o controle jurídico de políticas públicas

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João Paulo Bachur

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  • O CONTROLE JURDICO DE POLTICAS PBLICAS

    (Fundamentos Metdico-Estruturantes de u m a Proposta de Refonna do Poder Judicirio c o m o Condio Essencial para a Efetivao dos Direitos Sociais,

    Econmicos e Culturais no Brasil.)

    Joo Paulo Bachur' Aluno do Curso de Graduao da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo

    Resumo: O presente trabalho busca apresentar hiptese de reforma do Poder

    Judicirio brasileiro para efetivar os direitos sociais no Brasil baseada em uma justificao metodolgica. Para cumprir esse objetivo, necessrio analisar a origem de tais direitos sociais, bem como a evoluo da metodologia cientfica do Direito. A seguir, feita proposta de reforma do Poder Judicirio com base em sua justificao metodolgica (a metdica estruturante do Direito). Finalmente, as principais objees so combatidas e algumas concluses so apresentadas.

    Abstract: This paper intends to present a hypothesis of reformulation of

    Brazilian Justice in order to make effective social rights in Brazil based upon a methodological justification. In order to accomplish this aim, is necessary to analyze the origin of such social rights, as well as the evolution of scientific legal methodology. Then, the hypothesis of Brazilian Justice reformulation is made based on his methodological justification (the structuring methodic of Law). Finally, the main objections are faced and some conclusions are presented.

    Unitermos: polticas pblicas; direitos sociais, econmicos e culturais; metodologia da Cincia do Direito; metdica estruturante; reforma do Poder Judicirio.

    1. Introduo e Pr-Compreenso Terica

    Os direitos sociais so, no mais das vezes, apenados sob a rubrica de "exortaes morais" de alta carga retrica. Nada obstante qualquer conotao moral que se lhes queira eventualmente impingir, h que se considerar a necessria eficcia do Direito, sendo essencial a qualquer ordenamento jurdico a produo de seus efeitos

    I. Bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) entre outubro de 1999 c setembro de 2000, sob a orientao do Prof. Dr. Fernando Haddad

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    concretos. E no h como negar o dficit de eficcia prtica vivido pelos direitos sociais, pelo menos e m nosso Pas. Ainda, atribuir tal dficit, v.g., corrupo e falta de boa vontade poltica- sem dvida, fatores constantes das frgeis democracias dos pases de capitalismo tardio - no explicao suficiente. Por bvio, tais fatores tm de ser considerados, mas h justificativas outras bem mais complexas que simplesmente a vida poltica e financeira mal organizada das democracias tardias. H aspectos metodolgicos e cientficos que influenciam sobremaneira a prtica cotidiana desses direitos sociais.

    D e fato, esta ser a perspectiva de estudo adotada: analisar-se- a ineficcia dos direitos econmicos, sociais e culturais do ponto de vista da metodologia cientfica do Direito. fato que os direitos e m anlise gozam de uma efetividade minimizada, para se no dizer inexpressiva.2 C o m efeito, o presente estudo versado preponderantemente e m termos de metodologia cientfica do Direito, na medida em que diante da necessidade de efetivao dos direitos sociais no Brasil se h de indagar pelas vias jurdicas adequadas para tanto, bem como pela sua adequada metodologia. Ora, a efetivao dos direitos sociais exige peculiares vias de defesa, as quais devem necessariamente ser fundamentadas, sob pena de incorrerem e m u m discurso cientificamente inconsistente e panfletrio. Enfim, no se pretende qualquer originalidade na proposta aqui apresentada, j outrora defendida por Fbio Konder Comparato,3 mas to somente vislumbrar uma hiptese de aproximao metodolgica entre o Poder Judicirio e a implementao de polticas pblicas e a efetivao dos direitos sociais, econmicos e culturais'.

    Antes de iniciar-se a investigao do controle jurdico de polticas pblicas propriamente dito, urge fazer alguns esclarecimentos preliminares, e m nome da coerncia que se pretende dar ao estudo. A expresso "pr-compreenso" adquiriu, ao longo do caminhar da Filosofia, u m sentido muito prprio, principalmente aps as conquistas da ontologia de Heidegger e da hermenutica filosfica de Gadamer,4 implicando uma profunda modificao nos conceitos de conhecimento e compreenso. Tradicionalmente, sujeito e objeto do conhecimento sempre foram tomados e m separado, como compartimentos estanques e independentes. N o entanto, ignorar a histria e as

    2. Conforme o balano do Instituto Brasileiro de Geografia c Estatstica (IBGE) divulgado cm 04 de abril de 2001, a desigualdade social no Brasil praticamente nada reduziu cm relao dcada de 80. Apenas como exemplo ilustrativo, 1 4 % da renda ficam com os 5 0 % mais pobre da populao, ao passo que 13,1% da renda ficam com apenas 1 % mais rico da populao. Ainda, 13,3% da populao brasileira c analfabeta (considerando-sc como tais os incapazes de assinar o prprio nome), havendo ainda 29,4% de analfabetos funcionais. Por fim, 40,6% dos domiclios brasileiros no contam com saneamento bsico.

    3. COMPARATO, Fbio Konder, "Ensaio sobre o Juzo de Constitucionalidadc de Polticas Pblicas", in Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba, B A N D E I R A D E M E L L O , Celso Antnio (org.), So Paulo, Malheiros, 1997.

    4. Cf., fundamentalmente, HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, 2a cd., v. 1, trad. Mrcia de S Cavalcanti, Pctrpolis, Vozes, 1988; G A D A M E R , Hans-Gcorg, Verdade e Mtodo: traos fundamentais de uma hermenutica filosfica, trad. Flvio Paulo Mcurcr, Pctrpolis, Vozes, 1997.

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    condies que circundam o pesquisador, como se tais fatores no exercessem influncia alguma sobre seu conhecimento, nada menos que u m a drstica simplificao da realidade.

    Pr-compreenso significa o conjunto de conhecimentos que se possui anteriormente ao conhecimento e m si m e s m o considerado; o conjunto de preconceitos do sujeito - preconceitos tomados aqui e m sentido absolutamente literal, sem qualquer carga pejorativa, apenas enquanto "pr-conceitos": concepes prvias a toda e qualquer compreenso, compostas por uma tradio cultural e lingstica na qual o sujeito est irremediavelmente inserido, justamente porque ela lhe historicamente anterior. M a s admitir a pr-compreenso, reconhecer a existncia de pr-conceitos, no implica a possibilidade de elimin-los: os pr-conceitos, enquanto tais, no esto livre disposio do conhecedor,5 no possvel simplesmente distinguir os pr-conceitos que favorecem a compreenso (pr-conceitos produtivos) daqueles que a dificultam (mal-entendidos). N o entanto, tal distino absolutamente necessria para viabilizar o conhecimento propriamente dito. E a pergunta subseqente imediata e inevitvel: como separ-los? O distanciamento histrico existente entre o objeto e o sujeito permite formular perguntas, as quais abrem possibilidades de confirmar, negar e/ou substituir os pr-conceitos por "autntico" conhecimento - mas que nunca ser definitivo, pois sempre provisrio e questionvel. A partir da pergunta possvel destacar e avaliar o pre-conceito, descartando-o e substituindo-o, ou, se for o caso, confinnando-o.

    A o pretender-se a tarefa de estruturar satisfatoriamente u m controle jurdico de polticas pblicas, est-se, e m verdade, assumindo dois pontos de partida (pr-conceitos) que carecem ser identificados: (1) a fronteira entre o jurdico e o poltico tnue, havendo u m a zona poltico-jurdica de investigao e atuao; e (2) o Estado Social u m dado seguro da realidade, pois somente faz sentido investigar direitos sociais e polticas pblicas no contexto do Welfare State. Esses dois pr-conceitos intrnsecos investigao proposta precisam ser testados e avaliados, enquanto condicionantes da prpria investigao aqui desenvolvida.

    As relaes entre o Direito e a Poltica so polarizadas por uma constante tenso que, ao se tratar de temas constitucionais, ganha contornos menos ntidos, e m funo da caracterstica genrica das constituies do sculo X X . A constituio que d fonna e vida ao Estado Social muito diferente daquela que definia os contornos do Estado Liberal. Nesse, a constituio cuidava exatamente de dissociar, da maneira mais precisa possvel, o poltico e o jurdico. constituio era apenas a fnnula jurdica de limitao do poder poltico - u m divisor de guas; na medida e m que fornecia as bases da organizao poltica com especial ateno aos mecanismos jurdicos de proteo individual contra os excessos do poder poltico. Da serem tais constituies conhecidas como "constituies-garantia", ou ainda "constituies-limite", j que sua funo precpua era delimitar, juridicamente, uma esfera individual impermevel ao poder poltico.

    5. GADAMER, op. cit., pp. 442/443.

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    Diferentemente da pretensa neutralidade constitucional liberal, o Welfare State nunca negou sua orientao axiolgica fundamental, qual seja realizar Justia social a despeito das bases capitalistas que conservou. Naturalmente, essa gnese essencialmente comprometida do ponto de vista poltico produziu reflexos naquele campo antes reservado exclusivamente ao jurdico. A constituio, de mecanismo de freio do poder poltico, tornou-se instrumento de coordenao poltica e planejamento social, sintetizou elementos jurdicos e polticos e introduziu elementos scio-econmicos ao campo jurdico. O Estado deixou a pura forma jurdica para assumir elementos conceituais substanciais, fundamentalmente os direitos sociais, econmicos e culturais: de fato, o Estado Social constitucionalizou a Poltica6 Portanto, quanto ao primeiro pr-conceito terico mencionado, de todo impossvel qualquer negao fuso conceituai entre a Poltica e o Direito operada constitucionalmente pelo Welfare State.1

    N o entanto, esse Estado vem passando, desde h algum tempo e mais precisamente aps a segunda metade do sculo X X , por profunda crise de legitimidade. O modelo do Welfare State foi criado como alternativa aos excessos da pretensamente neutra estrutura liberal-formal burguesa, forando a estrutura estatal a tomar partido no turbilho das foras sociais - esse novo paradigma estatal ficou conhecido como democracia social, justamente por tentar difundir detenninados padres de Justia social, estender a democracia a esferas mais amplas que a participao poltica exclusivamente. A democracia social sustentada fundamentalmente pela justificativa tico-poltica de busca por Justia social apoiada nas teorias econmicas keynesianas, exigindo compromissos entre a sociedade civil e o poder pblico, bem como gastos e investimentos para atingir o escopo bsico de equacionar os recursos materiais da sociedade mediante a implementao de polticas pblicas. Ora, o Estado que destina praticamente toda a receita arrecadada com u m a poltica fiscal cada vez mais onerosa a amenizar e compensar os impactos sociais gerados nas relaes de produo material da sociedade acaba por contrariar o hedonismo do capital e m nome de u m a opo juridificada - a solidariedade social, que, no entanto, no exige qualquer consenso a respeito. Note-se, ento, que e m relao aos direitos sociais, a contestao do Welfare State enseja u m movimento tendente sua "desjuridificao."

