm como ponto comum a defesa da vida fetal considerada sagrada, o que associado com a defesa do direito desse feto vida, feto este conside-rado um ser humano pleno, que encarna o os valores do indivduo segundo Dumont (1992), em particular o da autonomia. Nesse sentido, a gestante englobada pelo feto que ela porta: uma unidade feto-placentria doente. Outro ponto defendido nos depoimentos fundamentar na argumentao cientfica a noo metafsica da vida como um bem outorgado por Deus. Ambos os lados argumentam com a dignidade humana referida a diferentes sujeitos: os que encaram o sofrimento da mulher e os que a atribuem ao feto anenceflico.

    A audincia pblica da ADPF 54 estabeleceu um contexto mais plural de consulta s religies que a audincia pblica e o julgamento da ADI 3510. Emergi-

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    ram representantes de outras confisses, embora as pessoas ligadas orientao do magistrio catlico estivessem em maior nmero e obtivessem a convocao para se manifestar no apenas na sesso para as religies. Muitas vezes esse lao com a insti-tuio religiosa no revelado. Gomes (2009a) analisa a posio de outras igrejas no tocante legislao do aborto, alm da IURD, duas igrejas do protestantismo histrico de misso, a Igreja Metodista e a Igreja Presbiteriana do Brasil, fizeram documentos pblicos a respeito, o que revela diversidade no campo. A ltima aceita apenas o aborto teraputico, j a metodista, alm dos casos previstos em lei, admite o procedimento nos casos de inviabilidade de sobrevivncia do feto. O debate com respeito ao direito vida no monoltico como levaria a crer a oposio de religio e cincia parece indicar. Por outro lado, a centralidade da cobertura da mdia na opinio da Igreja Catlica encobre outras perspectivas dentro do campo religioso, posturas s vezes afinadas com a Igreja, s vezes em aberta contestao de sua doutrina. necessrio que a investigao antropolgica e sociolgica venha a cobrir esses lapsos.

    Consideraes finais

    Uma das principais caractersticas das sociedades modernas a imposio da convivncia em um mesmo espao poltico de uma pluralidade de concepes de mundo e formas de vida. Montero assinala que at recentemente a Igreja Catlica foi capaz de produzir os nexos simblicos e institucionais mediadores de diversas eticidades nas sociedades de matriz histrica europeia (2009:205). O direito cumpre atualmente o papel de instituio mediadora que foi prerrogativa da religio crist, contudo a autora afirma que as religies ainda so parte importante das dinmicas simblicas que, em sociedades como as nossas, modulam a experincia vivida e os processos de socializao (Montero 2009:5). O presente artigo, atravs da anlise do debate pblico nos mbitos legislativo e judicirio sobre a pesquisa com clulas-tronco embrionrias e sobre aborto de anencfalo, confirma a importncia das religies nas disputas sobre a regulamentao na esfera do Direito e sobre os sentidos, particularmente com refe-rncia vida como valor.

    A comparao dos diferentes eventos revela distintos atores religiosos que, ora se associam, ora competem entre si. No tocante s instituies, h hegemonia da Igreja Catlica, sempre presente, capaz de inserir seus representantes em posies estratgicas, alm de ser referncia obrigatria na cobertura desses temas pela mdia. Quanto aos atores sociais, outros agentes religiosos tornam-se visveis: os evang-licos e os espritas. Os parlamentares evanglicos, no contexto das votaes da Lei de Biossegurana no Congresso Nacional, mostram-se inicialmente um bloco coeso: praticamente todos, assim como a bancada catlica e quase toda a casa rejeitam as pesquisas com clulas-tronco embrionrias nas duas primeiras votaes do projeto da Cmara dos Deputados em 2004. Contudo na votao final da Lei de Biossegurana, na Cmara, em 2005, h uma virada parcial nas posies de evanglicos e de catlicos

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    na Cmara, enquanto no Senado um nmero menor de religiosos apresenta resistn-cia s pesquisas com embries humanos. Essa mudana de posio se deveu bem sucedida estratgia dos cientistas defensores do uso de clulas-tronco embrionrias humanas em apresentar o argumento lixo ou remdio em audincia pblica ocorrida no Senado. Nela foram apresentadas em termos pragmticos as alternativas quanto ao destino dos embries congelados, que poderiam contribuir para a pesquisa e futuras terapias de diversas doenas com enfermos, ou perder sua efetividade ao permanecer eternamente congelados, ou ainda ser descartados. Na votao final na Cmara, mais da metade dos parlamentares evanglicos aprova o artigo 5, que permite a extrao de clulas-tronco de embries humanos em dadas condies. Os parlamentares das denominaes com o maior nmero de representantes, caso da Assembleia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus, tm comportamentos opostos: quase todos os assembleianos permanecem conforme a primeira votao e vrios discursam equipa-rando os embries congelados a crianas ou a seres humanos (Cesarino 2006), o que contrasta com os deputados da IURD que passam a aprovar o artigo 5 e a produo das clulas-tronco embrionrias humanas.

