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O CURRÍCULO DE CIÊNCIAS E A CONSTRUÇÃO DE FRONTEIRAS SOCIAIS BORDINI, Santina Célia-UFPR [email protected] SOARES, Edimara Gonçalves - UFPR [email protected] Área Temática: Educação: Currículo e Saberes Agencia Financiadora: Não contou com financiamento Resumo As atividades escolares são norteadas a partir de um conjunto de elementos, tais como, livros didáticos, os conteúdos elencados para cada nível de ensino, as disciplinas, os objetivos, os métodos, as experiências, etc., que fazem parte do currículo escolar. Nesta pesquisa escolhemos os livros didáticos de ciências, como um dos componentes do currículo escolar, onde estão inscritas diferentes maneiras de ver e dizer sobre a sexualidade, o gênero, e a etnia, através de diversas linguagens: escrita, imagética, numérica. Esta pesquisa insere-se no campo dos Estudos Culturais, na vertente pós-estruturalista. Nossa proximidade com os aportes teóricos deve-se ao fato da cultura ocupar o centro das discussões, mas principalmente, por defenderem o pluralismo cultural e o respeito às diferenças. O objetivo central desta pesquisa consiste em examinar a construção de representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências dos anos iniciais sobre a sexualidade, o gênero e a etnia. Interessa-nos analisar como são construídas as fronteiras sociais que fixam noções particulares sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, quais profissões são para homens e quais são para mulheres, quais etnias são incluídas e quais são excluídas, conforme a cor da pele. Nas análises feitas nas imagens inscritas nos livros didáticos de ciências, é possível evidenciar um discurso sexual apoiado no determinismo biológico, portanto, há uma sexualizacao dos lugares e funções. A etnia é representada conforme a cor da pele em lugares e atividades diferentes e desiguais. Os livros didáticos de ciências colocam em funcionamento uma maneira de aprender, de controlar significados culturais, de produzir e disseminar um sentido do que significa ser homem, mulher, branco, negro na sociedade. Palavras-chave: Gênero; Etnia; Sexualidade; Livros Didáticos de Ciências. Apresentando a Temática As atividades escolares são norteadas a partir de um conjunto de elementos, tais como, livros didáticos, os conteúdos elencados para cada nível de ensino, as disciplinas, os objetivos, os métodos, as experiências, etc., que fazem parte do currículo escolar. Nesta pesquisa escolhemos os livros didáticos de ciências, como um dos componentes do currículo

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O CURRÍCULO DE CIÊNCIAS E A CONSTRUÇÃO DE FRONTEIRAS

SOCIAIS

BORDINI, Santina Célia-UFPR [email protected]

SOARES, Edimara Gonçalves - UFPR

[email protected]

Área Temática: Educação: Currículo e Saberes

Agencia Financiadora: Não contou com financiamento Resumo As atividades escolares são norteadas a partir de um conjunto de elementos, tais como, livros didáticos, os conteúdos elencados para cada nível de ensino, as disciplinas, os objetivos, os métodos, as experiências, etc., que fazem parte do currículo escolar. Nesta pesquisa escolhemos os livros didáticos de ciências, como um dos componentes do currículo escolar, onde estão inscritas diferentes maneiras de ver e dizer sobre a sexualidade, o gênero, e a etnia, através de diversas linguagens: escrita, imagética, numérica. Esta pesquisa insere-se no campo dos Estudos Culturais, na vertente pós-estruturalista. Nossa proximidade com os aportes teóricos deve-se ao fato da cultura ocupar o centro das discussões, mas principalmente, por defenderem o pluralismo cultural e o respeito às diferenças. O objetivo central desta pesquisa consiste em examinar a construção de representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências dos anos iniciais sobre a sexualidade, o gênero e a etnia. Interessa-nos analisar como são construídas as fronteiras sociais que fixam noções particulares sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, quais profissões são para homens e quais são para mulheres, quais etnias são incluídas e quais são excluídas, conforme a cor da pele. Nas análises feitas nas imagens inscritas nos livros didáticos de ciências, é possível evidenciar um discurso sexual apoiado no determinismo biológico, portanto, há uma sexualizacao dos lugares e funções. A etnia é representada conforme a cor da pele em lugares e atividades diferentes e desiguais. Os livros didáticos de ciências colocam em funcionamento uma maneira de aprender, de controlar significados culturais, de produzir e disseminar um sentido do que significa ser homem, mulher, branco, negro na sociedade. Palavras-chave: Gênero; Etnia; Sexualidade; Livros Didáticos de Ciências. Apresentando a Temática

