osorio disputas tusculanas

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 CÍCERO TRADUZIDO  PÁRA  PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI: DAMIÃO DE GÓIS E  O  LIVRO DA VELHICE* 1.  Na colectânea epistolar de Damião de Góis que saiu dos prelos de Réscio em 1544(1) encontra-se uma carta do próprio Góis datada de Pádua, em 17 de Agosto de 1537, e endereçada a Nicolau Clenardo, que,  por essa altura, ia de peregrinação a Santiago de Compostela. Mas essa carta respondia a  uma  outra que o humanista flamengo lhe havia escrito no Natal precedente, quando ainda estava em Évora, carta que só agora, mais de meio ano depois, chegara ao seu destino. Nela Clenardo tecia,  co m  certeza, algumas observações sobre o texto da tradução que  Damião  de Góis fizera do  Cato  Maior  de Cícero, conforme é possível deduzir da epístola goisiana. O  testemunho fornecido pelo próprio Damião de Góis na carta do verão de 1537 reveste-se de um significado interessante, na medida em que nos informa que, em finais de  1536,  já a tradução portuguesa do Cato Maior  se encontrava terminada, para que Clenardo a tenha lido e comentado, não sendo de excluir que, já nessa cidade italiana, o * Trabalho concluído em 1985, no âmbito do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (Faculdade de Letras de Coimbra). (1)  Epistolae  Sadoleti, Bembi,  et  aliorum clarissimorum uirorum  ad  Damianum a Goes  Equitem  Lusitanum,  incluídas nos  Aliquot  Opúsculo  q ue  Rutgério  Réscio imprimiu em Lovaina em 1544, fo. (d  iv)r°  ss; Joaquim de Vasconcellos,  Goesiana, c) As Cartas Latinas de Damião de Goes,  Porto, 1912, p. 23 ss; Amadeu Torres, Noese e Crise na  Epistolografia  Latina  Goisiana.  I. As Cartas Latinas de Damião de Góis.  Introdução, Texto Crítico e Versão, Paris, 1982, p. 139 ss; Jorge Alves Osório, «Em Torno do Humanismo de Damião de Góis: A Divulgação dos Opús culos através da Correspondência Latina»,  Annali  deli Istituto  Universitário  Orientale, Sezione Romanza, Nápoles, XVIII (1976), p. 297  ss.  ;  cf. ainda Alphonse Roersch, Correspondance  de Nicolas Clénard,  T. 1, Bruxelas, 1940, p. 136 ss.; deve notar-se que Roersch não comentou esta  carta  no T. I I do seu -trabalho. . .• .

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  • CCERO TRADUZIDO PRA PORTUGUS NO SCULO XVI: DAMIO DE GIS

    E O LIVRO DA VELHICE*

    1. Na colectnea epistolar de Damio de Gis que saiu dos prelos de Rscio em 1544(1) encontra-se uma carta do prprio Gis datada de Pdua, em 17 de Agosto de 1537, e endereada a Nicolau Clenardo, que, por essa altura, ia de peregrinao a Santiago de Compostela. Mas essa carta respondia a uma outra que o humanista flamengo lhe havia escrito no Natal precedente, quando ainda estava em vora, carta que s agora, mais de meio ano depois, chegara ao seu destino. Nela Clenardo tecia, com certeza, algumas observaes sobre o texto da traduo que Damio de Gis fizera do Cato Maior de Ccero, conforme possvel deduzir da epstola goisiana.

    O testemunho fornecido pelo prprio Damio de Gis na carta do vero de 1537 reveste-se de um significado interessante, na medida em que nos informa que, em finais de 1536, j a traduo portuguesa do Cato Maior se encontrava terminada, para que Clenardo a tenha lido e comentado, no sendo de excluir que, j nessa cidade italiana, o

    * Trabalho concludo em 1985, no mbito do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos (Faculdade de Letras de Coimbra).

    (1) Epistolae Sadoleti, Bembi, et aliorum clarissimorum uirorum ad Damianum a Goes Equitem Lusitanum, includas nos Aliquot Opsculo que Rutgrio Rscio imprimiu em Lovaina em 1544, fo. (d iv)r ss; Joaquim de Vasconcellos, Goesiana, c) As Cartas Latinas de Damio de Goes, Porto, 1912, p. 23 ss; Amadeu Torres, Noese e Crise na Epistolografia Latina Goisiana. I. As Cartas Latinas de Damio de Gis. Introduo, Texto Crtico e Verso, Paris, 1982, p. 139 ss; Jorge Alves Osrio, Em Torno do Humanismo de Damio de Gis: A Divulgao dos Ops-culos atravs da Correspondncia Latina, Annali deli' Istituto Universitrio Orientale, Sezione Romanza, Npoles, XVIII (1976), p. 297 ss. ; cf. ainda Alphonse Roersch, Correspondance de Nicolas Clnard, T. 1, Bruxelas, 1940, p. 136 ss.; deve notar-se que Roersch no comentou esta carta no T. II do seu -trabalho. . . .

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    Portugus haja trabalhado nela (2). Mas outras razes de interesse nos parece conter a carta de resposta de Gis, sobretudo se buscarmos compreender, de forma mais ampla, as motivaes que podero ter conduzido Damio de Gis a proceder a essa traduo e, de modo particular, as intenes que ter querido valorizar mediante a divulgao desse texto, quer no referente ao momento em que o fez imprimir, quer em funo da atitude denunciada pelo tradutor frente ao texto original de Ccero. Para tal h que comear por atentar na dedicatria a Conde de Vimioso, D. Francisco de Sousa.

    Em estudo recente (3), o Prof. Jean Aubin analisou, com mincia, o perodo misterioso da estadia de Gis junto de Erasmo, precedente de forma imediata, como se sabe, da sua viagem Itlia, perodo que, recorde-se, atiou a curiosidade da Inquisio em 1571 (4). Ora no texto da dedicatria (5), Damio de Gis refere-se a Erasmo a propsito das dificuldades que a operao de traduzir comportava, citando-o logo a seguir a Ccero e a S. Jernimo. ento que utiliza a opinio

    (2) Cf. Lus de Matos, Un umanista portoghese in Italia: Damio de Goes, Estudos Italianos em Portugal, Lisboa, 19 (1960), p. 41 ss. (p. 51).

    (3) Jean Aubin, Damio de Gis dans une Europe vanglique, Humanitas, Coimbra, XXXI-XXXII (1979-80), p. 197 ss.; sobre as relaes europeias de Gis, vid. tambm Marcel Bataillon, Le Cosmopolitisme de Damio de Gis, in tudes sur le Portugal au temps de l'Humanisme, Paris, 21974, p. 121 ss. Cfr. ainda A. Torres, Noese e Crise, cit., I, p. 255-258.

    (4) Cf. Isaas da Rosa Pereira, Damio de Gis devant le Tribunal de l'Inqui-sition (1571-1572), in Marcel Bataillon et alii, Damio de Gis, Humaniste Europen, Braga, 1982, p. 331 ss.

    (5) O texto da traduo do Cato Maior encontra-se no Ms. 671 (actual n. 691) da Biblioteca Pblica Municipal do Porto, com 68 folhas numeradas e aparadas e com o seguinte frontispcio: Cicero / De / Senectute. / Dedicado / Ao M*0 Illustre Senhor Dom / Francisco de Souza / Conde de Vimioso. / Traduzido / Por Damio de Goes, / e seu prprio original. //; a letra deste ttulo no , porm, contempornea da do texto. Para alm deste manuscrito, hoje s temos disponvel o texto atravs da edio do sculo passado : Livro de Marco Tullio Ciceram, chamado Catam Maior, ou Da Velhice, dedicado a Tito Pomponio Attico, traduzido por Damio de Goes. Nova edio. Lisboa, na Typographia Rollandiana, 1845. Desconhece-se o para-deiro de qualquer exemplar da 1 .a edio feita em Veneza por Estvo Sbio em 1538 ; cf. Francisco Leite de Faria, Estudos Bibliogrficos sobre Damio de Gis e a sua poca, Lisboa, 1977, p. 15, n. 3, p. 104, n. 70 (para a dedicatria, cf. tambm os n.os 109 e 111); dessa edio veneziana obtivemos s a reproduo do rosto (British Library, Harley, 5925, n. 458). Anote-se, porm, que Francisco Leite de Faria no alude, no seu estudo, ao Ms. da BPMP. Nas pginas que se seguem, as remisses ao texto da traduo sero feitas a partir da edio de Lisboa, 1845.

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    daquelle prudentssimo e grauissimo Erasmo Roterodamo neste nosso ureo, e doctissimo sculo principe de toda doctrina, e eloquncia (p. 6), para de imediato acrescentar que conversara sobr' este negocio algas vezes, iuntamente com outras muytas sanctissimas confabulaes (per spao de cinquo meses que com elle em Friburgo de Brisgoia pousei) entre noos passadas ouvi (p. 6).

    O particularismo de que se reveste a aluso ao Roterodams parece conter, latentes, emisses de sentido em dois planos de inteno: por um lado a familiaridade de Gis com Erasmo que ressalta, inclusiva-mente mediante a frase parenttica; por outro lado evidencia-se a nfase posta na autoridade de Erasmo como humanista cristo, cujas confa-bulaes eram sanctissimas.

    O estudo de Jean Anbin aconselha-nos a 1er com prudncia a nfase colocada nas referncias a Erasmo. Se bem atentarmos, elas ocupam s por si praticamente uma quarta parte de toda a dedicatria; ora no crvel que uma tal demora, que permite a Gis proclamar perante um pblico a que, de certeza, no eram estranhos os portugueses que representavam o Reino junto da Cria romana ou das Repblicas italianas, a sua convivncia com Erasmo com essa indicao to concreta de que se instalou em casa dele durante cinco meses se limitasse, na sua insistncia, a servir s de panegrico da sua prpria pessoa. Damio de Gis parece ter necessidade de salientar, neste texto, indicaes de natureza cronolgica, pois que, em dois momentos da dedicatria, alude a perodos da sua vida, marcada por uma longa ausncia do reino: os cinco meses em Friburgo e, mais frente, os quatro meses soomentes que a sorte lhe concedera passar no pas natal nesses ltimos dezasseis anos da sua vida. Jean Aubin, dissecando os testemunhos sobre os movimentos de Gis em 1533 e 1534, suspeita do rigor da informao sobre os quatro meses passados em Portugal, aonde Gis fora chamado para ser investido no cargo de Tesoureiro rgio, que o monarca lhe oferecera. Tudo parece indicar, como subli-nha o citado autor, que Gis entrava no Reino com a inteno de no voltar a sair dele e de assumir, de facto, o cargo. Algo se ter passado, de misterioso, que o impediu de ser nomeado e o obrigou a sair de novo do pas, sob o pretexto de uma peregrinao a Santiago de Compostela (6).

    (6) Sobre a viagem a Compostela, cf. Manuel Gonalves Cerejeira, O Renas-cimento em Portugal. IClenardo e a Sociedade Portuguesa, Coimbra, 41974, p. 117 ss.; J. Aubin, art. cit., p. 203 ss.

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    Reaparecendo inopinadamente junto de Erasmo, a cuja hospi-talidade se acolhe, Gis dedica-se, ento, a uma intensa actividade nos meios evanglicos alemes. A ida para Itlia foi-lhe vivamente aconselhada pelo prprio Erasmo, se que no foi imposta (7). Chegado a Pdua na primeira metade de Outubro de 1534, com carta de reco-mendao para Pietro Bembo, cuja atitude para com o reformismo no era de oposio vigorosa, Damio de Gis desenvolve uma actividade orientada por um lado para contactos com meios italianos (Bonamico, Sadoleto, Bembo) conhecidos por uma atitude mais aberta frente aos reformistas, e virada, por outro lado, para a divulgao de aces portu-guesas ou de defesa de pontos de vista portugueses. possvel que, nesses anos de indeciso de Carlos V diante da questo reformista, Gis quisesse servir D. Joo III divulgando, em latim, uma literatura de actualidade sobre a presena portuguesa no Oriente (8).

