o debate metodológico contemporâneo em teoria do direto

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Ponto 1 – O debate metodológico contemporâneo em teoria do direto A segunda metade do século XX foi palco de uma inflamada disputa acadêmica que se encontra na raiz do atual debate metodológico na filosofia do direito. Os contendores, Herbert Lionel Adolphus Hart e Ronald Dworkin - o primeiro já falecido, o segundo com produção intelectual ainda ativa - eram velhos conhecidos: o último substituiu o primeiro, em 1969, na cadeira de Teoria Geral do Direito da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Cronologicamente, a cizânia conheceu seus píncaros na seguinte sequência: 1) 1961 – Hart publica “The concept of law”, considerado por muitos o livro mais importante da filosofia do direito do século passado, que inaugura uma nova etapa do pensamento positivista, pós kelseniana; 2) 1967 – Dworkin publica o artigo “The model os rules I”, criticando duramente a teoria de Hart (texto que depois viria a integrar coletânea reunida no livro “Taking Rights Seriously”); 3) 1986 – é publicado por Dworkin “Law’s Impire”, segundo momento da crítica à Hart, mais aguda e sofisticada; 4) 1994 – sai a segunda edição de “The concept of law”, com um posfácio em que Hart responde a Dworkin, lançando mão de argumentos que influenciaram profundamente uma ampla gama de pensadores positivistas contemporâneos. Entre estes últimos, operou-se uma divisão em duas correntes acadêmicas que se convencionou chamar de “Hard Positivism” (Positivismo Duro ou Exclusivista) e “Soft Positivism” (Positivismo Brando ou Inclusivista). Para os fins deste trabalho, parece conveniente expor a disputa primeiro a partir do empreendimento hartiano e de seus predecessores, para focar depois na visão que Dworkin tem dele, conferir a réplica à Hart e, por fim, delinear brevemente os contornos teóricos da geração contemporânea de positivistas. A teoria de Hart e a de seus predecessores Escrevendo dentro da tradição jurídica positivista, o filósofo retoma as ideias de seus precursores mais remotos, Jeremy Bentham e seu discípulo John Austin, fundador da escola analítica inglesa. Deles Hart herda uma das lições essenciais, o alicerce sobre o qual foi erigido o 1

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Teoria do Direito

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Page 1: O Debate Metodológico Contemporâneo Em Teoria Do Direto

Ponto 1 – O debate metodológico contemporâneo em teoria do direto

A segunda metade do século XX foi palco de uma inflamada disputa acadêmica que se encontra na raiz do atual debate metodológico na filosofia do direito. Os contendores, Herbert Lionel Adolphus Hart e Ronald Dworkin - o primeiro já falecido, o segundo com produção intelectual ainda ativa - eram velhos conhecidos: o último substituiu o primeiro, em 1969, na cadeira de Teoria Geral do Direito da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Cronologicamente, a cizânia conheceu seus píncaros na seguinte sequência: 1) 1961 – Hart publica “The concept of law”, considerado por muitos o livro mais importante da filosofia do direito do século passado, que inaugura uma nova etapa do pensamento positivista, pós kelseniana; 2) 1967 – Dworkin publica o artigo “The model os rules I”, criticando duramente a teoria de Hart (texto que depois viria a integrar coletânea reunida no livro “Taking Rights Seriously”); 3) 1986 – é publicado por Dworkin “Law’s Impire”, segundo momento da crítica à Hart, mais aguda e sofisticada; 4) 1994 – sai a segunda edição de “The concept of law”, com um posfácio em que Hart responde a Dworkin, lançando mão de argumentos que influenciaram profundamente uma ampla gama de pensadores positivistas contemporâneos. Entre estes últimos, operou-se uma divisão em duas correntes acadêmicas que se convencionou chamar de “Hard Positivism” (Positivismo Duro ou Exclusivista) e “Soft Positivism” (Positivismo Brando ou Inclusivista).

Para os fins deste trabalho, parece conveniente expor a disputa primeiro a partir do empreendimento hartiano e de seus predecessores, para focar depois na visão que Dworkin tem dele, conferir a réplica à Hart e, por fim, delinear brevemente os contornos teóricos da geração contemporânea de positivistas.

A teoria de Hart e a de seus predecessores

Escrevendo dentro da tradição jurídica positivista, o filósofo retoma as ideias de seus precursores mais remotos, Jeremy Bentham e seu discípulo John Austin, fundador da escola analítica inglesa. Deles Hart herda uma das lições essenciais, o alicerce sobre o qual foi erigido o positivismo jurídico: a independência entre o direito e a moral. Na célebre assertiva de Austin: “the existence of law is one thing; its merit or demerit is another”. Para o positivista, sobrepor direito e moral é um equívoco do ponto de vista filosófico, pois deixa de reconhecer a diferença entre aquilo que está “na cabeça do indivíduo”, em sua consciência (juízo moral) e aquilo que está “no mundo”, na realidade exterior à consciência, na realidade social (direito). Isso pode levar a dois extremos perigosos: numa ponta, o conservadorismo daqueles que se apegam ao aspecto formal (o que está “no mundo” que cerca o indivíduo) - se é lei, se está escrito, se o Estado canonizou, é porque também é bom, é desejável, é moral; na outra, a anarquia revolucionária dos que se fiam no aspecto material (o que está “no

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espírito” do indivíduo) – se é bom, se é desejável, se é moral, não importa o que diz a lei, o que está escrito, o que determina o Estado. O positivismo, assim, reconhece a diferença das instâncias do direito posto e da moral justamente para manter a capacidade crítica desta última em relação ao primeiro. Desse modo, conquista-se ao mesmo tempo a segurança jurídica (estabilidade mínima sobre a lei vigente no tempo) e a dinâmica de adaptação da lei à realidade social, evitando a fossilização do ordenamento (pois o conteúdo da crítica moral pode ser incorporado ao direito posto, por meio dos procedimentos legislativos adequados). Nessa perspectiva, para o positivista, a matéria por excelência da ciência jurídica é o direito posto: tudo aquilo que antecede esse direito, que está em sua origem, anterior à institucionalização, é matéria estranha à ciência jurídica (embora não seja, obviamente, menos importante). Uma das críticas mais pueris ao positivismo jurídico reside aqui: confunde a eleição deste recorte teórico específico – necessária justamente pelo reconhecimento da complexidade do objeto total, a razão prática - com um menosprezo pela área que circundam esse recorte (a moral).  