    As jornadas de "juridificao" designam, grosso modo, o processo histrico de crescente promoo dos direitos fundamentais a partir dos sculos XIV e XV.8 D e fato, a primeira jornada de juridificao teve lugar no bojo do Estado Absoluto

    6. Cf., a respeito, Q U E I R O Z , Cristina M.M., OsActos Polticos no Estado de Direito: o problema do controle jurdico do poder, Coimbra, Livraria Almcdina, 1990.

    7. FORSTHOFF, Ernst, "Conceito c Natura dcllo Stato Socialc di Diritto", in Stato di Diritto in Transformazione, trad. Cario Amirantc, Milano, Giuffrc, 1973, p. 70: "Stato sociale di diritto una definizione che determina il tipo di un stato, che abraccia costituzione, legislazione ed amministrazione. Esso non un conceito giuridico ". Cf. tambm QUEIROZ, op. cit., pp. 12 c s..

    8. H A B E R M A S , Jrgcn, "Law as Mdium and Law as Institution", in T E U B N E R , Gnthcr (org.), Dilemmas ofLaw in the Welfare State, Bcrlin/Ncw York, 1985, European University Instituto; H A D D A D , Fernando, "Economia Poltica da Desjuridificao", manuscrito no publicado c fornecido pelo autor.

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    e muito pouco tinha a oferecer ao indivduo, mantendo-o na condio de sdito. A destruio do Ancien Regime consubstanciou a segunda jornada de juridificao, ao conferir ao indivduo mecanismos jurdicos de proteo de direitos bsicos. A terceira jornada j se alinhava ao liberalismo tpico do sculo XVIII, e representou a cristalizao da ordem jurdica burguesa, com a proteo precpua dos direitos individuais. Finalmente, a quarta jornada de juridificao, embasada e m reivindicaes de Justia social, ao afirmar e institucionalizar a proteo aos direitos sociais, completava u m curso crescente e expansivo de afirmao de direitos9, tendo no Estado de Bem-Estar Social u m paradigma institucionalizado.

    Porm, esse movimento ascendente de juridificao foi interrompido pela crise paradigmtica do Welfare State, que compila crticas basicamente de trs ordens: (1) o Estado passa a enfrentar u m descrdito econmico generalizado e m funo da postura adotada, pois a promoo de bem-estar social exige gastos pblicos que, na grande maioria das vezes, so mais elevados que a receita oramentria e empregados em mecanismos compensatrios dos riscos sociais; (2) tem-se, ento, o questionamento dos fundamentos de tal estrutura estatal, ou seja, o sistema que sacrifica toda a coletividade e m nome de uma solidariedade social frgil, inconsistente e sujeita a consecutivos dficits oramentrios, passa a ter sua legitimidade tica e poltica contestada; e, por fim, (3) culminam tais crticas e m u m movimento de reduo e flexibilizao do aparato institucional e jurdico estatal, provocando u m refluxo na afirmao de direitos fundamentais, com sensvel reduo da malha normativa que sustenta o Estado Social de Direito.

    E mais, o questionamento do paradigma estatal no se circunscreve a uma postura "de esquerda" ou "de direita" exclusivamente; ele no se restringe a u m debate e m termos poltico-partidrios mas, de maneira mais grave, aglutina contestaes dos dois lados. D e u m lado, a esquerda poltica confronta, no mbito da reproduo simblica da sociedade, a "publicizao do privado" visto que espaos cada vez maiores foram normatizados, tornando estatal u m mbito tradicionalmente legado esfera privada do cidado, caracterizando u m "imperialismo regulador do Estado " l0 D e outro lado, a direita poltica questiona, no mbito da reproduo material da sociedade, a "privatizao do pblico", j que as prestaes de bem-estar social so apropriadas apenas por reduzida "clientela."

    Destarte, retomando o carter de pr-compreenso terica, tem-se que os pr-conceitos necessrios ao presente estudo no devem ser tomados sem as devidas ressalvas: enquanto Direito e Poltica esto e m constante e irremedivel polarizao, o paradigma social de Estado revela-se relativamente instvel.

    9. H A D D A D , "Economia Poltica da Desjuridificao", op. cit., p. 4: "O importante perceber que a noo de direito vai se modificando ao longo destes cinco sculos e que o direito torna-se progressivamente mais includente ".

    10. HADDAD, "Economia Poltica da Desjuridificao", op. cit., p. 4.

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    2. Direitos Sociais, Estado Social de Direito, Polticas Pblicas: Enfoque Diacrnico-Analtico

    A afirmao dos direitos sociais, econmicos e culturais tem necessariamente de ser entendida no contexto da marcha histrica dos direitos humanos. Nada obstante o fato de representarem os direitos individuais e polticos as exigncias precpuas da sociedade ps-medieval (pr-industrial), h razes adicionais que justificam o diferimento temporal entre sua afirmao e a dos direitos sociais. Para compreender essas razes necessrio reconer ao conceito de cidadania desenvolvido por T. H. Marshall: "A cidadania um status concedido queles que so membros integrais de uma comunidade"11 A cidadania, ento, leva e m conta a integrao do indivduo, o que permite u m a importante considerao: u m a vez que o cidado indivduo socialmente participativo e integrado, pode-se mitigar e graduar a cidadania, j que n e m todos gozam de igual integrao social. Circunstncias vrias quantificam a integrao social, o que inevitvel e pesarosamente exclui a participao de parcela da populao.

    Vislumbre-se o conceito de cidadania sob u m trplice enfoque, decomposto que pode ser e m trs elementos ou partes, a saber, o elemento civil fonnado pelas garantias e liberdades individuais; o elemento poltico representado pelo poder de participao poltica conferido aos cidados; e finalmente o elemento social, consubstanciando as condies necessrias para uma vida minimamente digna. A mitigao do conceito de cidadania , ento, plenamente justificvel, j que: "Sua evoluo envolveu um processo duplo, de fuso e de separao. A fuso foi geogrfica e(a separao, funcional" l2 O movimento de reunio dos feudos sob autoridade regia financiado pelos burgueses provocou a fuso geogrfica dos loci de participao cidad, antes atomizados na estrutura feudal, o que fez com que o indivduo deixasse o feudo e passasse a ser sdito nacional. Isso o distanciou, fsica e geograficamente, das instituies que viabilizavam sua manifestao comunitria, pois o vilarejo havia virado o pas, sob as vestes de Estado (Absoluto) nacional. O reflexo instantneo dessa fuso geogrfica foi a separao funcional das instituies que viabilizavam essa participao integradora e garantiam direitos, tais como os rgos jurdicos, polticos e os prestadores de servios pblicos, redundando na independncia das instituies sociais.

    A o desenvolvimento conceituai fragmentado da cidadania, adicione-se a solidificao definitiva da burguesia, enquanto classe social. Era esse o derradeiro passo. Ora, enquanto a cidadania u m conceito expansivo e includente, a classe social u m sistema de desigualdade, restritivo e excludente, pois institucionaliza a desigualdade social c o m o necessidade do sistema - a cidadania significa a homogeneizao do status, ao passo que a classe social, ao contrrio, fixa uma hierarquia

    11. MARSHALL, T. H., Cidadania, Classe Social e "Status". trad. Mcton Porto Gadelha, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 76.

    12. M A R S H A L L , op. cit., p. 64.

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    do status social.13 Destarte, fcil identificar as razes do dficit de eficcia dos direitos sociais, sob u m enfoque diacrnico-analtico, considerando-se que o diferimento temporal-conceitual da cidadania fez com que os direitos fossem reconhecidos e afirmados e m pocas diferentes: e m u m primeiro momento, de ruptura c o m o absolutismo, reconheceram-se apenas os direitos civis e polticos, sendo que, no entanto, nesse mesmo momento houve o empossamento poltico da burguesia, o que consolidou o capitalismo.industrial e seu sistema de classes Sociais; e considerando-se, ento, a tenso antittica existente entre os conceitos de cidadania e classe social, a expanso da cidadania dependia de u m afrouxamento da estrutura capitalista de classes sociais, o que, por sua vez e e m funo da consolidao de uma ordem social liberal-burguesa, no ocorreu, pois o sistema de classes sociais engessou a expanso da cidadania.

    C o m efeito, a consolidao da ordem burguesa sublimada pelo paradigma do Estado Liberal produziu, com absoluta coerncia, uma estrutura jurdica formal que consubstanciava determinados preceitos vitais para seu crescimento, tais como a liberdade de contratar e a garantia da propriedade privada, sob os auspcios das grandes codificaes de Direito Privado e das constituies-limite. Nesta esteira, o Estado se abstinha de participar do jogo de foras da sociedade. Ora, as conseqncias so, quando no-bvias, ao menos intuitivas: plena liberdade econmica e irrefreado hedonismo industrial-capitalista elevaram-se mxima potncia, radicalizando a explorao do trabalho pelo capital e redundando e m aviltante explorao do proletariado que, por sua vez, no tinha a quem reconer, restando cada vez mais ensimesmado e m suas mazelas.14

    O modelo liberal s foi reformulado aps duas Guerras Mundiais e a Grande Depresso, de 1929. As contingncias econmicas e sociais intrnsecas ao liberalismo, ao se materializarem e m deflagraes militares e crise econmica de propores globais, deixaram os pases absolutamente atnitos. Aps a II Guerra Mundial, adveio u m novo modelo - o Welfare State (Estado Democrtico Constitucional, Social-Democracia, ou Estado Social de Direito).15 Esse modelo de Estado fundou-se numa legitimidade que extrapolou a legalidade, a exigncia de Justia social imps

    13. M A R S H A L L , op. cit., p. 76.

    14. Cf. Hobsbawn, Eric J., A Era das Revolues, 1 Oa cd., trad. Maria Tcrcza Lopes Teixeira c Marcos Pcnchcl, Rio de Janeiro, Paz c Terra, 1977. Quanto condio de vida dos operrios, instaurou-se u m mrbido contexto de degradao c desorganizao sociais: com a destituio da propriedade operada pelos Enclosure Acts britnicos, os camponeses se rendiam ao trabalho nas fbricas, submetendo-sc a jornadas de trabalho abusivas, extremamente mal remuneradas c cm condies absolutamente insalubres de trabalho. O caos social provocou a perda dos padres bsicos de comportamento, levando tambm degradao tica c moral da sociedade, explodindo os nveis de alcoolismo, criminalidade, prostituio c suicdio na sociedade. C o m o se no bastasse, a expanso urbana completamente desordenada c confusa impedia o acesso de grande parcela da populao aos servios pblicos mais elementares, favorecendo a proliferao de doenas epidmicas cm larga escala. Apesar de tudo, tal situao no era vista, pelo menos a princpio, como ilegtima, mas como um preo a ser pago pela Revoluo Industrial.

    15. O Estado Social pode assumir tanto a forma totalitria, como ocorrera na Itlia fascista c na Alemanha nazista, quanto a forma democrtica. E m repdio ao totalitarismo, o Estado Social tambm passou a ser chamado Estado Democrtico Constitucional ou ainda Social-Democracia.

