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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 3 – Ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa no Brasil. 42 O DESDOBRAMENTO DE UMA RELAÇÃO METATEÓRICA COM A LÍNGUA MATERNA: O PORTUGUÊS BRASILEIRO Drª. Maria da Graça Carvalho do AMARAL 1 RESUMO Este trabalho tem como objetivo descrever o desdobramento de uma relação empírica em metateórica sobre a evolução histórica e sistêmica do português brasileiro em alunos da 1ª série do Ensino Tecnológico da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, dentro da disciplina Língua Portuguesa I, na cidade de Rio Grande, no extremo sul do Brasil. Nesse processo de ensino utilizou-se como meio desencadeador de reflexão sobre o português brasileiro a teoria do Autodesenvolvimento Humano de Wilhelm von Humboldt. Essa teoria caracteriza-se por promover a auto-estima do educando através do desenvolvimento de sua auto-atividade. A auto-atividade tem suas raízes no Idealismo Alemão e consiste em o sujeito (educando) fazer de si mesmo um objeto de análise, ou seja, o educando inicia um processo de autoconhecimento. Esse processo de autoconhecimento dá-se através de atividades que envolvem sua percepção de mundo, ou seja, o professor lhes dá uma lista de palavras corriqueiras, substantivos concretos, presentes no seu dia a dia como: cadeira, árvore, carro entre outras, cada uma delas escrita em diferentes línguas, que eles não conhecem como: francês, alemão, espanhol, polonês. O professor pede que eles desenhem a primeira imagem que vem a sua cabeça. O resultado dessa atividade mostra que seus desenhos seguem a percepção que eles têm de mundo, por exemplo, a palavra “árvore” que é Baum em alemão, eles desenham uma bomba, pelo fato de seu som e grafia serem parecidos com a palavra bomba em sua língua materna, o português. A partir dessa atividade eles conseguem se dar conta que pessoas que falam línguas diferentes têm culturas diferentes e vêem o mundo de forma diferente, eles como são todos brasileiros desenharam objetos semelhantes porque compartem a mesma língua materna. Dessa forma eles adquirem meios de entender as teorias lingüísticas (hipótese Sapir-Whorf, Wilhelm von Humboldt, Bakhtin, Saussure etc.) assim como teorias cognitivas e sociointeracionistas de aprendizagem (Vygotsky, Luria, Leontiev, Piaget) e conseguem relacionar sua trajetória escolar às teorias estudadas. Ao reconhecer a sua língua materna como parte integrante do seu ser, eles escrevem um relatório autoetnográfico contando a sua trajetória de vida desde suas primeiras palavras, adquiridas no ambiente familiar, até o ensino formal da língua portuguesa na escola. A partir daí, eles são confrontados com teóricos de linguagem e de aprendizagem e começam a fazer relações entre sua trajetória de vida com as teorias estudadas. Na medida em que eles começam a fazer essas relações, cada vez mais eles 1 AMARAL, M.G.C. Universidade Federal do Rio Grande – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia. Endereço: Alfredo Huch 475 - CEP: 96201-900 - Rio Grande – Rio Grande do Sul – Brasil. Correio eletrônico: [email protected]

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 3 – Ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa no Brasil.