Uma vez demarcado o campo de preocupação do positivismo jurídico - a lei, tal qual posta pelo Estado – Hart começa a se distanciar de seus precursores. A diferença fundamental entre o seu conceito de direito em relação ao de Bentham e Austin reside na fonte onde tais pensadores imaginavam poder encontrar o direito: enquanto o positivismo destes últimos tinha viés realista, ou seja, pretendia encontrar o direito no mundo das coisas, da ontologia, do ser, Hart filiava-se a corrente positivista que distinguiu uma segunda dimensão, a do dever ser, única que possibilitaria a apreensão verdadeira do fenômeno jurídico. Nesse ponto, Hart revela a influência do pensamento de Hans Kelsen, jurisfilósofo austríaco que deu nova guinada aos estudos positivistas quando publicou sua Teoria Pura do Direito, em 1934.

Para Kelsen, a lei não é algo que se possa extrair diretamente do mundo físico, do espaço-tempo, sujeito a relações de causa e consequência, como queriam os positivistas realistas. Não é possível traduzir conceitos jurídicos como “fulano deve 100 reais pra ciclano” em termos de “fatos brutos”. É evidente que podemos identificar fatos brutos, perceptíveis pelos sentidos, nessa relação (fulano liga para ciclano, que passa na loja pra comprar tinta; ciclano vai até a casa de fulano fazer um serviço de pintura; fulano diz a ele que o pagará depois, documentando a dívida em uma nota promissória etc). Entretanto, a observação de tais fatos físicos, brutos, por si só, não permitem que o observador compreenda a obrigação jurídica que ali se estabeleceu, não permite que ele “capte a juridicidade” do ato. Ao contrário das relações causais do mundo ontológico, em relação às quais é possível estabelecer leis naturais que digam “Se X, então Y” (ex.: se um metal é exposto à uma fonte de calor, então ele se dilatará, aumentando sua presença espacial) captando tais dados pelos sentidos, a captação dos dados que possibilitam o estabelecimento de leis no mundo deontológico (“Se X então Y”-  ex.: se realizo um contrato oneroso de prestação de serviço de pintura e cumpro minha prestação, tenho direito à contraprestação) não se dá simplesmente pelos sentidos. Fundado em Kant, Kelsen percebeu que as leis do direito, da razão prática, da liberdade/individualidade, do humano (relação de imputação: quando X, o que deve ser feito?), são profundamente diferentes das leis naturais, da razão teórica, da

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necessidade/universalidade, passível de experimentação pelo método científico (relação de causalidade: quando X, o que acontece?). Mas isso, por si só, não resolvia a questão.

Kelsen parte do problema básico do filósofo do direito que busca conceituá-lo: dentro da subjetividade natural da razão prática (cada qual tem uma opinião sobre aquilo que deve fazer/ser feito por terceiro), onde encontrar a medida comum, o ponto arquimediano, a objetividade, que permita estabelecer regras de conduta que possam ser aferidas de modo supra individual, ou seja, que possam ser aceitas por todos os indivíduos? O dilema é: se tento traduzir o direito em fatos brutos, deixo de explicá-lo, pois expressões abstratas como “dívida”, “dever”, “obrigação”, “responsabilidade” etc não encontram objetos do mundo a que correspondam; se o reduzo à juízos morais, perco a objetividade desejada, ou seja, o que é direito pra mim (ex.: ser favorável à descriminalização do aborto) pode não ser pra você (ex.: ser desfavorável à essa reforma legislativa). A solução proposta por Kelsen situa-se, por assim dizer, numa instância intermediária entre a objetividade do mundo físico e a subjetividade do “mundo da consciência”: o “mundo do social”.  

Para ele, o evento tipicamente jurídico é a norma jurídica, ou seja, o dever-ser prescritivo (ex.: “não mate!”), por oposição ao dever-ser descritivo, que é um mero enunciado jurídico (ex.: “aquele que mata tem contra si imposta uma sanção penal de X anos de reclusão”). Mas o que é uma norma jurídica? Kelsen começa dizendo que a palavra norma envolve um conceito não analisável, ou seja, que já se encontra em seu mínimo grau de complexidade. Norma é aquilo que deve ser, portanto é aquilo que ainda não é, que difere da situação atual, é um por vir. O que confere a esse dever-ser toda sua complexidade é, portanto, a adjetivação “jurídica”. Norma jurídica é, assim, “o sentido objetivo atribuído a um ato de vontade”. Analisemos o conceito em seus quatro aspectos.  

“Ato”: é evento físico, fato bruto, do mundo natural, que ocorre com a participação de um ser humano (do contrário, seria mero “fato”). “De vontade”: praticado de forma consciente, por alguém que quer, que anui com o desenrolar da conduta (do contrário, não seria ato de vontade, mas mero ato reflexo). “Atribuição de sentido”: é aqui que passamos definitivamente do mundo exterior para o mundo interior do sujeito. Quando dizemos que X é um ato de vontade, queremos dizer apenas que não é um simples fato, pois foi realizado por uma consciência, foi previsto, aceito e levado a cabo pela pessoa que o pratica. Ainda não estamos dizendo muito, já que coisa semelhante se dá com animais irracionais. Para além da voluntariedade, a atribuição de um sentido ao ato realizado ou por realizar é a nota que insere o ato no espírito humano, do ser racional. O homem, ao defender-se da agressão de um semelhante recorrendo à uma arma, pratica mais do que o ato de vontade instintivo, animal, de preservação de sua vida. Ele atribui sentido a este ato. Ele compara instantaneamente dois valores morais (respeito à vida do próximo/preservação da própria) e opta por um deles. Seu ato, assim, tem um sentido, não é meramente volitivo (instinto animal de auto preservação do mundo natural), é humano, é moral. “Objetivo”: aqui se dá a grande contribuição de Kelsen. Para ele, a norma jurídica não podia ser refém daquilo que o juízo moral de cada um

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julgasse mais adequado. Era necessário um parâmetro que conferisse objetividade a tais juízos. Esta medida seria a do “social”, ou seja, a dos juízos compartilhados, aceitos, pela grande maioria dos integrantes da comunidade respectiva.  

Imagine-se a regra moral de prudência que manda que as pessoas dirijam com cuidado e, via de consequência, por exemplo, não se embriaguem antes de assumir o volante. Enquanto permaneça como tal, esta regra pode ser interpretada livremente por cada um, gerando um agir heterogêneo (uns verão nela legítima precaução, outros puro preconceito, violação da liberdade de ir e vir e invasão de privacidade; uns a respeitarão `a risca, outros apenas quando não causem um grande ônus, confiando na própria capacidade de bem guiar etc). Nessa situação, não estamos no campo do direito, mas no da moral. Se, porém, sobrevém uma lei determinando que é crime dirigir embriagado, o agir das pessoas tende a se homogeneizar, adequando-se a lei (começam a deslocar-se a pé após ingestão de bebida alcoólica, pegar transporte coletivo, incrementar a demanda por táxi etc); os órgãos do Poder Executivo começam também a segui-la, sinalizando vias públicas com avisos, fazendo campanhas de conscientização, fiscalizando o cumprimento com blitz etc; os tribunais também começam a se manifestar favoravelmente em casos paradigmáticos; pronto, a despeito do que cada um pode continuar achando do ponto de vista moral, a “lei pegou”, é dizer, mais do que um pedaço de papel com um enunciado jurídico, uma descrição (art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro: “dirigir com concentração de álcool superior a 06 miligramas por litro de sangue – pena de 06 meses a 03 anos de reclusão”) há agora um comportamento real de pessoas e instituições, um agir social generalizado, objetivo, “no mundo”, uma prescrição, uma norma jurídica: não dirija embriagado.  