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    tarefas ao Estado que, de mero observador da sociedade transmudou-se e m seu principal transformador, no se legitimando e m garantias formais como fizera o Estado Liberal, mas sim e m garantias materiais, cujo fator de legitimidade tambm material.16 Nesse sentido, reportamo-nos novamente ao conceito de cidadania conforme desenvolvido por T. H. Marshall, pois o Estado Social permitiu que o terceiro e final elemento da cidadania fosse finalmente afirmado, retomando e m pleno sculo X X o desenvolvimento da cidadania iniciado no sculo XVIII. Por tudo isso, a noo de polticas pblicas intrnseca ao contexto social-democrata, devendo ser entendida como o vetor estatal precpuo de distribuio de renda e implementao de direitos sociais, confonne um ncleo conceituai composto por "direitos sociais - Estado Social de Direito -polticas pblicas" que no pode ser fragmentado: da o risco que a crise do Estado Social apresenta para o presente estudo.

    3. A Insuficincia Metodolgica do Positivismo Jurdico e a Metdica Estruturante do Direito, enquanto Mtodo de Trabalho Jurdico Ps-Positivista

    Quando se quer tratar da insuficincia metodolgica do positivismo jurdico, h primeiro de se conceituar e definir o positivismo jurdico para e m seguida qualific-lo como metodologia e da ento atestar suas falhas.17 O positivismo jurdico pode ser entendido como o resultado obtido na tentativa de adaptao da Cincia do Direito exploso cientificista que tinha e m sua linha de frente a Astronomia, a Fsica e a Biologia, respectivamente com Kepler, Isaac Newton e Darwin, representando os frutos intelectuais de uma poca resultante da fuso do Renascimento italiano do sculo X V com a Refonna Protestante do sculo seguinte, sob o impacto da filosofia cartesiana, que moldou a filosofia positiva, cuja maior expresso Auguste Comte. E m reao frontal tradicional concepo metafsica que se tinha do conhecimento e da Cincia e m geral, emergiu u m movimento intelectual novo que s adjetivava de "cientfico" o conhecimento assentado na certeza, que no mais se satisfazia quer com explicaes metafsicas, como haviam pretendido, embora com objetivos diversos, Thomas Hobbes, John Locke e todos os filsofos do iluminismo, quer com a excelncia ideal-racional de uma razo apriorstica, como quisera Immanuel Kant; mas sim e somente com a possibilidade de demonstrao e prova emprica do conhecimento por meio de leis. O

    16. A partir da tipologia trplice de M a x Weber para a legitimidade, nota-se que nem a dominao tradicional, nem a dominao carismtica, nem a dominao racional-lcgal so capazes de explicar a legitimidade do Estado Social; cie transcende os fatores formais de legitimao, pois tem uma justificativa material imanente, fundada essencialmente nos direitos sociais, econmicos c culturais. Cf. KRIELE, Martin, Introducin a Ia Teoria dei Estado: fundamentos histricos de Ia legitimidad dei Estado Constitucional Democrtico, trad. Eugnio Bulygin, Buenos Aires, Dcpalma, 1980.

    17. Notc-sc que, diferente das rasas c usuais crticas feitas ao positivismo jurdico, no se trata da oportunidade de atac-lo comparando a "pureza" pretendida vida cotidiana do Direito. O estudo que se pretende outro, fundado nas bases metodolgicas c epistemolgicas do positivismo jurdico, ou seja, cm outras palavras, fundado nas condies de conhecimento do Direito adotadas pelos positivistas.

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    conhecimento s podia ser neutro e fundado na observao, no misturando aquele que observa ao observado e, desta sorte, necessariamente relativo. Da a necessidade de construir-se u m conceito de Cincia do Direito adequada aos avanos intelectuais do "esprito positivo" e que, portanto, primasse por u m rigor fonnal que exprimisse a observao do Direito tal como ele efetivamente se nos apresenta, com absoluta neutralidade axiolgica, demonstrando o Direito - era necessrio conferir maior exatido e certeza Jurisprudncia.18 O positivismo jurdico nada mais que o fruto das irradiaes desse avano cientfico e intelectual do sculo XVIII no campo da Cincia do Direito, u m revide imortalidade imanente do jusnaturalismo at ento reinante, enriquecido pelas influncias da escola histrica de Savigny, da genealogia dos conceitos de Puchta e da jurisprudncia dos interesses de Jhering.

    Portanto, para os fins pretendidos, o juspositivismo deve ser captado globalmente enquanto metodologia cientfica, i.e., enquanto u m a forma particular de apreender a atuao do Direito. M e s m o sob esse ponto de vista, no h, porm, uma forma padro que o designe, mas diversas facetas aparentemente incompatveis entre si.I9 Sob olhar mais acurado, as variadas correntes juspositivistas apresentam

    18. Cf. Larcnz, Karl, Metodologia da Cincia do Direito, 6a cd., trad. Jos Lamcgo, Lisboa, Fundao Coloustc Gulbcnkian, 1997, pp. 46/47: "caracteriza-se [o positivismo] pelo seu empenho em banir toda "metafsica" da cincia e restringir rigorosamente esta ltima aos "fados" e s leis desses Jactos, considerados empiricamente. (...)A cincia do Direito ser assim erigida em "verdadeira cincia " quando, tal como a cincia da natureza, se fundar sobre fados indubitveis".

    19. Ernst Rudolf Bicrling, e.g., entende a normatividade como u m "querer a norma" individual c psicolgico. Eugcn Ehrlich, por outro lado, pe todo o foco de estudo na normatividade sociolgica do Direito, sendo a ordem jurdica elemento social emprico como outro qualquer que no goza de peculiaridade alguma, nem sequer a coao: "Moral, religio, costume, boas maneiras, at moda, no s ordenam as relaes extrajuridicas, mas influenciam passo a passo, a jurdica", c "Desta maneira, o homem age de acordo com o direito, acima de tudo, porque as relaes sociais o obrigam a isto! " (Ehrlich, Eugcn, Fundamentos de Sociologia do Direito, trad. Rcn Ernani Gcrtz, Braslia, Universidade de Braslia, 1986, pp. 151 c 49, respectivamente). Convergindo o enfoque psicolgico c o sociolgico, Alf Ross, na vertente conhecida por realismo jurdico (psico-sociologismo), funde na vigncia do Direito os conceitos de validade c eficcia: a ordem jurdica socialmente obrigatria vista por seus destinatrios como vineulante c imperativa, mesclando aspectos sociolgicos c psicolgicos. Hans Kelsen, por outro lado, cm sua busca por uma teoria pura de contaminaes extrajuridicas fez com que o ngulo de observao do Direito fosse apenas ele mesmo: conccbcndo-o como sistema hermtico c estritamente jurdico, todas as normas decorriam umas das outras cm ordem escalonada, com fundamento cm uma norma fundamental. Alis, a teoria da Grundnorm chama a ateno por sua intrnseca tenso inconcilivel: ao tentar romper com todo fundamento no jurdico, derivando as normas umas das outras cm ordem escalonada, Kelsen se v encurralado no absurdo de uma regresso ao infinito, faltando-lhe o fundamento jurdico da primeira norma. Destarte, tem de interromper a seqncia, embora tal interrupo seja feita de maneira formal-apriorstica (c, portanto, extrajurdica): "Tem de terminar numa norma que se pressupe como a ltima e mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que no pode ser posta por uma autoridade, cuja competncia teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade j no pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua validade j no pode ser posto em questo. Uma lui norma, pressuposta como a mais elevada, ser aqui designada como norma fundamentar (Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito, 6a cd., trad. Joo Baptista Machado, Coimbra, Armcnio Amado Editora, 1984, p. 269). Outras escolas positivistas, tais como a analtica de H. L. A. Hart c Norbcrto Bobbio c o institucionalismo de Ota Wcinbcrgcr, cm funo dos limites deste trabalho, no podero ser estudadas.

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    como trao metodolgico constante u m necessrio corte epistemolgico que, em u m momento ou outro e sob u m ponto de vista ou outro, faz-se imprescindvel para fins de simplificao operacional da realidade. Note-se ser essa simplificao da realidade a nica maneira de o positivismo jurdico se sustentar e se mostrar coerente e, e m alguma medida, trabalhar os dados reais. O necessrio corte epistemolgico elemento de unidade e diversidade do juspositivismo, pois permite compreend-lo como metodologia ao mesmo tempo e m que permite ver ramos frutuosamente desenvolvidos por u m a srie de "positivismos" jurdicos que, no entanto, apresentam u m necessrio "quid" epistemolgico comum. Ora, esse corte significa a necessria reduo que o Direito deve sofrer para se enquadrar nos anseios de certeza e previsibilidade emprica ditados pela filosofia positiva - ele une as diferentes vertentes positivistas sob teto comum, pois opera a reduo unilateral do Direito a apenas u m de seus aspectos, exclusivamente, como forma de operacionalidade metodolgica.

    C o m esse artifcio metodolgico, o formalismo positivista elimina, de comeo, o carter histrico e cultural de toda ordem jurdica, pois busca descrev-la e m termos gerais e a-histricos para fins de conhecimento definitivo. Claramente, necessrio que a Cincia jurdica trabalhe com conceitos genricos e excessivamente abstratos, o que, alm de perder a dimenso cultural do Direito, perde tambm a sua riqueza emprica. Some-se a isso a impossibilidade de o legislador prever todas as situaes possveis e imaginveis da vida humana. Apesar de todas as negativas dos positivistas, sempre existiro lacunas, que no significam u m vcuo jurdico, mas apenas sua inexperincia diante de determinadas situaes que no foram, porque no o podiam ser, previstas pelo legislador. N o entanto, nestas situaes limite, no se esquiva o juiz da deciso do caso concreto, quer dizer, o juiz tem necessariamente de eliminar o conflito, mesmo no reconhecendo a existncia das lacunas. Dessa forma, luz do princpio da proibio do "non liquet" o preenchimento de tais lacunas necessariamente feito pelo juiz, sem qualquer padro de controle ou de justificativa, o que permite que certas decises sejam tomadas alheias ao Direito poi-se fundarem e m elementos fticos exteriores ao ordenamento e, portanto, incontrolveis e muitas vezes mesmo injustificveis. C o m o se no fosse suficiente, o positivismo tem dificuldades e m reconhecer a carga ambgua e malevel da linguagem, que permite seu uso axiolgico. Finalmente, o grande problema continua sendo a incapacidade de o positivismo vedar normas injustas, pois diferindo Direito e Poltica, aquele s operacionaliza esta, o que faz com que as decises tomadas no mbito poltico no sejam questionadas pela Jurisprudncia, tendo de ser por esta colocadas e m prtica.