    Mas porqu o De Senectute, editado em Veneza em 1538(9)? Podemos suspeitar, com Jean Aubin, que a dedicatria ao Conde de Vimioso doit avoir quelque signification qui serait tirer au clair (10). E recorde-se que D. Francisco de Sousa merece uma detida notcia na 2.a edio da Crnica do Prncipe D. Joo (11). H, portanto, que perguntar: porqu o Conde de Vimioso e porqu o De Senectutel

    D. Francisco de Sousa era homem da gerao de Damio de Gis e sempre mereceu a confiana e a proteco de D. Manuel e de D. Joo III; a qualificao de Catam ensorino que Gis lhe concede no cap. XVII da sua Crnica parece conter subjacente um mundo de aluses que no estamos em condies de decifrar em pormenor, mas que talvez possamos delinear em traos gerais (12). Efectivamente, evocar

    (7) Sobre as relaes de Gis com Erasmo, cf. Jean-Claude Margolin, Damio de Gis et rasme de Rotterdam, in Damio de Gis, Humaniste Europen, cit., p. 17 ss. (cf. p. 48-49).

    (8) Cf. Jorge Borges de Macedo, Damio de Gis et l'Historiographie por-tugaise, in Damio de Gis, Humaniste Europen, cit., em particular p. 133 ss.

    (9) E no 1534, como ainda se escreve por vezes; cf. a introduo de Maria Leonor Carvalho Buescu, Duarte de Resende, Tratados da Amizade, Paradoxos e Sonho de Cipio, Lisboa, 1982, uma edio lamentvel sob diversos aspectos de crtica textual.

    (10) Art. cit., p. 22. (11) Graa de Almeida Rodrigues, Crnica do Prncipe D. Joo de Damio

    de Gis. Edio crtica e comentada, Lisboa, 1977, p. 46-47. . (12) Ainda existem muitos pontos obscuros nas relaes de Damio de Gis;

    note-se que frequentou o Colgio Trilingue de Lovaina e, ao tempo do cerco da

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    uma tal comparao na crnica era evocar a traduo do dilogo cice-roniano dedicado a uma personalidade romana de grande envergadura moral, instituda em exemplo para os mais novos. No ser, por consequncia, legtimo interrogarmo-nos sobre se a traduo portuguesa, para alm de comportar um significado humanista, a que aludiremos mais frente, no pretenderia antes valorizar a ideia de que os indivduos mais novos no eram propriamente os mais indicados para desempe-nharem as funes governativas, precisamente porque estavam sob .o domnio das paixpes e de interesses que no sabiam conter nos limites do razovel? E se assim de facto aconteceu, no teria Damio de Gis em mente aqueles que se opuseram, com xito, sua nomeao para Tesoureiro rgio, no tempo de D. Joo III, cujo veador da fazenda foi D. Francisco de Sousa (13), a quem o prprio Gis dedicou uma tra-duo do Ecclesiastesl E no ter sido por isso que Gis se mostrou particularmente sensvel a um comentrio de Clenardo sua traduo do Cato Maior, a propsito de um passo em que a figura central do dilogo ciceroniano contrasta os malefcios da presena dos jovens na governao dos Estados com os benefcios da dos homens de idade? Por outras palavras: a traduo portuguesa, com a sua apologia da sensatez e da prudncia como virtudes centrais da governao que a juventude no podia possuir, teria em mente os maus conselheiros do rei que afastaram Damio de Gis, vencendo a prpria vontade do monarca? Se assim aconteceu, a traduo tem algo de muito mais pessoal do que primeira vista poderia parecer.

    A carta de resposta que Gis enviou, em 17 de Agosto de 1547, a Clenardo elucida-nos efectivamente que o Flamengo advertira o tra-dutor das suas discordncias quanto a dois pontos do texto portu-

    cidade durante o qual se evidenciou, aparece a inscrever-se na Universidade Juan Micas, elemento importante das famlias judias portuguesas na Europa; cf. Marcel Bataillon, Alonso Nnez de Reinoso y los marranos portugueses en Italia, in Varia Leccin de Clsicos Espanoles, Madrid, 1964, p. 64-65. Por outro lado, preciso no esquecer as ligaes com o Infante D. Lus no contexto poltico da poca; cf. Robert Ricard, tudes sur l'Histoire morale et religieuse du Portugal, Paris, 1970, Pour une monographie de l'Infant D. Luis de Portugal, em especial p. 144, n. 1 ; note-se que a este irmo do rei que Gis dedica o De Belle Cambaico Ultimo, sado em Lovaina em 1549.

    (13) Crnica do Principe D. Joo, cit., p. 47.

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    gus : um sobre a identidade de dois cnsules romanos, Tuditano e Getego, e outro respeitante a uma construo sintctica negativa (14).

    Em relao ao primeiro caso, Damio de Gis considera que se tratava dos cnsules C. Claudius Cento e M. Sempronius Tuditanus, ambos cnsules An. 513 ab Vrb. cond., enquanto Publius Sempronius Tuditanus e Marcus Cornelius Cethegus haviam sido cnsules mais tarde, quo tempore Cato praeturam obtinuit, trigesimum annum agens(15). Seguia aqui a opinio de Teodoro Gaza que alis traduzira o De Senectute para grego , do mesmo modo que, ao longo da traduo, mostrar coincidir com solues suas, como se v atravs da edio comentada por Franciscus Sylvius, que em diversos locais aceita tambm a autoridade de Gaza. Mas Gis reconhecia que o assunto era complexo; e tinha razo, visto que os cdices revelam a interpolao de glosas (aedilis e quaestor) denunciadoras da inteno de introduzir, na mesma frase, toda a carreira poltica de Cato (16).

    Ao tempo o problema era j debatido ; assim, a edio parisiense que traz, no rosto, a data de 1536 (17) e que inclui um texto alegada-mente fixado por Franciscus Sylvius e seus comentrios, enobrecida com as notas de Erasmo o que pode querer significar que pretende nserir-se na tradio dos textos j editados pelo Holands anterior-

    (14) Flagitas a me ob meam in Linguam Lusitanicam Ciceronis De Senectute uersionem rationes temporum Romanorum consilium; Porro de duabus negatio-nibus quod scribis, in ipso Catone una et altera in Oratore; vid. Amadeu Torres, Noese e Crise, cit., I, p. 139 e p. 140; por se tratar de um texto crtico, citaremos esta carta a partir desta edio.

    (15) Gis declara seguir, nesta matria, a opinio de Teodoro Gaza, uir disertissimus, que, face aos deprauata exemplaria que induziram muitos em erro, cum rem inextricabilem iudicaret, nomina consulum ubi de Liuio Andronico legitur in sua Graeca interpretatione omisit (ibidem, p. 139).

    (16) Cf. II Catone Maggiore. Dialogo intorno alia vecehiaia di M. Tullio Cicerone illustrate da Felice Romarino, Turim, 21911, p. 12.

    (17) M. T. CICERONIS / CATO MAIOR SEV DE SENECTVTE, / ad T. Pompo. Atticum, de quo idem Ci. Legen-jdus est mihi saepius Cato Maior ad te missus: a-jmariorem enim me senectus facit, F. Syluii com-jmtariis, & D. Erasmi annotationibus illustratus. / (gravura) PARISIIS. M.D.XXXVI. / Apud Michaelem Vascosanu in aedibus Ascen-jsianis, via ad D. Iacobum sub signo Fontis. //. O clofon traz, porm, o ano de 1535. Aproveitando uma sugesto de Francisco Leite de Faria, Estudos Bibliogrficos sobre Damio de Gis, cit., p. 16, utilizmos o exemplar da Biblioteca Pblica de vora, que tem uma nota da Inquisio de Coimbra, auto-rizando a sua circulao: Non prohibetur.

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    mente (18) d-se claramente conta das dificuldades que o texto oferecia, sobretudo quanto graduao do cursus honorum:

    quintoque anno post ad Tarent Quaestor. / Deinde Aedilis, quadrinio post factus sum Praetor, quem magistratum gessi Consulibus Tuditano et Cethego (fo. XIII r-XVI r).

    Esta a lio dos manuscritos que nos provieram dos sees, ix-xi, da famlia a que pertence o Parisinus 6332, que testemunha a incluso de aedilis e quaestor no texto (19). E foi esta tambm a verso seguida por Gis na sua traduo, certamente porque era a do texto que utilizou :

    e cinqu' annos depois [me fui] a Tarento feito questor, e depois Edil: e dahy a quatr' annos Pretor. O qual officio serui sendo cnsules Tuditano, a Cethego (p. 22-23).

    As dificuldades de interpretao que esta verso comportava no passaram desapercebidas ao comentador da edio de Paris, nem esca-param ao leitor avisado do see. xvi que, no exemplar da Biblioteca Pblica de vora, foi anotando mo o texto, registando que o passo no se entende e concluindo que ele se encontrava corrompido (20).

    Pela nossa parte, poderemos admitir que Damio de Gis no tenha atentado inicialmente nas dificuldades do texto e que haja sido a carta de Clenardo do Natal de 1536, em resposta, certamente, ao envio do prprio texto portugus, a chamar-lhe a ateno para a identi-dade dos cnsules e para a obscuridade do passo; mas tambm no de excluir totalmente a hiptese de que tivesse entrado em contacto com algum comentrio como o que Sylvius dedica ao local, optando por acei-tar que os termos adulescentulus e iuuenes se podiam tomar como equi-valentes, para que Ccero no estivesse a chamar adulescentulus a um Gato de 33 anos.

    No devemos esquecer, porm, que Gis se define a si prprio perante Clenardo no como um erudito, mas como um aprendiz (21),

    (18) Vid. Ferdinand Vander Haeghen, Bibliotheca Erasmiana. Rpertoire des Oeuvres d'rasme, Nieuwkoop, 31972, 2e srie, p. 18 ss.

    (19) Cf. Ccero, Caton VAncien (De la Vieillesse). Texte tabli et traduit par P. Wuilleumier, Paris, 1955, p. 113-114; o passo em apreo encontra-se em 4, 10.

    (20) totus locus est deprauatus, fo. XVI r. (21) O que no significa que Gis no possa ser classificado como autntico

    fillogo de saber provado e opinies fundamentadas; A. Torres, Noese e Crise, cit., II, p. 170.

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    pelo que no h que atribuir significao especial confuso por ele estabelecida; admissvel que se tenha tratado de um lapso: no havia Teodoro Gaza resolvido a dificuldade, omitindo simplesmente os nomes dos cnsules, como dizia a Clenardo na carta? A verdade que os comentadores da poca calculavam com correco a idade de Cato, como faz Sylvius na citada edio de 1536, dando a Fbio Mximo a idade de 44 anos, turn quum natus Cato est (fo. XIII v). Todavia, o objectivo de Gis no residia preferentemente no plano filolgico, apesar de no se revelar alheio a tais preocupaes, mas em acentuar certos valores significativos da doutrina expendida no Cato Maior. No fundo, ele sabia que o texto adoptado manifestava incoerncias que permitiam concluses como a do referido comentador de 1536: Hic quoque hallucinatus est Cicero (fo. XVI v).

    Se as observaes de Clenardo sobre o passo concernente carreira poltica de Cato constituem testemunho tanto do sentido filolgico do humanista flamengo como da preocupao de Gis por uma infor-mao crtica correcta, a verdade que do passo em apreo no decorrem consequncias de especial peso para o significado da verso portuguesa, segundo nos parece. O mesmo no poderemos dizer, todavia, de outra anotao de que a citada carta de Gis se faz eco. Efectivamente, de mais interesse se reveste, em nosso juzo e para o fim que temos em vista nestas pginas, a segunda observao colocada por Clenardo a Gis sobre a sua verso in Linguam Lusitanicam, a propsito de uma construo sintctica negativa.

    A carta de Damio de Gis permite-nos inferir que o humanista lhe fizera notar que a traduo portuguesa pressupunha, em dado local, uma construo frsica negativa, provavelmente uma dupla negao, da qual discordava, evocando a propsito um caso similar no Orator (22).

    No fcil identificar o passo em causa, j que Gis no o faz na sua carta de resposta (23). Se nos acudirmos da edio erasmiana

    (22) Gis reporta-se ao passo Or., 3, 9: cuius ad cogitatam speciem imitando referuntur ea quae sub culos ipsa non cadunt; afirmando a necessidade do non, estava de acordo com as melhores lies do texto.