As atividades escolares são norteadas a partir de um conjunto de elementos, tais como,

livros didáticos, os conteúdos elencados para cada nível de ensino, as disciplinas, os

objetivos, os métodos, as experiências, etc., que fazem parte do currículo escolar. Nesta

pesquisa escolhemos os livros didáticos de ciências, como um dos componentes do currículo

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escolar, onde estão inscritas diferentes maneiras de ver e dizer sobre a sexualidade, o gênero,

e a etnia, através de diversas linguagens: escrita, imagética, numérica. Essas linguagens

operam articuladas na produção e atribuição de significados para os sujeitos, buscando

demarcar aquelas características que devem ser vistas como normais, como corretas e

verdadeiras, portanto, entendemos o livro didático como um artefato cultural, que produz e

normatiza saberes e jeitos de ser e estar na sociedade.

Assim, é necessário e relevante olhar para os livros didáticos tentando localizar quais

formas de representação são legitimadas, quais formas de conhecer são válidas e quais não

são, quais grupos sociais podem representar a si mesmos e aos outros tomando a si próprio

como referência, como são construídos os sentidos de pertencimento e exclusão, e como são

estabelecidas as fronteiras sociais que estabelecem posições e funções ancoradas nas

diferenças relacionadas a sexualidade, ao gênero e a etnia, portanto, nesse movimento de

olhar e localizar os múltiplos elementos que estão em jogo para constituir identidades

culturais estamos empreendendo uma leitura analítica que nos possibilita questionar e

problematizar os cânones que consagram e sustentam concepções culturais hegemônicas,

fixas, estáveis, elitistas.

Nesse sentido, esta pesquisa insere-se no campo dos Estudos Culturais, na vertente

pós-estruturalista. Nossa proximidade com os aportes teóricos deve-se ao fato da cultura

ocupar o centro das discussões, mas principalmente, por defenderem o pluralismo cultural e o

respeito às diferenças. Trata-se de conceber a cultura não mais como um suposto

“conhecimento universal”, visto que esse conhecimento dito universal não pertence

propriamente a humanidade, mas aos homens brancos, letrados, de origem européia.

Compartilhamos com Hall (1997, p.26) que cultura significa “o terreno real, sólido, das

práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade histórica específica”, bem

como, as disputas, as tensões e contradições que estão implicadas na fabricação de sentidos e

posicionamentos dos sujeitos dos diferentes grupos sociais.

Assim, segundo essa concepção de cultura é possível verificar a existência de lugares e

ocupações desiguais na sociedade, no que se refere, as diferenças sexuais, de gênero e étnicas,

produzidas discursivamente e permeadas pelas relações de poder, portanto, analisá-las

significa concebê-las no terreno privilegiado da política cultural. Nesta pesquisa buscamos

aproximar a contribuição do filósofo Michel Foucault aos Estudos Culturais, por perceber que

há em comum o questionamento de uma verdade universal. Nos inspiramos em Veiga-Neto

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(2000) e Costa (2000) que nos oferecem profícuas possibilidades de utilizar simultaneamente

os Estudos Culturais e as ferramentas fornecidas pela obra de Foucault. Conforme Costa

(2000, p.34) as concepções de discurso e poder de Foucault “possibilitam expor mecanismos

de subordinação, controle, exclusão, que produzem efeitos cruéis nas arenas políticas do

mundo social”.

Nesta perspectiva o objetivo central desta pesquisa consiste em examinar a construção

de representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências dos anos iniciais sobre

a sexualidade, o gênero e a etnia. Também buscamos mostrar como as diferenças biológicas

dão ancoragem para posicionamentos desiguais entre homens e mulheres, e como a cor da

pele é acionada para marcar uma etnia de referência. Assim, interessa-nos analisar como são

construídas as fronteiras sociais que fixam noções particulares sobre o que é ser homem e o

que é ser mulher, quais profissões são para homens e quais são para mulheres, quais etnias são

incluídas e quais são excluídas.