Kelsen, assim, não enxerga a norma escrita pelos órgãos competentes do Estado como suficiente em si para se dizer direito positivo: antes, os preceitos jurídicos ali inscritos, para serem considerados componentes do direito positivo, ou seja, normas jurídicas válidas (=existentes) devem ter um fundamento não só no ordenamento jurídico formal mas também na realidade social, devem ter um “mínimo de eficácia”. Cria-se um sistema complexo: formalmente, as normas jurídicas fundamentam-se em outras normas jurídicas superiores, numa pirâmide que nos leva das normas relativas à regulamentações específicas mais comezinhas, como o horário de atendimento de uma repartição pública, até as mais fundamentais, como os princípios basilares de nossa Constituição. No topo da pirâmide, porém, paira, como que suspensa, uma norma fundamental (“grundnorm”) que é a condição de existência ou validade (para Kelsen, sinônimos – a validade é a forma específica de existência da norma jurídica) de todo o sistema. Essa norma superior liga-se a um fato social, que não é nem só real, nem apenas ideal, e nisso reside a quebra de paradigma kelseniana. Para ele, aquilo que enxergo como direito não está nem nos fatos brutos do mundo nem na consciência do indivíduo: a consciência clama por uma ordem externa (direito) ainda que para a ela se contrapor em alguns casos (crítica moral ao direito), de modo a demarcar a fronteira sujeito interior/mundo exterior. É dizer: a realidade social se impõe como direito porque assim o aceita o indivíduo, ainda que este mantenha uma postura

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crítica em relação a ela, no espaço de sua individualidade moral. A norma fundamental que dá validade e existência jurídica a todo ordenamento nasce, assim, da convergência destas duas instâncias: a interior (se, por um segundo, todos os indivíduos integrantes de uma comunidade deixassem de desejar que houvesse uma ordem exterior, esta deixaria de fato de existir) e a exterior (não basta que um indivíduo queira, moralmente, que a ordem jurídica seja X; essa ordem deve ter lastro no real, naquilo que de fato ocorre numa dada comunidade – você quer UMA ordem exterior, seja ela qual for, e por isso aceita A ordem existente).  

Fica claro, assim, que Kelsen, muito embora também se filie à tese benthamita-austiniana da fonte social das normas jurídicas (e é isso que faz dele herdeiro da tradição positivista), procura acomodar o indivíduo e sua moralidade nesse conceito, algo que ficava relegado a segundo plano por seus antecessores. Isso fica muito claro na posição de Bentham e Austin acerca da obrigação jurídica: para eles, como o direito adivinha somente de “fatos brutos”, o dever jurídico era mera relação de poder - o sujeito obedece porque tem receio da sanção que pode lhe ser infligida pelo Soberano.  

Hart adota a distinção kelseniana entre ser e dever ser mas leva-a para onde o filósofo austríaco parecia querer evitar chegar: ao interior do indivíduo. A teoria hartiana, assim, embora permaneça uma teoria essencialmente descritiva como a de Kelsen, procura avançar na busca do objeto a ser descrito pela ciência do direito, penetrando na seara da intenção do indivíduo, da finalidade com que realiza cada movimento no jogo da vida, no modo como participa desse jogo.

 

Para Hart, é fundamental para o positivismo compreender o direito para além da descrição normativista kelseniana, como algo inerente ao fenômeno humano da vida em sociedade e que, portanto, só tem sentido para o ser humano que participa desse tipo de relação, em outras palavras, para aquele que “reconhece as regras do jogo em sociedade”. Nesse ponto, o teórico foi profundamente influenciado pela filosofia da linguagem que se desenvolvia em Oxford nos anos 1950, sobretudo por Wittgenstein.

Comparando a vida em sociedade a um jogo de xadrez, assim como é preciso ser enxadrista para saber porque um jogador, em dada situação, sente que deve realizar um dado lance, é preciso já ter vivido em sociedade para saber porque uma pessoa sente que deve seguir uma norma jurídica. Conhecer as regras do xadrez e assistir dois jogadores durante o desenrolar da partida permite ao espectador apenas descrever os lances do ponto de vista físico (ex.: A movimentou o bispo 3 casas na diagonal esquerda, ameaçando o rei de seu oponente B, que colocou um peão à frente dessa peça), mas não do ponto de vista interno, ou seja, da finalidade de cada lance para cada participante. Para que o espectador afirme “B ofereceu um peão, peça de menor valor no jogo, em sacrifício, para evitar o cheque mate contra seu rei”, ele tem necessariamente que se colocar no lugar de B, portanto como partícipe do jogo. Assim também o estudioso do direito: para apreender o fenômeno jurídico em toda sua dimensão, o teórico, embora

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continue um observador, deve adotar o ponto de vista interno, também chamado hermenêutico. Não importa o que o sujeito faz, mas porque, com que finalidade faz. Interpretar o que o sujeito faz é, assim, interpretar a finalidade de seu lance, ou seja, “interpretar a sua interpretação da realidade” (colocar-se em seu lugar).

Criticando o ponto de vista externo donde Austin divisava o direito, Hart afirma que a concepção de direito como conjunto de comandos sustentados por ameaças não consegue diferenciar ordens legais de ordens arbitrárias, igualando a determinação de parada de um policial e a ordem de rendição do assaltante contra a vítima.  Adotando o ponto de vista daquele que está submetido a tais ordens, percebemos claramente que, em relação às ordens legais, o indivíduo sente que “tem a obrigação” de cumpri-la, eis que a todos imposta, para o benefício comum; já no que toca à ordem arbitrária de um fora-da-lei, o indivíduo submete-se porque está coagido a tanto pela situação, portanto, não tem a obrigação, mas apenas “é obrigado” a fazê-lo.  

Do ponto de vista interno, portanto, a submissão do indivíduo à lei se dá não porque pretenda ele fugir à uma sanção, mas simplesmente porque enxerga aquela lei como tal, como a regra do jogo, necessária à sua sobrevivência. Hart fornece um exemplo a esse respeito: se num determinado Estado um monarca absoluto Rex I morre e é sucedido por seu filho, Rex II, como a habitualidade de obediência ao pai pode redundar, sem solução de continuidade, numa habitualidade de obediência ao filho? Porque, na verdade, o que é habitual, do ponto de vista interno de cada súdito, não é a obediência ao Soberano X, mas sim à lei X, ou seja, não é o temor da força sancionatória corporificada em um monarca X que faz o súdito obedecer, mas sim a aceitação por ele de que é necessária uma ordem (seja ela qual for), ordem essa dada pela lei X. Isso não significa que o súdito sempre seguirá a lei, mas simplesmente que a considera como tal, ou seja, como uma obrigação a todos imposta e que condiciona a sobrevivência em sociedade. Nos pontos em que dela discordar, pode o súdito eventualmente se rebelar, ficando sujeito à sanção respectiva. Não deixará ele, porém, de considerá-la lei, ainda quando a descumpri-la.