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O DESDOBRAMENTO DE UMA RELAÇÃO METATEÓRICA COM A

LÍNGUA MATERNA: O PORTUGUÊS BRASILEIRO

Drª. Maria da Graça Carvalho do AMARAL1

RESUMO Este trabalho tem como objetivo descrever o desdobramento de uma relação empírica em metateórica sobre a evolução histórica e sistêmica do português brasileiro em alunos da 1ª série do Ensino Tecnológico da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, dentro da disciplina Língua Portuguesa I, na cidade de Rio Grande, no extremo sul do Brasil. Nesse processo de ensino utilizou-se como meio desencadeador de reflexão sobre o português brasileiro a teoria do Autodesenvolvimento Humano de Wilhelm von Humboldt. Essa teoria caracteriza-se por promover a auto-estima do educando através do desenvolvimento de sua auto-atividade. A auto-atividade tem suas raízes no Idealismo Alemão e consiste em o sujeito (educando) fazer de si mesmo um objeto de análise, ou seja, o educando inicia um processo de autoconhecimento. Esse processo de autoconhecimento dá-se através de atividades que envolvem sua percepção de mundo, ou seja, o professor lhes dá uma lista de palavras corriqueiras, substantivos concretos, presentes no seu dia a dia como: cadeira, árvore, carro entre outras, cada uma delas escrita em diferentes línguas, que eles não conhecem como: francês, alemão, espanhol, polonês. O professor pede que eles desenhem a primeira imagem que vem a sua cabeça. O resultado dessa atividade mostra que seus desenhos seguem a percepção que eles têm de mundo, por exemplo, a palavra “árvore” que é Baum em alemão, eles desenham uma bomba, pelo fato de seu som e grafia serem parecidos com a palavra bomba em sua língua materna, o português. A partir dessa atividade eles conseguem se dar conta que pessoas que falam línguas diferentes têm culturas diferentes e vêem o mundo de forma diferente, eles como são todos brasileiros desenharam objetos semelhantes porque compartem a mesma língua materna. Dessa forma eles adquirem meios de entender as teorias lingüísticas (hipótese Sapir-Whorf, Wilhelm von Humboldt, Bakhtin, Saussure etc.) assim como teorias cognitivas e sociointeracionistas de aprendizagem (Vygotsky, Luria, Leontiev, Piaget) e conseguem relacionar sua trajetória escolar às teorias estudadas. Ao reconhecer a sua língua materna como parte integrante do seu ser, eles escrevem um relatório autoetnográfico contando a sua trajetória de vida desde suas primeiras palavras, adquiridas no ambiente familiar, até o ensino formal da língua portuguesa na escola. A partir daí, eles são confrontados com teóricos de linguagem e de aprendizagem e começam a fazer relações entre sua trajetória de vida com as teorias estudadas. Na medida em que eles começam a fazer essas relações, cada vez mais eles

1 AMARAL, M.G.C. Universidade Federal do Rio Grande – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia. Endereço: Alfredo Huch 475 - CEP: 96201-900 - Rio Grande – Rio Grande do Sul – Brasil. Correio eletrônico: [email protected]

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 3 – Ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa no Brasil.

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saem do nível empírico e avançam ao nível teórico, pois ao reconhecerem-se como falantes nativos do português brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: relação empírica, língua materna; relação metateórica.

A língua portuguesa falada nos quatro cantos do Brasil, com diferentes sotaques,

com diferenças lexicais de região para região, diferenças que não são mais ou menos

bonitas, todas são o retrato da diversidade cultural brasileira, resultado do português de

Portugal misturado com línguas indígenas, línguas africanas e outras tantas línguas de

imigrantes de outras etnias que ajudaram a construir o Brasil, essa é a língua do Brasil,

essa é a sua marca identitária.

No entanto, essa mesma língua quando ensinada nas escolas brasileiras parece

perder-se de vista, a língua portuguesa ensinada no sistema educacional brasileiro, em

geral, restringe-se a reproduzir uma gramática ortodoxa que em nada lembra a língua

utilizada pela população brasileira. Mas, se mergulharmos nos Parâmetros Curriculares

Nacionais – PCNs de Língua Portuguesa verificamos que esses enfatizam o processo de

ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa como um saber lingüístico amplo, tendo a

comunicação como alicerce das ações humanas, conforme pode ser visto abaixo:

Comunicação aqui entendida como um processo de construção de

significados em que o sujeito interage socialmente, usando a língua

como instrumento que o define como pessoa entre pessoas. A língua

compreendida como linguagem que constrói e desconstroi

significados sociais. (BRASIL, p. 35)

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Ao referir-se à comunicação como base das ações humanas os PCNs deixam

claro que a língua aprendida na escola não deve ser uma língua divorciada da língua

utilizada nas diferentes esferas sociais, isso quer dizer que cabe à escola discutir as

diferentes linguagens utilizadas pela população brasileira e desenvolver no aluno a

capacidade de discernir que linguagem utilizar diferentes contextos sociais.

Os PCNs enfatizam a leitura e produção de textos, texto entendido como uma

unidade básica da linguagem verbal situada em um contexto histórico social e cultural

que marca o diálogo entre seus interlocutores.

Dessa maneira temos duas realidades bem distintas, de um lado os PCNs,

altamente desenvolvidos, inseridos na realidade sociocultural brasileira preocupados

com a formação integral do aluno, de outro a prática da sala de aula de Língua

Portuguesa, ainda seguindo velhos padrões ultrapassados de ensino.

