o conto de terror psicológico a lógica do suplemento em poe, gilman e akutagawa
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O CONTO DE TERROR PSICOLGICO: ALGICA DO SUPLEMENTO EM POE, GILMAN E
AKUTAGAWA
Nils Goran Skare1
RESUMO: Este artigo busca esclarecer o paradigma do conto de terrorpsicolgico atravs do estudo de trs de seus representantes: Poe, Gilmane Akutagawa. Unem-se dois eixos estruturantes: a partir de uma base
lacaniana, desenvolvem-se os conceitos de n borromeano e sua semitica;partindo da abordagem de Julia Kristeva, os modos de signicao.Localizamos ento os signicantes flicos e mestres em um conto de cadaautor, traamos paradigmas conforme os modos de signicao, aplicamosa analtica do n borromeano a esses modos e defendemos que a teoria o suplemento da narrativa. Feito isso, discutimos brevemente a natureza
paradoxal do suplemento, esboamos caractersticas da desconstruo econclumos.
PALAVRAS-CHAVE: Poe; Gilman; Akutagawa; Terror; Suplemento.
PSYCHOLOGICAL TERROR IN THE SHORT
STORY: THE LOGIC OF THE SUPPLEMENT IN
POE, GILMAN AND AKUTAGAWA
1Discente de C. Sociais e Letras na Universidade Federal do Paran UFPR; Editor e Tradutor deobras como as do poeta E. E. Cummings e do dramaturgo August Strindberg. E-mail: [email protected]
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Revista Cesumar Cincias Humanas e Sociais Aplicadas, v.16, n.2, p. 311-330, set./dez. 2011 - ISSN 1981-9951
312 O conto de terror psicolgico: a lgica do suplemento em poe, gilman e akutagawa
ABSTRACT: Current analysis deals with the paradigm of the short storyof psychological terror through the study of three of its most importantrepresentatives: Poe, Gilman and Akutagawa. Two structural axes are developed,or rather, Lacanian concepts with the development of the notions of theBorromean knot and its semiotics; and Julia Kristevas approach on the foursignifying modalities. The phallic and the master signiers in the short storiesby each author and the paradigms according to the signifying modalities arecharacterized. The analytics of the Borromean knot are applied to these practicesand the concept that theory is the supplement of narrative will be discussed.The paradoxical nature of the supplement will be briey discussed and certaincharacteristics of deconstruction will be forwarded.
KEYWORDS:Poe; Gilman; Akutagawa; Terror; Supplement.
INTRODUO
A histria de terror, embora possa ter algumas de suas razes traadas
at a Antiguidade, primordialmente um evento do mundo moderno,do qual explicita muitas caractersticas. O gnero a que denominamos
aqui de terror psicolgico diz mais respeito ao mundo interior do que
exterior, e se baseia menos no medo de um monstro do que no medo
da prpria monstruosidade humana: questes modernas, em suma. De
tal forma, propomo-nos a examinar melhor esse paradigma, usando para
tanto trs contos de trs autores diferentes. So: Berenice, de Edgar A. Poe,O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Gilman, eEngrenagens de Akutagawa
Ryunosuke.
Vamos pesquisar esses trs textos tendo por base alguns conceitos do
psicanalista francs Jacques Lacan e da terica literria Julia Kristeva. De
Lacan reteremos os conceitos do n borromeano, elemento central para
a compreenso de sua obra, e aspectos de sua semitica, principalmenteno que diz respeito ao signicante-flico e ao signicante-mestre. Com
Kristeva examinaremos o que ela chama de quatro prticas de signicao:
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a narrao, a meta-linguagem, a contemplao (ou teoria) e o texto-prtica.
Quanto aos trs contos, iremos localizar nele os signicantes-
flicos e mestres. Depois os analisaremos luz das modalidades designicao e por m defenderemos que a teoria o suplemento da
narrativa. Debateremos brevemente a questo, recorrendo aos trabalhos
de Jacques Derrida e concluiremos retraando nossos passos.