    Ora, todas estas crticas e falhas detectadas no positivismo jurdico conduzem, com certa perplexidade, a u m paradoxo extremamente interessante: a busca incessante de certeza e previsibilidade imposta por u m conceito de Cincia positiva traduziu-se, no mais das vezes, em fatores de insegurana, descontrole e at mesmo irracionalidade na prxis da Jurisprudncia. Nesse sentido, desnudando o mecanismo

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    de estudo e conhecimento prprio do positivismo, j se pode constatar sua inequvoca insuficincia metodolgica para tratar o Direito real.20

    A s falhas que o positivismo apresenta e m sede de metodologia cientfica acabaram por induzir sua superao. C o m o se no bastasse, o advento do Welfare State s fez complicar a situao dos positivistas, que no tinham como se socorcer diante da nova moldura dada ao Direito pelo impacto social. C o m o Estado Social, o Direito teve de ser compreendido e m sua lgica fundamentalmente material e substancial, abandonando sua tradio formal de h muito arraigada e impregnada no pensamento jurdico. Enquanto no Estado burgus a nica preocupao jurdica era resguardar u m a esfera de liberdade representada pelos direitos individuais e suficientemente protegida pela regra jurdica, o novo modelo de Estado produz.um Direito que se serve de u m a estrutura principiolgica e de nonnas que no podem ser transcritas pela regra singela, mas que demandam crescente valorao uma atitude construtivista do operador do Direto (so o que tradicionalmente se apelidou de "normas programticas"), principalmente voltadas para os direitos sociais, econmicos e culturais.

    As novas necessidades metodolgicas do Direito somente seriam providas pela metdica estruturante (strukturierende Methodik) enquanto mtodo de trabalho jurdico (Recthsarbeit), o que implicou uma atitude deliberada de rompimento com o positivismo. Para tanto, o ponto de partida, de acordo com o principal terico da metdica estruturante, Friedrich Mller,21 no-identificar a norma a seu texto. Identificando-se o texto norma, somente resta ao operador do direito verificar se a situao de fato que lhe submetida se encaixa na prescrio legal, executando u m silogismo, atravs da subsuno formal do fato norma. De fato, no se identificando a nonna ao seu texto oficial, todos os textos comumente chamados de "normativos" carecem de concretizao, ao passo que esta, por sua vez, em nome do controle racional de todo o trabalho jurdico, deve se dar de forma metodicmente estruturada. Essa a tnica da metdica estruturante do Direito: todos os textos de nonnas tm de ser metdica e estruturadamente concretizados.

    A metdica no se pretende nem pura nem universal, embora isso no implique qualquer sinretismo metodolgico. Ela visa apenas ser u m mtodo de trabalho suficiente, convergindo diversas fontes de conhecimento. A primeira delas est no desenvolvimento da filosofia ontolgica, principalmente e m suas razes desenvolvidas por Hegel e passando notadamente por Heidegger. Para compreender-se a incessante busca da metdica por uma "concretizao" do Direito, faz-se imperioso volver ao "conceito concreto" ou "geral-conreto" de Hegel sem, de maneira alguma, equiparar a norma jurdica a ele. Esse conceito concreto composto por "um todo de "momentos "

    20. Cf, C O R D E I R O , Antnio Menezes de, "Introduo Edio Portuguesa", in C A N ARIS, Claus-Wilhclm, Pensamento Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito, 2a cd., trad. Antnio Menezes de Cordeiro, Lisboa, Fundao Caloustc Gulbcnkian, 1996

    21. MLLER, Friedrich, Discours sur Ia Mthode Juridique, 5a cd., trad. Olivicr Jouanjan, Paris, Prcsscs Univcrsitaircs de France, 1996.

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    relacionados entre si de modo pleno de sentido, que s nesta vinculatividade recproca constituem o conceito" n O conceito formado a partir da fuso de momentos apreendidos apenas idealmente e m sua individualidade, pois s adquirem sentido em sua reciprocidade inexorvel. A operao que divide o conceito e m momentos, reflete sobre eles e opera sua reconstruo toda uma operao dialtica e ideal - a totalidade do ser enquanto idia absoluta a si tudo submete.23 E aqui reside o ponto que impede a reduo da metdica estruturante do Direito a uma rplica da dialtica hegeliana: a metdica essencial e absolutamente concreta.

    A hermenutica filosfica, por sua vez, notadamente a partir da investigao desenvolvida por Hans-Georg Gadamer, enriquece espantosamente o discurso cientfico da Jurisprudncia, na medida e m que no separa, e m absoluto, o sujeito que conhece do objeto conhecido, existe u m vnculo prvio entre eles: trata-se da pr-compreenso, j uma vez aqui referida, composta pela tradio e m que o investigador est ircemediavelmente inserido, quer em sua vertente lingstica, quer e m sua vertente substancial.24 A interpretao clssica, tradicionalmente divida em subtilitas intelligendi (compreenso), subtillitas explicandi (interpretao) e subtillitas aplicandi (aplicao), fora totalmente subvertida pela hermenutica filosfica, pois era "umprocesso unitrio no somente a compreenso e interpretao, mas tambm a aplicao"2*, sendo tal processo unitrio operado sob a forma do crculo hermenutico.

    U m terceiro elemento substancial na formao da metdica estruturante de carter essencialmente argumentativo e remonta tpica a Aristteles, sucessivamente resgatada por Ccero e Gian Batista Vio, mas somente reconhecida na Cincia do Direito a partir de Theodor Viehweg26. A tpica a argumentao por meio de "topoi", lugares-comuns argumentativos que desempenham importante papel

    22. L A R E N Z , op. cit., p. 652.

    23. HEGEL, Gcorg Wilhclm Friedrich, Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome, v. 1, trad. Artur Moro, Lisboa, Edies 70, 1988, 213, p. 209: "A idia o verdadeiro em si epara si, a unidade absoluta do conceito e da objectividade". A metdica estruturante usa fatos para fixar a norma jurdica que realmente toma a forma de uma deciso concreta, bem distante de qualquer idealizao. Os conceitos, pensados c dissociados de antemo, ao unirem-sc, constituem o conceito cm u m movimento de duplo sentido, semelhante ao conhecido "crculo hermenutico"

    24. Com efeito, Heidegger j havia identificado um momento prvio ao conhecimento, bem como j havia considerado, outrossim, compreenso c interpretao como momentos unitrios (Heidegger, op. cit., p. 204).

    25. Gadamer, op. cit., p. 460. Ainda, corroborando a ntima ligao entre a hermenutica filosfica c a ontologia hegeliana, cf. p. 451: "A partir disso a tarefa da hermenutica filosfica pode ser caracterizada como segue: tem de refazer o caminho da fenomenologia do esprito hegeliana, at o ponto em que, em toda subjetividade, se mostra a substancialdade que a determina". Da a ligao entre a ontologia, a hermenutica filosfica c a metdica estruturante do Direito, vez que a concretizao demanda a juno de momentos (mbito c programa da norma, como se ver), muito embora a norma jurdica somente possa ser extrada a partir desse processo dialtico c referida ao caso, somente assumindo algum sentido cm sua concrctudc.

    26. Viehweg, Theodor, Tpica e Jurisprudncia, 5a cd., trad. Tcrcio Sampaio Ferraz Jr., Braslia, Universidade de Braslia c Ministrio da Justia (co-edio), 1979. E m verdade, a tpica nunca se pretendeu

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    na soluo de questes jurdicas, tais como, e.g., a "boa-f" Cada "topos" pode ser utilizado conforme o caso que se quer decidir, e seu significado elstico, sendo essencialmente definido e m funo do caso. A tpica enfatiza essencialmente o problema, e a partir dele que u m arcabouo argumentativo desenvolvido para a resoluo do caso concreto, funcionando, assim, a partir de "panoramas fragmentrios": premissas escolhidas sem qualquer sistematizao, atravs de tentativas de soluo e que compem o quadro argumentativo jurdico. Essas tentativas tornam-se premissas quando aceitas como razoveis pelo senso comum no discurso jurdico27. Dessa forma, as decises no so obtidas como uma decorrncia da ordem positiva, mas sim como u m processo de contraposio de argumentos aceitveis, dentre os quais u m o melhor para decidir o problema.

    No-obstante todas as crticas que lhe podem ser dirigidas28 e muito embora pensamento sistemtico e tpica sejam apresentados como antteses recprocas, o antagonismo entre eles menos real que aparente, havendo mais propriamente uma verdadeira complementaridade entre sistema e tpica - e, de fato, foi na medida dessa complementaridade que ambos foram incorporados pela metdica. N o entanto, no se trata do sistema lgico-formal de h muito abandonado pela Jurisprudncia, sendo-lhe adequado apenas o conceito de sistema aberto conforme desenvolvido por Canaris. C o m efeito, o sistema aberto, alm de permevel a valoraes, comporta a problematizao, embora de forma ampliada e genrica, pois algumas questes no so tratadas como problemas, sendo desde j oferecidas determinadas respostas aos problemas mais gerais. Destarte, relega o pensamento sistemtico uma posio secundria ao pensamento tpico, destinado fundamentalmente a complementar os pormenores inatingveis pela generalidade sistmica.29

    cientfica no sentido apodtico do termo, assumindo-se sempre como estilo problemtico de raciocnio, sendo exatamente por isso c nesse ponto substancialmente criticada. Cabe observar, de fato, que tal enfoque problemtico era a base mesma do Direito Romano, essencialmente pragmtico c sempre voltado para u m problema a ser resolvido, chamado entre os romanos de "prudncia" (Cf. Ferraz JR.,Trcio Sampaio, Introduo ao Estudo do Direito, 2a cd., So Paulo, Atlas, 1994, pp. 56 c s., especialmente p. 58: "Opensamentoprudencial desenvolvido nos responsas dos jurisconsultos romanos tinha algo de semelhante s tcnicas dialticas dos gregos"). E foi exatamente nesse sentido de prudncia c dialtica que a tpica foi retomada por Viehweg.

    27. A R I S T T E L E S , op. cit., livro 1,1, p. 5, define as premissas aceitas cm u m discusso argumentativa como sendo: "aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filsofos - em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notveis e eminentes". Cabe ressaltar que fundamentar a deciso jurdica na aceitao de premissas pelo senso c o m u m constitui u m ponto naturalmente aberto a crticas, pois pe a certeza preconizada pelo conhecimento positivo cm crise.

    28. Cf, para uma crtica detalhada da tpica, C A N A R I S , Claus-Wilhclm, Pensamento Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito, 2a cd., trad. Antnio Menezes Cordeiro, Lisboa, Fundao Caloustc Gulbcnkian, 1996, cap. 7o.

    29. C o m efeito, no faz sentido exeluir-sc u m ou outro: o pensamento sistemtico puro eliminaria a instncia argumentativa, vedando os respiros de ventilao do Direito; ao passo que a tpica, exclusivamente, enquanto estilo de pensamento, impediria o controle racional da Cincia sobre sua prpria prxis jurdica. E m verdade: "No h, assim, uma alternativa rgida entre o pensamento tpico e o sistemtico, mas antes uma complementao mtua" (Canaris, op. cit., p. 277).