Os PCNs são uma síntese de teorias que não são articuladas com a prática do

professor na sala de aula. Esse fato nos remete a um velho problema nas ciências em

geral que é a articulação entre teoria e prática.

No caso específico da Língua Portuguesa, a maioria das vezes estudantes dos

cursos de Letras são apresentados a teorias lingüísticas e teorias de aprendizagem,

estudam essas teorias enquanto estão inseridos no âmbito acadêmico, porém ao saírem

do meio acadêmico e enfrentarem o cotidiano da sala de aula de Língua Portuguesa nas

suas escolas não conseguem articular as teorias estudadas no seu curso de formação

com a sua rotina da sala de aula.

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Os conhecimentos adquiridos nos cursos de graduação acabam fazendo parte do

conhecimento passivo, ou seja, eles sabem que existem as teorias, sabem sobre o que

elas tratam, mas não conseguem torná-las conhecimento ativo. Entende-se aqui por

conhecimento ativo conhecimento que é incorporado ao seu dia a dia, ou seja, à sua

prática diária como professores de Língua Portuguesa. (AMARAL, 2006)

Os resultados desse processo podem ser vistos no cotidiano das escolas

brasileiras, os professores, em geral, limita-se a reproduzir o material disponível no

livro didático do aluno, sem refletir sobre as teorias que subjazem a esses livros, fato

que torna o ensino da Língua Portuguesa pouco atrativo ao jovem, pois eles não

encontram sentido naquilo que estudam.

Os fatos supracitados nos fazem refletir sobre a necessidade que não somente o

sistema educacional, mas o mundo todo necessita do pensamento científico. Se nos

reportarmos para a história da humanidade nos daremos conta que a evolução humana

dá-se pelo surgimento das invenções científicas. A nossa língua materna é parte de nós

mesmos, é por meio dela que nos constituímos como indivíduos, não basta sabermos

falar o português, é na escola que devemos desenvolver uma nova relação com a nossa

língua.

Com base nas argumentações acima, esse artigo objetiva mostrar os resultados

de um projeto de pesquisa intitulado: “Desenvolvimento de uma Relação Meta teórica

sobre a Evolução Histórica e Sistêmica das Ciências da Linguagem” realizado em uma

sala de aula de Língua Portuguesa da primeira série do Ensino Médio Integrado ao

Ensino Técnico na cidade do Rio Grande no extremo sul do Brasil.

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Esse trabalho segue outros trabalhos na área de línguas como o de Aidarova e

Davydov (1967) que fizeram um experimento com crianças da quarta série do ensino

fundamental na antiga União Soviética na aprendizagem do russo como língua materna.

Nesse experimento, as crianças conseguiram desenvolver uma relação teórica com a sua

língua materna,o russo, através da composição e decomposição de palavras.

O experimento de Aidarova e Davydov é motivador para os alunos porque não é

somente a reprodução do conhecimento dado de maneira passiva, mas eles são ativos e

agem como pesquisadores quando analisam uma palavra, descobrem as relações entre

significado e forma, expandem essas relações a um sistema cada vez mais complexo, a

ponto de inventar possíveis palavras em russo utilizando regras como singular, plural,

masculino, feminino, etc.

Esse fato foi possível porque essas crianças conseguiram distanciar-se de sua

língua e adotar uma postura crítica em relação às suas regras gramaticais, adquirindo

assim uma relação metateórica com sua língua materna, apesar da sua tenra idade.

Com esse trabalho Aidarova e Davydov fazem uma crítica ao trabalho de outros

pesquisadores soviéticos como Boshowitsch, Shuzkow e Morosowa desenvolvido no

período de 1930 a 1960 constatando que crianças na escola primária:

- São incapazes de distanciar-se do significado dado de uma palavra

diretamente;

- São incapazes de analisar uma palavra;

- Têm um pensamento muito elementar;

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- Somente atuam com objetos concretos;

- Têm, somente, uma relação direta com as línguas;

- São capazes, apenas, de construir suas próprias generalizações com

atributos dados e observáveis;

- Têm baixo nível de pensamento abstrato. (v. AIDAROVA 1967, p.131 –

133)

Esses resultados de pesquisa têm muita relação com a visão de Piaget quanto à

habilidade de raciocínio dedutivo das crianças. Para Piaget, a criança é incapaz de fazer

referências até o advento do estágio concreto-operacional na idade de 7 a 8 anos. Mas

esse primeiro raciocínio é limitado a conteúdos práticos e concretos. Para Piaget,

também as crianças menores de 11 ou 12 anos não entendem princípios formais da

lógica dedutiva e não podem raciocinar sobre o material hipotético, porque não têm

necessidade de fazer tais deduções. Para ele, “uma dedução deve ser formal ou

hipotético-dedutiva, e suas conclusões devem ser seguramente verdadeiras somente pelo

raciocínio da sua premissa e independentes das verdades empíricas dessas premissas”.