2 CONCEITOS PRELIMINARES
2.1 AO REDOR DE JACQUES LACAN
2.1.1 O N Borromeano e a Fantasia
Ao mesmo tempo simples em sua estrutura e vertiginosamentecomplexo em seu desenrolar analtico, o n borromeano a topologia
atravs da qual o psicanalista francs Jacques Lacan prope uma teoria
rigorosamente materialista do sujeito: a produtividade da ideia, capaz de
abordar um vasto conjunto de reas do conhecimento, enorme. O n
composto por trs elos, ou registros, interdependentes, a ponto de um
no poder existir sem os outros. Falamos do imaginrio, do simblico edo real. Aps estudar a obra de James Joyce, Lacan postular tambm o
sinthome, um elo especial com o propsito de manter a coeso das ordens e
assim evitar a psicose. Contudo, por ora nos deteremos nos trs primeiros
registros.
O imaginrio o domnio da alteridade subjetivamente apreensvel, do
outro com quem o sujeito consegue se identicar. Esse registro nos remeteao que Lacan denomina de estdio do espelho. De fato, em outros animais,
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como o gafanhoto ou a pomba, necessria a viso de outro espcime
ou at mesmo da prpria imagem reetida para mudanas siolgicas e/
ou etolgicas (passagem forma gregria, maturao das gnadas etc).Na criana humana o estdio do espelho comporta dois momentos:
primeiramente a alienao do ego; em um segundo instante, o velamento
dessa alienao sob a percepo de uma totalidade superior do sujeito.
A criana se julga mais completa do que ao se ver no espelho, o que
razo para visveis demonstraes de prazer.
O imaginrio o reino da imagem e da imaginao, da decepo edo engano. As principais iluses do imaginrio so as de totalidade,sntese, autonomia, dualidade e, acima de tudo, similaridade. Oimaginrio assim a ordem das aparncias superciais [...] (EVANS,1996, p. 84)
Nesse jogo de espelhos, de identicaes (narcsicas e por vezes
violentas) est o outro, com o minsculo. O imaginrio , portanto, o
terreno de um enfrentamento, e particularmente da criana com o pai, que
Lacan remete dialtica do Mestre e do Escravo da Fenomenologia do Esprito
de Hegel.
O simblico, por sua vez, o espao do Outro, com O maisculo.
A identicao do imaginrio se transforma em reconhecimento no
simblico, reconhecimento sob a Lei. O Outro sciossimblico uma
bateria de signicantes que estrutura a linguagem, o inconsciente, as
proibies legais; a identidade subjetiva est sempre enredilhada neste
jogo de palavras. Lacan introduziu a linguagem como fator central na
formao do Inconsciente e na Lei, e cumpre salientar sua incorporao
no desenvolvimento infantil. A criana passa do registro imaginrio ao
simblico com a aquisio da linguagem atravs da interao com Outros.
(COLES, 2008, p. 200)
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Em jogo entre as palavras, o desejo o desejo do homem o desejo
do Outro. (LACAN, 2001, p. 292). No terreno do simblico est esse
Outro inapreensvel; inidenticvel, justamente, apenas reconhecvel.O real, por sua vez, est alm da linguagem e, sendo o espao do trauma,
ameaa o indivduo, ameaa romper o anteparo de fantasia de cada um e
precipitar o indivduo na loucura. O real abisma. O Real aquilo que
expulso do sentido (sense); o impensvel. (FORRESTER, 1982, p. 16)
Dos trs registros, o real beira o impossvel, como se fosse sempre um
limite: ele no se confunde com a realidade.Um aparte sobre a fantasia: ela como um escudo que protege o sujeito
das invases do real, a fantasia verdadeiramente necessria, e no um
devaneio. a fantasia que permite ao desejo se sustentar: a cama
onde o desejo se deita, por assim dizer. A fantasia onde o sujeito pode
realizar, sem realizar, a sua doao como objeto ao Outro. (CARREIRA,
2009, p. 131) Cumpre tambm relevar, sem desenvolvermos, que a fantasia u-tpica.