    (23) Cf. A. Torres, Noese e Crise, cit., I., p. 310, n. 1. 46 da traduo. Na nota 1. 39 do texto (p. 143) este Autor havia indicado o seguinte passo Ergo et legibus et institutis uacat aetas nostra muneribus eis quae non possunt sine uiribus susti-neri (11, 34); mas na p. 310 prope e defende como provvel um outro passo: non uiribus aut uelocitate aut celeritate corporum res magnae geruntur, sed consilio,

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    de Paris, uma hiptese de identificao poderia residir na sequncia do exemplo aduzido por Cato respeitante anedota de Temstocles com o habitante de Serifo:

    nee enim in summa inpia leuis esse senectus potest ne sapienti quidem, nec insipienti etiam in summa copia non grauis (3, 8).

    Na edio parisiense de 1536 o editor manteve o texto, mas, em nota, considerou que Locus hic deprauatus esse videtur. Para ele vislumbrava-se uma contradio nessa frase: Nam confessus Cato est propter diuitias senectutem aliquantum tolerabilem esse, sed nequaquam in illo esse omnia. Postea in rerum comparatione diceret in paupertate ne sapienti quidem eam esse tolerabilem (fo. XI r). Por isso entendia que o texto deveria ser corrigido da seguinte forma: Nec enim in summa inpia non leuis esse senectus potest sapienti, nec insipienti in summa copia non grauis. Tratava-se de uma alterao significativa no sentido da frase, qual, no entanto, aderiu o leitor que anotou o exemplar eborense, ao entrelinhar um non sobre leuis, riscando o ne e o quidem que envolvem sapienti. O problema dizia respeito tolerabilis senectus, ou seja questo de saber se, como observa Llio, ela resulta propter opes et copias et dignitatem (3, 8), ou se, como quer exemplificar o velho Cato, nequaquam in isto sunt omnia. Se a situao material no tudo quanto torna a velhice suportvel, no deixa, porm, de constituir condio necessria para o xito de uma velhice bem suportada. Ora a emenda alvitrada por Sylvius pre-tendia avivar a ideia de que, mesmo sem meios materiais favorveis, nada impedia que o sbio pudesse suportar facilmente a velhice.

    Como que Damio de Gis reagiu ao texto latino neste local?

    auctoritate, sententia, quibus non modo non orbari, sed etiam augeri senectus solet (6,17). Em relao primeira frase, h que notar que nem Sylvius traz qualquer nota a este passo na edio de 1536 (fo. XLV v. XLVI r.), nem os editores crticos da coleco Les Belles Lettres e da Teubneriana oferecem qualquer informao crtica pertinente para o caso; quanto segunda frase, compete tambm sublinhar que Sylvius insiste sobretudo na ideia de que a velhice no fica necessariamente infe-riorizada com a ausncia das foras fsicas e para tal evoca as histrias dos estrata-gemas de Arquimedes e de Sertrio (fo. XXIX r.-v.), mas nada insere sobre a cons-truo frsica; por sua vez os editores de Veneza, 1536, e de Paris, 1565, tambm nada anotam sobre o local.

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    Afigura-se-nos que a sua traduo revela marcas da sugesto proposta pelo esprito do comentador da edio parisiense:

    O que tambm se pde dizer da velhice, a qual por muyto pobre que seia aos sabedores nunqua he graue. Nem aos ignorantes, e que carecem de vertude leue, per riqua, e abondossa que seia (p. 20-21).

    Damio de Gis parece motivado pela preocupao de sublinhar de modo particular a ideia de que as condies materiais no podem afectar a velhice do homem sbio. Ora tal leitura, com a sua velada conotao de utilidade da penitncia, apontava para uma interpretao algo cris-tianizada do De Senectute, de que outros indicadores nos parecem existir no texto.

    No entanto, nada permite impor esta identificao do passo, j que se pode opinar que a frase considerada no corresponde exacta-mente ao perfil daquela que Clenardo teria comentado.

    Se mantivermos a mesma base de pesquisa, buscando os locais do texto assinalados pela crtica coeva, poderamos apontar como hiptese uma outra frase, pertencente ainda ao mesmo pargrafo e respeitante s arma senectutis:

    non solum quia nunquam deserunt, ne extremo quidem tempore aetatis (3, 9).

    A edio parisiense de que temos vindo a fazer uso nada traz de anotado sobre este passo (fo. XI r). Mas, consultando uma outra edio, a das Opera omnia de Paris, 1565, apresentada como contendo textos ex auctoritate codicum manuscriptorum emendatos, sob a responsa-bilidade de Dionysius Lambinus, verificamos que este comentador anota que o advrbio temporal nunquam falta em alguns cdices, e talvez com razo, observa ele, porque se segue a negao ne, quae vna satis est (24).

    Se alguma pertinncia for de conceder evocao desta frase, ela resultar do facto de se enquadrar no tipo de exemplos utilizados

    (24) Opera Omnia (...) a Dionysio Lambino Monstroliensi (...) Lutetiae, In Aedibus Rouillij (...), T. IV, M.D.LXVI, p. 501 a.

  • DAMIO DE GOIS E O LIVRO DA VELHICE 201

    pela crtica gramatical do tempo. Basta pensar nas Elegantiae de Valia, onde se recorre tambm a um exemplo com nunquam no cap-tulo sobre De usu Negationis (Liv. III): Trs aliquando negationes non plus efficiunt quam duae, collocatione ipsa dictionum efficiente, Vt nunquam mihi nec obfuisti, nec profuisti (fo. LIIH v da edio ascensiana de Paris, 1521).

    Na ausncia de outros elementos, cremos que os testemunhos da sensibilidade da crtica textual da poca aos locais e aos problemas de incidncia interpretativa podem constituir um auxiliar a no menos-prezar. E que a questo das construes negativas assumia impor-tncia no s gramatical mas tambm retrica evidencia-o o facto de Bade Ascense ter procurado enriquecer a sua edio das Elegantiae de Valia com a nota De usu negationum de Bud, transcrita das Adnotationes in Pandectas: Vt interdum duae negationes non plus quam vna pollent: vt si dicas, nunquam mihi nec obfuisti nec profuisti. sic interdum vna negatio, duarum negationum instar est, duntaxat adiuvante vi verbi (fo. XXXI v).

    Ser que a frase citada, com um nunquam que Lambin h-de con-siderar suprfluo, no respondia s preocupaes de Gis em no dimi-nuir a fora do sentido da frase, com o argumento de que, se tal se verificasse,

    ipsum sensum auferas et senectuti imponas, si uacaret mune-ribus iiis, quae posset sine uiribus sustinere?

    Essas uires eram as leis e os princpios que permitem velhice liber-tar-se daqueles trabalhos s realizveis com o vigor e as foras fsi-cas (25). A eliminao do nunquam no enfranqueceria o sentido do valor concedido ao conhecimento e ao exerccio das virtudes (as artes exercitationesque uirtutum)? Gis pensava que sim e por isso traduz da seguinte forma:

    No tamsoomentes por nunqua nos desempararem, nem no derradeiro tempo da vida (p. 21).

    Fosse este ou outro o passo que merecera a crtica de Clenardo, o certo que ele se relacionava intimamente com o exemplo evocado

    (25) A. Torres, Noese e Crise, cit., I, p. 140, 11. 39-41.

  • 202 JORGE A, OSRIO

    mais frente a propsito dos pases cujo Estado fora posto em runa pelos jovens, mas salvo depois pelos velhos:

    mximas res publicas ab adulescentibus labefactas, a senibus - sustentatas et restituas reperietis (6, 20).

    Interpretar de outro modo no seria incorrer no erro de desvalorizar a velhice, atribuindo a Ccero um pensamento oposto ao seu (unde ipsum Ciceronem mendacissimum redderemus), ou seja, a ideia de que os negotia publica deviam ser cometidos aos jovens e no aos velhos? Por isso negationes nullo pacto adimendas esse! Nem ele, Gis, acreditava que o seu amigo Clenardo subscrevesse uma to imprudente sententia (26).

    Eis-nos no limiar no s do significado que Gis atribua mensa-gem do Cato Maior, mas tambm do sentido e da inteno subjacentes prpria edio, conforme atrs apontmos, tal a nfase posta neste menosprezo pela capacidade dos iuuenes para a gesto das res publicas !

    Mas antes de avanarmos, convm situar o texto da traduo goisiana perante a verso latina que lhe ter servido de fundamento. Tudo leva a crer que Damio de Gis utilizou, para o efeito, alguma edio erasmiana que inclua o De Senectute, se que no foi a que oferecia, como a parisiense de 1536, um texto fixado por Francisco Sylvus, com as anotaes de Erasmo. Na impossibilidade de dis-pormos de outras edies erasmianas do Cato Maior, recorremos a um exemplar desta ltima existente na Biblioteca Pblica de vora (27).

    (26) O problema insere-se, ao que se nos afigura, na questo do valor da dupla negao, que se revestia de uma faceta lgico-gramatical e de uma outra ret-rico-estilstica. Lorenzo Valla ocupara-se do assunto numa perspectiva mais esti-lstica do que dialctica, apoiado na experincia fornecida pelo uso da prpria lngua e no nas implicaes do raciocnio dedutivo-dialctico ; por isso remetia o leitor para as suas discusses dialcticas: Caetera quae de natura negafionum disputari soient, in libros dialecticae nostrae contulimus, quae ideo praeterimus, quod fere non sunt ignota oratoribus, dialecticorum vero nemini cognita (Elegantiae, ed. pari-siense de 1521, fo. LV r.). O problema repercutiu-se nos autores humanistas; cf. Jacques Chomarat, Grammaire et Rlitorique chez rasme, Paris, 1981, T. 1, p. 231; Francisco Rico, Nebrija frente a los brbaros, Salamanca, 1979, p. 66.

    (27) O exemplar a que, em nota supra, fizemos referncia tem a cota See. XVI, f 554. No se conhecendo as condies concretas da elaborao da traduo goi-

  • DAMIO DE GIS E O LIVRO DA VELHICE 203

    So variados os locais reveladores da dependncia da traduo portuguesa de uma lio do texto similar da que a edio de Paris acima citada oferecia. Para alm daqueles passos j atrs utilizados, muitos outros poderiam ser indicados; limitemo-nos, porm, aos que se afiguram mais eloquentes e elucidativos.

    De todos, o mais significativo para este aspecto ser talvez o passo 11, 36, onde Ccero menciona uma citao de Ceclio Estaco sobre os velhos caricatos: Nam quos ait Caecilius "cmicos stultos senes" hos significat crdulos.... Damio de Gis fez a seguinte traduo: Porque aquelles que Caecilio cmico chama velhos destam-pados (p. 54), o que evidentemente denuncia ter seguido uma lio do tipo Caecilius comicus, como vem de facto na edio de Paris de 1536: N quos ait Caecilius Comicus... (fo. XLVI r.), lio que efectivamente transmitida por um manuscrito do sc. xn (ms. Q), acolhida tambm por outras edies, como por exemplo a que saiu em Veneza nesse mesmo ano de 1536 (28). Outros editores, porm, fixaram para o passo uma lio correcta, como sucedeu na edio Opera omnia de Paris, 1565 (29). Mas na de 1536 de que temos vindo a fazer uso, o prprio Sylvios comentador frisava ainda mais no esprito do leitor que comicus se ligava a Caecilius, visto que se limitava a uma nota interpretativa sobre Stultos senes (fo. XLVII v.), sem se referir ao problema textual.

    Um outro testemunho diz respeito ao passo, j atrs referido, da resposta de Temstocles ao habitante de Serifo (3, 8). Os trs melhores cdices do texto do Cato Maior coincidem na oferta da lio genuna, sem a incluso da glosa ignobilis, ao invs de outros que a incluem, numa verso que foi aceite pelo editor parisiense de 1536:

    Nec hercle, inquit, si ego Seriphius essem: ignobilis esse (fo. XI r.).

    siana, parece admissvel que o recurso edio parisiense de 1536 no absolutamente incompatvel com a estadia em Itlia, sobretudo se aceitarmos que a tarefa no tenha sido levada a cabo sem interrupes. preciso ver que a dedicatria de Franciscus Sylvius Antonio Sylvio Pontifici Blitterensi datada de 1523, o que faz supor uma edio ou edies anteriores, que no pudemos confirmar.

