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O Desenho Urbano como Instrumento de Preservação da Memória do Patrimônio Edificado Elisângela Queiroz Veiga UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Letras e Artes [email protected] Resumo O artigo apresentado tem como finalidade abordar conceitos de memórias que estão relacionados com os espaços que ocupamos e nos quais imprimimos nos- sas experiências, bem como a importância do reconhecimento da materialidade como suporte para a convalidação da memória coletiva de fatos importantes da história. Sendo realizadas, ainda, pontuações sobre a aplicabilidade do desenho urbano nas cidades históricas, admitindo o caso particular da cidade de Cachoei- ra, no Recôncavo Baiano. Palavras-chave: desenho; memória; planejamento urbano; patrimônio. Abstract The present article aims to address concepts of memories that are related to the paces we occupy and print our experiences, as well as the importance of the recognition of materiality as a support for the convalidation of the memory of important facts of history. Furthermore, scores were made on the aplicability of urban design in historic cities, admitting the particular case of the city of Cachoeira, in the Recôncavo Baiano. Keywords: drawing; memory; urban design; patrimony. 1. Introdução Muito do que vemos hoje, no nosso ambiente de convívio, traz as nuances do que fora visto outrora, em um passado distante. De forma similar, deixaremos um le- gado do quê será visto pelas gerações futuras, e que, conforme nossas atitudes, po- derão vislumbrar algo do que temos atualmente como passado, além de fatos impor- tantes da nossa história atual. A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escri- ta, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas corren- tes antigas que haviam desaparecido somente na aparência (HABWACHS, 2003, p. 45). 1

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O Desenho Urbano como Instrumento de Preservação da Memória do Patrimônio Edificado

Elisângela Queiroz Veiga UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Letras e Artes

[email protected]

Resumo

O artigo apresentado tem como finalidade abordar conceitos de memórias que estão relacionados com os espaços que ocupamos e nos quais imprimimos nos-sas experiências, bem como a importância do reconhecimento da materialidade como suporte para a convalidação da memória coletiva de fatos importantes da história. Sendo realizadas, ainda, pontuações sobre a aplicabilidade do desenho urbano nas cidades históricas, admitindo o caso particular da cidade de Cachoei-ra, no Recôncavo Baiano.

Palavras-chave: desenho; memória; planejamento urbano; patrimônio.

Abstract

The present article aims to address concepts of memories that are related to the paces we occupy and print our experiences, as well as the importance of the recognition of materiality as a support for the convalidation of the memory of important facts of history. Furthermore, scores were made on the aplicability of urban design in historic cities, admitting the particular case of the city of Cachoeira, in the Recôncavo Baiano.

Keywords: drawing; memory; urban design; patrimony.

1. Introdução

Muito do que vemos hoje, no nosso ambiente de convívio, traz as nuances do que fora visto outrora, em um passado distante. De forma similar, deixaremos um le-gado do quê será visto pelas gerações futuras, e que, conforme nossas atitudes, po-derão vislumbrar algo do que temos atualmente como passado, além de fatos impor-tantes da nossa história atual.

A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escri-ta, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas corren-tes antigas que haviam desaparecido somente na aparência (HABWACHS, 2003, p. 45).

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Os diversos registros visuais, que são produzidos ao longo do tempo, confor-mam um arcabouço de memórias pertinentes às práticas de um determinado grupo, assim como as paisagens de lugares que se modificaram significativamente, compre-endidas nesse elenco a organização dos espaços habitados pelo homem.

“O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre o qual es-crevemos, depois apagamos os números e figuras”(HALBWACHS, 2003, P. 92). O au-tor defende ainda que as imagens espaciais têm uma função na memória coletiva, so-bretudo no que diz respeito às marcas que o grupo imprime num determinado lugar, o qual, guarda com o seu respectivo grupo uma relação de identidade particular e restri-tiva.

A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente mas porque se relacio-nam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo (BOSI, 2003, p. 31).

Há que se considerar que as imagens de lugares em que não estivemos pesso-almente, às quais somos apresentados ao longo da nossa vida, também auxiliam nas memórias que trazemos conosco e que passaremos às gerações que nos sucederão. Fazem parte das fontes dos registros que produzimos, tanto escritos, quanto visuais, agregando-se aos nossos arquivos de memórias.