2.1.2 Elementos Da Semitica Lacaniana
Para o linguista francs Ferdinand de Saussure, gura ineludvel na
histria da lingustica moderna e do estruturalismo como um todo, o signo composto pelo signicante e pelo signicado, to impensavelmente
indissociveis quanto dois lados de uma folha de papel (SAUSSURE,
2003). Lacan, por sua vez num movimento no de todo diferente da
inverso de Hegel por Marx, poderamos dizer postula o signicante
como o elemento primeiro, produtor do signicado.
Assim, os dois primeiros eixos de sua semitica so os da metfora eda metonmia.
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A metfora diz respeito s relaes chamadas de paradigmticas,
relaes in absentia, ligadas represso do inconsciente. Vale notar que
para Lacan somente a metfora gera um novo signicado. A metonmia,por sua vez, remete s relaes sintagmticas, relaes ditas in praesentia,
ligadas ao movimento do desejo.
A referncia da metfora ao tesouro da lngua, e a da metonmia aocontexto da mensagem. [...] Os jogos de signicante vo produzir osefeitos de signicado, e a funo potica, expressa principalmente na
substituio de um signicante por outro na metfora, que ir apontarpara o lugar do sujeito. (RUDGE, 1998, p. 106)
H dois signicantes especiais que precisam receber comentrios
um pouco mais detalhados. Referimo-nos ao signicante-flico e ao
signicante-mestre.
O falo (que, na obra de Freud ainda pode ser confundido com o pnis,
mas que em Lacan torna-se um signicante) diz respeito trade criana/
me/objeto-desejado. Quando a criana pequena, a me o Outro para
o infante. Mas a criana logo passa a perceber que algo falta para esse
Outro, isto , ela deseja algo. Esse algo que a me deseja geralmente o
pai, de modos que a criana acredita que ele possui o signicante flico. O
signicante flico encarna uma falta, [...] e assume a aparncia de ser o um
signicante que iria representar [...] por inteiro o sujeito. (FELDSTEIN,1997, p. 181) Diremos que o signicante-flico (representado pela letra
) imbudo dessa autoridade na medida em que corresponde a um
signicante cuja posse desejada.
Por m, preciso tratar do signicante-mestre. Toda ordem
sciossimblica incompleta, no sentido de que existe uma falta que
a torna perfeita. Esse signicante sempre um elemento real, ele um
pedao de nonsense materializado. um signicante sem signicado. Um
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signicante mestre qualquer signicante no qual um sujeito investiu sua
identidade [...] (BRACHER, 1997, p. 111) Ele representa um sujeito para
outro signicante e formalizado com o matema S(A).Tendo abordado aqui o n borromeano e a semitica de Lacan,
buscaremos mais alguns conceitos na obra da terica francesa Julia
Kristeva.
2.2 AO REDOR DE JULIA KRISTEVA
Jacques Lacan localiza quatro tipos de discurso em nossa sociedade:
o discurso da histrica, o discurso do mestre, o discurso do universitrio
e o discurso do analista (LACAN, 2001). De maneira anloga, Kristeva
distingue quatro prticas signicantes s quais ela denomina: narrao, meta-
linguagem, contemplao etexto-prtica. Uma prtica signicante um processo
que transforma a psique (BOV, 2006, p. 4), na medida em que o sujeito simblico/semitico. So atividades signicantes que existem dentro
de espaos sociais e, assim, so mais ou menos codicados de acordo
com os diferentes modos de produo desses espaos. Abordaremos mais
detidamente cada prtica de signicao.
2.2.1 Narrao
Na narrao prevalece a estrutura dicotmica, terreno das dades no-
disjuntivas como coloca a terica francesa, ainda que estejam dentro de
um molde rgido. A os dois termos so distintos, opostos e diferenciados.O continuum corpreo e ecolgico que atravessa o ncleo pulsional [da narrao]
assim articulado, uma estrutura dicotmica; a descontinuidade material
reduzida a correlaes de oposies [alto-baixo, bom-mau, dentro-fora] quedesenham a geograa, a temporalidade, a intriga, etc. (KRISTEVA, 1974, p. 86)
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As estruturas propriamente lingusticas dentro da narrao permanecem,
como diz a autora, normativas, obedecendo a uma gramaticalidade.