(PIAGET 1962, p.32)

A pesquisa de Amaral (2006) realizada com estudantes do curso de Letras de

diferentes níveis, tanto iniciantes quanto concluintes, mostrou que, apesar de já terem

estudado teorias lingüísticas e de aprendizagem esses estudantes permaneciam no nível

empírico em relação à língua(gem). Após escreverem autotematizações2 intituladas

2 O termo autotematizações é oriundo da sociologia e quer dizer a maneira pela qual nos mostramos ao mundo, por exemplo, nossa maneira de falar , de vestir-nos, de decorar nossa casa são nossas automematizações.

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“Eu, minha língua, meu ambiente cultural”, sua relação com a língua(gem) é descrita,

conforme segue abaixo:

As línguas são vistas como dadas. A interação histórica entre língua

e realidade, a produção humana e a construção de línguas não são

levadas em consideração;

Mantém uma relação ufanista com a língua materna;

mostram mais distância das línguas que não são provenientes do

Latim;

Não usam construtos teóricos como signo, estrutura, sistema ou

informação, como meios para uma relação teórica com línguas,

apesar de serem estudantes de Letras e já terem tido contato com

concepções teóricas como Estruturalismo e Semiótica;

Na visão dos estudantes não há possibilidades de planejar e

construir línguas (como SAE ou Esperanto), ou gerar línguas no

computador com base em teorias lingüísticas;

O campo da tecnologia de linguagem fundamentado em teorias

lingüísticas não é levado em consideração pelos estudantes;

A língua como prática social não é vista com base em teorias

lingüísticas como Pragmática, Sociolingüística, mas somente de

maneira prática e empírica, dito de outra forma, os fatos são

constatados com base em teorias implícitas ingênuas.

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A pesquisa de Amaral (2006) revela que não basta conhecer as teorias sobre

linguagem para pensar teoricamente em linguagem, o pensar teoricamente sobre

língua(gem) requer mais que isso, porém é algo que pode ser desenvolvido já na

infância como comprova o trabalho de Aidarova e Davydov (1967) .

Outras pesquisas como Luria (1976) e Yunes (1992) mostram que o

desenvolvimento do pensamento científico tem uma estreita ligação com a escolaridade

e o com meio social, isso quer dizer que toda pessoa é capaz de desenvolvê-lo,

independente da idade, desde que seja estimulada a isso, como podemos verificar no

trabalho de Aidarova e Davydov(1967).

O presente artigo mostra o desdobramento do pensamento empírico em uma

relação metateórica com a língua materna no Ensino Médio, o educando consegue

articular as teorias lingüísticas e/ou de aprendizagem com a língua falada no dia a dia,

com a origem de sua língua e finalmente sua língua como sua marca identitária.

A pesquisa partiu da seguinte hipótese: Os alunos que ingressam no Ensino

Médio não possuem pensamento teórico sobre língua e linguagem

Sendo essa pesquisa de cunho etnográfico, ela possibilita ao pesquisador

descrever e interpretar as ações dos sujeitos pesquisados no micro universo da sua sala

de aula de Língua Portuguesa na 1ªsérie do Ensino Médio Integrado do Ensino Técnico.

Assim, é possível estudar uma escola inteira; uma sala de aula observando a classe em

todas as disciplinas; as aulas de uma só disciplina como é o caso dessa pesquisa.

Para descrever os resultados da pesquisa as próprias palavras dos participantes

são utilizadas para comprovar a hipótese inicial da pesquisa e a partir daí dar

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seguimento às etapas posteriores, visto que, os próprios alunos pesquisados atuam como

co-pesquisadores e não como sujeitos passivos da pesquisa.