    (28) Opera Omnia (...), Venetiis in officina Lucae AntoniiIuntae M.D.XXXVIl, T. IV, p. 506.

    (29) Ed. cit., T. IV, p. 410.

  • 24 JORGE A. OSRIO

    Foi este o texto utilizado por Gis na sua traduo, apesar de no ter sido acolhido pelos editores de Veneza, 1536, e de Paris, 1565(30):

    pellos Deoses te iuro, que s' eu fora Seriphio, nam fora porisso ignoble... (p. 20).

    Um outro caso curioso sem dvida aquele que se refere ao incio da dedicatria do Cato Maior, quando Ccero transcreve o verso de nio Ille uir, ha\id magna cum re, sed plenus fidei (1,1), e que Gis traduz assim:

    Por certo a mim cuem, Attico, fallar-vos nestas palauras, nas quaes aquelle poeta Ennio mais cheo de fe, que abundoso de riquezas, em versos falia ao mesmo Flaminio (p. 11).

    Aqui Gis revela ter-se deixado influenciar por uma anotao do tipo Ennius dicit constante da edio de 1536 (fo. II r.), estabelecendo assim a relao entre o autor do verso e o sujeito da enunciao nele contida.

    Para alm do passo respeitante carreira poltica de Cato, j atrs apontado, outros locais e pormenores evidenciam a dependncia da traduo portuguesa de Gis face a um texto acolhido por alguma edio como aquela que utilizamos aqui. Deste modo, nos versos de nio citados em 6,16, Damio de Gis segue a lio com ruina em vez de uiai, na esteira de 1536 (fo. XXVI v.)(31):

    ... aguora per maa csideraam os queres destroir? (p. 31).

    Ora o tradutor podia ter presente o comentrio de Sylvius, que sobre a citao dizia que em cdices antigos lia sese flexere via, n ruina,

    (30) Estes editores adoptaram a verso si ego Seriphius essem nobilis (p. 501 e p. 406 respectivamente; alm disso, Lambin, na p. 501 a, no introduz qual-quer anotao ao local); fcil ver que a lio nobilis pretende solucionar o problema por meio de um compromisso.

    (31) Trata-se dos versos de nio, Ann., IX, 202: Quo uobis mentes, rectae quae stare solebant Antehac, dementes sese flexere uiai?

  • DAMIO DE GOIS E O LIVRO DA VELHICE 205

    mas considerava que certe ruina melius script videtur, vt mentes quam stabant, ruerint (fo. XXVIII r.).

    Outro exemplo encontra-se em 7, 23, num philosophorum prin-cipes; Damio de Gis segue claramente a lio principem, que surge na edio comentada por Slvio, at talvez porque este, registando embora a existncia de principes em cdices antigos, entende ser prefervel seguir neste ponto Teodoro Gaza, que liga principem a Pythagoram (fo. XXXIII v.):

    ou ao principe dos philosophos Pythagoras (p. 39).

    Enfim, e para no alongarmos demasiado a enumerao de por-menores, j que todos tendem a convergir na mesma concluso, apon-temos um outro que se reveste de algum significado. Trata-se do passo 16, 58 : Sibi habeant igitur arma (...) sibi uenationes, na lio adoptada pelo editor da coleco Les Belles Lettres, ou sibi natationes, na que foi seguida pela edio teubneriana. Damio de Gis traduz: Guardem os mancebos pera si as armas, (...) e o ioguo da pela, e o nadar, e o correr (p. 82). evidente que no comenta a questo filolgica, mas podia ter-se inspirado na opo que tambm faz o editor parisiense, que regista venationes (fo. LXIX v.), socorrendo-se da verso de Teodoro Gaza, quae lectio mihi n displicet (fo. LXXI r.).

    Cremos poder concluir que a dependncia da traduo portuguesa de Damio de Gis em relao a um texto como o parisiense parece altamente provvel. E se certo que Erasmo s chegou a anotar os Officia (32), a incluso de notas na edio de 1538 do texto portugus denuncia a sua dependncia de alguma outra edio comentada que, pelos sinais atrs indicados, admitimos ter sido a sada tambm em Paris. No entanto, cumpre fazer notar que as notas que acompanham a tra-duo portuguesa no coincidem, no seu texto, com as do comentrio de Sylvius, normalmente muito extensas e de cariz fundamentalmente filolgico. Damio de Gis no as podia transcrever, at porque muitas delas incidiam sobre questes que a traduo no permitia colocar perante o leitor. Basta citar o caso do termo occaecatum em 15, 51: primum id occaecatum cohibet ex quo occatio quae hoc efficit nominata est. O editor parisiense de 1536 dedica uma nota

    (32) Cf. J. Chomarat, ob. cit., T. I, p. 457,

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    a este passo (fo. LX1 v.-LXII r.), para justificar a opo de occaeca-tum em vez de occatum que lia in antiquis codicibus e explicar o seu sentido. Ora qual o procedimento de Gis? Para evitar a obscuridade que, no texto portugus, instituiria a nota etimolgica de Ccero, opta por traduzir no as palavras, mas a sentena:

    ... a qual depois d' alqueeuada, e laurada, recebe em sim a semente que lhe lana, e a mesma primeiro gradada, inchando-a, e abrindo-a com seu vapor, e natural temperana... (p. 73).

    Mas tudo isto sem qualquer nota explicativa. No entanto, se Gis procedeu a uma seleco de notas para a sua

    traduo, no deixou tambm de recorrer ao comentrio para reforar, de certo modo, a informao junto do seu leitor. Assim que, ao traduzir as palavras de nio citadas em 20,73, escreve:

    ... mas em verdade milhor dizia Ennio nestas palauras. Nin-gum honre minha morte c lagrimas, n me faa exquias c choro, por q? Porq minha memoria para sempre vieur na boca dos homes (p. 98-99).

    Ora na nota 139 elucidava ele o leitor: Estes versos tyramos do primeiro liuro das thosculanas, os quaes aqui Cicero n recitou todos. Ter, de facto, Gis ido buscar ao texto latino das Tusculanas o complemento do passo de nio, ou no ter recorrido antes nota de Sylvius a este local: Illud autem est apud Ciceronem libro Tusculanar .j. (fo. LXXXIII v.), onde vm citados outros dois versos do epitfio (33)?

    2. Mas no basta situar o texto da traduo goisiana face a uma edio da obra ciceroniana que lhe ter servido de fundamento. Cre-mos que ainda necessrio recorrer influncia erasmiana para situar a mensagem dessa traduo. Importa, por conseguinte, procurar observar como Damio de Gis inscreveu a sua leitura do De Senectute num plano transparentemente erasmiano, denunciado j na dedicatria ao Conde de Vimioso no momento em que faz o elogio das suas relaes

    (33) Tusc, 1, 48, 117: Mors mea ne careat lacrimis; linquamus amicis Maerorem, ut clbrent funera cum gemitu.

  • DAMIO DE GIS E O LIVRO DA VELHICE 207

    pessoais com Erasmo. O texto tem um ntido sabor lembrana saudosa de um Erasmo j desaparecido, a relembrar, por sua vez, a evocao constante da carta de Gis a Jernimo Cardoso, anos mais tarde, cheia de uma saudade que o retrato de Diirer, alegadamente da figura do Holands, mais ajudava a avivar.

    bvio que a in Linguam Lusitanicam Ciceronis de Senectute uersionem no constitui, em si mesma, um texto erasmista; mas no menos verdade que a referncia evidente s muytas sanctissimas confabulaes possui um ntido sabor erasmista, pois que evoca, de imediato, as confabulationes que eram em si os Colloquia familia-ria. Parece quase impossvel que, ao usar a expresso na dedicatria da sua edio de 1538, Gis no tivesse em mente esses colloquia e de modo particular o Convivium religiosum, precisamente aquele dilogo onde, pela boca de Eusbio, Erasmo deixara expressa a sua enorme admirao por Ccero e nomeadamente pelo De Senectute:

    non possum lgre libram Ciceronis de Senectute, de Amicitia, de Officiis, de Tusculanis quaestionibus, quin aliquoties exosculer codicem ac venerer sanctum iilud pectus afflatum coelesti numine (34).

    O passo surge no incio de uma conhecida tirada de Eusbio, o piedoso, aberta com a afirmao solene de que Imo prophanum dici non debet, quicquid pium est et ad bonos mores conducens; por isso, livros de autores antigos como Ccero e Plutarco autores morais eram muito mais eficazes para o ensino de uma verdadeira moral do que os livros de um Duns Escoto, cum aliquot sui similibus (35). Ora, e como registava o clofon da edio parisiense do Cato Maior com as notas de Erasmo, a obra era mesmo o liber aureus de Ccero...

    O Convivium religiosum de 1522, ou seja, daqueles anos do incio da dcada de vinte em que Erasmo mais alto eleva o seu fervor por Ccero (36). Logo no ano seguinte, em 1523, sai em Basileia a sua edio das Tusculanas, impressas por Froben, cujo prefcio mostra

    (34) Opera Omnia Desiderii Erasmi Roterodami, Ordinis Primi, Tomus Tertius, Amsterdam, 1972, p. 251.

    (35) Ibidem, P- 252; cf. J. Chomarat, ob. cit., , p. 434. (36) Charles Bn, rasme et Cicron, in Colloquia Erasmiana Turoniensia,

    Paris, 1972, Vol. II, p. 571 ss.

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    como, para Erasmo, ao lado do Antigo Testamento, de S. Paulo, dos Evangelhos, o pensamento religioso e moral de Ccero podia inspirar no s a reflexo do cristo, mas tambm os seus sentimentos, a sua conduta, a sua atitude perante a vida e perante a morte, isto e em suma, ser visto como fonte de piedade (37).

    Uma tal admirao erasmiana por Ccero provinha dos anos da adolescncia, mas, a partir da polmica com Lutero, tende a sofrer uma inflexo no sentido do comedimento. No entanto, no interior do movimento humanista, com o seu enraizado reconhecimento da utili-dade e das vantagens da leitura dos autores antigos, Erasmo podia quase cristianizar as almas de Scrates e de Ccero, num passo clebre do j referido Convivium feligiosum (38). Damio de Gis, que trava conhecimento directo e familiar com Erasmo j nos ltimos anos da vida do humanista (39), foi de certeza cativado por essa pietas docta do Holands, profundamente ciceroniana. No ser possvel apontar a origem da sua traduo portuguesa no estmulo que lhe ter dado o seu anfitrio de alguns meses em Friburgo, em 1534?

    De Senectute, De Amicitia, De Officiis, Tusculanae Disputationes: eis um corpus ciceroniano que, desde a Patrstica, acompanhava a cultura e a literatura crists e que, atravs do sonho de S. Jernimo, onde este fora julgado ciceronianus e no christianus, chega apologia da leitura dos autores antigos pelos cristos que Loureno Valia faz na introduo ao Livro IV das suas Elegantiae Latinae. Um Ccero que esteve presente na cultura medieval e que Petrarca, no De sui ipsius et multorum ignorantia Liber, coloca entre os filsofos e poetas que mais apreciava 1er, pelo seu engenho e estilo, desde a juventude, ab adoles-centia delectatus sum (40). Mas um Ccero editado por esse Erasmo que foi, ele tambm, grande e incansvel promotor de edies de autores clssicos latinos.

    No Convivium religiosum, o Cato Maior merece lugar de especial relevo, sobretudo pela utilizao, quase textual, do passo sobre o elogio

    (37) Cf. Jacques Chomarat, Sur rasme et Cicron, in Prsence de Cicron, Hommage au R. P. M. Testar, Paris, 1984, p. 117 ss., em especial p. 126.

    (38) Cf. Giulio Vallese, rasme et Cicron, in Colloquia Erasmiana Turo-niensia, cit., Vol. I, p. 241 ss., em particular p. 244; cf. ASD, p. 254.

    (39) Cf. Franz Bierlaire, La Famlia d'rasme. Contribution l'histoire de l'humanisme, Paris, 1968, p. 96-97.

    (40) Francesco Petrarca, Prose, a cura di G. Martellotti et alii, Milo-Npo-les, 1965, p. 724.