Dos relatos mticos ao jornalismo, passando pelo romance e o conto,
todas essas formas obedecem a essa prtica signicante; as diferenas
entre os gneros apenas apontam para matrizes de enunciao diferentes
de sentido. A narrao associada com situaes em que relaes de
parentesco dominam a vida social como um todo, diz respeito vida
psquica de indivduos que se identicam em termos de coordenadas
familiares. (CUTROFELLO, 2005, p.171). uma prtica de signicaoque interessa psicanlise, salientado-se a estrutura do dipo.
O destinatrio da narrao algum chamado a se reconhecer nos
vrios eus da narrao, destinatrio esse suposto por esse ponto axial.
Diremos em termos lacanianos, sem nos aprofundar, que uma narrativa
uma simbolizao do Real.
2.2.2 Meta-Linguagem
Na meta-lngua a dade pulsional reduzida positividade. Sua matriz
de enunciao, seu ponto axial o sujeito cartesiano, que apia suas
construes sujeito-predicado e silogsticas sobre o signo e seu sistema.
Esse sujeito (no s no sentido de sujeito cognoscente, mastambm de assujeitado) localizvel em funo das regras simblico-
lgicas do sistema. Ele sempre um annimo. E o destinatrio da
mensagem da meta-lngua um outro se como o se (ou ns) que
escreve impessoalmente.
Este o terreno da metafsica, de uma hierarquia que abarca as zonas
familiares.
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2.2.3 Contemplao
A contemplao (ou teoria) a prtica de signicao que une as dades,mas sem sintetiz-las. Para Kristeva, tanto a losoa, a religio quanto a
desconstruo estariam situadas nessa modalidade. Ela tpica de enclaves
dentro de sociedades hierrquicas, um discurso obsessivo/obcecado de
um sujeito. Essa prtica de signicao existe propriamente dentro dos
Aparelhos Ideolgicos de Estado (dos quais o terico Althusser).
2.2.4 O Texto
O textotraz um ritmo pulsional que atravessa o sujeito, alternando as
dades: a descontinuidade material aqui quntica, como diz a autora
francesa. Relacionado a uma formao hierarquicamente utuante, esse
ritmo pulsional alternado e imperioso envolve unidades de produo queenglobam e subsumem as famlias, subordinando-as s regras do grupo,
porm sem passar pelas regras da reproduo do cl.
Isso a que ns chamamos texto difere radicalmente do smile contemplativo:o binmio pulsional composto de dois termos opostos que ressurgemem alternncia, num ritmo sem clausura. Predominncia do negativo,da agressividade, da analidade, da morte, mas que atravessa toda tesesuscetvel de lhe dar sentido, passando alm e veiculando a positividadeem seu percurso. [...] A negatividade no se reica como falta ou realimpossvel: ela reintroduzida em cada real j colocado para o expor paraos outros [...]. (KRISTEVA, 1974, p. 94)
Essa prtica signicativa no exclui a narrao, a meta-lngua e/ou
a contemplao, mas sem parar neles, excede, vai alm, transforma-os.
Nas estruturas lingusticas as mudanas rtmicas, lexicais e/ou sintticasfazem oscilar as cadeias signicantes. O sujeito e o destinatrio dessa
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signicao so especiais.
Essa prtica do processo no tem destinatrio; ela no tem sujeito, quepudesse ser divisado, que poderia lhe compreender. Essa prtica no seenderea, ela traz tudo que faz parte do mesmo espao prtico: unidadeshumanas em processo. Feitas por um que todos, essa prtica no reclamapor todos que seriam Um, no provoca o devir-sujeito das massas; ela osinclui numa potncia de transformao, de subverso. (KRISTEVA, 1974,p. 96)
A operao essencial que, nesse modo de enunciao, domina oespao do sujeito em processo , para Julia Kristeva, uma operao de
juno de territrios, movimento em trs partes. Primeiramente, trata-se de
combinao: incluso, destacamento, encaixe de partes numa totalidade
de palavras, formas, sons, cores etc., desde que investidas pela pulso e somente
isso. Em segundo lugar, essas partes tornam-se signicantes de sujeitos,
ideologias, experincias etc. E em terceiro lugar, essa representao
explodida. Isso porque a carga pulsional que lhe inerente modica
a representao e a linguagem. Diremos em termos lacanianos, como
tampouco nos aprofundamos ao falarmos da narrao, que um texto um
reexo real do Real.