Por ser uma pesquisa-ação que tem por objetivo provocar uma mudança conceitual

nos alunos, essa pesquisa foi dividida em cinco partes, conforme segue abaixo:

1. Pré-teste;

2. Produção da Objetividade;

3. Produção da Subjetividade;

4. Produção da Intersubjetividade;

5. Produção da (Re)-subjetividade.

Pré-teste

No pré-teste a professora pediu aos alunos que escrevessem o que sabiam sobre

língua e linguagem. Ela salientou que eles poderiam ficar bem à vontade, pois nessa

atividade não existia o certo ou errado, o importante era eles escrevessem o que tinham

em mente.

Os resultados confirmam a hipótese inicial do projeto, visto que, 95% dos alunos

afirmaram nunca terem pensado nisso antes, 3% afirmaram achar tudo a mesma coisa,

língua e linguagem são gramática.. Apenas 2% incluíram as imagens, os gestos à

linguagem e afirmaram que a língua correspondia à linguagem verbal. Além disso, não

esboçaram nenhuma definição ou conceito sobre língua, apenas referiram-se à língua

como matéria chata, gramática, acentuação.

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No segundo momento, ao serem instigados pela professora para falarem mais

sobre língua e linguagem, os alunos argumentaram que não sabiam, não gostavam de

português, insistiram que português era uma matéria chata, que sempre se aprendia a

mesma coisa, disseram que não queriam falar sobre isso.

Produção da objetividade

Na segunda etapa da pesquisa a professora distribuiu aos alunos uma lista de

palavras em diferentes línguas e pediu a eles que desenhassem a primeira imagem que

viesse a sua cabeça. A professa frisou que nessa atividade não existiria certo ou errado,

o importante seria que eles fossem espontâneos e desenhassem realmente a primeira

imagem que viesse a sua mente, conforme pode ser visto abaixo:

Figura 01: Atividade Lúdica: brincando com as palavras

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Na figura acima temos a palavra árvore escrita em diferentes línguas como:

português, inglês, francês e alemão. Em português, como era esperado, foi desenhada

uma árvore, também podemos observar que em português e em francês a grafia da

palavra árvore é semelhante, sendo assim, em francês também foi desenhada uma

árvore.

No entanto, em inglês foi desenhado o número três, porque a palavra “tree” em

inglês tem a grafia semelhante à grafia da palavra três em português, Assim como,a

palavra “Baum” em alemão nos remete à grafia da palavra bomba em português.

Depois de concluída a atividade eles explicavam os seus desenhos para os colegas.

Quando os alunos fizeram essa atividade, eles a acharam muito estranha, ficaram

desconfiados, perguntaram: - Por que fazer isso numa aula de português? O que isso

tem a ver com português?

Sua reação foi natural, visto que foi uma atividade totalmente atípica que fugia

dos estereótipos que eles tinham de aulas de português, mas foi uma atividade

fundamental para os propósitos dessa pesquisa-ação.

Essa atividade lúdica e a princípio ingênua serviu como um marco inicial para

que eles começassem a articular os seus desenhos, com a visão de mundo que eles têm e

posteriormente com as teorias estudadas.

Logo após essa atividade, alunos-pesquisadores, em pequenos grupos,

pesquisam sobre diferentes concepções de linguagem e desenvolvimento da linguagem

e as apresentaram em forma de seminários ao restante do grupo.

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Os teóricos estudados foram: Ferdinand de Saussure, Sapir e Whorf, Wilhelm

von Humboldt, Mikhail Bakhtin, Piaget e Vygotsky.

No começo da pesquisa, eles apresentaram muita dificuldade em fazer esse

trabalho, foram necessários vários encontros com a professora-pesquisadora para que

eles conseguissem entender essas teorias e conseguissem explicá-las para os colegas nos

seminários. Mas, o real entendimento das teorias somente ocorreu quando eles

conseguiram fazer as relações com os desenhos das palavras e com seus relatórios

autoetnográficos intitulados: Minha trajetória Lingüística, pois com essas atividades

eles passaram a dar-se conta que os fenômenos não acontecem por acaso.