Segundo Halbwachs (2003), deve existir um fundamento comum para reconstruir as nossas memórias individuais alinhadas com as de outros membros do grupo. Se-gundo o autor, faz-se necessário que existam “pontos de contato”, para que as memó-rias sigam em concordância, não sendo suficientes os depoimentos apresentados pe-los demais membros.

O mencionado autor esclarece, ainda, que para nos apropriarmos de uma lem-brança, não necessariamente é preciso reconstruir um acontecimento minuciosamen-te, sendo suficiente a troca de informações comuns entre os indivíduos presentes em uma mesma sociedade, caracterizando assim o reconhecimento e reconstrução de uma lembrança. Pois há que se considerar que as lembranças mais vívidas que pos-suímos, nem sempre advém de uma remontagem cartesiana dos fatos, mas de como a apropriação e disseminação dos mesmos foi conduzida por nossos antepassados e contemporâneos.

Em se tratando da preservação do patrimônio, para que os efeitos esperados sejam positivos, há que se criar uma relação de pertencimento entre os indivíduos re-lacionados com o elemento a ser preservado. Um determinado bem configura a mate-rialidade de uma memória coletiva que encontrará subsídios mais consistentes para se

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perpetuar, uma vez que um determinado grupo, com o tempo, fragmenta-se no que diz respeito às premissas que outrora os fizeram cúmplices em um mesmo pensamento.

A cidade encontra lugar de destaque ao materializar diversas manifestações dos seus ocupantes, guardando consigo as marcas das diversas influências a que se submeteram suas gentes. “Cada cidade é um palimpsesto de histórias contadas sobre si mesma, que revelam algo sobre o tempo de sua construção e quais as razões e as sensibilidades que mobilizaram a construção daquela narrativa" (PESAVENTO, 2007, p. 17). O espaço urbano guarda em si parte substancial do que conhecemos como pa-trimônio material.

Ao longo dos séculos e das civilizações, sem que aqueles que a construíam ou nela viviam tivessem intenção ou consciência, a cidade desempenhou o papel memorial de monumento: objeto paradoxal-mente não elevado a esse fim, e que, como todas as aldeias antigas e todos os estabelecimentos coletivos tradicionais do mundo, pos-suía, em um grau mais ou menos restrito, o duplo e maravilhoso po-der de enraizar seus habitantes no espaço e no tempo. (CHOAY, 2006, p. 181)

Os bens, materiais e imateriais, que se mantém ao longo do tempo, corroboram para uma identificação melhor sedimentada dos membros do grupo do qual fazem par-te. “Quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita, e se adapta às coisas materiais que a ele resistem” (HALBWACHS, 2003, p. 92). Com isso, a noção de preservação é me-lhor apreendida pelos indivíduos, uma vez que se sentem familiarizados e correspon-sáveis pelos bens pertencentes ao seu espaço de convívio.

No Brasil, a atenção aos bens que se relacionavam com a cultura, em diversas partes do território, teve lugar, sobretudo a partir do início do século XX, quando se deu início à criação de instituições que se ocupariam de proteger o patrimônio e a cul-tura, determinando os critérios a serem considerados para que adquirissem tal defini-ção.

Com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1937, ainda como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), composto em sua maioria por pensadores modernistas, foi estimulado no país o res-gate das características próprias da cultura brasileira, na tentativa de afastar-se da in-fluência europeia. Para isso, os membros apoiaram-se no modernismo brasileiro e no resgate das características coloniais das nossas cidades, com a justificativa de com-prometimento com a identidade nacional.

O IPHAN iniciou sua atuação na salvaguarda dos bens culturais, sendo visto como um órgão autoritário, que se valia do tombamento para impedir a atuação do in-divíduo sobre os bens tombados. Ocorre que para o tombamento encontrar justificati-

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va junto aos seus usuários, haveria de existir, previamente, uma relação de uso e memória das pessoas com os referidos bens, caso contrário a motivação das ações de preservação estariam fadadas ao fracasso.

Cabe observar que, ainda que IPHAN esteja em atuação há mais de 80 anos no país, as ações voltadas à conscientização da comunidade para com a preservação de bens materiais e imateriais, ainda não surtiram os efeitos necessários a um efetivo en-volvimento dos indivíduos com os bens a serem preservados. Nem mesmo uma com-preensão mais aprofundada da importância de tal preservação.