Para chegar a essa conclusão, Hart parte de uma constatação aparentemente simples: a diferença entre hábitos e regras. As pessoas costumam dirigir com o som do carro ligado; as pessoas costumam parar ante um sinal vermelho. Do ponto de vista idealizado de um observador externo, ou seja, de alguém que não faz parte da sociedade, de alguém que não se coloca como partícipe desse tipo de realidade (um autóctone subitamente retirado de sua aldeia e colocado dentro de um carro em um grande centro urbano), ambas as situações encaixam-se na mesma fórmula: a conduta X (deixar o som carro ligado por todo o percurso, parar no sinal vermelho) ocorre um número de vezes Y, que corresponde à quase totalidade das oportunidade (portanto X é a “regra”, não a exceção).  Não obstante, nós, que participamos da realidade dessa sociedade, sabemos que andar com o som do carro ligado é um hábito, ou seja, um padrão de conduta individual, que pode ser quebrado sem que com isso eu viole qualquer regra de convivência em grupo. Já parar no sinal vermelho é uma regra, ou seja, é um padrão de conduta socialmente determinado, que quando

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quebrado traduz uma violação de uma regra de convivência em grupo. Note-se que não se faz nesse caso considerações mais profundas acerca da pertinência daquela regra social em um caso específico (ex.: justifica-se passar no sinal vermelho quando estamos tarde da noite num local ermo, ou com um enfermo no carro, ou prestes à perder uma prova, ou pra chegar no horário marcado pra um encontro?) – a despeito das razões subjetivas que tenho pra “furar o sinal”, isso sempre significará, objetivamente, a violação de um padrão social de conduta.

Na tentativa de buscar o conceito do direito na seara que enxerga como a única adequada, Hart identifica a ordem jurídica como inserida no contexto da sociedade e, para separar as diferentes ordens paralelas à jurídica, foca no observador e distingue três pontos de vista possíveis:

-                 Ponto de vista externo extremo: é o do autóctone, que não se sente parte do “jogo social”, de modo que enxerga as condutas dos demais indivíduos como meros movimentos sem sentido, sem um porquê, pura regularidade estatística. Deixando de lado o aspecto folclórico do nativo, poderíamos falar aqui do estudioso focado em uma pesquisa sobre segurança pública e engenharia de tráfego. Estamos aqui no campo das leis naturais, da causalidade. Ainda que as ciências humanas, como a sociologia, a história e a antropologia, não gozem da mesma matematicidade das ciências exatas e, até certo ponto, das biológicas, é possível aplicar o método científico para estudar, por exemplo, a alta incidência de acidentes ou de assaltos envolvendo motoristas que furam o sinal vermelho, gerando conclusões como “a redução de um terço no tempo dos sinais vermelhos após as 22h00 em zonas de alto índice de assaltos pode reduzir em até 20% tais eventos”.  

 

-                 Ponto de vista hermenêutico ou externo não extremo: é o daquele que se sente parte do jogo social, que se identifica com os demais indivíduos, percebendo as condutas destes como providas de sentido, ou seja, adequação (sentido positivo) ou inadequação (sentido negativo) às regras sociais. Estamos no campo do direito tal qual conceituado por Hart, ou seja, um sistema de regras sociais. O fundamental aqui é perceber a aparentemente sutil distinção que se opera no interior da consciência do agente: uma coisa é perceber o padrão X (o sinal vermelho indica que devemos – de forma genérica, todos nós, integrantes da comunidade - parar o veículo), outra coisa é aceitar o padrão X (eu devo – em qualquer situação - parar no sinal vermelho) e outra ainda é agir segundo o padrão X (pararei no sinal vermelho nessa ocasião específica, ou tenho razões suficientes para não parar?). O ponto de vista hermenêutico, e portanto o direito, diz respeito apenas à percepção do padrão X, não à sua aceitação ou à conformidade de fato da conduta do agente a ela.

-                 Ponto de vista interno: confina-se na consciência do agente, ou seja, nas razões individuais que o distinguem dos demais e levam-no a seguir ou não certa regra social em geral (aceitação da regra) ou em determinada situação (agir de fato em conformidade ou não com a regra naquele caso específico). Estamos aqui no campo da moral: uma vez percebido o que é o direito (devemos parar

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no sinal vermelho), o agente submete-o à crítica, aceitando-o ou negando-o moralmente (nesse caso, a aceitação será óbvia, já que não se concebe que alguém imagine poder locomover-se em um centro urbano sem a observância da sinalização dos semáforos – obviedade que não tem lugar quando se fala de regras altamente controversas do ponto de vista moral, como a que criminaliza o aborto); num terceiro momento, enfim, o indivíduo de fato age em conformidade ou em desconformidade com a aceitação ou a negação daquela regra.

É conveniente alongarmo-nos um último átimo em relação as quatro alternativas que se abrem ao indivíduo do ponto de vista interno, após a identificação da regra de direito. Para fins de exemplificação, a regra que veda o roubo fornece um parâmetro melhor. Primeiramente, o agente pode negá-la (ex.: roubar só pode ser errado em uma sociedade justa do ponto de vista de distribuição de recursos, o que não acontece aqui, de modo que roubar dos que possuem mais é uma legítima defesa da dignidade dos mais pobres), caso em que se lhe abrem duas alternativas: ainda assim, seguir a regra não aceita (ex.: não me sinto submetido moralmente à regra que veda o roubo, mas deixo de roubar porque não quero sofrer as sanções possíveis) ou deixar de segui-la (estou moralmente autorizado a roubar e faço-o – é o “bandido bom”, como Robin Hood, o herói mítico inglês que era chamado o príncipe dos ladrões). Em  segundo lugar, o agente pode aceitá-la (ex.: roubar é errado em qualquer situação), caso em que se lhe abrem outras duas alternativas: segui-la, sem mais considerar (ex.: roubar é errado e por isso não roubo); ou não segui-la (ex.: roubar é errado, mas meu instinto egoísta é mais forte e acabo cedendo à tentação – é o “bandido mal”, como o célebre ladrão do calvário Dimas, que reconhece a imoralidade de sua vida de delitos e se arrepende no momento de sua crucificação, sendo após canonizado). 