Ao estudarem a arbitrariedade do signo lingüístico de Saussure eles voltaram aos

seus desenhos e analisaram a relação significante/significado e se deram conta que essa

relação não é natural, pois varia de língua para língua, conforme pode ser visto abaixo:

Logo no primeiro dia de aula, realizamos um trabalho inicial

que nos pareceu muito estranho para a disciplina de Língua

Portuguesa, que foi a confecção de desenhos,após a leitura de

algumas palavras. Porém, como algumas aulas após realizamos

trabalhos sobre teóricos da linguagem, entendi o porquê

daquilo, especialmente pelo motivo de que o meu trabalho era

sobre Saussure.... (Fragmento retirado do relatório auto-

etnográfico do aluno F. B.3))

3 Apesar de termos recebido a autorização dos alunos para revelar sua identidade, optamos por preservá-la,visto que são fragmentos de seus relatórios auto-etnográficos que tratam, não só de sua trajetória lingüística, mas também de sua trajetória de vida.

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Os alunos se deram conta que seus desenhos muitas vezes coincidiram uns com

os outros porque segundo a Hipótese Sapir –Whorf as pessoas vivem segundo suas

culturas em universos mentais muito distintos que estão exprimidos (e talvez

determinados) pelas diferentes línguas que falam. Desse modo, também o estudo das

estruturas de uma língua pode levar a elucidação de uma concepção de um mundo que a

acompanhe. Isto se dá principalmente no nível semântico, embora também influencie na

maneira de assumir os processos de mudança e os estados das coisas expressas por

ações verbais.

Humboldt, apesar de ser um dos inspiradores da Hipótese Sapir-Whorf, ele via

além da Hipótese, pois considera as condições de produção do discurso, propõe uma

compreensão da linguagem não apenas como um sistema acabado, mas como

atividade.Em suas palavras: “é preciso considerar a linguagem não como um produto

morto (todtes Erzeugtes), mas, sobretudo, como uma produção(Erzeugung) (...) Em si

mesma, a linguagem não é um produto (Ergon), mas uma atividade (Energeia)”

(HUMBOLDT, 2002, p. 416 e 418).

É interessante notar, nessa compreensão da linguagem como atividade, que seu

aspecto criador comparece tanto em um ponto de vista semântico quanto em um ponto

de vista pragmático. Segundo Humboldt, as línguas são heranças dos nossos

antepassados, assim como são também autocriações humanas que estão em contínuo

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processo de transformação.E é justamente esse fato que faz de suas reflexões um marco

importante não apenas para a lingüística contemporânea, fato deixado de lado pela

Hipótese Sapir-Whorf.

Bakhtin, por sua vez, assemelha-se muito a Humboldt no que tange à

dinamicidade das línguas. Ele também estuda as línguas nas diferentes esferas sociais

Para ele, a língua — que Saussure considera o objeto da lingüística — não passa de um

modelo abstrato, construído pelo teórico a partir da linguagem viva e real.

Coerentemente Saussure afirmava que “não é o objeto que precede o ponto de vista,

mas é o ponto de vista que cria o objeto”. No caso da lingüística é exatamente o que

ocorre: o seu objeto é criado a partir do ponto de vista de que a linguagem humana não

pode ser objeto de conhecimento científico, assim como o exercício da fala.

Assim como Humboldt, Bakhtin trabalha com um mundo em movimento e em

perene transformação, seu objeto está sempre em processo, não se submete a uma forma

fixa e imutável.

E é exatamente por isso que ele não pode aceitar que uma língua seja um

conjunto de formas (signos) e suas regras de combinação (sintaxe). Para Saussure, um

signo é uma relação entre um significante (um som, uma imagem acústica ou um

grafema) e um significado (um conceito).

Para Bakhtin, o significado é uma impossibilidade teórica. Um signo, aceitando-

o provisoriamente, não tem um significado, mas receberá tantas significações quantas

forem as situações reais em que venha a ser usado por usuários social e historicamente

localizados. Em uso, a língua é muito diferente do seu modelo teórico. Para a lingüística

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um signo tem um significado. Sabemos, entretanto, que, ao falar, nós estamos

diariamente modificando, acrescentando, excluindo, torcendo os significados

codificados pela língua, o enunciado não é um conceito meramente formal; um

enunciado é sempre um acontecimento. Ele demanda uma situação histórica definida,

atores sociais plenamente identificados, o compartilhamento de uma mesma cultura e o

estabelecimento necessário de um diálogo, todo enunciado demanda outro a que

responde ou outro que o responderá.