A área de conhecimento do Desenho Urbano surge como uma das ferramentas capazes de atuar para um melhor entendimento entre o espaço urbano e seu patrimô-nio edificado, uma vez que se esmera no exercício de criar espaços nas cidades que contemplem as necessidades das pessoas, para uma melhor qualidade ambiental, in-serindo-se nesse arcabouço as questões pertinentes à memória dos indivíduos.

2. O desenho urbano e as transformações das cidades A partir da década de 1940, começaram a surgir na Europa planos de interven-

ção para a reconstrução das cidades atingidas pela Segunda Guerra Mundial, servin-do ainda como consolidação da Arquitetura e Urbanismo Modernos. O planejamento adotado tinha um caráter racionalista, coerente com a Carta de Atenas e as orienta-ções de cunho modernistas dos CIAMs.

Com isso, alguns eventos tiveram um caráter emblemático no processo do pla-nejamento das cidades, tais como o plano elaborado para a Grande Londres, em 1944; a construção de conjunto habitacional em Marselha, por Le Corbusier, e instituí-da a Lei das Cidades Novas no Reino Unido, em 1946; o primeiro código de urbanis-mo é implementado na França, em 1958; aprovação da Lei da Habitação nos Estados Unidos, em 1949. No Brasil, é o fim da Era Vargas (1945), com o Estado Novo e início do Plano de Metas para a construção de Brasília (1956 -1960).

A partir da década de 1960 muitos estudiosos debruçaram-se sobre a análise do desenho das cidades e como o mesmo interferia nas relações sociais dos seus habi-tantes. Com isso, ficou evidente que o espaço urbano estava sendo ordenado de modo a privilegiar os automóveis, sobretudo nos grandes centros. A crítica ia de en-contro, sobretudo, aos conceitos do modernismo.

Essa reação ao urbanismo moderno é considerada como o surgimento do Dese-nho Urbano, que leva em consideração fatores sociais para a organização do espaço nas cidades.

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O segmento do desenho urbano surge nos Estados Unidos, visando um meio termo entre as ações de planejadores urbanos e arquitetos, uma vez que os primeiros não pensavam tridimensionalmente e os segundos não se preocupavam com os limi-tes além do terreno. Segundo Barnett (1982), seria o "processo de desenhar as cida-des, sem desenhar os seus edifícios”.

Nos Estados Unidos foi lançado o programa “Cidades Modelos”, após a década de 1960, a partir de quando os parâmetros de intervenção urbana foram modificados de modo a oferecer subsídios para um melhor desenvolvimento das áreas ocupadas pela população de baixa renda. Também na Europa o planejamento e renovação das cidades passaram a contar com o empenho de grupos comunitários e a abordagem de estudos urbanísticos modificados.

O Desenho Urbano emerge como alternativa viável e eficiente no sentido de ori-entar a prática de projetos para a criação de lugares para as pessoas. Essa nova op-ção leva em consideração a morfologia urbana e os processos sociais envolvidos na conformação do espaço concentrando-se em “compreender as complexidades do pro-cesso de desenvolvimento urbano e em elaborar possibilidades para intervenções a nível da qualidade físico-ambiental” (DEL RIO, 1990, p. 48).

No final da década de 1970, já se afirmava uma necessidade latente:

[...] é preciso cada vez mais entender o “desenhador urbano” como um promotor imobiliário consciente. Ele deve ser capaz de conquistar as habilidades para o controle do desenvolvimento urbano que o permitam se engajar na negociação em todos os níveis do processo, principalmente quanto às implicações econômico-financeiras das imagens e formas que está promovendo para um determinado ambi-ente. Com isto não se está tentando minimizar a importância dos as-pectos físico-espaciais, mas atentar para fortes aspectos determinan-tes de sua implantação e seu sucesso real. (BENTLEY, 1979, p. 41 apud DEL RIO, 1990, p. 49)

A partir de então, com a crise econômica mundial, fomentada por eventos como as crises do petróleo, houve uma modificação na política urbana de diversos países, sendo estimulada uma renovação, sobretudo nos países capitalistas que tiveram seus parques industriais transformados pela decadência político-econômica. Esses espaços foram transformados de acordo com os anseios mercadológicos que visavam atrair capital e gerar empregos por meio de vultosos projetos de renovação urbana.

Grandes complexos imobiliários foram alocados em áreas decadentes, valendo-se das mais diversas estratégias como criação de centros governamentais, comerciais e de lazer para atrair o maior número de interessados. A cidade passa a configurar-se como um produto promovido por estratégias de marketing e propaganda, beneficiando majoritariamente comerciantes, empreendedores imobiliários e do ramo do turismo.