    Ainda com respeito a atuaes distintas dos agentes religiosos, em contraste com a audincia da ADI 3510, no contexto da audincia pblica sobre a ADPF 54, abriu-se espao para a fala de diversos representantes religiosos que se manifestaram na sesso especfica ou em outras. Estavam presentes evanglicos: um porta-voz da IURD defendeu o direito de escolha das mulheres gestantes de fetos anenceflicos quanto antecipao de parto. O grupo Catlicas pelo Direito de Decidir, segmento dissidente da orientao do Vaticano com respeito sexualidade e direitos reprodutivos, fez o mesmo. As duas representantes espritas na audincia da ADPF 54 no apenas afirmaram a existncia de vida humana desde a concepo, o que seria comprovado pela cincia segundo a argumentao apresentada, mas tambm uma delas defendeu a teoria do design inteligente em termos de fato cientfico estabelecido. Os exemplos citados questionam o diagnstico dos religiosos em termos de um coletivo homog-neo dotado de unidade de opinio. No se verificou a atuao destes como um grupo monoltico: so identificadas dissidncias por membros de uma mesma instituio religiosa (Catlicas pelo Direito de Decidir), existem alianas ocasionais em torno de um objetivo (exemplo da unio dos parlamentares cristos contra o substitutivo de Aldo Rebelo, na Cmara), e h rivalidades e disputas no espao pblico (IURD contra a Igreja Catlica; assembleianos marcando uma posio mais conservadora identificada com o movimento pr-vida na votao final na Cmara dos Deputados em contraste com os iurdianos.

    Outro aspecto interessante na descrio dessa sequncia de eventos a ocultao do vnculo religioso, em particular no exemplo dos peritos convocados para a audi-ncia pblica de instruo da ADI 3510, mas tambm na audincia da ADPF 54. Em ambos os casos a presente pesquisa localizou esse tipo de pertencimento. A estratgia parece ser usada para se obter credibilidade no debate pblico, conforme se constata

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    no depoimento imprensa do jurista autor da ADI 3510: fiz tudo luz do direito, e na nfase de vrios especialistas em demonstrar que sua argumentao cientfica e no religiosa. Trata-se de um exemplo do que afirma Montero quanto s estratgias para produo de visibilidade e legitimidade, quando os agentes religiosos tm que agir publicamente, eles se veem obrigados a aprender, em cada situao especfica, a gramtica e a semntica relacionada ao modo de organizao de cada cultura pblica em particular (Montero 2012:176). No contexto pesquisado, o comportamento de ocultao do vnculo confessional ou de afirmar o carter cientfico de suas coloca-es denota a restrio ao discurso religioso como emissor de verdades em um Estado laico por um lado. Por outro lado, a argumentao religiosa se traveste de cientfica ou jurdica, mas no deixa de existir no ncleo de valores que fundamenta o debate. Para anlise dessa disputa de sentidos, segue-se a sugesto de Montero:

    analiticamente mais produtivo trazer para o centro do problema o modo pelo qual as diferentes vises de mundo entram em comunicao e disputam os sentidos a respeito do mundo social e subjetivo. Uma etnografia dos processos de reflexibilidade e disputa sobre as diferenas permitiria compreender os consensos provisrios que do certa estabi-lidade a distines particulares produzidas em determinados contextos, entre o ns e o eles (2009:204).