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    da coragem perante a morte, em palavras que, tenham sido de Cato ou de Ccero, justificavam plenamente a questo: Quid ab homine Christiano dici potuit sanctius? (41). Mas se, em 1523, Erasmo destacava claramente o De Senectute, a verdade que haviam sido sobretudo o De Officiis e as ento designadas Tusculanae quaestiones os tratados de Ccero mais acarinhados pelo Holands. O primeiro fora editado por ele j em 1501, com uma carta-dedicatria a Jacques Voecht, onde o livro chamado, como habitualmente, obra verdadei-ramente de ouro (42), e, aps reedies, enriquecido, em 1513, de novo prefcio, surgido em tempo das polmicas que iriam acentuar-se nos anos seguintes, no qual se reafirmam os elogios obra ciceroniana. O segundo tratado, talvez ainda mais do que este, constitui um verda-deiro guia espiritual do Renascimento, conforme recentemente subli-nhou o Prof. Jean-Claude Margolin (43) ; a sua edio independente

    (41) ASD, p. 252, 1. 643. Lus Vives, que ensinou largos anos em Lovaina e de que Gis incluiu uma carta nas Epistolae impressas a em 1544, recomendava vivamente tambm a leitura de Ccero e do Cato Maior; no opsculo sado em Lovaina em 1518, Anima senis, apontava essa obra como um verdadeiro compndio cuja leitura era indispensvel (Cf. Fidel Agudo Snchez, Vives y el humanismo cicero-niano, in P. Sainz Rodriguez et alii, Homenaje a Luis Vives, Madrid, 1977, p. 144-145) ; e no Liber in Pseudodialectcos, editado em 1519 no mesmo local, considerava que aqueles que, durante toda a vida, se dedicaram s umbratilae pugnae e s conten-tiosae altercationes da lgica escolstica, chegavam velhice e Alia nulla habent quae loquantur, ou seja, nada encontram de humano para conversar (Cf. Juan Luis Vives, In Pseudodialectcos. A Critical Edition by Charles Fantazzi, Leida, 1979, p. 83-85). E no esqueamos que um humanista to erasmista como Juan Maldonado reescreveu o tratado ciceroniano em perspectiva interiorista no seu De senectute Christiana (Cf. Eugnio Asensio e Juan Alcina Rovira, Paraenesis ad lit ters: Juan Maldonado y el Humanismo espanol en tiempos de Carlos V, Madrid, 1980, p. 44). Compete, no entanto, no perder de vista que a imagem da velhice nem sempre se fixou, entre os humanistas, nos moldes dignos que lhe dava a obra de Ccero ; cf. Sebastio Tavares de Pinho, O Poema da Velhice de Lopo Serro, disserta-o de doutoramento dactilografada, Coimbra, 1983.

    (42) Correspondance d'rasme, T. 1, 1484-1514, traduction et notes de Marie Delcourt, Bruxelas, 1967, p. 332.

    (43) Jean-Claude Margolin, Les Tusculanes, Guide spirituel de la Renais-sance, in Prsence de Cicron, cit., p. 129 ss. A influncia das Tustulanas na forma-o dos homens de letras como Lus de Cames foi evidenciada pelo Prof. Amrico da Costa Ramalho, Os Estudos de Cames, Anurio da Universidade de Coim-bra (1980-1981), em especial p. 40-41 ; mas do mesmo Prof, veja-se Cames e o huma-nismo renascentista, Actas da IV Reunio Internacional de Camonistas, Ponta Del-gada, 1984, em particular p. 498 ss.

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    em 1523 foi acompanhada de um importante prefcio, onde so evoca-das as altae cogitationes de vera hominis felicitate, de particular relevo para o homem interior, sobretudo em tempos to difceis e de to grandes tumultos na vida pblica como haviam sido aqueles em que Ccero escrevera as Tusculanas. Ora, como tem sido recentemente realado, com certeza este o texto onde Erasmo mais explcito se revela na sua admirao pelo pago Ccero, cujo valor moral e liter-rio apontava aos homens cultos do seu tempo.

    Mas se o De Officiis e as Tusculanae disputationes haviam merecido uma leitura cuidada de Erasmo, traduzida nas anotaes, quase sempre rpidas e sem extensos comentrios que impedissem a leitura quotidiana de textos oferecidos pelas suas edies (44), j o De Senectute no chegou a ser comentado por ele (45). Tal no significava, porm, menor ateno ao seu contedo, como revela a importncia que lhe concede, nomeadamente a propsito da questo da morte, no Convivium reli-giosum. A verdade que, se as Tusculanas conhecem diversas edies independentes, o Caio Maior s em 1535, a um ano da morte do huma-nista, sair em edio prpria em Paris; mas o texto era, certamente, aquele que havia sido adoptado nas edies conjuntas precedentes.

    Contudo, tempo de perguntar: porqu o Cato Maiorl Porque no o De Officiis ou o De Amicitial O De Officiis livro importante no s para Erasmo, como tambm para o movimento que sob o seu nome se acolheu. Na j citada carta-prefcio a Voecht, de 1501, o livro dito um enchiridion que, segundo o conselho de Plnio o Jovem, se devia ter sempre mo (46); mas na edio de 1520, Erasmo retira do prefcio, agora renovado, o termo enchiridion, utilizado para o Enchiridion militis christiani desde 1503, porque e nisto h que con-cordar com Charles Bn o facto de elogiar e acentuar o valor moral dos tratados pagos no significava, em Erasmo, que as Letras sagradas deixassem de desempenhar o papel fundamental na luta do homem contra os vcios, em busca da santidade (47). E assim se compreende que o Holands, em obras to devotas como o Modus orandi, que tanto

    (44) Charles Bn, rasme et S-int Augustin ou Influence de Saint Augustin sur l'humanisme d'rasme, Genebra, 1969, p. 345-346.

    (45) J. Chomarat, Grammaire et Rhtorique, cit., p. 457. (46) Correspondance, cit., p. 332; Erasmo retoma o tpico no Conuiuium

    religiosum, ASD, p. 242, 1. 335-336. (47) Ch. Bn, rasme et Cicron, cit., p. 573.

  • DAMIO DE GIS E O LIVRO DA VELHICE 211

    cativou os meios espirituais peninsulares (48), postulasse, como leituras mais teis para preenchimento dos momentos de cio dos prncipes, obras como as sentenas de prncipes recolhidas por Plutarco, a Cirope-dia de Xenofonte, a Poltica, o Econmico e a tica de Aristteles e, enfim, os Ofcios de Ccero, do que, por exemplo, as rezas por livros de horas (49). Tratava-se, note-se, de leituras aconselhveis ao prncipe. No entanto, j Marcel Bataillon fez notar, com clareza, que as tradues de livros de moralistas antigos ocupam um lugar muito importante na literatura erasmiana peninsular; e a era naturalmente reservado um espao privilegiado aos tratados ciceronianos como o De Officiis e as Tusculanae disputationes, a par do Sominum Scipionis, com certeza sob a influncia do panegrico que traado no passo do Convivium reli-giosum atrs citado (50).

    Significava isto que o clebre tratado de Ccero sobre os deveres que, note-se, no tem a forma dialogada, ao invs de outros con-tinuava a merecer o favor do pblico letrado, numa tradio que pro-vinha j do De Officiis ministrorum de Santo Ambrsio (51) destinado aos ambientes monsticos e, em tempos bem mais prximos de Gis, nas tradues e aproveitamentos diversos (52).

    Quanto ao Laelius de Amicitia, a sua carreira acompanha a do tratado sobre os deveres na bibliografia erasmiana (53), sem, contudo, haver alcanado o lugar cimeiro que coube aos Ofcios e s Tusculanas nos favores de Erasmo. Alis o seu contedo no seria to facilmente cristianizvel como o dos outros dois tratados e talvez por isso mesmo o erudito que o traduziu em 1537 em Paris, Jean Collin, tenha sentido a necessidade de utilizar passos de S. Mateus e de S. Paulo para afirmar que la nature de ce livre est conjoinct la loy evangelique (54).

    (48) Marcel Bataillon, Erasmo y Espana. Estdios sobre la historia espiritual dei siglo xvi, Mxico, 21966, p. 572 ss.

    (49) Ibidem, p. 577. (50) Ibidem, p. 627-628. (51) M. Testard, Saint Ambroise et son modle cicronien dans le De Offi-

    ciis, in Prsence de Cicron, cit., p. 103 ss. (52) R. Lebgue, Interprtations chrtiennes d'auteurs paens, in Cou-

    rants religieux et humanisme la fin du XVe et au dbut du XVIe sicle, Paris, 1959, p. 42; cj. Jean-Pierre Massaut, Josse Clichtove, L'humanisme et la rforme du clerg, Paris, 1968, T. 1, p. 403.

    (53) Haeghen, Bibliotheca Erasmiana, 2e Srie, cit., p. 19 cita uma edio independente do Laelius siue de amicitia, Paris, 1530.

    (54) R. Lebgue, art. cit., p. 42.

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    Todavia, apesar deste ambiente e no obstante Erasmo, no auge da sua apologia de Ccero no Convivium religiosum, apontar o homem cristo, o homo christianus, como destinatrio privilegiado de tais obras, Damio de Gis no optou por nenhum de ambos os tratados consi-derados. Porque foi insensvel, por exemplo, ideia de que a atitude atribuda pelo Arpinate a Cato no relativo morte prxima, con-substanciada no Nec me vixisse poenitet, quoniam ita vixi, vt frustra me natum non existimem (55), podia levantar, do ponto de vista cristo, objeces quanto sua aceitao, o que levou o autor da tra-duo do citado De Senectute para castelhano, Fray Alonso de Virus (56) a precisar con mayor cuidado lo que impedir que un Cristiano pronuncie esas palabras de Cato? O certo que, na sua traduo, Gis no cuida de esbater, por pouco que seja, a afirmao de plena confiana que a afirmao de Cato comportava em perspectiva crist (57).

    Mas olhando noutra direco, no ter sido Damio de Gis levado a escolher o texto do Cato Maior porque, em lngua portuguesa, existiam j verses do De Officiis e do De Amicitial

    O De Officiis tinha merecido a ateno e o interesse do Infante D. Pedro, porque, enquanto os outros mui boos livros que trautam da philosophia moral se limitavam a considerar que causa som as vir-tudes, quanto, por que, como devem ser prezadas, este declara como em cada virtude nos devemos aver e que maneira em cadaha obra devemos de teer pra guardar ou cobrar estado virtuoso (58). Para D. Pedro avultava a utilidade prtica do tratado ciceroniano, isto a sua utilidade para o novo contexto moral e cultural que decorria tam-bm da evoluo social e das perspectivas que a nova dinastia portu-guesa, com a sua concepo de modelo de monarca e de homem da nobreza, parecia pretender equacionar (59). Mas no crvel que

    (55) SD, p. 252, 1. 639-640. (56) M. Bataillon, Erasmo y Espana, cit., p. 305. (57) Na edio cit. de Lisboa, 1845, p. 111: Ne m'arrepdo do modo q viui

    por que viui de modo q n cuido ser nacido debalde neste mudo. (58) Livro dos Ofcios de Marco Tullio Ciceram o qual tornou em linguagem

    o I/ante D. Pedro Duque de Coimbra, Edio crtica de Joseph Piei, Coimbra, 1948, p. 3-4.

    (59) Basta recordar a comparao que Vasco de Lucena faz entre D. Joo I e Alexandre Magno, colocando-o a par dos dois duques de Borgonha, Philippe le

  • DAMIO DE GIS E O LIVRO DA VELHICE 213

    Damio de Gis tivesse excludo a ideia de traduzir o De Officiis pelo facto de ter sido feita anteriormente a traduo do Infante, no s porque poder, muito provavelmente, no a ter conhecido, mas tambm porque a leitura que o Infante procurara sublinhar, dependente ainda de uma viso cavaleiresca da dignidade do homem e do nobre (60), se coadunaria mal com o interiorismo que Erasmo encontrava no tratado de Ccero. E no esqueamos que Gis apresenta a sua tra-duo numa dedicatria onde as marcas espirituais da sua convivncia com o humanista de Roterdo so claramente evocadas.

    Para o De Amicitia poderia aventar-se, como mais provvel, o conhecimento da traduo recente levada a cabo por Duarte de Resende, que saiu dos prelos de Germo Galharde, em Coimbra, no ano de 1531 (61). Impresso em caracteres gticos redondos, o volume inclua ainda a verso portuguesa dos Paradoxa e do Somnium Scipionis; como se v, literatura escolhida pela sua incidncia moral e no por qualquer preocupao retrica ou de paradigma de eloquncia.