 

Fica claro, assim, que reconhecer um padrão de comportamento é uma coisa (aspecto cognitivo do ponto de vista hermenêutico – ex.: as pessoas geralmente não roubam e, quando o fazem, são repreendidas); aceitá-lo como uma regra social é outra (aspecto volitivo do ponto de vista hermenêutico – vedar o roubo é uma regra necessária a todos imposta) é outra; e agir conforme ele, é ainda outra coisa (ponto de vista interno – não roubarei).

Mas qual seria então o fundamento de validade das normas jurídicas para Hart? O ponto de vista hermenêutico de cada integrante da comunidade? Para ele, assim como para Kelsen, o ordenamento jurídico é um complexo sistema de normas, que vai das mais específicas às mais gerais. Entretanto, Hart faz uma distinção substancial entre as normas que compõe esse complexo sistema: regras primárias e regras secundárias. Primárias são as que diretamente formalizam standards morais básicos, como “não matarás”, “não roubarás” etc; secundárias são as que de algum modo permitem a manutenção do sistema. Dividem-se as normas secundárias em três subespécies: de reconhecimento – são as que fornecem o “pedigree”, ou seja, as que permitem-nos identificar as demais regras válidas do sistema, livrando-o do risco da incerteza; de alteração – são as que possibilitam a incorporação ao direito dos elementos que lhe são

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exteriores, como a crítica moral, numa dinâmica que evita a fossilização do ordenamento; e de julgamento – são as que asseguram o cumprimento coercitivo das demais normas, monopolizando o uso da força pelo Estado para fazer prevalecer o ordenamento face aos que contra ele se levantam. No caso da norma jurídica inscrita no art. 124 do código penal, por exemplo, temos uma norma primária, “não realizar aborto, salvo nas condições excepcionais ali inscritas”. As normas secundárias de reconhecimento seriam aquelas que permitem reconhecer esse artigo de lei como lei válida (foi elaborado com os procedimentos legislativos corretos pelo órgão competente para tanto; foi recepcionado pela constituição vigente e tem sido aceito pelos tribunais como válido; é observado pela sociedade e pelo Poder Executivo, já que os abortos realizados só o são clandestinamente, o poder de polícia nas diversas esferas é utilizado para coibir ou dificultar a prática etc). As normas secundárias de alteração são as que abrem a possibilidade de que a discussão moral acerca da descriminalização do aborto vire direito positivo, por meio do procedimento legislativo adequado (iniciativa de projeto de lei, apreciação nas comissões de constituição e justiça, votação por determinados quóruns etc). As normas secundárias de julgamento, por fim, permitem quem os poderes constituídos fiscalizem o cumprimento da norma, punindo aqueles que realizam aborto fora das hipóteses legais.

Como já se deixa entrever, a principal espécie de norma jurídica para a teoria hartiana é a de reconhecimento, pois é ela que se encontra na fronteira entre aquilo que é e aquilo que não é direito. Não é por outra razão que encontramos nesse ponto também o principal foco das críticas a esse empreendimento teórico, que, segundo os críticos, falha ao tentar estabelecer um marco objetivo de separação entre o direito e a moral. A esse respeito Hart, afirma admite que o direto tem um textura aberta (open texture), de modo que há sim uma interação entre direito e moral. Ressalta, entretanto, que isso não significa nem que não possam existir standards normativos com recortes objetivos – as regras, por oposição aos princípios – e muito menos que direito e moral sejam a mesma coisa. Hart admite mesmo a existência de um conteúdo mínimo do direito natural. O desenvolvimento dessas duas teses, porém, será analisado em seus pormenores no ponto 2.

A crítica de Ronald Dworkin e a resposta positivista

Em “O modelo de regras I”, texto que despertou a atenção da comunidade acadêmica pela contundente crítica à teoria de Hart, de quem Dworkin fora aluno na Universidade de Oxford, o filósofo americano identifica três teses principais desenvolvidas em “O conceito de direito”:

1) Tese dos fatos sociais (TS): o direito é aquilo que pode ser identificado por meio do exame de fatos sociais relativos à sua criação e desenvolvimento. É a tese do pedigree.

2) Tese da discricionariedade (TD): o direito é um conjunto de regras na forma de “tudo ou nada”. Por isso, em casos nos quais não existe congruência perfeita entre o fato e a

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legislação (os chamados “hard cases”), não há direito a ser aplicado e a base para a decisão judicial é a discricionariedade.

3) Tese da Obrigação (TO): a obrigação de alguém decorre de sua situação encaixar-se em uma regra que ordene ou proíba que faça algo.

Assim, já nesse primeiro momento, Dworkin delimita seu objeto de crítica, que se poderia resumir naquilo que ele chama de identificação do direito como fatos simples (“simple facts”), fatos brutos, exteriores ao sujeito, independentes da consciência humana que os apreende. Assim, TD relaciona-se com TS: como o direito está “no mundo” (“out there”), toda vez que não encontrarmos um objeto real, um fato bruto, a que possamos chamar direito e aplicar sobre uma dada situação, teremos aí um “hard case”, para o qual não há direito aplicável disponível, de modo que a resposta passa para o campo da discricionariedade do agente estatal responsável pela solução do conflito.

Para fundamentar sua teoria, Dworkin retoma uma distinção feita por David Hume entre proposições factuais ou descritivas e proposições avaliatórias. A seu tempo, Hume criticava severamente teóricos que misturavam em seus textos afirmações do tipo “isto é” com outras do tipo “isto deve ser” como se pudesse haver entre elas uma relação direta. Em exemplo que se tornou célebre, Hume dizia que do fato de termos presenciado todos os dias o sol nascer não se pode inferir que ele deva nascer também amanhã: de uma descrição (o sol nasceu todos os dias de minha vida) não decorre diretamente um valoração (o sol deverá nascer também amanhã). A prática jurídica, enquanto sistema de resolução de conflitos, convive com o intenso entrelaçamento de proposições descritivas e avaliatórias. É preciso, porém, especificar melhor esses conceitos. Por proposição descritiva entende-se não algo necessariamente comprovado empiricamente, mas sim algo que tenha a potencialidade de comprovação ou refutação empírica, ou seja, algo que seja captável pelos sentidos se de fato existir. Assim, dizer que Cleópatra seduziu generais romanos com sua beleza descomunal ou que no futuro teremos apenas veículos movidos a energia atômica são proposições descritivas: não se diz aí que a rainha do Egito deveria ter uma beleza extraordinária, nem que os carros do futuro deveriam ser movidos a energia atômica. O que se diz aí é que, afirmativamente, a rainha seduziu os generais (supostamente por sua beleza) e o novo modelo energético atômico se imporá. Daí não sucede que tais assertivas serão ou não confirmadas empiricamente. Em suma, o fato de algo não ser comprovado empiricamente em uma dada situação (descobrem-se evidências de que Cleópatra não teve qualquer relação com os militares e de que há uma nova matriz energética possível, mais barata, limpa e com menos riscos que a nuclear) não exclui a certeza de que poderia ser comprovado empiricamente em outra situação (Cleópatra poderia ter tido tais relações, o futuro modelo energético poderia ter sido o nuclear), o que basta para fazer dele uma proposição descritiva.