    Com respeito atuao desses atores religiosos, reconhece-se a tenso entre a religio como formadora de valores e o vnculo dessas associaes e indivduos instituio. Constatam-se vrios modos de atuao possveis: alguns sujeitos so veculos para interferncia direta da instituio de pertencimento, enquanto outros fundamentam-se em valores religiosos que levam a decises contrrias s orientaes oficiais propagadas pela instituio. Alm disso, certas vezes a militncia atua para reforar as diretrizes oficiais. O consenso dos parlamentares ligados IURD favorvel pesquisa com clulas-tronco embrionrias humanas na segunda votao foi fruto de orientao institucional, mas pode representar a afirmao do trao modernizante do pentecostalismo de terceira onda face ao pentecostalismo tradicional. A perma-nncia dos parlamentares ligados Assembleia de Deus na perspectiva pr-vida pode resguardar a posio dessa igreja no campo religioso, associada defesa dos valores tradicionais.

    Considerando os diferentes eventos aqui analisados, a dita defesa da vida, vem unir os dois aspectos dos debates sobre pesquisa com clulas-tronco embrionrias, e sobre aborto de anencfalos, polmicas estas que tiveram dinmicas sociais distintas, envolveram atores diferentes, porm foram marcados por forte presena de atores re-ligiosos. A disputa sobre as investigaes com clulas-tronco embrionrias diz respeito ao campo cientfico e da sade no Brasil, enquanto o debate sobre antecipao de parto de anencfalo envolve diretamente a reproduo humana e o questionamento sobre

  • 91Luna: O direito vida no contexto do aborto

    os direitos das mulheres. Em ambos os casos, a defesa da vida humana embrionria ou fetal, no contexto de laboratrio ou dentro do tero, convida a participao de segmentos do campo religioso no debate. Se a recusa ao aborto e manipulao de embries humanos em experimentos tem fundamento transcendente na tese de defesa da vida, esse ponto de vista no unanimidade entre os religiosos, tendo se constatado que vrios se posicionaram em funo de outros valores ligados autonomia pessoal.

    Para fins de anlise, indo alm da abordagem sobre os agentes religiosos envol-vidos, necessrio considerar os valores implicados. O mvel principal dessa disputa diz respeito ao valor da vida humana. Esse tpico aparece na discusso sobre a pesquisa com embries humanos, quando se ops o direito do embrio vida e de no ser tratado como objeto (ponto que apareceu entre os juzes do Supremo, no Legislativo e entre os especialistas com inclinao pr-vida) prerrogativa de enfermos usufrurem dos possveis resultados da pesquisa, ou seja, o direito a uma vida melhor na recuperao de sua sade. Na audincia pblica da ADPF 54, os expositores contenderam de um lado sobre o direito vida do feto anenceflico e sua definio como deficiente fsico, e do outro com o argumento da inviabilidade desse ente e do sofrimento da gestante. Em expresso da ideologia individualista (Dumont 1992), alguns religiosos reivindicam a autonomia da mulher, enquanto outros mostraram a autonomia do feto anenceflico ou mesmo do embrio humano no laboratrio. Nos diversos eventos analisados, paira a pergunta sobre a que se atribui o carter de sagrado.

    Nos debates sobre a pesquisa com clulas-tronco embrionrias e sobre o aborto de anencfalo, questionado se os embries de laboratrio e os fetos anenceflicos pessoas, com todos os direitos e deveres da advindos. A representao em todos esses casos claramente a de indivduo segundo Dumont (1992), o ser a-social, des-conectado de qualquer relao. O apagamento da figura materna d-se em funo da nfase no feto ou no embrio: a gestante designada de unidade feto-placentria, ou se pergunta quem importa se o feto anenceflico ou a mulher e se responde em favor dele. Embora a mulher porte o embrio em seu tero, simbolicamente ela en-globada. Trata-se de um exemplo de cismognese complementar (Bateson 1958) de modo que quanto mais se constri a condio humana do feto, menos se considera o carter de sujeito da grvida, que equiparada a um suporte para a manuteno da vida do primeiro.

    A participao de cientistas nas audincias com peritos no Legislativo e no Judicirio revela a importncia das falas autorizadas pela cincia para construir ver-dades sobre o estatuto de entes distintos, definindo-os ou no como humanos. Foram encontrados integrantes do campo cientfico (no segmento da biomedicina) com diferentes posies sobre o tema, alguns dos quais com claros vnculos a instituies religiosas e seus apoiadores, caso das especialistas da Associao Mdico-Esprita, e de vrios indicados pela CNBB. Isso revela o dilogo entre as definies transcendentes oriundas do campo religioso e a linguagem imanente, materializada na biologia, do discurso cientfico. Montero traz uma reflexo a partir da anlise de Habermas sobre

  • 92 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 33(1): 71-97, 2013

    religio e a esfera pblica com a finalidade de dar conta desse dilogo de linguagens de origem distinta e seus diferenciais de poder:

    Entre a vida selvagem da esfera pblica e os procedimentos formais dos corpos polticos h, para o autor [Habermas], uma demarcao ins-titucional, filtros das vozes de Babel no fluxo da comunicao pblica que s deixam passar contribuies seculares. Ainda assim, a fora das falas religiosas continuar a exercer seu direito de linguagem persuasiva na esfera pblica enquanto outras linguagens mais convincentes para expressar um certo tipo de experincia no forem convencionadas (Montero 2009:212).