    A dedicatria de Duarte de Resende vem dirigida a Garcia de Resende, da casa dei rey nosso senhor y escrivo de sua fazenda, e justifica a iniciativa pelo proveito que lhe parecia advir a nossa nao portuguesa, visto que via em muytos esta amizade andar errada & simulada (fo. ai v.). O objectivo explicitado situa-se, portanto, no plano claramente moral e doutrinrio. Endereada a um corteso to importante e influente, a doutrina sobre a amizade como

    Hardi e Jean sans Peur; cf. Robert Bossuat, Vasque de Lucene, traducteur de Quinte--Curce (1468), Bibliothque d'Humanisme et Renaissance, Genebra, VIII (1946), p. 211.

    (60) A focagem cavaleiresca e corts das histrias antigas, herdada das narrativas anteriores sobre a matria antiga, patenteia-se no prlogo da verso portuguesa da Vida e Feitos de Jlio Csar, Edio crtica de Maria Helena Mira Mateus, Lisboa, 1970, p. 5: Grande debate foe antre os anciaos por saber como a cavalaria poderia seer mais exalada, se per fora de corpo ou per virtude e engenho.

    (61) Marco tulio cicerom de Amicicia I paradoxas & sonho de Scipio. tira]do em lingoage portuguesa per Duar/te de Resede caualeyro fidalguo da / cassa dei rey nosso senhor; o clofon indica que a impresso foi realizada por Germo Galharde, em Coimbra, tendo sido terminada em 30 de Agosto de 1531. Recentemente foi feita uma edio com actualizao do texto por Maria Leonor Carvalho Buescu, j cit., que, entre outras deficincias, continua a datar a edio do Livro da Velhice de Veneza no ano de 1534 (p. 13, n. 1) e desconhece a existncia de um exemplar da l.a edio do texto de Duarte de Resende na Biblioteca do Pao Ducal de Vila Viosa, de que nos servimos aqui.

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    elemento de solidariedade social dirigia-se, provavelmente, Corte ou, por outras palavras, ao grupo social que tinha na Corte a expresso mais elevada da sua projeco social. No deveria esse grupo esclarecer e iluminar os fundamentos da sua prpria conduta social e moral, solidificando-os com os modelos e exemplos bem estruturados de uma antiguidade que legara concepes fundamentais sobre a noo de Estado e das razes que cabem a cada grupo social que se move no seu interior? No valeria a pena actualizar, por meio da traduo, alguns textos, cuja utilidade se patenteava no interesse por eles revelado (62)?

    A estas perguntas respondiam certamente as primeiras linhas da dedicatria de Duarte de Resende, relativas ao dano causado aos homens que no possuem conhecimto das cousas senam despoys q com grande dano ou proueyto seu: sente em sy o mal ou bem q delias lhe vem: o q na verdade nam deuia assy ser. Face a esta experin-cia moral, note-se definida como fundamento do conhecimento e da conduta moral, Resende apontava a utilidade e a riqueza do conhe-cimento obtido atravs das letras, o que equivalia, certamente, a uma perspectiva de ntido recorte humanista e renascentista.

    O plano de Duarte de Resende era ainda mais audacioso: para alm dos textos ciceronianos que o impressor coimbro acabou de dar estampa em finais de Agosto de 1531, havia ainda traduzido para portugus o De Senectute e o De Officiis. Porque no os editou tambm? Porque entretanto soubera da sua impresso em castelhano, com certeza a edio de Sevilha, de 1501, na traduo de Alonso de Cartagena (63), que, a propsito do Cato Maior, elogiava a eloquncia de Ccero seu autor, no deixando muito embora de notar que ele no alcanara verdadera lumbre de fe, mas frisando bem que o tratado era til ao cristo para que ms pronto se halla para la lectura principal de la Sacra Escritura (64). bvio que Duarte de Resende desco-nhece totalmente as tradues da primeira metade do sc. xv, visto que nem refere a do Infante D. Pedro para o De Offiiss nem alude quela que o mesmo Infante mandou fazer ao Dr. Vasco Fernandes de Lucena (65).

    (62) Cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Nas origens do humanismo ociden-tal: os tratados filosficos ciceronianos, Revista da Faculdade de Letras, Porto, II (1985), p. 7.

    (63) M. Bataillon, Erasmo y Espana, cit., p. 49-50. (64) Ibidem, p. 51. (65) Livro dos Ofcios, ed. Piei, cit., p. XLIII.

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    O conjunto de textos doutrinrios de Ccero traduzidos por Duarte de Resende era ainda, com certeza, reflexo do sucesso obtido pelas edies erasmianas que vinham, havia trs dezenas de anos, divul-gando pela Europa esses tratados morais, que o pblico culto e huma-nista ia, por sua vez, consumindo regularmente. E no devemos menosprezar as relaes de Duarte de Resende com Joo de Barros : a ele que dedicada a Ropica Pnefma, impressa em Lisboa pelo mesmo Germo Galharde em 1532, nos mesmos caracteres redondos que haviam servido para os textos traduzidos por Resende. Ora, atravs de Barros, chegamos junto de um crculo de humanistas como o mdico Antnio Lus, que lhe dedica o seu De Pudore e os Erotematum libri, e como Lus Vives, que lhe dedica um conjunto de exerccios de oraes espi-rituais (66).

    Parece-nos quase impossvel que Damio de Gis estivesse alheio a esses meios humanistas. Mas ter sido o conhecimento das razes que levaram Duarte de Resende a no fazer imprimir a sua traduo do De Senectute que o impulsionou a tentar essa iniciativa?

    3. No vale a pena arquitectar explicaes fundadas unicamente em suposies, at porque a figura de Duarte de Resende muito mal conhecida (67). Pela nossa parte inclinamo-nos mais afoutamente para a ideia de que Gis haja tomado a peito traduzir o De Senectute sob a influncia de razes que tm mais a ver no s com o contedo do prprio tratado, mas tambm com o ambiente erasmiano que evoca na sua dedicatria ao Conde de Vimioso.

    Afigura-se-nos evidente que aquilo que prendia de forma mais profunda o leitor quinhentista ao De Senectute no haveria de ser o figura de Cato e a sua longa vida de um homo novus, que se impe pelo seu valor e pelo seu prestgio moral e militar (68); como tambm o tema cnico de que a velhice no , em si mesma, um mal no consti-tuiria o plo principal de atraco desse leitor. Contudo, j o princpio estico de que a virtude devia ser considerada o bem supremo e ingre-

    (66) Cf. Jorge Alves Osrio, L'Humanisme portugais et l'Espagne: Lus Vives et les Portugais ; propos d'un livre ddi Joo de Barros, in L'Humanisme portugais et l'Europe, Paris, 1984, p. 229 ss.

    (67) A introduo de Maria Leonor Carvalho Buescu recente edio j citada nada adianta sobre esta matria.

    (68) Cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de Histria da Cultura Clssica, II volume, Cultura Romana, Lisboa, 1984, p. 177.

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    diente fundamental para o alcance da felicidade devia ressoar mais prximo da reflexo de um cristo cultivado nas letras humaniores. De facto, a atitude de um sereno herosmo perante a morte prxima, que Cato denota na parte final do livro, bem como as repetidas invecti-vas contra os vcios e os prazeres corporais como fundamento da felici-dade constituam matria com largas zonas de coincidncia no terreno da doutrina crist, pese embora a ausncia de humilitas que o tra-dutor castelhano sentiu em algum ponto do livro (69).

    Cremos, porm, que talvez tivessem existido outros motivos que tero tambm conduzido Gis a prestar ateno cuidada ao tratado ciceroniano sobre a velhice. E esses motivos radicam ousamos afirm-lo na natureza literria do livro, que no deixava de oferecer convergncias vrias com alguns aspectos da produo literria de Erasmo, o anfitrio de Gis em Friburgo.

    Em primeiro lugar apontemos o carcter dialogado do Cato Maior, ou seja, a sua estruturao numa forma dialgica do discurso que tanto agradou a Erasmo (70), no propriamente o dilogo como maneira de acumular ou enumerar pontos de vista expostos em tiradas atribudas a sujeitos diferentes, mas sobretudo a variedade de que a expresso literria se reveste no De Senectute, aspecto a que Erasmo tanta ateno prestava e a que, ao que se nos afigura, Damio de Gis tambm no foi insensvel.

    Mais do que isto; o tratado ciceroniano relacionava-se com o gnero da diatribe, de ascendncia cnica, mas til para equacionar, de forma pragmtica, um assunto ou tema que pudesse ser analisado sob perspectivas ou matizes diversos (71). Ora a diatribe palavra que detm em Erasmo o sentido de uma discusso de natureza dialctica, ou melhor, de um discurso que se pretende portador de uma mais acen-tuada nfase na evidentia, merc, precisamente, do contexto mais pol-mico em que surgem os textos assim classificados por ele: o De Libero Arbtrio, de 1524, e as Hyperaspites Diatribae, de 1528, ambos escritos

    (69) Cl. M. Bataillon, Erasmo y Espana, cit., p. 305. (70) Cf. Jean-Claude Margolin, L'art du dialogue et de la mise en scne

    dans le Julius exclusus (c. 1513), in Le dialogue au temps de la Renaissance (dir. de publicao de M. T. Jones-Davies), Paris, 1984, p. 213 ss.

    (71) Cf. Alain Michel, L'influence du dialogue cicronien sur la tradition hilosophique et littraire, ibidem , p. 9, ss.

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    empenhados contra Lutero, quando o Holands viu esgotadas todas as tentativas de entendimento com o Reformador (72).

    Ora o tom apaixonado e at empolgado com que Cato defende a virtude contra a valorizao dos prazeres mundanos, que a um cristo soavam naturalmente como terrenos, bem como a apologia final da serenidade perante a morte podiam ser lidos como sinais de uma adeso ntima a essa doutrina e at talvez de certa identificao de um Erasmo j idoso quando Gis o conhece, incomodado pelos achaques da falta de sade, mas cativado pelo estoicismo catoniano, que no via colidir com a hurmliias prpria de um cristo to reflexivo como ele, Erasmo, sempre fora ao longo da vida.

    No parece ilegtimo admitir que as muytas sanctissimas con-fabulaes, que Gis durante alguns meses pde ter com ele em Fri-burgo, rondassem tambm em torno do tema da velhice e da morte. E, assim, a traduo bem poderia ser tambm uma homenagem figura de Erasmo.

    Cremos, todavia, que um outro tipo de consideraes ter conduzido Damio de Gis para o De Senectute. Efectivamente, este tratado de Ccero, escrito j no final da vida, argumentava a favor da ideia de que a boa velhice, isto , a idade que, pela sua extenso, havia per-mitido ao homem acumular um largo saber atravs da experincia e dos estudos (73), oferecia como caracterstica fundamental tornar possvel o pleno exerccio das faculdades mentais e morais do homem, visto que nela se verificava o apaziguamento das perturbaes que as incli-naes corporais e sensoriais impunham adolescncia e juven-tude (74). Por isso Ccero, servindo-se da figura de Cato para sujeito da enunciao de um discurso de fundo retrico, se detm na enfatizao

    (72) J. Chomarat, Grammaire et Rhtorique, cit., II, p. 1122. (73) o sentido que series assume em Erasmo, conforme nota J.-Cl. Margolin

    na sua edio da Declamatio de Pueris statim ac liberaliter instituendis, Genebra, 1966, p. 569 (n. 705, da p. 443). Alis, S. Toms, como j antes Isidoro de Sevilha, colocava o termo da juventude aos 50 anos; cf. Etienne Gilson, Autour de Saint Thomas, Paris, 1983, p. 37.

    (74) Erasmo dedicou um colquio a este tema, na edio de 1524 dos Colloqiria Familiaria; trata-se da conversa entre quatro ancios, cujo ttulo mais corrente Senile colloquium (ASD, p. 375 ss.), onde se destaca a figura, de ntido recorte eras-miano, de Glycion, no seu amor pelos livros e na recusa em se preocupar com os incommoda senectutis (p. 380, 1. 184).