Trilha da Investigação

A trilha percorrida para desenvolver essa pesquisa foi marcada por constantes idas e

vindas no material empírico e nos referencias teóricos. Entre as muitas possibilidades,

escolhemos 4 coleções de livros de ciências para os anos iniciais que fazem parte dos livros

aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 2007), e que estão no mercado

editorial, totalizando 16 livros, assim intituladas:

- Coleção 01 - Redescobrir Ciências de Janeth Wolff & Eduardo Martins;

- Coleção 02 - Ciências para crianças de Rosicler Martins Rodrigues;

- Coleção 03 - Ciências de Rosely Lembo & Isabel Costa;

- Coleção 04 - Terra, Planeta Vida: Ciências de Amélia Porto, Lízia Ramos & Sheila Goulart.

Nesta pesquisa, seguimos uma trilha, semelhante a metáfora do relógio utilizada por

Gvirtz (1997), seria como desmontar um relógio para mostrar seu funcionamento interno, para

ver como a sexualidade, o gênero e a etnia são produções culturais, são categorias reguladas e

reguladoras de uma maneira de ser e estar no mundo.

Sobre a metodologia dos Estudos Culturais (NELSON, TREICHLER, GROSSBERG,

1995, p. 9) assinalam que ela

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fornece uma marca igualmente desconfortável, pois eles, na verdade, não têm nenhuma metodologia distinta, (...) que possam reivindicar como sua. Sua metodologia, ambígua desde o início, pode ser bem mais entendida como uma bricolage. Isto é, sua escolha da prática é pragmática, estratégica e auto-reflexiva. A escolha das práticas de pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões dependem de seu contexto.

Quanto à metodologia a ser adotada numa pesquisa Costa (1996, p.10) assinala que

“não importa o método que utilizamos para chegar ao conhecimento, o que de fato faz a

diferença são as interrogações que podem ser formuladas dentro de uma ou de outra maneira

de conceber as relações entre saber e poder”. Esta observação nos remete a possibilidade de

outras formas de investigar os objetos de pesquisa, procurando superar os saberes dogmáticos

e representações fixas que instituem significados, como verdades absolutas.

Encaminhamentos Teóricos

Esta pesquisa filia-se ao campo dos Estudos Culturais na perspectiva pós-

estruturalista. Não há uma definição/conceituação rígida do que são os Estudos Culturais, mas

é possível compreender os delineamentos dessa perspectiva de estudo, a partir das reflexões

feitas por vários/as autores/as. Conforme Nelson, Treichler, Grossberg (1995, p. 9) os Estudos

Culturais “se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para produzir o

conhecimento exigido por um projeto particular”, desde que forneçam formas de pensar,

estratégias de sobrevivência e recursos de resistência as metodologias tradicionais de análise

do conhecimento pelo viés cultural.

Ainda conforme os autores supracitados, os Estudos Culturais não são simplesmente

interdisciplinares, mas sim, antidisciplinares, pois são motivados por uma crítica as

disciplinas tradicionais e nutrem uma relação de constante desconfiança com o conhecimento

cristalizado. Acolhendo a argumentação de Costa (2000, p, 1) os Estudos Culturais “são

saberes nômades, que migram de uma disciplina para outra, de uma cultura para outra, que

percorrem países, grupos, práticas, tradições, e que não são capturados pelas cartografias

consagradas que têm ordenado a produção do pensamento humano”.

Para mostrar como são acionadas estrategicamente as diferentes posições sociais,

econômicas e culturais e destinadas para cada indíviduo conforme a sexualidade, o

pertencimento étnico e o gênero, nos utilizamos dos conceitos de discurso e poder fornecidos

por Foucault (1996). Na perspectiva foucaultiana o poder é disseminado, capilar, microfisico,

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portanto, se distancia da concepção de poder localizado num ponto fixo, como algo nefasto,

destrutivo, o poder é produtivo, a medida que produz representações e saberes impostos

politicamente, por exemplo: somente a mulher ocupando o espaço doméstico como resultado

da sua constituição biológica, portanto, o poder esta ligado a produção dos significados.