As proposições avaliativas, de outro lado, são aquelas cuja comprovação ou refutação não pode ser alcançada por meio da observação, pois apesar de também se referirem eventualmente (não necessariamente) a fatos empíricos, atribuem a eles um valor, ou seja, um sentido (positivo ou negativo). Assim, ao contrário das proposições

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descritivas, que são axiologicamente neutras, as avaliativas definem uma premissa, um marco de reflexão, um ponto de observação, a partir do qual fazem um julgamento de algo que se relaciona de algum modo com esse ponto inicial, atribuindo-lhe um sentido. Desse modo, a hipótese de um historiador que quisesse justificar as relações então estabelecidas entre o Egito e o Império Romano, tendo como pano de fundo a sedução dos generais Júlio César e Marco Antônio pela monarca egípcia, poderia assim ser formulada: dadas as circunstâncias X (premissas descritivas – relações entre o Egito e o Império Romano), conclui-se que Cleópatra deveria ser de fato considerada muito bela (ou seja, beleza é conceito subjetivo, que depende do senso estético de quem julga; não obstante, infiro esse valor considerando fatos históricos objetivos, de que tenho evidências concretas). Do mesmo modo, a sugestão de um pesquisador que conclua que o modelo energético atual é muito caro e poluente e que, portanto, dadas as opções atuais, o futuro modelo deveria ser baseado na energia nuclear (mais uma vez, o pesquisador parte de premissas descritivas sobre o atual modelo e as alternativas a ele e chega a uma conclusão valorativa, sugerindo que se opte pelo modelo que avalia como mais vantajoso). Em ambos os casos, os acadêmicos partem de premissas descritivas para conclusões avaliativas, ou seja, partem daquilo que está no mundo, captável pelos sentidos deles, e chegam a algo subjetivo, àquilo que está em suas consciências, se se quiser, à suas opiniões.

Para Dworkin, o direito, não obstante parta de premissas descritivas, é composto fundamentalmente por proposições avaliativas. O grande equívoco positivista, segundo ele, é fiar-se na possibilidade de existirem proposições normativas descritivas. Como visto, os positivistas desde sempre procuraram identificar o direito como algo já dado, sedimentado, relações já padronizadas, estabelecidas no meio social e institucional com regularidade. O filósofo menciona o célebre julgamento do caso Riggs x Palmer (1889), no qual discutia-se o direito de herança de um neto que havia assassinado seu avô com vistas ao patrimônio que herdaria. A suprema corte americana teve de decidir entre aplicar o dispositivo de lei que concedia direito de herança ao descendente e o princípio difuso que veda que alguém obtenha proveito de sua própria torpeza. Tratava-se, portanto, nitidamente de um “hard case”, pois a regra de direito posto até então aplicada parecia não encaixar-se perfeitamente àquela nova situação, paradigmática. Essa vedação à concessão do benefício legal regular (herança) àquele que provocou dolosamente a morte que deu azo ao prêmio pode ser extraída das práticas sociais ou é um princípio moral, que está no espírito de cada um dos julgadores? Dworkin não tinha dúvidas de que esta segunda alternativa era a verdadeira. Para ele, tentar “desenterrar significados compartilhados”, como parecia exigir a regra de reconhecimento hartiana era um exercício em vão, pois a forma como o sujeito apreende o objeto, ou seja, a seleção dos fatos que julga relevantes para a solução do caso (artigos de legislação positiva, estudos doutrinários a respeito, jurisprudência respectiva, perspectiva histórica de comportamento social e de atuação das instituições em casos análogos etc) já é, em si, um processo interpretativo, que revela, portanto, opções morais de seu artífice.

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Ao longo dos anos, a crítica de Dworkin foi digerida por Hart e seus seguidores, inaugurando duas novas tendências dentro do marco teórico positivista. Antes de passarmos a elas, porém, é conveniente demorarmo-nos um pouco mais no pensamento do filósofo americano, que sofisticou sua teoria, principalmente com a publicação de “O império do direito”, desenvolvendo o que ele chamou de argumento do aguilhão semântico (“the semantic sting argument”).

Para Dworkin, ao abraçar a tese das fontes sociais do direito, o positivismo transformou-se numa teoria semântica, ou seja, que pretende deixar claro o que pode e o que não pode ser colocado sob o epíteto “direito”. Para um hartiano, só posso utilizar o substantivo direito para indicar algo que seja objetivo, existente no mundo real, das relações sociais, ou seja, que tenha pedigree (ex.: uma lei que foi votada por uma instituição legislativa competente, como o Congresso Nacional; a série histórica de decisões de órgãos judiciários legítimos em determinado sentido; o panorama da crítica acadêmica atual sobre determinado tema etc). Assim, se para resolver um caso concreto eu recorro a argumentos divorciados da prática social até então reinante, que minha intuição do justo indicam como corretos, não posso chamar de direito a resposta que daí advém. Desse modo, prossegue Dworkin, opera-se uma distinção absoluta na doutrina positivista entre aquilo acerca do que há consenso, ou seja, uma prática social homogênea e que, por isso, pode ser chamada de direito, e aquilo acerca do que não há consenso, ou seja, uma prática individual de argumentação, que não pode ser chamada de direito, mas sim de moral. Concluindo, ele diz que o positivismo é, assim, uma teoria convencionalista, o que, para uma teoria do direito, equivale a uma contradição: se o direito é campo em que argumentos contrapostos disputam entre si dialeticamente até que se obtenha uma solução, que é a síntese deles, pressupõe a existência de desacordo, ao menos no início da disputa argumentativa. Se o direito é só aquilo a respeito do que há consenso, acordo, convenção social, como pode então comportar esses desacordos, essa contraposição de argumentos?