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    da figura da velhice decrpita (75), onde os apetites corporais, ainda para cmulo desregrados e ridculos face tolerncia com que podiam ser vistos na juventude, surgem utilizados como ingredientes de uma retrica da dissuaso que visa enfatizar a imagem digna da velhice calma, a quem a juventude devia apelar para benefcio e fortalecimento da res publica.

    Ora a carta de Damio de Gis dirigida a Nicolau Clenardo, a que j fizemos referncia logo no incio deste trabalho, parece oferecer algum indcio de uma leitura goisiana decorrente do que fica dito em cima. Na verdade, e como vimos, nesse seu texto Gis chamava a ateno do destinatrio para o perigo que constituiria introduzir, no texto latino, uma emenda que pudesse conduzir a uma interpretao susceptvel de sugerir ao leitor um menor empenhamento de Ccero na defesa da velhice como elemento de alta utilidade na governao dos Estados. Damio de Gis lia o Cato Maior numa perspectiva que talvez pudssemos classificar de humanista, com um sentido de acumulao de saber letrado reflectido na prudentia, no plano da manifestao e da prtica social, oposta inconstncia da juventude, pois que o passo defendido por Gis diz precisamente respeito utili-dade dos velhos isto , dos homens de idade provecta na salvao dos Estados desorganizados pelos excessos dos mais jovens (76).

    No ser, por conseguinte, legtimo admitir que a leitura goisiana do De Senectute comportava uma direco semntica actualizante e que esta se orientava, por sua vez, para o terreno do pensamento poltico e da prpria prtica governativa? Por outras palavras, a traduo goisiana no estaria sintonizada com a valorizao que o humanismo renascentista faz do homem feito, resultante da formao nas letras

    (75) Era esta a imagem que parte da literatura medieval se comprazia em avivar; o Roman de la Rose inclua a velhice entre os vcios porque era feia (cf. Daniel Poirion, Le Roman de la Rose, Paris, 1973, p. 28-29). E o prlogo de Vasco Fernan-des de Lucena, a que se far adiante aluso, apontava como um dos principais bices da velhice a falta de memria, utilizando um tpico senequista (cf. Livro dos Ofcios, cit., p. XLIV).

    (76) Convm notar a opinio de Marslio Ficino; escudando-se em Plato na distino entre pueritia e senectus, considera que o sentimento religioso incutido nas crianas com o leite materno (Nam pueri cum lacte religionem sugunt), abandonado muitas vezes na adolescncia e s mais tarde, numa maturior aetas, recuperado; Cf. Thologie Platonicienne de l'Immortalit des Ames, d. de Raymond Marcel, Paris, II vol., 1964, p. 284-286 (L. XIV, cap. X) ; a fonte Plato, Leis, x, 887d.

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    desde o perodo da adolescncia, opondo, de certo modo, o ideal desse homem experimentado ao jovem dominado unicamente pelo impulso das suas paixes, porque no educado nas letras ? No fundo, e perspecti-vando a questo em termos de cultura corts e no era D. Francisco de Sousa homem da confiana do monarca? , esta atitude correspon-dia enfatizao de um paradigma de comportamento humano assente no ideal do domnio de si prprio de que fica excluda a valorizao do amor (no sentido corts), que era componente indispensvel s concepes de raiz cavaleiresca e cortesanesca sobre o ideal de homem perfeito. Ora a verdade que o amor no entra no programa contido no De Senectute, como tambm n so a consideradas as questes do valor do casamento nem do amor conjugal para a elaborao do perfil do homem prudente (77). Ser de perguntar se Damio de Gis no estaria a situar-se no campo de uma crtica humanista literatura cavaleiresca e cortesanesca, sendo certo que o romance de cavalaria, inclusivamente na reactualizao paradigmtica que Joo de Barros parece tentar na Crnica do Imperador Clarimundo, constitua o grande veculo desse ideal de comportamento em que o amor surgia como elemento integrante do ideal e das motivaes da aco humana mais elevada.

    No invalidemos, porm, sugestes mais directamente erasmianas, sobretudo a ideia do respeito pelos velhos como ndice do aperfeioa-mento dos costumes dos cristos, ou sobre a imagem dos exemplos dos antigos, ainda que pagos, como o Holands postulava na Lngua, por exemplo:

    Obtrectamus juvenes senibus, quibus debebatur reverentia: non parcimus virginibus aut matronis, oblatramus cognatis ac fratribus, male loquimur de bene meritis, obrnurmuramus praefec-tis, principibus et episcopis nostris (78).

    Quer isto dizer que o De Senectute, como enaltecimento e, portanto, exortao em favor de uma velhice purificada frente a uma juventude

    (77) A narrativa cavaleiresca comportava tambm, naturalmente, um modelo de comportamento e de formao do homem perfeito, orientado mais para destina-trios corteses; cf. Juan Manuel Cacho Blecua, Amads: Herosmo mtico cortesano, Madrid, 1979.

    (78) Erasmo, Opera Omnia, LB, IV 722 C.

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    muito menos defendida contra s vcios, podia ser lido como portador de uma lio : para alm da dignidade que, de acordo j com os exemplos deixados pelos antigos, se atribua velhice no a velhice rid-cula (79) insinuava-se que nela residiam as virtudes daqueles que deviam encarregar-se do governo das coisas pblicas, ou, de outro modo, do reino. Parece claro que, nesta perspectiva, o Cato Maior poderia ser equacionado como uma resposta apologia do corteso jovem, em tempos que eram j da larga influncia da literatura pre-ceptstica do tipo do Cortegiano de Castiglione.

    Importa, por conseguinte, procurar equacionar os factores que se nos afiguram dominantes na maneira como Damio de Gis abordou e tratou o texto latino de Ccero sobre a velhice. E em primeiro lugar parece importante que busquemos definir as coordenadas determinantes da leitura que desse tratado revela ter feito.

    4. No seu Prologo (...) sobre o Livro da Velhice de Tlio, que lhe tornou de latim ein lingoagem para o Senhor Infante Dom Pedro, o Dr. Vasco Fernandes de Lucena punha em destaque que, nos velhos, acontecia que Por necessidade faltassem as naturais virtudes (80) ; mas acrescentava de imediato que os espirituais poderios da alma, criados da infinda luz da presena e Magestade de Deos no podem envelhecer nem perecer, posto que se dezate a composio dos elementos do corpo. Deste modo Lucena valorizava uma leitura inscrita na busca de um aproveitamento cristo imediato daquilo que lhe parecia ser o sentido do Cato Maior, recorrendo a um vocabulrio de matriz escolstica nas suas referncias psicolgicas, para acentuar que, merc da fraqueza da condio humana, em este valle de lagrimas na presente misria nosso entendimento no pode entender sem fantazia, ou imaginativa virtude, pois que o enfraquecimento da virtude imaginativa e da memria provocava a debilidade do entendimento. Mas para Lucena, o grande sinal da fraqueza dos velhos residia na falta de memria. Foi para tentar ajudar os velhos quebrantados por enfermidades e mal dispostos pella fraqueza geral dos membros que ele procedeu precisamente traduo do Cato Maior, que apresenta ao Infante porque, havendo precedentemente vertido para portugus hu livro de Paulo Vergerio, que falia dos liberais estudos e virtuosas

    (79) Ibidem, 739-740. (80) Livro dos Ofcios, ed. cit., p. XLIII.

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    manhas dos mancebos, parecia agora oportuno fornecer este tractado de Tlio, que falia das artes e dos officios que aos velhos pertencem (81).

    Na evidncia dos propsitos enunciados, ficava assim afirmada a inteno de munir um pblico leitor com um conjunto doutrinrio equilibrado, cuja utilidade devia ser mais nitidamente sentida na pers-pectiva de uma estratgia de fornecimento de bases atinentes formao poltico-moral de uma aristocracia que, no sc. xv, a realeza procurava fixar em torno de si.

    Nos propsitos de Lucena o De Senectute aparece, portanto, como contraponto do De ingenuis moribus de Vergerio, que tambm se aproveitava do De Senectute. No entanto o ponto de vista interpreta-tivo enquadrava a condio da velhice no mbito e na perspectiva crist da condio miservel da vida terrena; para Lucena, Ccero havia pretendido oferecer a Tito tico que maneyra podesse soportar as mizerias daquella idade, das quais se soem muitos velhos a meude aquerelar (82).

    Mas regressando a Damio de Gis e sua traduo; devemos comear por sublinhar que nada permite afirmar que a sua interpretao no desligada, naturalmente, de pressupostos tambm cristos do Cato Maior estivesse dominada de uma forma to evidente como em Lucena pela preocupao de valorizar a necessidade de uma pacincia (no penitente, em todo o caso) que permitisse ou ajudasse o cristo a suportar as mingoas e os padecimentos da velhice. Que algumas sugestes do texto fossem aproveitadas nesse sentido afigura-se provvel, j que as referncias s sanctissimas confabulaes com Erasmo e utilidade de tam diuina obra (83) podem conter indicaes nesse sentido mais ou menos explcitas. Mas Gis sabia que, numa pers-pectiva crist que era naturalmente a do leitor no conhecedor do latim a quem se destinava a traduo portuguesa, a mensagem do De Senec-tute e Ccero era pago implicava a necessidade de uma leitura prudente e reflectida; desde que esta condio prvia fosse atendida, era evidente que a utilidade do tratado se reflectia na ajuda que permitia fazer da velhice um momento de muyto moores gostos, e contenta-mentos... (84).

    (81) Ibidem, p. XLIV. (82) Ibidem, p. XLVI. (83) Ed. cit. de 1845, p. (84) Ibidem, p. 9.

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    A linguagem porm, que era diferente da que Lucena utilizara no prlogo, j que o texto da sua traduo nos desconhecido; Damio de Gis no recorre a sugestes possibilitadas por imagens ou com-paraes como a do marinheiro dominado pelo desejo de chegar ao termo de seu caminho ou a dos cavalleiros que cobiam amansar alguns fortes e furiosos cavallos maliciosos (85), para sublinhar a utilidade da obra ciceroniana no combate aos viosos costumes dos velhos. Neste ponto Gis demarca-se da linguagem alegorizante da poca anterior; basta-lhe ficar por uma evocao claramente erasmiana, ao definir o Cato Maior como escudo, e defensa contra a velhice (86). Mais do que isso, no recupera, ainda que residualmente, a perspectiva medieval, decorrente do De misria de Inocncio III e aproveitada na literatura em vulgar, da imagem da velhice grotesca e ridcula pelos aspectos disformes dos gestos e das figuras. Para Damio de Gis, como para Ccero, a velhice possui uma beleza resultante da virtude moral que fortalece o homem para que ele possa suportar os trabalhos, e as misrias desta vida graas, em boa parte, ao cultivo das letras.

    5. Como todo o tradutor, Damio de Gis teve de solucionar a transferncia de um cdigo lingustico para outro diferente, que era o seu, apesar de, como vimos atrs, alegar uma competncia menos vitalizada na lngua materna em virtude de uma longa ausncia do reino. No cremos, porm, que as caractersticas da sua traduo sejam imputveis a essa situao. De modo diferente, elas resultam, em larga medida, da necessidade de actualizar a mensagem, isto de inserir a lio no contexto referencial dos leitores da primeira metade do sc. xvi a quem se destinava a traduo.

    O problema fundamental residia na possibilidade da traduo como acto hermenutico de transferncia que ela no fundo. A Damio de Gis, no entanto, no interessa discutir as implicaes tericas do acto de tirar em linguagem em si (87) ; como tambm o problema no se pusera cem anos antes ao Infante D. Pedro. A preocupao central deste residia na capacidade de aproveitar, em portugus e para leitores portugueses, a mui virtuosa enssynana dos Ofcios, anotando para consolo do seu confessado menor conhecimento do latim que os pro-

    (85) Livro dos Ofcios, ed. cit., p. XLVI. (86) Ed. de 1845, cit., p. 5. (87) Cf. Georges Mounin, Los Problemas tericos de la traduction, Madrid,

    1977, p. 309.