    Verificou-se na anlise dos eventos a fora das falas religiosas e seu deslizamento ou traduo ora para a linguagem jurdica ora para a linguagem cientfica. Lvi-Strauss afirmou: nos conceitos biolgicos que residem os ltimos vestgios de transcendn-cia de que dispe o pensamento moderno (1982:52). Nas situaes aqui analisadas, constatou-se o debate sobre o valor sagrado da vida como bem ou como dom, a de-fesa do direito vida de entes embrionrios e fetais, a mescla entre argumentao de carter jurdico e biolgico inspirada em valores religiosos. Nesse sentido, os vestgios de transcendncia presentes nos conceitos biolgicos revelam valores religiosos que o discurso da laicidade e o modelo da secularizao tentam expulsar como anacronismos ou sobrevivncias de perodos ultrapassados.

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    pede vista de processo no Supremo que decidir se pesquisa com clula-tronco pode continuar. Trs ministros declaram voto a favor da Lei de Biossegurana, que deve voltar a ser apreciada no STF nas prximas semanas. Folha de S. Paulo, Cincia, p. A20.

    Notas

    1 Transcrio da audincia pblica de instruo da ADI 3510 (Brasil 2005b:2). 2 Transcrio da audincia pblica da ADPF 54, sesso de 16/09 (Brasil 2008b:1).3 Baseado na comunicao O direito vida no contexto do aborto e da pesquisa com clulas-tronco

    embrionrias: o dilema dos valores religiosos em um Estado laico apresentada na mesa redonda MR13 Religio, direitos humanos e espao pblico: reflexes sobre temas morais controversos no 35 Encontro Anual da Anpocs, em 2011. O artigo resulta do projeto Do aborto pesquisa com com clulas-tronco embrionrias: o estatuto de embries e fetos e o debate sobre direitos humanos no Brasil, financiado com auxlio APQ-1 da FAPERJ.

    4 O presente artigo omite o tema dos transgnicos e da organizao de instituies tcnicas responsveis pela biossegurana. Remeto descrio competente feita por Cesarino (2006).

    5 Segundo Cesarino (2006), a CNBB escreveu diretamente a senadores, solicitando que fosse mantido o texto da Cmara que vedava a pesquisa com embries.

    6 Os embries de reproduo assistida so congelados por volta do 3 dia aps a fertilizao in vitro, caso no sejam transferidos para o tero. Seria necessrio cultiv-los at o estgio de blastocisto no 5 ou 6 dia para a obteno das clulas-tronco embrionrias pluripotentes extradas da massa celular interna que daria origem ao corpo do embrio.

    7 Foram expositores trs cientistas da rea biomdica, um mdico e formador de opinio e um filsofo

  • 95Luna: O direito vida no contexto do aborto

    e professor de biotica, alm do Senador Tio Viana, doutor em medicina tropical. 8 Nova resoluo do CFM 1.957/2010 foi publicada em janeiro de 2011, e a nica alterao a esse respeito

    foi prever a criopreservao apenas dos embries viveis. A resoluo do CFM 2.013/2013, publicada no Dirio Oficial da Unio em 9/05/2013, permite descartar os embries criopreservados por mais de 5 anos, se for a vontade dos pacientes, e no apenas para pesquisas de clulas-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurana. Nesse sentido, a ltima resoluo supera a Lei de Biossegurana, que autorizava o uso para pesquisa apenas dos embries congelados por trs anos no momento de aprovao da lei, ou os j congelados que completassem trs anos. Supera tambm a regra anterior, pois permite o descarte aps cinco anos, enquanto antes o destino, que no a doao, seria o congelamento por tempo indefinido.