Na concepção de Foucault, (1996, p.10) “o poder não existe, existem sim práticas ou

relações de poder”. Esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu

exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de

poder. Portanto, não existe a exterioridade na força de uma relação, o poder é parte intrínseca

da relação. Assim, as representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências

fabricam e transmitem significados que remetem a normalidade, a regularidade sobre a

sexualidade, o gênero e a etnia.

O discurso na perspectiva foucaultiana é capaz de criar seu próprio objeto, sua própria

realidade, atribuindo significados e valores para suas invenções. O discurso torna verdade

aquilo que considera que deve ou deveria ser visto como verdade, portanto, por essa

capacidade de fabricar realidades, institiu efeitos de verdade sobre aquilo que é mostrado ou

dito sobre os povos e suas culturas. Conforme Foucault, (1997, p.56) o discurso é um

“conjunto de saberes e práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”.

Assim, os discursos estabelecem as fronteiras sociais por onde homens e mulheres podem

circular e de como serão narrados/as e o lugar de cada etnia segundo a cor de pele.

A etnia neste estudo é entendida como uma construção histórica e cultual, e não como

as características biológicas das pessoas determinada pelos traços hereditários. Para

Gonçalves, (1996, p.426) “a etnia permite compreender uma realidade social mutante. São

realidades em movimento”. Assim, os significados construídos para etnia inscrito nos livros

didáticos de ciências podem ser contestados e desalojados.

Em relação ao gênero e sexualidade compartilhamos das definições conceituais de

LOURO (2001); LAQUEUR, (2001), entre outras/as. Não se trata de negar as diferenças

sexuais mostradas pela anatomia humana, mas sim, mostrar e questionar que tipos de posições

e funções são atribuídas as mulheres e aos homens a partir dessas diferenças. Essas autoras

rejeitam as características biológicas como únicas constituintes da masculinidade e da

feminilidade, e defendem que devem ser consideradas todas as representações sobre essas

características, portanto, tudo o que é mostrado e dito culturalmente sobre os sexos.

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Sexualidade, Gênero e Etnia: o que os livros didáticos de ciências não mostram

Nos livros didáticos analisados contamos atentamente quantas imagens humanas

representam o gênero masculino e quantas representam o gênero feminino, quantas

representam a etnia negra e branca, neste caso, independente da categoria de gênero.

Concomitantemente, localizamos e categorizamos os espaços de circulação de cada gênero e

etnia. As representações numéricas são mostradas na tabela 01.

Quadro 01: Representação numérica das imagens de Gênero e Etnia

COLEÇÃO 1 COLEÇÃO 2 COLEÇÃO 3 COLEÇÃO 4 Imagens do gênero masculino branco

347 – 69,3% 98 – 70,5% 258 – 70% 170 - 64%

Imagens do gênero feminino branca

154 – 30,7% 41 – 29,5% 116 – 30% 96 – 36%

Imagens de pessoas brancas

448 – 98% 121 – 87% 310 – 83% 214 – 80,5%

Imagens de pessoas negras.

53 – 11% 18 - 13% 64 – 17% 52 – 19,5%

Total de imagens 501 139 374 266 Org: Soares, 2008.

Através da tabela é possível evidenciar que existe uma regularidade quantitativa nas

representações acenando para uma constituição hegemônica de gênero e etnia, ou seja,

masculino de cor branca, independente do gênero a cor de pele branca é referenciada nos

diversos lugares e atividades mais prestigiados pela sociedade. A quantidade expressiva

dessas imagens produzem um saber conectado ao modelo desejável de sociedade, onde etnia

branca é instituída e valorizada, enquanto a etnia negra raramente aparece, quando aparece

afasta-se do modelo valorizado.

Nas análises feitas nas imagens inscritas nos livros didáticos de ciências, é possível

evidenciar um discurso sexual apoiado no determinismo biológico, o qual funciona como

marcador das diferentes posições e lugares da mulher e do homem, portanto, há uma

sexualização dos lugares e funções. A mulher e o homem estão posicionados em lugares e

funções diametralmente opostos, e a partir dessa oposição que vão sendo legitimadas relações

sociais desiguais e paulatinamente naturalizadas.

Assim, para entender essas desigualdades justificadas pela diferença sexual, “é

necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma

como essas características são representadas ou valorizadas” Louro (2001, p.21). Assim,

aquilo que dizemos ou pensamos sobre as características construídas, é o que vai estabelecer

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as fronteiras do masculino e do feminino em uma dada sociedade, em um dado momento

histórico.