Tendo abordado esses conceitos preliminares a partir da obra de Jacques
Lacan e de Julia Kristeva, podemos nos aproximar de nossos contos.
3 POE, GILMAN, AKUTAGAWA
Edgar Allan Poe (1809 1849) um dos nomes inescapveis da
literatura de terror, tendo ajudar a consolidar a modalidade, bem como o
gnero de detetive e agurando-se como representante de uma legtima
literatura norte-americana com caractersticas prprias. Baudelaire, que lhe
traduziu O Corvo e outros poemas, compara-o a escritores como Hoffmann
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e Balzac (BAUDELAIRE, 1990). O conto Berenice, de Poe, que reunimos
aqui como exemplar do terror psicolgico, a histria contada por um
aristocrata que desenvolve monomania e que pretende se casar com suaprima, Berenice, que, por sua vez, desenvolveu epilepsia. Sua prima morre
ou cr-se que ela morre -, e o narrador, incnscio, viola seu tmulo e
lhe arranca os dentes, pelos quais desenvolvera uma xao patolgica; o
conto se encerra com um dos criados encontrando o narrador e contando-
lhe que sua noiva no estivera morta de fato.
Charlotte Perkins Gilman (1860 1935) foi escritora e militante porreformas sociais americana, e uma feminista em plena virada do sculo
XIX-XX. Sua obra mais conhecida o conto O Papel de Parede Amarelo, um
relato em primeira pessoa de uma mulher cujo marido, mdico, aluga uma
casa de veraneio para que ela se recupere de uma depresso ps-parto,
mantendo-a connada num quarto com o papel de parede do ttulo. Aos
poucos a narradora passa a alucinar com seu ambiente, e tragada pelapsicose. A obra contm, alm de uma crtica feminista, um libelo contra a
inumanidade do tratamento psiquitrico da poca.
Akutagawa Ryunosuke (1892 1927) tido como o pai do conto
japons moderno e um autor ao mesmo tempo popular e elogiado pela
crtica. Sua obra mais conhecida provavelmente o conto Rashomon, levado
s telas do cinema por Akira Kurosawa. So vrias as alegaes crticas deesquizofrenia e demncia em sua obra. EsteEngrenagens (1927) foi escrito
no mesmo ano em que o autor se suicidou, aos 35 anos. O personagem
do conto o prprio Akutagawa, que narra uma viagem, estada em hotel
e retorno para casa: nesse movimento, so vrias as coincidncias nefastas,
paranias e sofrimentos psquicos do autor/personagem, reminiscente do
dirio Inferno de August Strindberg.Nosso primeiro procedimento ser o de localizar o signicante-flico e
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o signicante mestre de cada uma desas histrias.
Edgar A. Poe Charlotte Gilman Akutagawa
Signicante flico - Berenice Papel de parede Mltiplos
Signicante-mestre S(A) Dentes Mulher A letra
Em Berenice, a personagem-ttulo o signicante que coloca em
movimento o desejo do narrador e organiza a partir dessa posio a
economia textual/libidinal do conto. O narrador exclama sobre sua beleza:
vvida sua imagem perante mim agora [...] Oh! Maravilhosa, fantstica
beleza! (POE, 1990, p. 9) Berenice estrutura o uxo desejante no texto.
Ao mesmo tempo os seus dentes so o signicante-mestre, sua viso, ao
contrrio, traumtica para o narrador: Quisera Deus que eu jamais os
tivesse contemplado, ou que fazendo-o, tivesse morrido! (POE, 1990, p.
12). a irrupo do pedao do Real, que, por sua vez, esgara a trama e
ameaa romper a histria como de fato o faz ao nal, quando os dentes
arrancados se esparramam pelo cho claramente sem que a palavra dente
seja mencionada.
Ler o conto comoler alegoricamente o corpo profanado de Berenice.