    9 A chance de gestao por meio da fertilizao in vitro muito reduzida caso se transfira para o tero apenas um embrio por vez. Para aumentar a eficcia da tcnica, produz-se um nmero maior de embries e recomenda-se a transferncia de no mximo quatro, a fim de evitar a gravidez mltipla. Os demais podem ser congelados para uso futuro do casal.

    10 Devo agradecer a meu assistente de pesquisa Felipe Lamim pelo auxlio no levantamento das votaes e elaborao das tabelas que permitiram obter essas concluses. A identificao dos parlamentares catlicos mais difcil, pois, enquanto se encontram listas de parlamentares evanglicos (principalmente aps a constituio da Frente Parlamentar Evanglica em 2003), a massa dos parlamentares catlica no praticante. Uma pequena minoria militante de parlamentares catlicos atua para colocar em pauta a agenda da Igreja e h os provenientes das pastorais populares. A fonte principal para identificao desses catlicos mais ativistas, alm de buscas na Internet, foram as listas da Pastoral Parlamentar Catlica, obtidas por meio de um assessor do gabinete do deputado Jos Linhares, coordenador da pastoral.

    11 Machado (2006) relata que houve orientao do Conselho de Bispos da IURD para votar a favor do artigo 5 que autorizava a pesquisa com clulas-tronco embrionrias humanas.

    12 Havia apenas 3 senadores evanglicos, e o terceiro no estava presente votao. 13 Nesta seo, as citaes referem-se transcrio da audincia pblica da ADI 3510. 14 O ex-procurador Cludio Fonteles foi designado de franciscano que recrutou cientistas ligados Igreja

    Catlica para deporem. Indagado se movera a ao devido sua ligao com a Igreja Catlica, ele respondeu: fiz tudo luz do Direito. Rafael Garcia & Laura Capriglione. Fonteles acusa cientista de ter vis judaico. Folha de S. Paulo, sb, 21 abr. 2007, Cincia p. A20.

    15 A Plataforma Lattes representa a experincia do CNPq na integrao de bases de dados de Currculos, de Grupos de pesquisa e de Instituies em um nico Sistema de Informaes. Portal do CNPq: Sobre a Plataforma Lattes. Disponvel em: http://lattes.cnpq.br/ acesso em 07/01/2012.

    16 Uma neurocientista, embora no trabalhasse diretamente com clulas-tronco, era pesquisadora chefe da principal instituio pblica de reabilitao no pas, onde havia projetos de pesquisa bsica e clnica com clulas-tronco. Todos os demais tinham envolvimento direto em pesquisa bsica ou clnica. O levantamento dos currculos ocorreu em agosto de 2007.

    17 A bolsa de produtividade em pesquisa destinada aos pesquisadores que se destacam entre seus pares, valorizando sua produo cientfica segundo critrios normativos, estabelecidos pelo CNPq, e especficos, pelos Comits de Assessoramento (CAs) do CNPq Cf. RN-016/2006: Bolsas individuais no pas. Disponvel em: http://www.cnpq.br/web/guest/view/-/journal_content/56_INSTANCE_0oED/10157/100343#16061 acesso em 07/01/2011. 3 Tinham bolsa de produtividade em pesquisa 1A, 2 tinham 1B e 1 tinha bolsa de produtividade 2. Avalio a produo dos sem bolsa pelo nmero de publicaes em peridicos cientficos em agosto de 2007: 18 artigos, 24 artigos, 37 artigos, 54 artigos e 80 artigos (mdia: 42,6).

    18 Os 9 expositores com currculo Lattes tinham a seguinte produo de artigos em peridicos cientficos: 2, 5, 7, 7, 11, 11, 26, 50 (mdia 14,8 artigos). Um era autor de 3 livros, mas no tinha artigos em peridico cientfico.

    19 Evento promovido pela Pastoral Universitria do Regional Leste 1 da CNBB em julho de 2005. Cf. o boletim eletrnico da CNBB: Boletim Notcias N20 (1825) de 16 abr. 2005. Disponvel em: http://

  • 96 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 33(1): 71-97, 2013

    www.cnbb.org.br/index.php?op=pagina&chaveid=240a000013 acesso em: 20/10/2007.20 Rachel Aisengart Menezes informou-me do livro.21 Silvana Freitas. Juiz catlico adia deciso sobre embrio: ministro Menezes Direito pede vista de

    processo no Supremo que decidir se pesquisa com clula-tronco pode continuar. Trs ministros declaram voto a favor da Lei de Biossegurana, que deve voltar a ser apreciada no STF nas prximas semanas. Folha de S. Paulo, 6 mar. 2008, Cincia, p. A20.