Dworkin exemplifica com um caso fictício, no qual a Sra. Sorrenson sofre um dano de saúde provocado por determinado tipo de medicamento genérico, não sabendo precisar especificamente qual dos laboratório autorizados produziu a droga por ela ingerida. A questão é: poderiam os laboratórios serem responsabilizados conjuntamente, na medida da participação de cada um no mercado, ou prevaleceria a regra segundo a qual não se pode responsabilizar alguém sem que se comprove sua conduta, o dano e o nexo causal entre eles? Para Dworkin, como não há uma regra que expressamente preveja essa responsabilidade compartilhada objetivamente entre os laboratórios, a decisão de um positivista seria necessariamente contrária a pretensão da Sra. Sorrenson. A decisão judicial que lhe favoreceria só poderia ser fundamentada em princípios morais, que contraporiam à hipossuficiência (técnica, financeira, probatória) da consumidora, que toma o medicamento por necessidade, o poderio institucional dos laboratórios, que exploram a atividade exercendo a liberdade de empresa e em busca de lucro. Como o sopesamento de tais princípios é algo subjetivo, que depende de cada indivíduo que se debruce sobre a questão, a solução será uma proposição

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avaliativa, não meramente descritiva, de modo que estaríamos fora daquilo que os positivistas consideram apropriado chamar semanticamente de direito. A contradição é clara para Dworkin: se chamo “direito” apenas aquelas coisas cujos significados são socialmente compartilhados, deve haver necessariamente a respeito dessas tais coisas uma convenção, ou seja, algo que impeça o conjunto de intérpretes (qualquer pessoa que se debruce sobre a questão) de divergir, divergência essa que é da essência do direito, principalmente em casos paradigmáticos. O positivismo estaria, assim, atingido fatalmente pelo aguilhão semântico por ele próprio construído.

No posfácio de O conceito de direito, Hart responde com dois argumentos as objeções dworkianas. Primeiramente, a respeito da suposta impossibilidade do positivismo jurídico de operar com standards normativos abertos, os princípios, Hart assinala simplesmente que não há qualquer elemento dentro de sua teoria que force tal conclusão, embora reconheça que não deu a devida atenção para a questão no texto original da obra. Buscando reparar a lacuna, argumenta que não só comandos com recortes matemáticos como as regras, mas também aqueles flexíveis como os princípios, são passíveis de identificação nas fontes sociais. Da fato, a própria lei, na perspectiva contemporânea, busca inscrever nas Constituições e nos Códigos tais comandos, frutos de paulatina sedimentação nas práticas da jurisprudência, da doutrina e do meio social e institucional como um todo. A contingência da aplicabilidade prática mais complexa desses comandos não é razão, segundo Hart, para atribuir um status diferente aos fatos sociais que permitem o reconhecimento deles como direito dos fatos sociais que permitem o reconhecimento do standard regras como direito.

Indo além, ainda quando não possam ser identificados nas fontes sociais, princípios morais, standards normativos abertos, podem ser aplicados, sem que com isso tenhamos que negar o pressuposto positivista da independência entre direito e moral. Entramos aqui na resposta hartiana aquela que ele considera a mais relevante crítica de Dworkin. O cerne do argumento do aguilhão semântico, ou seja, a suposta impossibilidade do positivismo de explicar o desacordo ínsito à prática jurídica, levou Hart a refinar sua teoria, inaugurando a corrente que ficaria conhecida como positivismo brando ou inclusivista.

Segundo Hart, ao contrário do que concluiu Dworkin, sua construção teórica do positivismo não exige que a regra de reconhecimento identifique necessariamente apenas fatos sociais, ou seja, fatos que tenham estatuto real, objetivo, que provenham de uma relação estabelecida fora das consciências dos indivíduos (lei, decisões anteriores etc), fatos com pedigree. A regra de reconhecimento poderia sim identificar “fatos morais” como direito válido, desde que haja uma concordância de que os aplicadores do direito devem, em determinado caso, decidirem de acordo com princípios morais. A conclusão errada de Dworkin poderia, nesse sentido, ser atribuída a um equívoco na conceituação do positivismo como uma teoria semântica e convencionalista.

A palavra “semântica” indica o campo de estudos linguísticos que se preocupa com a significação, ou seja o

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conteúdo de determinado signo. Assim, a análise semântica de um vocábulo como, por exemplo, cadeira, decifrará o conteúdo, aquilo que se pretende dizer, comunicar, significar, ao utilizar-se os símbolos linguísticos - visuais ou sonoros - a ela correspondentes. Considerando que o significado pressupõe um entendimento, uma comunicação e, portanto, uma relação entre ao menos duas pessoas, sentido não há em falar em semântica ou linguística como algo independente de uma relação social, teia de vínculos comunicativos de sujeitos que procuram se entender. Aquilo que só é para mim, que está em minha consciência (ex.: a ideia de um objeto móvel e rígido, que permite a um ser humano sobre ele repousar sentado e com as costas apoiadas), para que possa dela sair, adentrando ao mundo, deve ser codificado por meio de uma linguagem sonora ou escrita (“cadeira”). Esse signo escrito ou sonoro e seu respectivo significado devem necessariamente ser calcados em fontes sociais, ou seja, em uma prática compartilhada de forma geral em um dado espaço, em determinada época, sem o que não se estabelecerá comunicação. É por essa razão que sustentar perante um tribunal brasileiro uma pretensão baseada em um artigo do ordenamento jurídico russo sem qualquer relação com a causa é um exercício tão inútil quanto dizer ou escrever a palavra “cadeira”, em português, para um auditório de chineses que não falam a língua.

Assim, o conteúdo de uma palavra, o significado extraído de sua análise semântica, depende necessariamente de uma convenção social. A premissa é correta; entretanto, segundo os positivistas, Dworkin erra ao igualar a prática linguística geral sobre o direito à prática jurídica em si. Uma coisa é falar sobre o direito, outra coisa é aplicá-lo (seja editando leis, seja julgando casos concretos de acordo com elas). O cidadão comum pode falar sobre o direito, mas não pode aplicá-lo, já que essa é atividade reservada a determinadas pessoas, que agem nesses casos em nome do Estado (legisladores, fiscais, juízes etc.). Assim, em um julgamento como o recente do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de aborto de feto anencefálico, vencido pela corrente permissiva por oito votos a dois, grupos religiosos podem bradar contra a decisão, dizer que ela contraria à proteção à vida consagrada na Constituição, ou que afronta a lei de deus etc. Entretanto, ninguém há de contestar que a decisão da corte é uma decisão válida, ou seja, que obriga todos os indivíduos sujeitos à lei brasileira, assim como uma lei regularmente editada pelo Poder Legislativo. Em temas controversos, a prática linguística cotidiana será sempre palco de discussões acaloradas, sem que qualquer das correntes de opiniões submeta-se à posição contrária (no momento em que as posições convergem para um ponto comum, por óbvio, já não podemos mais classificar como controversa a questão). O direito, porém, opera como sistema de decisão de conflitos, de modo que, não obstante lhe seja inerente também a discordância, em algum momento esta há de ceder passo à uma concordância. Nisto especificamente reside o descuido de Dworkin: não perceber que, não obstante legisladores, juízes e demais operadores do direito divirjam durante a apreciação de uma questão, cada qual sustentando aquele ponto de vista que melhor lhe parece, essa divergência se dá apenas quanto à questão de fundo, a questão sub judice (se é justo permitir o aborto de feto anencefálico, por exemplo). Há, porém, um aspecto que antecede e condiciona esse julgamento, que não se relaciona com a questão de fundo apreciada: a competência do

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órgão legislativo ou jurisdicional para produzir o direito naquele caso específico. Em relação a isso, há consenso: ninguém duvida que cabe a uma assembleia constituinte promulgar a constituição; ao congresso editar leis; à suprema corte se manifestar quando está em jogo matéria controversa de ordem constitucional; que a decisão dela é a última instância do Estado brasileiro; que em casos limite como o dos fetos anencefálicos, é incontornável a utilização de valores subjetivos pelos julgadores etc. A incerteza da discussão em plenário sobre a causa de fundo, se será ou não permitido o aborto, não obscurece a certeza, essencial para um Estado de Direito, de que a decisão final, considerados o ordenamento jurídico e o crivo do judiciário, seja ela qual for, deverá ser cumprida.