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    H que se considerar, ainda, o vis constitucional intrnseco metdica estruturante, revelado e m nuances de Cincia Poltica e Teoria Constitucional e consubstanciados essencialmente pela interpretao conforme a constituio e pela constitucionalizao dos direitos fundamentais, decorrentes da necessria fora normativa da constituio. A fora normativa da constituio ("normativ Kraft der Verfassung") sua caracterstica essencial, e foi suficientemente identificada por Konrad Hesse, como forma de defender a constituio de ataques pragmticos e m relao ao seu grau de efetividade prtica30. Esse grau de efetividade prtica, por sua vez fora analisado por Ferdinand Lassale, que identificou certos "fatores reais de poder" latentes na sociedade e que a configuravam efetivamente, sendo responsveis por transformar a constituio numa simples "folha de papel."31 Lassale trouxe tona a existncia de focos de concentrao de poder econmico e poltico e, principalmente, evidenciou sua ntima relao com a constituio de u m pas, mostrou a interpenetrao entre a realidade e a constituio. A toda constituio, e m sentido normativo, subjaz uma constituio real, que sempre se impe perante aquela, mas que no se apresenta como autntica, ou e m suas prprias palavras, as constituies que se nos apresentam: "no son Ias Constituciones realesy efectivas, sino Ias Constituciones escritas, Ias hojas de papel" J2 N o entanto, a argumentao de Lassale atm-se somente supremacia da realidade sobre a constituio, admitindo a ligao entre ambas de forma absoluta. Essa relao, no entanto, no se d de forma-absoluta, mas relativa, sendo a fora normativa inerente constituio, o que funde o normativo (solleri) ao ftico (sein).3i Ora, a constituio traz e m si uma pretenso de vigncia que, ao conformar a realidade estatal (ainda que relativamente), traduz-se e m uma fora nonnativa, legitimando-se enquanto "vontade de constituio" ("Wille zur Verfassung") que, ainda que no consensual, e m absoluto, surge como legtima e constantemente legitimada atravs de u m a prxis constitucional.34

    C o m efeito, e e m resumo, rompe-se com o formalismo positivista, captando-se o Direito no como compartimento hermeticamente fechado e m si mesmo, mas sim como u m sistema aberto e dinmico e m sua fora normativa constitucional, servindo-se da argumentao indutivo-problemtica, mas escapando da aleatoriedade tpica ao proceder metodicamente no cmputo dos argumentos, apreendendo a prxis

    30. HESSE, Konrad, "La Fucrza Normativa de Ia Constitucin", in Escritos de Derecho Constitucional, trad. Pedro Cruz Villalon, Madrid, Centro de Estdios Constitucionalcs, 1992.

    31. LASSALE, Ferdinand, i Que es una Constitucin?, trad. W. Roces, Buenos Aires, Siglo Vcintc, 1946.

    32. LASSALE, op. cit., p. 71.

    33. HESSE, op. cit., pp. 62/63: "La "constitucin real"y Ia 'constitucin jurdica ", (...) se hallan en una situacin de coordinacin correlativa. Se condicionan mutuamente, in ser simplemente dependiente Ia una de Ia outra; cabe decir que a Ia constitucin jurdica le corresponde una significacin autnoma, aunque sea solo relativa"

    34. HESSE, op. cit., p. 66.

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    jurdica e m suas dimenses hermenutica e, fundamentalmente, concreta - trata-se da metdica estruturante do Direito.

    A metdica estruturante do Direito funda-se e m quatro pilares fundamentais: dogmtica, metodologia, teoria da constituio e teoria da norma jurdica35. Ora, busca-se, para o momento, fundamentar u m eventual controle jurdico de polticas pblicas. M a s controle jurdico visto tradicionalmente como controle de normas jurdicas, exclusivamente. Isso traz dificuldades conceituais, quer e m relao ao conceito de polticas pblicas, quer e m relao ao conceito de norma jurdica, pois elas, muito embora estejam submetidas ao princpio da legalidade, no se apresentam exclusivamente sob a forma normativa. Da a importncia da teoria da norma desenvolvida por Friedrich Mller no bojo da metdica estruturante, vez que ela alarga o enquadramento jurdico-normativo das normas, permitindo da o controle das polticas pblicas, como se ver.

    Para a teoria da norma subjacente metdica estruturante, a norma no concebida como "esquema de interpretao da conduta humana"36, mas "Une norme juridique est un modele d'ordre structur et concrtement determine"*1 e m funo de u m determinado caso a ser resolvido, u m modelo de ordem, u m padro de motivao (Motivationsmuster) das decises de problemas. A distino entre a nonna e seu texto impede que a este seja legado, por si s, qualquer carter nonnativo, sendo-lhe atribuvel to somente a validade (Geltung), distinguindo as normas jurdicas das demais nonnas sociais, pois impe aos textos vlidos u m carter obrigatrio que pde tornar-se violncia atual mediante processos e instituies jurdico-polticas. Nesse sentido, a'validade no decorre da sua forma enquanto proposio lingstica, mas sim e somente das particularidades contextuais nas quais os textos vlidos esto inseridos, remontando-se aqui aos "jogos de linguagem", conforme desenvolvidos por Wittgenstein. Ainda, no se imagine que o prprio texto vlido que ser concretizado. Ora, a distino entre a nonna e seu texto impede que seja prefixado norma u m sentido unvoco - algum sentido s vem com o processo de concretizao a partir do caso submetido a exame, sendo precisamente essa concretizao a responsvel pela construo (estruturada) da normatividade.38 E a concretizao, por sua vez, significa a densificao dos preceitos jurdicos mediante a fuso de nonna e realidade na soluo de u m caso concreto.

    O processo de concretizao estruturada da norma tem incio a partir dos textos vlidos, que so tanto os limites mnimos quanto os limites mximos deste processo - no podem ser desconsiderados no seu incio, assim como ao seu fim no se

    35. M L L E R , Friedrich, Direito, Linguagem, Violncia. Elementos de uma Teoria Constitucional, v. 1, trad. Pctcr Ncumann, Porto Alegre, Srgio Antnio Fabris, 1995.

    36. KELSEN, op. cit., pp. 18 c s..

    37. MLLER, Mthode Juridique, op. cit., p. 201.

    38. MLLER, Mthode Juridique, op. cit., p. 187; c CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teria da Constituio, 2a cd., Coimbra, Livraria Almcdina, 1998, especialmente p. 1076: "A normatividade no uma "qualidade" da norma; o efeito do procedimento metdico de concretizao"

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    pode produzir algo absolutamente contrrio a eles. O jurista (Rechtsarbeiter), ao se deparar com u m caso prtico, toma u m ou vrios textos vlidos e elabora hipteses textuais (Normtexthypotesen) como ponto de partida para o processo de concretizao. Partindo dessas hipteses textuais, o jurista passa a recolher os elementos fticos, os dados da realidade que constituem o mbito ftio (Sachbereiche) que, por razes de economia de trabalho, reduzido e particularizado no mbito (ftico) do caso (Fallbereich) e, finalmente, no mbito (tambm ftico) da norma (Normbereiche). Paralelamente, o jurista elabora o programa da norma (Normprogram) a partir da interpretao dos elementos lingsticos pertinentes ao caso, compondo o que tradicionalmente se chamou de comando da norma,39 que no absolutamente vago nem absolutamente unvoco, indicando espaos de ao metodicamente dominveis nos quais o trabalho jurdico se desenvolve, podendo ser ento controlado e legitimado ou criticado. O programa uma espcie de filtro para a multiplicidade e a variedade de dados empricos.

    Para trabalhar o programa nonnativo, necessrio que o jurista recorca a recursos interpretativos que remontam, mas no se identificam, queles desenvolvidos por Savigny, quais sejam os critrios de interpretao gramatical-literal, sistemtico, teleolgico, histrico e gentico, sendo os trs primeiros diretamente referentes aos textos vlidos, ao passo que os dois ltimos so apenas indiretamente tangentes aos textos vlidos. Naturalmente, pode-se pensar numa hiptese de conflito entre estes critrios, o que no bem o caso, vez que todos tm de ser utilizados e m sincronia metdica como caso concreto. N o entanto, conforme Friedrich Mller, pode-se pensar n u m a hierarquia meramente relativa entre eles, e m regra prevalecendo os que diretamente se referem aos textos vlidos, na medida dessa referncia. O critrio gramatical-literal o que busca definir o sentido do comando, o mais estritamente relacionado aos textos vlidos, sendo, portanto, o maior responsvel por filtrar os aspectos fticos relevantes para a composio da norma. Ainda, este critrio interpretativo permite definir os limites iniciais e finais do processo de concretizao, pois fixa os limites dos textos apresentados. D e outro lado, o critrio de interpretao sistemtica enquadra o programa na totalidade do ordenamento jurdico, impondo uma concepo conjunta, globalizante e unitria do ordenamento jurdico. Por sua vez, o critrio teleolgico visa identificao do telos pretendido pela prescrio - este critrio sofre importantes restries, vez que pode deturpar o sentido literal do comando ao buscar-lhe uma finalidade ulterior. E m complemento, o critrio histrico de interpretao faz o contraponto entre os textos vlidos na atualidade e os textos que uma vez o precederam, identificando as mutaes e suas razes histricas, no se referindo direta n e m exclusivamente ao textos vlidos hipoteticamente selecionados. Finalmente, o critrio gentico trabalha apenas com textos no vlidos, tais como a doutrina, as exposies de motivos, discursos polticos e projetos legislativos. M a s os elementos

    39. Sintcticamcntc, MLLER, Mthode Juridique, op. cit., p. 195: "Ensuite, le juriste elabore le programme normatif(...) tire de Vinterpretation de 1'ensemble des donnes linguistiques. A l'aide de ce programme, il choisit enfin le champ normatif'(...), Ia composante objedive de Ia prescription juridique, au sein du champ d'espce".

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    tradicionais de interpretao no esgotam as necessidades argumentativas e interpretativas da metdica estruturante do Direito. Trata-se fundamentalmente, da interpretao conforme a constituio e do princpio da prevalncia e defesa dos direitos fundamentais.40 Estes dois critrios adicionais exigem uma interpretao material dos textos vlidos, introduzindo u m vis poltico-constitucional no processo de concretizao normativa.