Ninguém cria um enunciado sem que seja para ser respondido. Mesmo isso que

eu agora leio, ainda que não venha a receber respostas exteriorizadas, por certo as

provocará interiormente e, desde já, esboço as minhas réplicas neste diálogo sem fim.

Ao estudar Humboldt e Bakhtin os alunos dão-se conta das semelhanças entre de

idéias dos dois teóricos, apesar de apresentarem diferenças terminológicas. Conseguem

perceber que esses dois autores ultrapassam as fronteiras da lingüística, pois são

estudados em outras áreas do conhecimento, Principalmente Humboldt, juntamente

outros intelectuais consolidou a Teoria do Autodesenvolvimento Humano4 na

Alemanha, fato que transformou radicalmente o sistema educacional alemão.

Cada palavra desenhada na atividade lúdica é amplamente discutida com o

grupo, sob a orientação da professora-pesquisadora, por exemplo, da palavra “Baum”,

que significa árvore em alemão, mas que pela sua grafia, fez alusão a palavra bomba em

4 Em alemão Theorie der Bildung.

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 3 – Ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa no Brasil.

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português surgiu a diferença entre significado e significação mencionadas na teoria de

Humboldt (criação) e Bakhtin (enunciado).

A palavra “bomba” para um brasileiro não tem a mesma significação como para

países que sofrem com o terrorismo, nesse caso vamos além da arbitrariedade

significante/significado saussuriana e chegamos à significação bakhtiniana, também

abordada na teoria de Humboldt.

Após o estudo desses teóricos e as possíveis relações desses teóricos com os

desenhos feitos na atividade inicial da disciplina de Língua Portuguesa, os alunos–

pesquisadores passam para a etapa da produção da subjetividade.

Produção da subjetividade:

Os alunos-pesquisadores elaboram de um relatório autoetnográfico intitulado:

“Minha Trajetória Linguística”, relacionando as teorias estudadas na produção da

objetividade com a sua história de vida.

Nesse relatório os alunos deveriam descrever sua trajetória lingüística desde sua

primeira manifestação de linguagem que ocorre após o nascimento, o choro, passando

pelo período da silabação, a primeira palavra, até aos dias atuais.

Um fato interessante que ocorreu foi que eles tiveram que perguntar aos seus

pais qual havia sido a sua primeira palavra, e os pais sempre diziam que depois da

primeira palavra eles começaram a falar tudo de repente, fato que comprova a tese do

inatismo.

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Muitos deles se encaixaram perfeitamente nos estágios evolutivos de Piaget,

outros salientaram mais a teoria da Vygotsky no seu desenvolvimento como, por

exemplo, a zona de desenvolvimento proximal (ZPD), conforme descreve uma

aluno:“Quando comecei a andar de bicicleta minha mãe me segurava até que consegui

andar sozinho.”

Um fato importante foi que, a princípio, os alunos deveriam escrever sobre sua

trajetória lingüística, mas seus relatórios falaram sobre suas vidas, fatos marcantes de

suas vidas, alguns alegres, outros tristes, como a morte de pais, avós, etc. Isso nos

mostra que a nossa língua é a nossa marca, através dela nos constituímos como

indivíduos, falar sobre nossa trajetória lingüística significa falar sobre nós mesmos.

Como fechamento dessa etapa, cada um deles apresenta seu relatório

autoetnográfico ao grande grupo de alunos e discutem sua história de vida e as

diferentes concepções de linguagem dentro do seu próprio contexto de vida.

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Produção da Intersubjetividade:

O professor introduz noções de etnografia e leva para sala de aula exemplos de

pesquisas etnográficas. Os alunos-pesquisadores, em pequenos grupos, saem do espaço

da sala de aula e realizam entrevistas etnográficas com pessoas de diferentes trajetórias

de vida e analisam essas entrevistas à luz das teorias estudadas previamente na sala de

aula. Abaixo, mostraremos uma parte da entrevista na qual os alunos relacionaram com

a teoria de Humboldt.

...Então o Sr. concorda que aprendendo uma nova língua aprende-se também um pouco

da sua cultura?