As imagens veiculadas nos livros de ciências analisados destinam à mulher o

desempenho das profissões domésticas, ainda que, atualmente as mulheres desconstruam as

fronteiras entre o público e o privado. Nos livros didáticos, elas continuam sendo capturadas

para o espaço doméstico. Elas aparecem com regularidade cuidando das crianças, limpando a

casa, cozinhando, enquanto eles, aparecem como médico, astronauta, piloto, cientista. A

consolidação de um discurso biológico sobre a natureza feminina como frágil, emotiva,

dependente, produz um saber ligada a incapacidade intelectual das mulheres. Tal observação é

mostrada na figura 1.

Figura 1: Profissão do gênero feminino Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.116

Os homens aparecem em espaços opostos, desempenhando profissões prestigiadas, e

que remetem a valorização e maior remuneração. Conforme Bourdieu (1995) “a divisão

sexual do trabalho é evidenciada nos objetos técnicos ou nas práticas: por exemplo, na estrutura do

espaço, e em particular nas divisões interiores da casa (...) e mais amplamente, em todas as práticas”.

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Figura 2: Profissão do gênero masculino Fonte: Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.36

Estas posições e funções assimétricas para o homem e a mulher inscritas nos livros

didáticos de ciências, remetem a construção de fronteiras sociais entre o público e o privado, e

elege quem pode se movimentar por uma ou por outra.

A família mostrada nos livros didáticos de ciências assinala o modelo ideal de família,

formada por um homem e uma mulher ambos de pele branca, com um filho e uma filha. As

pessoas aparecem desempenhando atividades caracteristicamente masculinas e femininas,

conforme figura 3.

Figura 3: Constituição da família Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.05.

Nesse sentido, as imagens que mostram as mulheres somente no espaço do lar, como

se esse fosse um espaço quase exclusivo da circulação feminina, é uma estratégia sutil de

traçar os limites desiguais de circulação, nesse traçado estão inscritas relações de poder. É

essa a família brasileira? Porque as diversas etnias que compõem o nosso país estão ausentes

desse modelo de representação? Tal questionamento advém do fato de não encontrar nenhuma

imagem que mostre uma família negra, entendo que a ausência é denotativa do preconceito.

Os livros didáticos através de suas representações imagéticas realçam uma

extraordinária normalização do que significa ser menina e menino, as ações e

comportamentos que correspondem às formas hegemônicas de feminilidade e masculinidade.

Para as meninas as manifestações de cuidado e afeto envolvendo um contato físico são vistas

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como normais e aceitáveis, para os meninos há um afastamento dessas características, eles

representam a valentia, circulam por lugares abertos, portanto, as fronteiras comportamentais

parecem serem rígidas, tanto ela quanto ele, são vigiados para não atravessar os limites

construídos histórica e socialmente. Tais constatações são observadas nas figuras 4 e 5 .

Figura 4: Ser menina Figura 5: Ser menino Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.05.

A imagem veicula uma concepção de autonomia dos meninos, eles podem jogar bola

na rua, andar de pés descalços, brincar nas poças d’água. Enquanto as meninas para as é

destinado o cuidado de algo, interpretando para mais além, o suposto cuidado com a prole

caberá a ela, isto é mostrado como tarefa exclusiva da mãe. Não estou querendo dizer que a

mulher não deve cuidar de seus filhos/as, o que estou questionando é que diante de uma

sociedade em constantes transformações socioeconômicas, onde muitos homens participam de

forma igual do cuidado dos filhos/as, isto continua sendo ocultado.

De acordo com Laqueur (2001), o sexo que nós conhecemos, ou seja, os dois sexos

como um novo fundamento de gênero, surge no século XVIII. O contexto para a articulação

dos dois sexos incomensuráveis não era nem a teoria do conhecimento nem os avanços do

conhecimento científico. O contexto era político. Havia lutas pelo poder e posição na esfera

pública, altamente ampliadas no século XVIII e, em especial, no século XIX pós-

revolucionário, entre homens e mulheres, entre feministas e antifeministas. O campo de

batalha do gênero mudou para a natureza, para o sexo biológico. A anatomia sexual distinta

era citada para apoiar ou negar todas as formas de reivindicações em uma variedade de

contextos sociais.