    D e fato, a concretizao depende da conjuno entre programa e mbito normativos, produzindo-se uma norma jurdica: "Le programme normatifet le champ normatif composent ensemble Ia "normejuridique " qui doit treformule de manire abstreite etgnrale" 4I V-se, ento, que programa e mbito da norma formam, e m conjunto, a norma jurdica enquanto modelo de motivao de decises, ainda no se atingindo toda a concretude necessria para a deciso do problema, vez que a norma jurdica, embora j normativa, remanesce relativamente abstrata e geral por no se remeter, por enquanto, ao caso concreto. A partir deste ponto intennedirio representado pela norma jurdica, o jurista reporta-se diretamente ao caso concreto, fundindo-os absolutamente e m uma especfica norma-de-deciso (Entscheidungsnorm) para a soluo do .caso, desta feita absolutamente concreta e nonnativa. Logo, a nonnatividade enquanto capacidade de transfonnar a norma jurdica e m uma norma-de-deciso e, outrossim, remet-la e imput-la primeira,42 revela-se dialtica e faticamente determinvel. U m tal processo de concretizao demanda u m enquadramento hermenutico-filosfico adequado, pois rompe com as dicotomias jurdicas clssicas (ser/dever-ser, fato/norma e aplicao/interpretao jurdicas). Todo o processo de construo da norma pe Direito e trabalhador jurdico e m contato, esse ltimo necessariamente imerso e m uma tradio que se revela em pr-conceitos lingsticos e substanciais que orienta todo o processo de conhecimento que, por sua vez, desenvolve-se e m forma de "crculo hermenutico" ou "espiral hermenutica" (Heidegger/ Gadamer), constituindo uma estrutura ftico-normativa de sentido e m termos de pre-sena ontolgica.43 Nesse sentido, a concretizao hermenutico-circular do Direito

    40. H que se considerar, que, no que tange especificamente aos critrios constitucionais de interpretao, necessrio sempre rcmctcr-sc s Constituies concretas, pois cada uma delas traz princpios c caractersticas peculiares que devem ser levados cm conta. No obstante a particularidade das constituies concretas, possvel tratar alguns destes critrios de interpretao como genricos, tais como a interpretao conforme a constituio c a defesa dos direitos fundamentais.

    41. Mllcr, Mthode Juridique, op. cit., p. 45.

    42. Mllcr, Mthode Juridique, op. cit., p. 189: "La normativit est donc cette capacite prle aux normes juridiques de pouvoir tre transfrmes en normes-dcisions et de pouvoir alors justifier ces normes-dcisions pour autant que ces dernires peuvent, du point de vue de Ia mthode et du prncipe de l 'Etat de droit, leur tre impute".

    43.0 termo "pre-sena" c m nenhuma medida sinnimo de "existncia" ou de "presena", mas tem u m significado prximo do original "Dasein", que significa "ser a", traduzindo a noo do processo de constituio ontolgica do h o m e m c da humanidade, na medida cm que na pre-sena que o h o m e m constri seu mundo circundante, rclacionando-sc intimamente com o "scr-no-mundo" ("imweltsein") de Heidegger (Heidegger, op. cit., pp. 77 c s.).

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    no simplesmente a reduo de uma norma geral a uma norma particular, mas verdadeira construo e produo de uma norma jurdica no quadro de soluo de um problema dado.

    4. Fundamentao Metodolgica de um Controle Jurdico de Polticas Pblicas

    Chegou-se, enfim, ao ponto fulcral do estudo. Intenta-se, sobre os pressupostos at aqui assentados, demonstrar porque o controle jurdico de polticas pblicas somente possvel, em tennos metodolgicos, a partir da metdica estruturante do Direito. A metdica definida como u m mtodo de trabalho jurdico, e m que: "A funo do trabalho jurdico uma funo de deciso e dominao, de diferenciao e orientao da sociedade, de distribuio e compensao, de estabilizao e legitimao."^ Sua funo, enquanto mtodo de trabalho jurdico, pode ser explanada didaticamente emdois planos - e somente didaticamente existem tais dois planos, vez que na prtica so eles absolutamente indivisveis - quais sejam: (1) no plano jurdico a metdica uma tcnica de imputao, vez que permite formular u m mecanismo de conduo metdico-racional da deciso jurdica a uma norma; e (2) no plano poltico a metdica assume a funo de deslocar a responsabilidade pela deciso, pela orientao, pela distribuio, pela compensao e pela dominao subjetiva para instncias normatizantes de uma maneira regulannente aceita como plausvel. Naturalmente, esses dois planos somente podem ser diferenciados para fins de investigao, pois o Direito concreto no os diferencia: a deciso de uma questo apresentada como imputvel ao ordenamento ao passo que, simultaneamente, as conseqncias relativas ao sdito so alocadas na estrutura do Poder Judicirio ou na funo mesma do Poder Legislativo.

    Nesse sentido, a metdica estruturante do Direito permite confirmar o primeiro pr-conceito desta reflexo, qual seja a existncia de ura interstcio jurdico-poltico passvel de ser metdica e racionalmente trabalhado e controlado; a metdica, alis, confirma a necessidade de tal conexo. A Jurisprudncia assume uma funo no-s jurdica mas tambm, e quase que preponderantemente, uma funo poltica. E a Jurisprudncia somente o pode fazer no contexto metodolgico da metdica estruturante enquanto mtodo de trabalho jurdico alm do positivismo - de fato, o positivismo enquanto metodologia cientfica, i. e., a despeito de suas variantes e respectivas peculiaridades, no viabiliza qualquer discusso poltica, alis, mais ainda: no reconhece - e portanto, no pode controlar - as inegveis influncias empricas da Poltica sobre o Direito.

    Quanto ao segundo pr-conceito, qual seja, o Welfare State enquanto ponto de partida seguro, inegvel assumir a crise desse paradigma estatal e, por bvio, a relatividade desse pr-conceito terico. N o entanto, e aqui reside u m segundo ponto que pennite fortalecer e confinnar a metdica como nica via metodolgica para o controle poltico de polticas pblicas, tal crise metodologicamente assumida

    44. M L L E R , Friedrich, Direito, Linguagem e Violncia, op. cit., pp. 27/28.

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    e o Estado Social de Direito defendido contra redues e distores e m suas linhas essenciais: "Elle [a metdica estruturante] n 'entendpas tre seulement techniquement effetive mais en mme temps contribuer Ia legitimit de l 'Etatconstitutionnel. En ce sens ainsi precise, Ia rationalit n 'estpas seulement une condition de VEtat de droit, mais aussi de Ia dmocracie et de VEtat social."45 V-se que a metdica traz para o debate cientfico e metodolgico a racionalidade material do Estado Social, o que a faz intimamente relacionada aos direito sociais. Ainda, no que diz respeito concretizao da norma jurdica, o foco central da metdica sempre os direitos fundamentais, sendo eles fortemente marcados, na prtica, por elementos fticos,46 introduzindo-se ento, at m e s m o no sempre ortodoxo campo da teoria da norma, elementos que permitem traduzir o paradigma estatal social.

    E m funo disso, o vis tpico e poltico-constitucional da metdica toma-a apta a lidar com os elementos normativos tpicos do Welfare State e que, a despeito de todas as resistncias doutrinrias e jurisprudenciais apegadas ao purismo normativo, no so estritamente jurdicos, mas possuem uma carga poltico-econmica necessariamente aberta concretizao, e. g., os princpios e as nonnas chamadas "programticas."47 Portanto, o segundo pr-conceito, embora relativizado e m face das atuais tendncias tericas e polticas, pode ser (e, de fato, assim o ) defendido pela metdica que, contra todas essas recentes tendncias, efetivamente o assume como ponto de partida essencialmente inseguro, dispondo-se portanto a aplic-lo, mas tambm a question-lo e control-lo, como critrio de racionalidade jurdica. Essas so, a bem da verdade, as razes essenciais que permitem legar exclusivamente metdica estruturante do Direito a tarefa de justificar e prover subsdios tericos e metodolgicos para o controle jurdico de polticas pblicas que se prope48 Da porque somente se justifica o controle jurdico de polticas pblicas a partir da metdica estruturante do Direito. U m tal controle depende d incessante discusso acerca das relaes entre Poltica e Direito e da legitimidade democrtica do Estado Social de Direito, e s a metdica traz esses aspectos para o discurso cientfico e metodolgico do Direito como

    45. MLLER, Mthode Juridique, op. cit., p. 48.

    46. M L L E R , Mthode Juridique, op. cit., p. 66.

    47. Cabe fazer uma observao: as normas "programticas", simplesmente c sem qualquer sombra de dvida,, no existem. Toda "norma" jurdica ("norma" cm sentido positivista, i.c., equiparada a seu texto legal) demanda concretizao. As normas chamadas "programticas" somente constituem hipteses textuais mais abertas c mais propicias manifestao tpica do Direito, mas so normas to-vinculantcs c to-imperativas como todas as demais regras de qualquer ordenamento jurdico.

    48. M L L E R , Friedrich, Direito. Linguagem e Violncia, op. cit., p. 32: "Nessa configurao, o Estado de Direito possui funes, que no foram superadas historicamente (...) Ele deve ser defendido, notlast, contra as tendncias regressivas, (...) motivadas pela atualidade poltica. Essa (...) a pr-compreenso aqui proposta: no uma tendncia de no "questionar" o Estado de Direito: Muito ao contrrio: o Estado de Direto seria considerado deforma puramente tcnica, se s os modos do trabalho jurdico devessem ser descritos empiricamente (...) Ele "questionado "pela proposta de tratar a metdica jurdica coino totalidade de todas as indagaes segundo: funes - estruturas - modos de trabalho, i.e., pela proposta de simultaneamente questionar como tambm praticar o Estado de Direito".

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    fator de racionalidade e controle das decises jurdicas. Essa a essncia mesma do controle jurdico de polticas pblicas e da reforma proposta: inserir o Poder Judicirio na concretizao da vontade social-democrata presente na Constituio brasileira, o que, luz de tudo quanto at agora exposto, somente pode ser feito por meio da metdica estruturante do Direito, enquanto postura metodolgico-cientfica madura.

    5. Proposta de Reforma do Poder Judicirio Brasileiro

    Finalmente, tendo em vista todas as consideraes at aqui aduzidas e sedimentadas, resta observar com ateno a realidade judiciria brasileira no que diz respeito aos direitos sociais e s polticas pblicas para atestar-se a efetiva necessidade de u m a qualquer reforma que se pretenda, de forma a identificar as razes que nos levaram a formular a hiptese de reforma ora proposta. O arcabouo jurdico e institucional brasileiro tem de ser realmente insuficiente para justificar a reforma proposta. So essencialmente dois os mecanismos de defesa dos direitos sociais, a saber, o mandado de injuno e a ao declaratria de inconstitucionalidade por omisso, previstos constitucionalmente pelos art. 5o, inciso L X X I e art. 103, pargrafo 2o da Constituio Federal. No se trata de desenvolver profunda anlise de tais mecanismos de proteo constitucional, tarefa j muito bem desempenhada pela doutrina nacional, bastando u m a anlise estrutural de tais mecanismos para compreender a necessidade do controle jurdico de polticas pblicas na forma proposta, adiante delineada.

    O tenno "controle" tem u m significado reflexivo, pois pode desdobrar-se tanto para o futuro quanto para o passado, i. e., pode assumir tanto u m carter repressivo ao recair sobre fatos pretritos (que podem ser atos ou omisses), quanto u m carter preventivo e promocional ao projetar-se para uma atividade futura. Por outro lado, quanto s instncias procedimentais e luz do arcabouo jurdico brasileiro, pode o controle representar u m a ao individual ou coletiva.

    A luz dessas singelas consideraes, pode-se perceber claramente que o arsenal constitucional existente no Brasil s capaz de prover a proteo repressiva de direitos sociais, recaindo o controle individualmente ou coletivamente sobre omisses, cabendo mandado de injuno ou ao declaratria de inconstitucionalidade por omisso, conforme o caso. Esses mecanismos somente viabilizam o exerccio do controle aps configurado o dano ao sdito, a funo de tais institutos essencialmente reparatria e de pouca eficcia no que diz respeito implementao e efetivao de direito sociais.