    22 O ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito foi conselheiro da Unio de Juristas Catlicos do Estado do Rio de Janeiro (Ujucarj). Cf. a diretoria na pgina da Ujucarj, disponvel em: http://juristascatolicosrj.org/diretoria.html acesso em 05/04/2009. Existem associaes desse tipo em diversos estados.

    23 Transcrio do voto do ministro Cezar Peluso no julgamento da ADI-3510. 24 Trecho da Carta de Princpios, disponvel em: http://www.amebrasil.org.br/html/bio_textos.

    htm#celulas acesso em 16/08/2010. 25 O ministro relator admitiu ter esperado o resultado da ADI 3510 no programa televisivo Mrcia

    Peltier Entrevista (Rede CNT) veiculado em 16 de abril de 2012. 26 Agradeo a Debora Diniz e a ONG Anis Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero, por

    terem me facilitado o acesso transcrio das quatro sesses da audincia.27 Na seo A audincia pblica da ADPF 54, as citaes literais so retiradas da transcrio, divididas

    segundo o dia da sesso em que falou o expositor. 28 Essa teoria pretende provar que a clula e estruturas complexas (e por extenso a prpria vida) teriam

    sido planejadas por uma inteligncia superior, com base no argumento da impossibilidade estatstica de sua formao pelo acaso.

    29 Integrante da comisso de biotica da CNBB, embora no tenha declarado.30 Ele um dos autores do livro Vida: o primeiro direito da cidadania, que fundamentou os argumentos do

    procurador geral da Repblica na petio para a ADI 3510.

    Recebido em abril de 2012Aprovado em janeiro de 2013

    Naara Luna ([email protected]) Doutora e ps-doutora em Antropologia pelo PPGAS Museu Nacional/UFRJ. professora adjunta do Departamento de Cincias Sociais e Extenso Rural (DCS) do Instituto de Cincias Humanas e Sociais da UFRRJ e da Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFRRJ. autora do livro Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas e de diversos artigos e captulos que abordam aspectos sociais e culturais das novas tecnologias reprodutivas, clonagem, pesquisas e terapias com clulas-tronco, aborto e a interface de religio e direito com problemas ticos.

  • 97Luna: O direito vida no contexto do aborto

    Resumo:

    O direito vida no contexto do aborto e da pesquisa com clulas-tronco embrionrias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico

    O artigo aborda o debate pblico sobre o direito vida no contexto da autorizao da pesquisa com clulas-tronco embrionrias e no debate sobre o aborto, enfocando a participao de atores religiosos e seus valores. Sero examinados o debate legislativo e judicirio da Lei de Biossegurana e a audincia pblica da ADPF 54, referente antecipao de parto de anencfalo. Esta pesquisa documental analisa a transcrio da audincia pblica da ADPF 54, e os registros do processo legislativo no Congresso Nacional e da ADI 3510 no Supremo Tribunal Federal. Os resultados revelam, alm da centralidade do argumento do valor da vida, a diversidade na atuao dos agentes religiosos, com hegemonia da Igreja Catlica e a emergncia de evanglicos e espritas.

    Palavras-chave: Religio, Clulas-tronco embrionrias, Aborto de anencfalo, Lei de Biossegurana, ADI 3510, ADPF 54.

    Abstract:

    The right to life in context of abortion and stem cell research: disputes of religious agents and values in a Secular State (Brazil)

    The article analyses the public debate (in Brazil) about the right to life in the context of legal authorization for human embryonic stem cell research and the debate about abortion with focus on religious actors and values. The paper examines the legislative and judiciary debate about Biossecurity Law and the public hearing of ADPF 54 which dealt with abortion of anencephalus. This documental research analyses the transcription of public hearing of ADPF 54, and records of legislative process at National Congress and the action of unconstitutionality (ADI 3510) at the Federal Supreme Court. The results show the core value of life in the center of the argument, besides the diversity in the action of religious agents, the hegemony of Catholic Church, and the rise of Evangelical Protestants and Kardec Spiritualists.

    Keywords: Religion, Human embryonic stem cells, Abortion of anencephalus, Law of Biossecurity, ADI 3510, ADPF 54 (action for anticipation of birth of anencephalic fetus).