Em O Papel de Parede Amarelo, o signicante-flico o papel de parede
no quarto da mulher em processo de alienao. O papel de parederepete sua presena na histria (a repetio uma das caractersticas do
signicante-flico), desperta e sustenta o processo de enlouquecimento.
Ele paradoxal, transgride o pensamento. Estou realmente gostando do
quarto apesar do papel de parede. Talvez por causa do papel de parede.
(GILMAN, 1981, p. 10) Aos poucos ele vai se desvelando, e a contemplao
do signicante-flico em si leva loucura traumatizante do signicante-mestre: a narradora passa a acreditar que h uma mulher por trs do papel,
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mulher que sai e anda pela casa. A partir desse signicante est instaurada
a demncia da narradora, e digno de nota que a escolha de uma mulher
para ser a alucinao do Real por parte de Gilman confere uma possvelleitura feminista quem est por trs a Mulher (com M maisculo),
o signo-mulher daquilo que a sociedade acredita que uma mulher.
Ler o conto comoler alegoricamente a priso da mulher atrs de seu
papel.
EmEngrenagens, no h somente um nico signicante-flico, mas uma
multiplicidade deles. Assim, por exemplo, o narrador/autor ouve a histriade um fantasma que usava capa de chuva; mais tarde v um homem com
capa de chuva, seu cunhado se suicida usando uma capa etc. Ou ento a
palavra airplane, que surge na marca de um cigarro, coincidentemente
um avio sobrevoa, surge numa conversa etc. A rede de signicantes
tramada de modo que parece haver um destino oculto, um Outro
do Outro paranide e maligno que regeria aquele mundo, torturando oprotagonista. Ao mesmo tempo dizemos que o signicante-mestre a
letra. A letra a materialidade do discurso, a base material da linguagem.
O pedao do Real deEngrenagens sua prpria escritura. Que Akutagawa
escreva seu texto (pois este conto inquestionavelmente um texto no
sentido kristevaniano) em si o real de seu contexto.
Ler o conto ler a alienao psquica de seu autor.Comentamos o carter de texto do conto de Akutagawa. Podemos agora
retomar nossos trs contos analisando-os luz das categorias das prticas
signicantes .
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324 O conto de terror psicolgico: a lgica do suplemento em poe, gilman e akutagawa
Edgar A. Poe Charlotte Gilman Akutagawa
Narrao Tr-bido Acorren-tado Espect-ral
Meta-linguagem Ressa-bido Revol-tado Supernatu-ral
Contemplao Mr-bido Equidis-tado Tempo-ral
Texto R-bido Adoen-tado Lite-ral
O jogo com as palavras aqui justicado pela suspenso do simblico,
o reino dos signicantes, que cada um desses trs autores e tambm o
autor deste artigo realiza: o ldico , tambm ele, um jogo textual no
tabuleiro do simblico. Isto , h uma paradigma literal que percorre as
prticas signicantes desses textos (por isso a diviso que no obedece
necessariamente silbica). Desenvolvamos.
Em Berenice, o modo de narrar o conto propriamente tr-bido
que perturba; perturbado; escuro; nublado; turvo (LUFT, 1997) h
sempre uma impreciso, a sombra de uma ambiguidade que s culmina na
percepo nal da tragdia. O processo da meta-linguagem por sua vez
ressa-bido erudito (LUFT, 1997) na descrio que o autor faz de sua
cincia, citando nomes de lsofos, poetas e versos em latim e francs.
O modo de contemplar do texto mr-bido: o personagem se perde em
devaneios monomanacos a partir de pequenas coisas, e j principia o
conto com sua losoa de que o sofrimento o lote humano. Quanto ao
texto, ele r-bido, repleto de raiva e provocando medo, horror: a imagem
que por m se forma da leitura do texto essa o cadver profanado, o
texto profanado, um texto rbido.
Em Papel de Parede Amarelo, a narrao est acorren-tada, tudo que se
sucede precisa passar pelo crivo do marido da narradora, tudo na histria
est preso a algum constrangimento, um impossibilidade/impotncia: de
fato, a narrao poderia ser resumida a uma escrava que enlouquece.