    Quanto ao declaratria de constitucionalidade por omisso, no h . muito a ser considerado, vez que a prpria essncia da ao meramente declaratria, significando muito pouco no que diz respeito implementao de polticas pblicas para efetivar direitos sociais: o Poder Judicirio se restringe a, timidamente, comunicar a falncia dos direitos sociais aos rgos competentes, no havendo nada alm disso a ser feito.

    O grande ponto de discusso gravita e m tomo do mandado de injuno. Inspirado pelos writs ofinjunction do Common Law, notadamente pela affirmative

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    action e pela structural injunction, o mandado de injuno teve originalmente u m carter mandamental de implementao do direito pleiteado. Ora, de fato, tal remdio configuraria grande passo constitucional no sentido de promover e defender direitos sociais, vez que ensejaria a participao determinante do Judicirio na efetivao do direito desguarnecido. N o entanto, a jurisprudncia constitucional brasileira se encarregou de minar peremptoriamente a eficcia do dispositivo, entendendo tratar-se de nonna no auto-aplicvel e, como tal, incapaz de solucionar o caso concreto.49 E m adio, ainda que o entendimento jurisprudencial houvesse mantido o sentido original do mandado de injuno, ele no seria plenamente satisfatrio para implementar direitos sociais, pois os restringiria defesa individualizada dos direitos sociais, fazendo c o m que se perdesse a noo da necessria efetivao desses direitos mediante a implementao de polticas pblicas.

    Cabe agora, rapidamente, dizer uma palavra sobre a ao civil pblica. Embora ela seja, na prtica, usada para a defesa de direitos "coletivos" ela no representa, estritamente, u m instituto de defesa dos direitos sociais, pois destina-se a proteger o consumidor, o meio ambiente e demais interesses difusos e coletivos que, em verdade, no se identificam conceitualmente aos direitos sociais, econmicos e culturais. Alis, a recente medida provisria n. 2102-26 de 2000 incluiu pargrafo nico ao artigo primeiro da lei da ao civil pblica (Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985), excluindo expressamente a possibilidade de que se sirva do instituto para a defesa de direitos de natureza previdenciria e trabalhista - e m outras palavras, consumou a inutilidade da ao civil pblica na defesa de direitos sociais por excelncia.

    No-obstante tais consideraes, pouco desenvolvidas e tampouco sistematizadas, j que meramente estruturais, relativas aos referidos remdios constitucionais, no se h de negar que recentes avanos tm sido apresentados pelo Poder Judicirio brasileiro na defesa da coletividade. Mais ainda assim, at m e s m o tais avanos devem ser avaliados e criticados. Isso porque nesses parcos avanos, a jurisprudncia se move sem u m a orientao vetorial definida e consciente, isto , atua meio que s cegas, reagindo por vezes a presses polticas, por vezes a presses da opinio pblica. fato que e m tais circunstncias, muitas vezes os direitos sociais so efetivamente implementados de maneira satisfatria, mas isso no permite concluir pela existncia de uma orientao metodolgica e cientfica da Jurisprudncia brasileira, aproximando-se tais avanos de u m "pragmatismo sem direo"50 que configura

    49. Cf, paradigmaticamcntc, o mandado de injuno 107-3-DF, Rcl. Min. Moreira Alves, 23/11/89. Contrastante a experincia jurisprudencial norte-americana, podendo-sc apontar alguns casos exemplares: Brown v. Board ofEducation ofTopeka, de 1954, cm que o Chief Justice Warrcn decidiu pela implementao de poltica educacional para acabar com a segregao racial nas escolas, inclusive homogeneizando as grades curriculares; os casos Norman v. Baltimore & OhioRailroad, United States et. ai. v. Bankers Trust Co. et al.,Nortz v. United States c Perry v. United States, todos decididos uniformemente para consolidar poltica pblica financeira de estabilizao monetria no governo de Rooscvcll; c os Wyatt cases, c m que o Poder Judicirio do Alabama praticamente assumiu a administrao da rede hospitalar.

    50. M L L E R , Mtodos de Trabalho do Direito Constitucional, 2a cd., trad. Pctcr Naumann, So Paulo, Malheiros, 2000, pp. 37/38.

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    verdadeira serindipidade jurisprudencial e, portanto, muitas vezes sujeitos a confirmaes e desconfirmaes, fluxos e refluxos e guinadas tortuosas, justamente e m funo da ausncia de u m a slida orientao metodolgica consciente de si mesma.

    Aqui se situa a principal e derradeira justificativa para o controle jurdico de polticas pblicas conforme proposto: acabar com a serindipidade jurisprudencial ao fazer com que o Poder Judicirio tome conhecimento e conscincia das prprias funes que assumiu com a Constituio, de 1988, perante o Estado Social nacional no sentido de implementar os direitos sociais, econmicos e culturais mediante ativa participao na implementao de polticas pblicas. Somente coordenando o procedimento c om a metodologia e a ideologia subjacentes possvel haver uma autntica prxis constitucional. Isso o que se pretendeu com a presente proposta de refonna do Poder Judicirio brasileiro: aproxim-lo da implementao de polticas pblicas fazendo convergir, e m ltima instncia, prtica e ideologia constitucionais.

    E a aproximao que se pretende, se operada novamente de forma repressiva, de nada inovaria o ordenamento jurdico brasileiro, pelo menos no de forma plenamente satisfatria. O controle jurdico de polticas pblicas tipicamente preventivo, ou melhor, tal controle no se exerce em um singular determinado momento, mas constitui atividade constante de viglia da atividade governamental. Dessa fonna, insere-se tal controle no bojo do planejamento da atividade governamental, pois consiste precisamente na verificao e controle do cumprimento e da execuo dos programas de governo.51 No se trata de controlar apenas a higidez oramentria, o que pode ser feito atravs do procedimento legislativo ordinrio. Trata-se d verdadeiro e constante monitoramento da atividade governamental pelo Poder Judicirio. E tal monitoramento depende de uma Justia constitucional atuante.

    Nesse ponto reside mais uma crtica que pode ser feita ao Sistema Judicial brasileiro: a ausncia de u m tribunal constitucional responsvel exclusivamente pela concretizao da Constituio. Cabe ressaltar que a polmica e m tomo desse ponto especfico bastante acirrada, havendo quem defenda o Supremo Tribunal Federal como autntica Corte Constitucional brasileira e havendo tambm aqueles que no o reconhecem como tal.52 Sem adentrar nas mincias de tal polmica, o Supremo Tribunal Federal, apenas por deter competncia constitucional originria e m certas matrias, no se transforma e m tpico tribunal constitucional. Alm disso, acumula funes e competncias excessivas e no constitucionais, ao m e s m o tempo e m que, ao ser composto por nomeao do poder executivo, tem sua independncia poltica

    51. Cf. C O M P A R A T O , "Ensaio sobre o Juzo de Constitucionalidadc de Polticas Pblicas", op. cit.; bem como "A Organizao Constitucional da Funo Plancjadora", in Revista Trimestral de Direito Pblico, n." 8, So Paulo, 1994.

    52. SANCHES, Sidncy, "O Supremo Tribunal Federal do Brasil na Constituio de 1988", in VVAA, Legitimidade e Legitimao da Justia Constitucional, Lisboa, Coimbra Editora, 1995: "No h no Brasil uma Corte Constitucional propriamente dita (...)". E m oposio, V E L L O S O , Carlos, "O Supremo Tribunal Federal: Corto Constitucional" c "Do Poder Judicirio: organizao c competncia", in Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, ns. 192 (1993) c 200 (1995), respectivamente.

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    naturalmente posta e m questo, quando seu compromisso deveria ser exclusivamente a concretizao constitucional.

    C o m efeito, a insero do Poder Judicirio no processo de concretizao dos direitos sociais, econmicos e culturais, e m funo de seu inexorvel carter constitucional, tem que se dar mediante a prxis constitucional, e m outras palavras, por meio do desenvolvimento e atuao da Justia constitucional. E por mais distante de nossa realidade que u m a tal proposta possa parecer, foroso reconhecer o papel central desempenhado pelos tribunais de Justia constitucional no moderno Constitucionalismo.53 E a atuao da Justia constitucional possui, sempre, e de acordo com seu substrato metdico-estruturante, trs dimenses essenciais: uma dimenso institucional-normatizante, representada pelo processo desenvolvido conforme determinado trmite procedimental responsvel pelas decises; uma dimenso tpico-argumentativa, na medida e m que consubstancia uma atividade interpretativa e criativa do tribunal subjacente a cada deciso; e uma dimenso poltico-constitucional, pois sua atuao inexoravelmente jurdica e tambm poltica e, como tal, e m estrita consonncia com o governo e a atividade dos demais poderes do Estado.54

    Imediatamente surge a questo "Qui custodiei custodes?" quer dizer, saber a quem confiar o controle daqueles que controlaro as polticas pblicas, pois esse controle tambm no ser ilimitado. Sob pena de recair-se e m u m a regresso ao infinito, a melhor soluo ainda a apontada pela justia constitucional dos E U A , consistente na political question doctrine e no judicial selfrestraint que lhe inerente. Observe-se, entretanto, que "a doutrina das questes polticas no pode significar a existncia de questes constitucionais isentas de controlo" 55 apenas serve a balizar o controle evitando-o apenas nas situaes e m que ele caracterizar-se-ia uma efetiva ingerncia funcional, prejudicando a vida do Estado. D e fato, possvel identificar uma political question sempre que, disjuntivamente, no houver absolutamente, nenhuma norma constitucional aplicvel ao caso; ou dizer respeito a deciso do caso apenas e to-somente ao regime de competncias da diviso de poderes; ou ainda tratar-se de questo que, e m ltima anlise, deve ser decidida pelo eleitorado, diretamente.56 Claramente, no havendo instncia superior de controle, cabe aos membros do tribunal constitucional o judicial self-restraint, a conscincia de uma auto-conteno que situe o juiz em u m meio termo entre o ativismo e o contencionismo judiciais.57 Isso resume

    53. QUEIROZ, op. cit., p. 126.

    54. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1167.

    55. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1170.

    56. Cf. QUEIROZ, op. cit., p. 131.

    57. O ativismo judicial exacerbado efetivamente perigoso. Mas no uma caracterstica exclusiva do controle jurdico de polticas pblicas c da proposta aqui elaborada: um importante exemplo de ativismo judicial pode ser encontrado na jurisprudncia da Suprema Corte norte-americana no momento imediato implantao do New Deal de Rooscvclt, dessa feita cm sentido contrrio s inovaes trabalhistas c sociais implementadas pelo governo.

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    e demonstra como a prxis constitucional u m constante processo de legitimao, tanto da Justia constitucional e da prpria constituio como de cada uma de suas decises, o que, novamente, s faz sentir mais contundente a necessidade de pressupostos metdico-estruturantes para tanto.