Sem sombra de dúvidas a gente aprende as culturas e mais

ainda é difícil de explicar, mas existem estudos que provam que

quando tu aprendes uma língua dentro do teu cérebro abre

janelas para outras coisas que não tem nada a ver com

línguas. Tipo assim vou dar um exemplo análogo quem aprende

música tem mais facilidade na matemática e quando tu aprendes

línguas diferentes te abre também outras janelas como para a

geografia, artes.Eu tive agora em novembro, passado, um mês

inteiro na China eu não sabia dizer um “aí” em chinês, mas aí

aprendi a dizer obrigado também, mas o som do chinês, da

língua chinesa é muito bonita e tu começa a relacionar com o

jeito que eles vivem, como é que eles pensam... aquela arte que

eles fazem é algo inacreditável. (Fragmento retirado da

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entrevista etnográfica realizada com um professor sobre

relações interculturais)

Os alunos-pesquisadores relacionaram essa parte da entrevista à parte da teoria

de Humboldt que diz que aprender uma nova língua é adquirir um novo ponto de vista,

é acrescentar uma nova maneira de ver s sentir o mundo que pode ser percebido em

diferentes áreas do conhecimento.

Produção da (Re)-subjetividade:

Os alunos-pesquisadores produzem um Módulo Multimídia contendo todo o

desenvolvimento das atividades realizadas na pesquisa, não uma compilação delas, mas

uma análise reflexiva sobre sua relação com sua língua materna, o português brasileiro.

Eles fazem uma análise reflexiva sobre o que pensavam sobre a sua língua, sobre o

ensino da Língua Portuguesa antes dessa pesquisa e depois da conclusão dela, conforme

exemplificado aqui:

.... A meu ver os conteúdos desenvolvidos ao longo do ano

nos proporcionaram uma nova visão de mundo até então

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desconhecida, coisas que eu nunca tinha pensado antes , o

português parece outra coisa agora... R.V.

Aprendemos que a língua portuguesa não é apenas

gramática, ou forma, ela é um montão de coisas..Foi muito

bom. Para mim o aspecto mais importante foram os

exemplos dados para relacionar as teorias com o dia a dia,

no fim ficou tudo muito claro, entendi tudo. C.Z;

Eu aprendi que o português não é só aquela matéria que

você aprende predicado, sujeito etc,... O PORTUGUÊS é

mais complexo, mais interessante, os desenhos, as teorias

, os relatórios, tudo nos pareceu muito estranho, mas agora

tudo faz sentido... P.N.

Após a leitura desses breves relatos dos alunos podemos observar que a Língua

Portuguesa assumiu uma nova dimensão para eles. Primeiramente, houve uma sensação

de estranhamento com os desenhos iniciais, as teorias, depois, à medida que eles

conseguiam fazer as relações com as teorias e suas experiências nos seus relatórios

autoetnográficos eles se deram conta que esses teóricos que, a princípio, pareciam seres

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inatingíveis, estavam presentes nas suas vidas, pois suas teorias não tinha saído do nada,

um dia esses teóricos observaram pessoas de carne e osso como eles e daí saíram suas

teorias.

Nessa trajetória dos alunos na pesquisa primeiramente houve uma

distanciamento muito grande da língua materna, eles percorreram teóricos densos como

Humboldt, Bakhtin, Saussure e à medida que começaram a elaboração de seus relatórios

autoetnográficos, eles voltaram-se novamente para a sua língua materna, nesse

momento não mais com um olhar ingênuo, mas com um olhar curioso, tentando

encontrar as teorias previamente estudadas no desenvolvimento do seu processo

lingüístico. A esse fenômeno chamamos desdobramento de uma relação metateórica

com a sua língua materna: o português brasileiro, objetivo da nossa pesquisa.

Conclusão

Nesse artigo discorremos sobre um trabalho de pesquisa realizado por uma

professora-pesquisadora, o próprio nome professor-pesquisadora nos remete ao objetivo

da pesquisa descrita no artigo, a articulação entre teoria e prática.

Acreditamos aqui estar um dos méritos desse trabalho, fato esse raro no ensino

brasileiro, pois em geral temos de um lado a academia que trabalha com as teorias e de

outro a escola que lida com a prática escolar desprovida de teorias. Aqui unimos teoria e

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prática por parte da professora-pesquisadora e desdobramento de uma relação empírica

por parte dos alunos, até então uma relação escolar mal sucedida que assume uma

relação desafiadora, onde eles, alunos deixam de ser alunos recipientes de regras

gramaticais e passam a ser os protagonistas do processo de descoberta do potencial da

sua própria língua.

Referências Bibliográficas

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