  • DAMIO DE GOIS E O LIVRO DA VELHICE 223

    veitosos e fremosos latiis desse tratado nom levom maonaria nem floreamentos, mas dizendo soomente o necessrio (88). Dizer o necessrio sem floreamentos: com este fundamento se legitimava a verso para portugus, j que, se o latim na Cristandade mais geral, em Portugal esta linguagem he mais geeral que o latim (89). O emprego do nuestro romance no sentido de la cottidiana e comum manera de fablar, como observava em carta o rei seu irmo (90), justificava-se deste modo, pela possibilidade que oferecia de fazer chegar o texto junto de um pblico mais vasto do que o restrito crculo daqueles que eram latinados (91). Significava isto que a lngua verncula permitia veicular, de forma satisfatria, um discurso literrio em latim inscrito no estilo mdio, dentro da hierarquia medieval dos trs estilos: nem o elevado, com as conotaes que o termo implicava no domnio da ornamentao retrica, nem o baixo, adverso da noo de cortesia e de dignidade que estava implcita na dignidade do prprio tradutor e do destinatrio.

    Por outro lado, preciso ter presente o incremento da valorizao das tradues para vulgar de textos em latim verificado no incio do sc. xv, precisamente sob a instigao ou a iniciativa do poder poltico e principesco (92); basta evocar o caso da corte de Filipe o Bom, que no ter deixado de ser exemplo para a prpria corte portuguesa.

    No era, como bvio, a primeira vez que se faziam verses de latim para vulgar; o que constitua inovao ou pelo menos reflectia uma orientao propositada nesse sentido era a escolha literria e cultural: a tratadstica moral e histrica de incidncia poltica. O fen-meno tem a ver, necessariamente, com a renovao dos horizontes ideolgicos do poder desde finais do sc. xiv na Europa e com o reequa-cionamento da concepo do poder e do Estado (93). No se trata s da valorizao do direito romano, e daquilo que ele comportava

    (88) Livro dos Ofcios, ed. cit., p. 2. (89) Ibidem, p. 1. (90) Ibidem, p. XXVIII, nota 3. (91) Ibidem, p. 2. (92) Cf. Danielle Gallet-Guerne, Vasque de Lucne et la Cyropdie la Cour

    de Bourgogne (1470). Le trait de Xnophon mis en franais d'aprs la version latine du Pogge, Genebra, 1974.

    (93) Cf. J. Monfrin, La connaissance de l'Antiquit et le problme de l'huma-nisme en langue vulgaire dans la France du XVe sicle, in The Late Middle Ages and the Dawn of Humanism Outside Italy, Lovaina The Hague, 1972, p. 131 ss.

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    para a viso de um poder poltico menos enquadrado pela instituio eclesial, mas em boa medida do alargamento semntico da resultante, manifestado na adopo de uma mais rica terminologia na rea poltica, que a lngua culta no havia ainda includo no seu reportrio (94).

    Por isso tambm, o fenmeno no pode explicar-se unicamente pela dignificao das lnguas vulgares ao plano de lnguas literrias, no sentido concreto do termo, isto , registadas pela letra escrita, o que acarretava, como sabido, consequncias de vria ordem, desde orto-grficas a sintcticas e lexicais ; ainda necessrio ter presente a enorme presso que foi exercida sobre a utilizao literria da lngua corrente no sentido de satisfazer as espectativas a que o latim a lngua per-feita parecia no poder responder agora de forma to completa.

    Toda a dedicatria de D. Pedro, assim como o cap. n. 99 do Leal Conselheiro (95) partem do princpio, at pela importncia que concedem ao conhecimento da sentena por parte do tradutor, de que a mensagem ou contedo doutrinrio veiculado pelo texto possuam um valor uma evidncia suficientemente credvel e vlida para superar as diferenas lingusticas e at os aspectos menos eloquentes da prosa vulgar obtida pela traduo em si.

    O problema, para o caso portugus, ainda no foi estudado seria-mente, por forma que se pudesse fazer uma ideia mais clara do papel e da contribuio desempenhados pelas tradues quatrocentistas na estruturao da lngua portuguesa culta do sc. xvi (96). Aqui importa observar que, em mais de um local, D. Pedro mostra-se sensvel impor-tncia que assume a situao referencial do texto traduzido, actuali-zando, junto de um leitor do sc. xv, enquadrado num horizonte de conhecimentos de matriz cavaleiresca, o significado de termos oriundos de um mundo totalmente diferente. Basta lembrar o modo como procura a traduo de termos como pietas, miles, augur, etc. (97). Dir-se-ia que, para D. Pedro, era necessrio vencer a distncia cultural

    (94) Cf. Walter Ullmann, Radiei dei Rinascimento, Bari, 1980, em particular os caps. I e II.

    (95) D. Duarte, Leal Conselheiro, Edio crtica de Joseph M. Piei, Lisboa, 1942, p. 372.

    (96) Para o vocabulrio de natureza poltica, cf. no entanto Maria Helena da Rocha Pereira, Soziale Typenbegriffe von Homer bis Aristteles und ihr Fortleben im Portugiesischen, in Soziale Typenbegriffe im alten Griechenland, Berlim, 1982, T. 6, p. 350 ss.; e tambm a introduo de Joseph Piei cit. ed. do Livro dos Ofcios.

    (97) Livro dos Ofcios, cit., p. XXXIV.

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    e o estranhamento que o pblico destinatrio da sua traduo poderia sentir perante um texto que, como o De Officiis, se inscrevia numa atitude to fortemente apelativa e pedaggica. Talvez por isso, sobre-caracterizou alguns aspectos de natureza civilizacional e ideolgica, e certamente tambm por isso D. Pedro no recorreu s notas explica-tivas, oferecidas como marginalia, soluo que viria a ser adoptada depois por Duarte de Resende e Damio de Gis (98) ; que ao leitor no era exigido o obscurecimento da informao motivado pela distncia de situaes ou por uma menor competncia cultural, visto que o tra-dutor procurava diluir, mediante o recurso glosa, os escolhos mais evidentes no prprio texto da traduo. Idntica atitude alis tomou Vasco de Lucena nas suas verses (99). Com isto talvez se pudesse considerar que o pblico leitor deste tradutor do sc. xv era ainda insuficientemente humanista, em comparao com aquele a quem se destinam as tradues do sculo seguinte (100).

    Efectivamente, no foi esta, primeira vista, a estratgia de Duarte de Resende ao traduzir o De Amicitia para portugus, o que no o impediu, como no impediu Damio de Gis, de adoptar solues semelhantes em alguns casos s dos tradutores do sculo anterior. Do ponto de vista da afirmao de princpios, Resende desloca a foca-gem da questo para um campo um tanto diferente, numa perspectiva que j dos tempos do humanismo.

    Duarte de Resende define como to perigosa empresa a ousadia de tirar de latim em nosso lingoaj este pequeno tratado sobre a amizade, precisamente porque o seu autor era aquella fonte de elo-quncia Marco Tlio Ccero (101). As dificuldades do tirar em linguagem no existem no plano da sentena, mas no da lngua. Resende, porm, nem sequer duvida da possibilidade de traduzir, isto

    (98) De facto, tanto a edio de 1531 da traduo de Duarte de Resende como o manuscrito da BPMP com o texto de Gis incluem as anotaes nas margens das pginas, e no em p de pgina, como fizeram a edio de 1845 e a recente edio de Carvalho Buescu.

    (99) Cf. Robert Bossuat, art. cit.. (100) A presena de Ccero foi constante na cultura europeia, mas o huma-

    nismo contribuiu de forma profunda para a sua influncia, no s atravs da imprensa, mas tambm e sobretudo atravs da prpria vida escolar; cf. Amrico da Costa Ramalho, Ccero nas oraes universitrias do Renascimento, Revista da Faculdade de Letras, Srie Lnguas e Literaturas, Porto, II (1985), p. 29.

    (101) Ed. de 1531, fo. (a i) v.; ed.. Buescu, p. 37. *5

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    de comunicar a sentena do tratado, fundado, inconscientemente, no postulado da unidade da experincia humana (102). O protesto habitual da humildade do seu conhecimento no perturba a certeza da possibilidade da traduo:

    o que sinto & vejo ser mal csyrado, assy por me falecer scicia pra entender suas prudentes sentas copisoso & elegte latim, como copia de palauras purtuguesas craras & polidas pra decrarar as q cuydo q entendo: q b creo q nha das lingoas de Espanha (& se diser de toda a Europa, n me arepderey) t auentag da purtuguesa pra em ella se tratar de graues & excelentes mat-rias (103).

    Para Resende e este um ponto importante o portugus uma lngua susceptvel de traduzir, de forma superior s restantes lnguas romnicas, as prudentes sentenas e o copioso latim de Ccero. Em princpios do sculo xvi a afirmao deve ser interpretada no mbito do significado que tinha o tema da iengua companera dei imprio, noo que aproximava Resende dos gramticos como Ferno de Oliveira e Joo de Barros (104). Mas nisto j sensvel a presena de um tema humanista, desensolvido em contexto renas-centista, destinado a colocar as lnguas vulgares na companhia digna do latim para, um pouco mais tarde, se passar afirmao da sua superioridade.

    No fundo, porm, persiste a ideia de que a realidade moral e o pensamento dos Romanos se podiam transpor para a actualidade e que, portanto, era possvel estabelecer uma identidade de situaes entre os leitores de Ccero e os leitores portugueses do sc. xvi.

    (102) Cf. G. Mounin, ob. cit., p. 200. (103) Ed. de 1531, fo. (a i) v.; d. Buescu, p. 37-38. Cf. tambm Ccero,

    De Finibus, 1, 3, 7. (104) Eugnio Asensio, La lengua companera dei Imprio. Historia de una

    idea de Nebrija en Espafia y Portugal, in Estdios Portugueses, Paris, 1974, p. 1 ss. ; cf. ainda Maria Jos de Moura Santos, Nota sobre o movimento quinhentista de "Defesa e Ilustrao" das lnguas vulgares, Biblos, Coimbra, LI (1975), p. 517 ss. Note-se que a Ropica Pneflna, impressa por Germo Galharde em 1532, foi dedicada por Joo de Barros a Duarte de Resende; o texto sugere que Resende utilizou para a sua traduo livros cedidos por Barros e que o De Officiis e talvez o De Senectute tenham sido traduzidos numa segunda fase.

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    E Damio de Gis? Na dedicatria ao Conde de Vimioso, Gis coloca-se sob a proteco da autoridade de Erasmo quanto arte de traduzir. Erasmo todavia tinha traduzido s de grego para latim e no de latim para vulgar; a sua aco imitava, pois, os exemplos de Ccero e de S. Jernimo. Mas Damio de Gis sentia que podia evocar a analogia, visto que, no fundo, tratava-se de comunicar a sentena de uma obra antiga mediante um cdigo lingustico dife-rente; por isso no se acanhou de aludir a Ccero, o qual n temeo tralladar de verbo a verbo em suas obras muytas sentenas, e dictos de philosophos (105).

    Traladar de verbo a verbo: eis o ideal da traduo, o limite impossvel de realizar, se colocarmos a questo sob o ponto de vista lingustico; mas para Gis, como para Resende e para os outros tra-dutores, a distino no plano dos significantes no afectava a identidade de significado que importava oferecer aos leitores. Alis se os Romanos haviam traduzido do grego para a sua lngua (106), por que razo no se haveria de os imitar e traduzir, com a mesma legitimidade, de latim para portugus? Deste modo, Gis, louvando Ccero pello arteficio, e polida ordem que em no tirar, e colligir quasi todo de verbo a verbo das obras de Plato, recuperava para si os mritos de uma tarefa que colocava sob o escudo de Erasmo e que definia como tanto ou mais nobre do que a produo de uma obra original (107).

    (105) Ed. de 1845, p. 5. O exemplo havia sido j utilizado como autoridade por S. Jernimo, Epstola LVII, ad Pammachium, 5. que Ccero e S. Jernimo constituam as duas fundamentais autoridades no domnio da traduo; no entanto, no sc. xvi Luis Vives foi um pouco mais longe, ao postular a relao entre o modo de traduzir e o tipo de texto que se pretende verter de uma lngua para outra; cf. Eug-nio Coseriu, Vives y el problema de la traduccin, in Tradicin y novedad en la cincia del lenguaje, trad, esp., Madrid, 1977, p. 86 ss.; cf. ainda Miguel ngel Prez Priego, La obra dei Bachiller Juan de Molina, una prctica del traducir en el Rena-cimiento espanol, in 1616, Mad