    M a s poder-se-ia indagar pela natureza das polticas pblicas, quer dizer, procurar defini-las como atos administrativos ou leis, para ento mensurar o controle e, dessa sorte, limit-lo. Ora, para viabilizar o controle de polticas pblicas no necessrio, alis, absolutamente intil, buscar u m a estandartizao dogmtica das polticas pblicas. D e fato: "o acto ou constitucional ou-no o . (...) o acto encontra-se sujeito a um controle de constitucionalidade desde que para tanto se apresente como susceptvel de conformao normativa, ou seja, desde que se apresente como uma questo jurdica, como taljusticivel."$% Despiciendo classificar rigidamente as polticas pblicas como "atos administrativos" ou "nonnas": so atividades governamentais constitucionalmente vinculadas que devem ser captadas como o vetor estatal precpuo de realizao de Justia social, para ento formular-se u m problema jurdico-constitucional que carece ser decidido. E para determinar u m problema jurdico-constitucional absolutamente suficiente a political question doctrine, ou seja, no pode a poltica pblica sujeita a controle constituir-se uma questo exclusivamente no-jurdica, por exemplo, no se pode tratar de u m a situao no-respaldada constitucionalmente, b e m c o m o da competncia para tomar a iniciativa na implementao da referida poltica pblica, ou ainda questionar matrias essencialmente sujeitas ao voto popular.

    Finalmente e aps todas as concluses parciais apontadas, chega-se ao ponto final da especulao, talvez o mais ambicioso (e com certeza o menos otimista) deste estudo. Ressalte-se que no se trata de remodelar todo o Poder Judicirio brasileiro, mas to somente oferecer uma fonna de aproximao entre esse poder e as questes sociais. No se trata, outrossim, de imputar ao Poder Judicirio toda a responsabilidade pela efetivao dos direitos sociais, busca-se apenas romper com seu isolamento exacerbado e socialmente alienado, viabilizando o controle jurdico de polticas pblicas e a defesa individual contra omisses na efetivao de tais direitos. Eis ento, a seguir, as linhas mais gerais de proposta de hipottica emenda constitucional, de legeferenda, capaz de tornar o Poder Judicirio atuante na implementao de polticas pblicas para a efetivao de direitos sociais, consoante os preceitos cientfico-metodolgicos da metdica estruturante do Direito.

    Proposta de Emenda Constitucional (de legeferenda) Cria o Tribunal Constitucional do Brasil. D nova redao a dispositivos

    constitucionais. Revoga dispositivos constitucionais. Art. Io. O inciso L X X I do art. 5o da Constituio Federal passa a vigorar

    com a seguinte redao: " L X X I - conceder-se- mandado de injuno sempre que

    omisso normativa ou administrativa de qualquer rgo do Poder Pblico

    58. QUEIROZ, op. cit., p. 188.

  • O Controle Jurdico de Polticas Pblicas

    tornar invivel o exerccio dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes nacionalidade e cidadania, devendo ser o pedido plenamente provido pela via judicial no caso e m espcie; a) o mandado de injuno processa-se exclusivamente perante o Tribunal Constitucional do Brasil; b) o rito do mandado de injuno segue o rito do mandado de segurana."

    Art. 2o. O art. 92 da Constituio Federal passa a vigorar com a seguinte redao:

    "Art. 92. So rgos do Poder Judicirio: I) o Tribunal Constitucional; II) o Supremo Tribunal Federal; III o Superior Tribunal de Justia; IV) os Tribunais Regionais Federais e os Juizes Federais; V ) os Tribunais e Juizes do Trabalho; VI) os Tribunais e Juizes Eleitorais; VII) os Tribunais e Juizes Militares; e VII) os Tribunais e Juizes dos Estados e do Distrito Federal."

    Art. 3o. O art. 51 da Constituio Federal acrescido de u m inciso, com a seguinte redao:

    "Art. 51. Compete privativamente Cmara dos Deputados: C);

    VI) eleger os juizes do Tribunal Constitucional, nos termos do art. 101." Art. 4o. E criado o Tribunal Constitucional do Brasil, rgo

    integrante do Poder Judicirio. O Tribunal Constitucional ser composto e ter suas competncias estabelecidas nos termos dos artigos 100-A e 100-B da Constituio Federal, includos por esta Emenda e com a seguinte redao:

    "Art. 100-A. O Tribunal Constitucional do Brasil composto por nove juizes, eleitos pela Cmara dos Deputados pela maioria absoluta de seus membros, dentre bacharis em direito, pelo prazo de nove anos, sendo vedada a reeleio. Io. Cada u m tero dos juizes ser eleito mediante a escolha em lista trplice, apresentada, respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Ministrio Pblico da Unio e pela Ordem dos Advogados do Brasil; 2o. Cada u m tero dos juizes ser renovado a cada perodo de trs anos.

    Art. 100-B. Compete ao Tribunal Constitucional, privativa e exclusivamente, defender e concretizar a Constituio Federal, cabendo-lhe, e m deciso definitiva e inapelvel: I) processar e julgar originariamente: a) o mandado de injuno, nos termos do art. 5o, inciso LXXI; b) a ao direta de inconstitucionalidade de poltica pblica, e m funo de qualquer atividade ou omisso de qualquer rgo do Poder Pblico,

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    de carter normativo ou administrativo, que esteja em dissonncia com planejamento previamente estabelecido pelo rgo competente; 1) a sentena que julgar procedente a ao direta de inconstitucionalidade de polticas pblicas torna nula a atividade praticada e m dissonncia com o planejamento e vincula o rgo competente ao suprimento, e m noventa dias, da omisso inconstitucional; 2) so competentes para propor essa ao: I) a Mesa da Cmara dos Deputados; II) a Mesa do Senado Federal; III) a Mesa da Assemblia Legislativa; IV) o Procurador-Geral da Repblica; V ) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VI) Partido Poltico com representao no Congresso Nacional; e VII) Entidade de classe de mbito nacional, confederao sindical ou entidades para-estatais de mbito nacional. a) a ao direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e ao declaratria de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; b) o mandado de injuno, quando a elaborao da norma regulamentadora for atribuio do Presidente da Repblica, do Congresso Nacional, da Cmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da Unio, de u m dos Tribunais Superiores, ou do prprio Supremo Tribunal Federal; II) julgar, mediante recurso extraordinrio, as causas decididas em nica ou ltima instncia, quando a deciso recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituio; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar vlida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituio. Io. A argio de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituio, ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, na fonna da lei; 2o. A s decises definitivas demrito, proferidas pelo Tribunal Constitucional, nas aes de inconstitucionalidade de polticas pblicas, declaratrias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produziro eficcia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais rgos do Poder Pblico." Art. 5o. Revogam-se as alneas "a" e "q" do inciso I e os pargrafos1 primeiro e segundo do inciso III do art. 102, e a alnea "h" do inciso I do art. 105. Art. 6o. Esta Emenda Constitucional entra e m vigor na data de sua publicao.

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    6. Trs Objees Imediatas

    A primeira crtica a ser enfrentada est preponderantemente assentada no campo da Cincia Poltica. Formular-se-ia a crtica questionando-se a legitimidade democrtica dos juizes para o julgamento de polticas pblicas levadas a cabo pelo governo. Ora, argumentariam os contendores, u m tal controle jurdico conforme proposto constitui verdadeira afronta democracia, justamente por ser exclusividade de uma instituio no democraticamente eleita - o tribunal.

    Para restringir-se a democracia por qualquer maneira, antes necessrio compreend-la. O termo "democracia" alardeado aos quatro ventos, sendo utilizado de forma to abrangente e e m situaes to diversas entre si que acaba por esvaziar-se de sentido.59 A noo de democracia, e m funo desse uso despudorado, traz e m si u m a associao imediata que, se indubitavelmente importante, no pode ser assumida sem qualquer questionamento. C o m efeito, "democracia" traz a tiracolo a noo de representao poltica, sendo que tal convergncia remonta aos estudos utilitaristas de Stuart Mill - ora, nada mais bvio: se todo poder emana do povo mas, por razes prticas igualmente bvias, por ele no pode ser diretamente exercido e m u m a sociedade industrial, h que se socorrer do sistema representativo. A suplantao da monarquia, atravs das revolues liberais, trouxe a necessidade prtica da adoo do sistema da representao poltica no mundo ocidental que, consolidado e m u m a determinada moldura, fundou-se e m certos pontos centrais: a vontade dos representantes no necessariamente coincidente com a vontade dos representados e isso no a torna vinculada a estes, ao contrrio, garante a independncia da vontade representante perante a representada, sendo tal independncia garantida pelo voto e pela irrevogabilidade do mandato representativo. Toda essa estrutura garantida pela supremacia do Poder Legislativo no quadro da separao de poderes.

    E m funo da convergncia operada tanto pelo pensamento de Mill quanto pela ascenso burguesa, sistema representativo e democracia legitimavam-se reciprocamente, na medida em que u m somente era vivel pelo outro - impensvel democracia sem representao, sendo a recproca necessariamente verdadeira. H ainda uma ulterior associao, mais sutil que a primeira e que demanda maior ateno: por terem sido historicamente inaugurados no contexto das revolues liberais do sculo XVIII, democracia e sistema representativo no s passaram a implicar-se mutuamente mas, outrossim, foram absolutamente vinculados ao liberalismo, de forma que a democracia inevitavelmente trazia atrelada a si, na maioria das vezes, consideraes quanto representatividade e liberdade, fundamentalmente a liberdade em seu sentido

    59. Cf., a rcspcitovdo esvaziamento conceituai da democracia, SARTORI, Giovanni, Teoria Democrtica, trad. Francisco M . da Rocha Filho c Oswaldo Blois, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1965, pp. 22/23. C o m efeito, praticamente nenhum governo se auto-intitula "anti-democrtico" explicitamente, muito embora uma efetiva democracia seja realmente difcil de ser encontrada na prtica.

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    negativo (liberdade dos modernos).60 Mas no prudente j estancarmos neste ponto -tais consideraes ainda no satisfazem a atual delineao da democracia, sendo necessrio ir u m pouco mais alm. Ora, conceituahnente convergindo representao poltica e regime democrtico no bojo do liberalismo, o resultado forosamente uma concepo de democracia essencialmente individualista e (por que no diz-lo?) utilitarista, pois fundada e concebida de acordo com os preceitos tpicos do pensamento de Locke, Bentham e Stuart Mill: uma comunidade sob regime democrtico composta de indivduos essencialmente livres e iguais e que exercem o poder poltico votando e m seus representantes tambm livres e iguais.

    N o entanto, o controle jurdico de polticas pblicas se insere e m u m contexto substancialmente diverso dessa democracia individualista, embora tal viso ainda persista. Trata-se da democracia das sociedades de massa, na qual o indivduo sucumbe ante os mltiplos grupos de presso, destacando-se as oligarquias polticas enquanto focos centralizados de poder, pontuais e relativamente autnomos, o que, por sua vez, s faz exacerbar a discrepncia entre a vontade representante e a vontade representada. C