A prática linguística em geral só é possível por meio de convenções, que permitem a comunicação cotidiana e inibem idiossincrasias semânticas por parte dos interlocutores (ex.: “isto é uma cadeira” tem um significado suficientemente objetivo). A força dessa convenção, porém, diminui à medida em que aumenta o nível de abstração e complexidade daquilo que se pretende comunicar (ex.: “isto é uma cadeira estilo bauhaus” introduz uma valoração problemática, que pode gerar discussão entre os interlocutores – posso ou não ligar essa cadeira à célebre escola de design?). Também é assim o direito, como prática de decidibilidade de conflitos: à medida em que a questão posta ganha complexidade, diminui-se a possibilidade de os julgadores valerem-se de convenções, ou seja, conclusões peremptórias retiradas de fontes sociais (texto expresso de lei, corrente jurisprudencial pacífica, doutrina unânime etc.), o que os força necessariamente a buscar argumentos extraídos de fontes morais, por assim dizer, gerando inevitável controvérsia em órgãos colegiados como os do poder legislativo e o dos tribunais. Entretanto, onde Dworkin enxerga a prova da incoerência do positivismo, Hart percebeu uma razão para reafirmá-lo: nos casos paradigmáticos, quando a convenção se exaure, obrigando o julgador a ir buscar razões morais para decidir, ou seja, significados não compartilhados socialmente (sem pedigree), aquilo que ao mesmo tempo permite fazê-lo e garante a validade de sua decisão é justamente uma convenção pois, ao contrário de uma questão problemática surgida na comunicação cotidiana (esta é ou não uma cadeira estilo Bauhaus?), um conflito posto em juízo deve necessariamente ter uma conclusão final, dogmática, sob pena de o sistema jurídico perder sua razão de ser.

O positivismo jurídico, assim, seria melhor adjetivado como uma teoria convencional metasemântica (prefixo grego “meta”: mudança, reflexão, crítica sobre algo). O que distingue o direito da moral não é uma convenção social sobre o significado dos objetos postos em juízo, mas sim uma convenção social sobre a possibilidade de serem colocados em juízo. É a aplicação da regra de reconhecimento no caso concreto que comporta desacordo, não seu conteúdo. É dizer: todos concordam que os juízes de determinada corte são competentes para encontrar o direito válido em certo caso; que devem fazê-lo buscando, num primeiro momento, fontes sociais do direito, para só depois, esvaídas estas, voltarem-se para razões subjetivas; e que a decisão final, seja qual for, é direito válido. A convenção, portanto, é relativa em relação à questão de fundo, a causa posta em juízo, mas é absoluta no que toca a competência desse juízo para prolatar a decisão final. Em

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suma, para Hart, ao contrário do que afirma Dworkin, o positivismo jurídico comporta a aplicação de standards normativos abertos, sejam eles decorrentes de fontes sociais ou morais.

Por fim, como dito, a resposta hartiana à Dworkin originou, além da versão do positivismo por ele mesmo inaugurada (inclusivista), uma segunda, mais ortodoxa, por assim dizer, que permanece sustentando que a utilização de razões morais, divorciadas de fontes sociais, não pode ser entendida como integrante do conceito de direito. O principal expoente dessa corrente é outro dos alunos de Hart, o americano Joseph Raz, professor da Universidade de Columbia.

Para Raz, todo sistema jurídico, para sê-lo, deve ter uma autoridade de fato e com pretensão de ser legítima (ainda que a plenitude dessa legitimidade não seja nunca alcançada). Essa autoridade pretensamente legítima pode ser teórica – relativa a uma crença, quando os que a ela se subordinam a consideram uma razão para crer em algo – ou prática – quando os subordinados a consideram uma razão para agir de determinada forma. As atenções do filósofo se voltam para estas últimas. Segundo ele, a autoridade prática sustenta-se em três teses: a) da dependência – a autoridade deve fundar sua ordem no mesmo tipo de razões que os subordinados considerariam válidas se coubesse a eles, e não à autoridade, decidir em certo caso concreto (ela deve “se colocar no lugar” de seus súditos, agir no interesse deles, não ser tirânica); b) da justificação normal – os subordinados devem considerar de antemão que aceitar como obrigatória a ordem emanada da autoridade é melhor do que conviver com a incerteza do status quo; c) da exclusividade – a razão para se submeter a ordem da autoridade deve ter um status especial, superior ao das razões pessoais, subjetivas, que cada subordinado teria se coubesse a ele, e não à autoridade, decidir o caso concreto. O fulcro da teoria raziana é, assim, a distinção entre razões dependentes (as que fundam a decisão da autoridade) e razões excludentes (aquelas que fundam a obediência dos súditos à decisão da autoridade).

Voltemos ao caso do aborto. A vedação ou a permissão deste ato decorrem de razões morais, que poderiam ser justificadas de diversas maneiras na textura heterogênea do tecido social, gerando uma insegurança generalizada, a qual é em si mesma um desvalor para a vida em comunidade. Por isso, a autoridade prática (poderes constituídos) se substitui aos particulares na matéria, encampando as razões destes como razões de decidir (razões dependentes) e proferindo, ao final, uma determinada decisão (lei, regulamento, sentença), à qual caberá ao particular se sujeitar, ainda que pessoalmente contrário à questão de fundo na forma decidida, pois há uma razão maior para tanto, que exclui todas as demais: a manutenção da ordem jurídica em questão. Precisamente aqui reside o debate entre exclusivistas e inclusivista: qual seria o status dessas razões morais envolvidas na prática jurídicas? Os primeiros admitem que podem ser consideradas como critério para identificação do direito válido, desde que identificadas pela regra de reconhecimento vigente em determinado local; os últimos negam até mesmo essa possibilidade, por entenderem que, existentes que sejam tais razões, o conceito de direito deve se restringir a razões de outro tipo, nomeadamente, a razões excludentes. A

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controvérsia, conhecida como “The Hart/Raz debate”, segue viva, com numerosos contendores de parte a parte, tomando paulatinamente o foco das atenções dispensadas nas últimas décadas ao célebre “The Hart/Dworkin debate”.

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