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A meta-linguagem revol-tada, a protagonista no quer ser resumida,
subsumida a um ponto num sistema (machista, patriarcal, condescendente),
ou, melhor dizendo, por essa rendio que surge a alegoria de umapulso libertadora. Sua contemplao diz respeito a uma teoria que seria
equidis-tada, a utopia de uma igualdade entre os gneros para uma mulher
escravizada pela hierarquia masculina. A prtica do texto adoen-tada,
entendendo-se que as pulses que lhe atravessam apontam para uma
doena da ordem sciossimblica e no meramente da protagonista.
EmEngrenagens, a narrao espect-ral, ela diz de aparies incorpreas ede obsesses. A meta-linguagem supernatu-ral, a cincia questionada, as
explicaes racionais so o tempo todo minadas pela dana paranica dos
signicantes, de coincidncias e sincronicidades que no seriam naturais.
J a contemplao tempo-ral: a teoria a qual o narrador subscreve , em
tese, completamente materialista. O autor/narrador se recorda de ter
escrito numa revista: No tenho conscincia artstica; no tenho qualquerconscincia. Tenho apenas nervos. (AKUTAGAWA, 2007, p. 200) Essa
tenso entre a narrao e a contemplao gera possibilidades ambguas na
leitura da histria. Quanto ao texto, Akutagawa lite-ral, isto , seu texto
no representa as pulses que o atravessam, nem tampouco o texto
existe por qualquer outra razo que no ele prprio. Poderamos dizer: o
texto de Akutagawa .Retomando a segunda tabela, substituimos as entradas por categorias
borromeanas.
Edgar A. Poe Charlotte Gilman AkutagawaNarrao Simblico Simblico SimblicoMeta-linguagem Imaginrio Imaginrio Imaginrio
Contemplao Simblico Simblico SimblicoTexto Real Real Real
Diremos que os contos de Edgar A. Poe, Charlotte Gilman e Akutagawa
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Ryunosuke compartilham um mesmo paradigma, ajudando a delinear, sem
generalizarmos, uma conceituao do gnero do terror psicolgico. um
modelo onde a narrao simblica bem como sua teoria, onde sua meta-linguagem imaginria e seu texto real.
Dissemos (em 1.2.2) que, em termos lacanianos, uma narrativa uma
predicao simblica do Real, e tambm (em 1.2.4) que um texto um
reexo real do Real. J abordamos extensivamente a ideologia (entenda-se:
a meta-linguagem) como uma predicao imaginria do Real, o que no
ser necessrio desenvolver aqui. Queremos, portanto, abordar a prticade signicao da contemplao, da teoria.
Podemos agora formular nossa tese neste artigo: a teoria o suplemento
da narrativa.
4 DISCUSSO
Usamos a palavra suplemento e recorremos produtiva discusso ao
redor do termo (ser preciso no falar em conceito, o suplemento no
se deixa resumir assim) feita pelo lsofo francs Jacques Derrida (1930
2004), nome fundador da desconstruo.
O suplemento signica tanto uma adio quanto uma substituio.
Ao invs de opor A a B (...) a suplementaridade faz com que B sejaacrescentada a A e substituda por ele. (ATKINS, 1985, p. 22) Assim,
A e B no so nem opostos nem equivalentes um ao outro nem a
si mesmos. Quanto a essa espectralidade, esse rastejar invisvel do
suplemento, Derrida tece este comentrio:
a estranha essncia do suplemento a de no ter uma essncia; pode
no ter sempre acontecido. Alm disso, literalmente, nunca aconteceu:est sempre presente, aqui e agora. Como se fosse, no seria o que , umsuplemento [...] Menos do que nada e ainda assim, a julgar pelos seus
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efeitos, muito mais do que nada. O suplemento no nem uma presenanem uma ausncia. Nenhuma ontologia pode pensar sua operao.(DERRIDA, apud ROYLE, 2003, p. 50)
Uma consequncia da suplementaridade (que nunca anulada) que
no h um fora do texto. Um signicado que seria transcendental
nunca est fora de um sistema de diferenas.