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3. O Desenho urbano das cidades históricas Foi a partir de estímulos iniciais de países como a Inglaterra que os centros ur-

banos passaram a gerar interesse no que diz respeito à preservação e interpretação do seu patrimônio ambiental, a partir do planejamento interpretativo, segundo Murta e Albano (2002), contribuindo com a indústria do turismo, inclusive.

Juntamente com a reestruturação econômica, países centrais empenharam-se em atender à nova ordenação mundial, apoiando-se na defesa da revalorização dos centros urbanos históricos, implementando atividades terciárias e aquelas de ordem econômica desenvolvidas pelo turismo. No Brasil, apenas tardiamente, por volta da década de 1990, foram implementados programas de reabilitação urbana e arquitetô-nica, compreendendo os sítios históricos. Ainda assim, em algumas cidades pontuais como Ouro Preto e Salvador.

De acordo com Zanetti (2005), em 1965, o trabalho de Aldo Rossi, intitulado “A arquitetura da cidade”, contemplava um método de interpretar a cidade, atribuído ao arquiteto em questão. Esse foi um dos trabalhos que buscavam congregar a arquitetu-ra e o urbanismo, partindo da análise morfológica urbana, visando alcançar um méto-do de projetar de forma coerente com a cidade histórica.

Em fins da década de 1970 as intervenções urbanas passaram por reformula-ções na sua metodologia, adotando ajustes criteriosos.

Nesse período, haveria a afirmação do Desenho Urbano como campo específico que enfatizava a percepção da cidade existente, ou seja, as características específicas do contexto urbano preexistente em que se pretende atuar. A preocupação com a escala humana e a ci-dade vista como cenário das relações humanas passariam a fazer parte dessa nova metodologia. (ZANETTI, 2005, p. 16)

Muitas críticas foram direcionadas a grandes conjuntos habitacionais que propi-ciavam uma qualidade ambiental insuficiente, assim como a ação de substituição de partes antigas, baseada em técnicas mais racionais e avançadas na arquitetura. A par-tir de então, novas metodologias de projeto, considerando a reabilitação urbana e pre-servação foram incorporadas ao exercício do urbanismo, visando a valorização dos centros históricos, reabilitando imóveis e espaços de forma integrada, como o que começou a ser praticado na Europa.

Segundo Pesavento (2007), é no presente que são pensadas as cidades do passado, a partir da reconstrução dada por meio da "narrativa histórica” ou da memó-ria coletiva ou individual de uma determinada geração. Com isso, pode-se afirmar que a materialização dessas memórias, por meio da preservação do patrimônio edificado, torna a reconstrução de uma época precedente mais substancial.

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A cidade sempre se dá a ver, pela materialidade de sua arquitetura ou pelo traçado de suas ruas, mas também se dá a ler, pela possibilida-de de enxergar, nela, o passado de outras cidades, contidas na cida-de do presente. Assim, o espaço construído se propões como uma leitura no tempo, em uma ambivalência de dimensões que se cruzam e se entrelaçam. (PESAVENTO, 2007, p. 16)

Entre os anos de 1960 e 1970 grandes cidades em todo o mundo sofreram alte-rações que modificaram sua escala, contribuindo para a degradação do patrimônio ambiental e imobiliário urbano. Essa prática serviu de incentivo para os diversos pro-cessos de reabilitação de muitas cidades europeias, que visavam evitar a monofunci-onalidade nos tecidos urbanos, incentivando a recomposição do ambiente degradado e criação de espaços coletivos, levando em consideração a população local.

Conforme Zanetti (2005) as áreas degradadas ou abandonadas de cidades que já haviam se expandido, passaram a se caracterizar como objeto de atenção, uma vez que nessas cidades houve uma disseminação em seus territórios de bairros e cidades satélites logo após a guerra. Essas cidades primaram ainda pela renovação de algu-mas áreas degradadas e de estruturas vias, levando em consideração a produção massificada do espaço. Sendo assim, fez-se necessário considerar o patrimônio arqui-tetônico, considerando premissas de desenho urbano, o que certamente atenderia aos preceitos de preservação.