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No que se refere a etnia, elas são mostradas em atividades sociais de maneira distinta e

desigual. A etnia branca encontra-se posicionada, nos laboratórios, nos consultórios, ou seja,

nos espaços da atividade científica, enquanto a etnia negra quando aparece esta posicionada

no rural, no esporte, em atividades que se distanciam daquelas que remetem a inteligência, a

racionalidade. No capítulo que apresenta a utilidade das plantas para os seres humanos chama

nossa atenção o fato de que diversas plantas são mostradas sem a presença do ser humano.

Entretanto, ao mostrar uma lavoura de cana-de-açúcar aparece com naturalidade a imagem de

um homem negro trabalhando no corte da cana. Tais observações são mostradas nas figuras

06 e 07, respectivamente.

Figura 06: representação de etnia negra Figura 07: Representação de etnia branca Fonte: Rodrigues, 2007.

Nessa perspectiva, fica evidente que o papel endereçado para a etnia negra é

desempenhar uma função ligada ao esforço físico, ao trabalho manual, braçal, supostamente

legitimando pouca inteligência para o desempenho de outras atividades intelectuais ou ligadas

à ciência, visto que, não encontramos nenhuma imagem que mostre a etnia negra em espaços

considerados próprios da ciência, como, a medicina, a bioquímica, a geologia. Esta imagem é

uma das muitas formas utilizadas pelos livros didáticos de ciências para produzir e reforçar

estereótipos étnicos, sendo o estereótipo uma estratégia do discurso branco ocidental, “é uma

forma de conhecimento e identificação que varia entre o que está sempre no lugar, já

conhecido e algo que deve ser ansiosamente repetido”. (BHABHA, 2001, p.104).

A busca por uma marcador natural da diferença é a cor da pele, assim, os indivíduos

são posicionados em diferentes espaços, conforme a hierarquia socioeconômica, quanto

menos prestigiada for a atividade mais escura é a cor de pele ali posicionada. A cor da pele

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como algo que remete a superioridade ou inferioridade esta vinculada a carga de significados

construídos discursivamente e atravessados pelas relações de poder. Como no entender de

Veiga-Neto (2000, p.56)

Os significados não existem soltos no mundo, à espera de serem descobertos e formalizados lingüisticamente. Enquanto coisa deste mundo, o significado não preexite à sua enunciação. Ele só existe a partir do momento em que foi enunciado, passando a fazer parte de um ou mais discursos.

Essas imagens veiculam discursos que estão ligados à estruturas de poder, os quais

permitem construir verdades sobre aquilo que é mostrado. Nesse sentido, a etnia negra é

construída regularmente nas ‘bordas’, nos limites extremos, portanto, as linhas fronteiriças

são traçadas com efeitos perversos, pois, indicam para nossos/as estudantes o caminho da

discriminação.

Saindo da Temática

Num mundo onde as fronteiras nacionais tornam-se mais permeáveis, em que as

próprias identidades não são estáveis, fixas, absolutas e sim fragmentadas, situacionais,

híbridas, percebo, entretanto que as representações imagéticas dos livros didáticos de ciências

continuam produzindo e reforçando significados hegemônicos de gênero, etnia e sexualidade,

significados que aspiram a universalidade e o absolutismo, ou seja, as referencias estão

centralizadas na etnia branca, masculina, heterossexual.

Os livros didáticos como artefatos culturais moldam, influenciam e regulam

comportamentos e atitudes, mas também são moldados e regulados, portanto, são mecanismos

reguladores e regulados da cultura. Assim, os livros didáticos de ciências colocam em

funcionamento uma maneira de aprender, de controlar significados culturais, de produzir e

disseminar um sentido do que significa ser homem, mulher, branco, negro na sociedade.

Nossos/as estudantes vão aprendendo desde de cedo a reconhecer diferentes lugares e

as atividades desempenhadas em cada um deles, são estimulados a perceber que há um lugar

considerado adequado ao homem e mulher e que as profissões estão em oposição e

hierarquizadas. Aprendem que cada etnia conforme a cor da pele ocupa um lugar e uma

atividade diferente e desigual, e essa padronização social é comumente aceita como normal e

natural.

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REFERÊNCIAS

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