Derrida elabora seu termo suplemento a partir de seu estudo Da
Gramatologia, onde aborda textos de Rousseau. Derrida considera que o
signo sempre diferente de si mesmo. O movimento do suplemento,
assim, gerado pela ausncia de um centro, de um transcendente. A
esse vazio caber um signo (temporariamente, fragilmente). Ele a estar,
mas no ser.
As noes de identidade e das dicotomias tradicionais (bem/mal,
mente/corpo, masculino/feminino) no resistem a essa suplementaridade
e seus rastros estremecedores. Podemos adiantar (sem esboar nenhum
ponto nal) algumas caractersticas da desconstruo.Em primeiro lugar: nenhum autor domina na totalidade o signicado
do seu texto, no h interesse ento em buscar a inteno autoral. E
nem tampouco os leitores dominam completamente suas leituras. Assim,
podemos estipular a desconstruo uma espcie de leitura crtica que
faa justia a isso, queproduza efeitos dessa estranha lgica.
Em segundo lugar: tambm uma traduo no secundria, mas umacondio do original. O trabalho potico (no sentido de poisis, fazer,
realizar) da traduo tambm um suplemento.
Em terceiro lugar: o suplemento tambm est nos posfcios,
introdues, anexos, em todas essas construes textuais.
Em quarto lugar: o movimento de identicao necessariamente
innito. No imaginrio, o suplementar.Em quinto lugar: tambm a meta-linguagem pode ser pensada em
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328 O conto de terror psicolgico: a lgica do suplemento em poe, gilman e akutagawa
termos de suplemento. Mesmo uma crtica tradicional literria, que inclui
um texto primrio (um poema, por exemplo) e um texto secundrio (a
crtica) opera segundo uma lgica de suplementaridade.
5 CONSIDERAES FINAIS
Neste artigo abordamos trs contos de terror psicolgico de trs autores
distintos: Edgar A. Poe, Charlotte Gilman e Akutagawa Ryunosuke. Para
tanto utilizamos conceitos de uma matriz devedora de Jacques Lacan eJulia Kristeva.
Vimos, numa primeira instncia, o n borromeano: o imaginrio, o
espao do outro ainda subjetivamente apreensvel; o simblico, o espao
do Outro, da linguagem e do inconsciente; e o real, o inefvel e espao
do traumtico. Vimos igualmente o signicante-flico, substituto do
signicante que a criana acredita que a me deseja, e o signicante-mestre,um pedao do real, um signicante sem signicado.
Abordamos depois a matriz de Kristeva, onde vimos os quatros modos
de signicao segundo ela: a narrativa, onde as dades pulsionais funcionam
dicotomicamente; a meta-linguagem, onde somente a positividade das
dades mantida; a contemplao ou teoria, onde as dades so unidas
mas sem sntese; e, por m, o texto-prtica, modalidade de signicaoque subsume e releva as outras, onde as dades pulsionais se alternam
ritmicamente, espao da poesia por excelncia.
No nosso estudo dos trs contos localizamos o signicante-flico e
o signicante-mestre. Em Berenice: a personagem-ttulo e os dentes; em
O Papel de Parede Amarelo, o papel de parede e a mulher alucinada; em
Engrenagens, mltiplos signicantes-flicos e, por signicante-mestre, a letra.Feito isso, elaboramos uma matriz com as quatro prticas de signicao
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de Kristeva em cada conto, e o descrevemos conforme essa diviso. Por
m retornamos a essa segunda matriz agora luz do n borromeano e
vimos que nos trs contos h o mesmo paradigma. Por m, postulamosque a teoria suplemento da narrativa.
Em nossa discusso abordamos algumas das caractersticas do
suplemento, tomando emprestadas algumas consideraes do lsofo
francs Jacques Derrida. Para Derrida a suplementaridade envolve uma
no equivalncia entre dois signicantes e tampouco uma identidade
deles consigo prprios Assim, no h um signicante transcendental numcentro, j que todo signicante precisa estar num sistema de diferenas.
Esboamos alguns pontos a serem desenvolvidos em estudos posteriores
da desconstruo e conclumos retraando nossos passos.
REFERNCIAS
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Recebido em: 16 Maro 2010
Aceito em: 12 Agosto 2011