Nas cidades históricas brasileiras percebe-se que, com exceção dos grandes centros urbanos, poucas delas sofreram alteração da sua escala, mas nem por isso escaparam da degradação do seu patrimônio. Algumas dessas cidades apresentam grande parte do seu patrimônio edificado comprometido pela ação implacável do tem-po e das intempéries, ainda que exista um esforço do IPHAN com a proteção desses bens.

3.1 O Desenho da Cidade de Cachoeira A cidade de Cachoeira foi de expressiva importância no cenário econômico do

país, desde o período colonial. Localizada na primeira região urbanizada no Brasil, su-bordinada a Salvador: O Recôncavo Baiano.

O porto de Cachoeira apresentou uma importância relevante dado o fato de es-tar em situação estratégica de navegabilidade na parte ocidental do rio Paraguaçu, servindo como elo em comunicações entre a capital do país e as demais regiões. “Por ser ponto de passagem obrigatório do transporte fluvial para o terrestre, durante dois séculos Cachoeira desempenhou a função de empório de uma rica e vasta região” (PESSÔA e PICCINATO, 2007, p. 117).

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De acordo com o Programa de Desenvolvimento Integrado da cidade monumen-to de Cachoeira, Secção II/ Plano Diretor (1976), há que se considerar sobre Cachoei-ra:

Polo de desenvolvimento de singular importância no período colonial, ponto obrigatório de passagem dos produtos que, vindos do exterior, iam a Salvador e da “Cabeça do Brasil” seguiam para Cachoeira, para daí tomar o destino do sertão da Bahia e das Capitanias do Sul e o Centro, desde o século XVIII Cachoeira desempenha destacado papel nesse sentido centrífugo, como também no centrípeto, rece-bendo os produtos dos mesmos pontos em sentido contrário, para seguirem até Salvador e daí atingirem o mundo português. (Programa de Desenvolvimento Integrado da cidade monumento de Cachoeira. Secção II/ Plano Diretor, 1976)

De acordo com a publicação "Programa de Desenvolvimento Integrado da cida-de monumento de Cachoeira. Secção II/ Plano Diretor” (1976), a cidade teve seu tra-çado inicial determinado pela ocupação linear à margem do rio Paraguaçu, tendo nas-cido entre os riachos Pitanga e Caquende, apresentando um tecido urbano próprio das cidades lusitanas, com pequenas quadras e ruas curvilíneas, compostas por edifica-ções que representavam o relevante posicionamento da cidade no cenário econômico, inclusive como polo açucareiro (Figura 1).

Figura 1: Aspecto da Vila de Cachoeira no século XVIII

! Fonte: http://www.sudoestesp.com.br/file/colecao-imagens-periodo-colonial-bahia/671/ (Acesso em jul/2018).

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No século XVIII, a economia de Cachoeira viveu períodos de eferves-cência alternados com outros de estagnação, ocasionados pela vari-ação do preço e do volume da produção de açúcar e de tabaco ou de produtos que circulavam pelo seu porto, como carne-seca, farinha de mandioca, ouro etc. Contudo, no final do mesmo século, o núcleo ur-bano já estava plenamente consolidado, com os principais monumen-tos de arquitetura civil e religiosa já edificados (PESSÔA e PICCINA-TO, 2007, p. 118).

Com o declínio das atividades econômicas devido à queda na produção do açú-car e da exportação do fumo, a partir dos anos de 1950, posteriormente aliadas à im-plantação da Petrobras no Recôncavo Baiano, Cachoeira entrou num período de es-tagnação, ao qual esteve associado o seu patrimônio arquitetônico e urbano por lon-gos anos. Esse cenário pode ser observado atualmente configurado por muitas edifi-cações vazias ou subutilizadas, algumas em estado de ruína, requerendo intervenções urgentes.

“Em 1971, o conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade foi tombado pelo IPHAN, embora sem definir os limites precisos da área protegida” (PESSÔA e PICCI-NATO, 2007, p. 119). Em 2005, foi lançado edital do Programa Monumenta, do Gover-no Federal, que contemplou intervenções em imóveis (privados) e na orla de Cachoei-ra que passaram por intervenções que deram um "respiro" ao estado de paralisação no qual se encontrava a cidade. Inclusive o imóvel que cedeu lugar à Universidade Federal do Recôncavo Baiano naquela cidade, uma antiga fábrica de charutos, foi ob-jeto de intervenção do programa.

Ainda hoje, Cachoeira constitui uma aglomeração mononuclear de tipologia simples, cujo crescimento foi condicionado pelo mesmo eixo linear paralelo ao rio. O caráter espontâneo de seu desenvolvimento confere à malha urbana da cidade um desenho irregular resultante de sua paulatina adequação ao próprio sítio. Nos últimos cem anos, essa trama urbana pouco se modificou. As transformações mais importan-tes são observadas na formação de favelas ao longo de alguns tre-chos das encostas, mas a variação do número de habitantes no últi-mo século também é irrelevante (PESSÔA e PICCINATO, 2007, p. 119).

Muito do traçado da malha urbana da cidade guarda consigo as memórias de atividades desenvolvidas no passado, como no caso da rua 13 de maio, conhecida antigamente como rua de Baixo, que até final do século XIX concentrava as atividades comerciais da cidade. E sobre a referida, pode-se considerar ainda que:

Percebe-se, então, a irregularidade da trama urbana: há alternância de espaços que se abrem até se transformarem em largos ou se res-tringem até se tornarem vielas, numa sequência aparentemente ilógi-ca. Nessa rua, pode ser observado o aspecto imponente de algumas casas de dois ou mais andares, além de edificações que conservam, em perfeita harmonia, características arquitetônicas dos séculos XVI-II, XIX e XX (PESSÔA e PICCINATO, 2007, p. 121).

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Além das edificações, que guardam muito do passado memorável da cidade, existem pontos que favorecem a apreciação de panoramas na integração da mesma à sua localização geográfica, como o que se mostra a partir da igreja de Nossa Senhora da Conceição do Monte. Outras ruas guardam as características fundamentais do passado por fazerem parte do eixo de crescimento principal da cidade, como a antiga rua Formosa, atual Antônio Carlos Magalhães.

A partir da investigação mais detalhada do traçado da cidade e sua evolução ao longo do tempo, é possível compreender os fatores que determinaram a forma assu-mida pela malha urbana que se apresenta, bem como relacionar a influência dos fato-res econômicos e sociais nesse processo (Figura 2).

Figura 2: Vista aérea da cidade de Cachoeira, BA.

! Fonte: Jornal Grande Bahia (http://www.jornalgrandebahia.com.br/2016/10/tem-inicio-a-sexta-edicao-da-feira-literaria-

internacional-de-cachoeira/ Acesso em jul/2018)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerar as relações de um grupo com o meio em que está inserido é um fator preponderante nos processos de entendimento de ações a serem implementadas, so-bretudo em cidades históricas que guardam acervos substanciais de memórias coleti-vas e individuais.

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Assim como as cidades contemporâneas, os sítios históricos merecem uma atenção especial acerca da compreensão do seu tecido urbano e dos diversos fatores que contribuíram para que se conformassem com determinadas particularidades ao longo do tempo. Com isso, a preservação e revitalização desses espaços devem estar associados a parâmetros que respeitem a história do lugar e as memórias dos seus habitantes, a fim de que a identidade e paisagem de tais locais sejam respeitadas.

No Brasil, são numerosos os casos de sítios históricos que se apresentam em estado precário de conservação, sendo que aqueles que puderam ser contemplados por programas de restauração, um número reduzido obteve resultado satisfatório em relação à sua necessidade. Esse fato pode ser considerado como uma característica de países que ainda empregam de forma limitada os recursos do desenho urbano para uma melhor compreensão do tecido da cidade histórica e a valorização do pa-trimônio nacional.

As ações implementadas na cidade de Cachoeira, por exemplo, objetivaram in-centivar o desenvolvimento da cidade, além da preservação do seu rico patrimônio. No entanto, na atualidade, percebe-se que muito ainda há que ser feito pela cidade que tão importante lugar ocupa na história do país e da Bahia. O tecido urbano carece de uma melhor análise, bem como muitos dos seus imóveis que se encontram em pro-cesso de ruína e subutilização.

4. REFERÊNCIAS BARNETT, J. An Introduction to Urban Design. Nova Iorque: Harper & Row Pu-blishers, 1982.

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HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro Editora, 2003.

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MURTA, Stela Maris; ALBANO, Celina (orgs). Interpretar o patrimônio: um exercício do olhar. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2002.

PESSÔA, José e PICCINATO, Giorgio. Atlas de centros históricos do Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

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ZANETTI, Valdir Zonta. Planos e projetos ausentes: desafios e perspectivas da re-qualificação das áreas centrais de São Paulo. 2005. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

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