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O COMPLEXO AGROINDUSTRIAL DA PECUÁRIA DE LEITE NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Daniela Helena Vieira de Lima Madanêlo Glaucio José Marafon RESUMO O Complexo Agroindustrial do Leite no Estado do Rio de Janeiro vem passando por intensas transformações, sobretudo a partir dos anos 90, quando uma série de mudanças de cunho político e econômico passaram a se desencadear. Tais transformações, que dizem respeito às formas de produção, comercialização e consumo, vêm afetando diretamente as áreas produtoras do país, e dentre elas, aquelas situadas no Estado do Rio de Janeiro. Em virtude do acelerado ritmo em que se desencadeiam estas mudanças (decorrentes da subordinação dos produtores às lógicas de mercado), os pequenos produtores passam a ser preferencialmente afetados, já que os novos padrões de exigência em relação à produção leiteira geram novas demandas e maiores necessidades em relação à disponibilidade de capitais a serem investidos. Com isto, as implicações sócio-espaciais em áreas produtoras do Estado do Rio de Janeiro tornam-se evidentes, assim como a conseqüente demanda de medidas que visem à criação de possibilidades de manutenção das parcelas da população ligadas a pecuária leiteira nesta atividade. PALAVRAS-CHAVE Complexo Agroindustrial; Pecuária de Leite; Estado do Rio de Janeiro INTRODUÇÃO A atividade leiteira no país, ao longo de todo o século XX, veio passando por transformações que viriam a caracterizar diferentes momentos em sua trajetória. O processo de “modernização da agricultura” a partir dos anos 50 e a conseqüente conformação dos Complexos Agroindustriais (CAI’s) na década de 70 no país promoveram mudanças nas estruturas produtivas do país, incluindo-se a atividade leiteira, que veio gradualmente inserindo-se nas novas lógicas de produção que se configuravam. A partir da década de 90, mudanças de cunho político e econômico ocorridas no Brasil afetaram novamente de forma significativa o setor produtivo leiteiro. Com isto, os impactos em áreas produtoras, como as localizadas no estado do Rio de Janeiro, foram evidentes e determinantes para as suas transformações sócio-espaciais. Estas puderam ser percebidas a partir de mudanças no âmbito da produção, da comercialização e do consumo, no momento em que novas imposições de mercado levariam muitos produtores à marginalização, ou até mesmo à exclusão do processo produtivo.

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O COMPLEXO AGROINDUSTRIAL DA PECUÁRIA DE LEITE NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Daniela Helena Vieira de Lima Madanêlo

Glaucio José Marafon RESUMO

O Complexo Agroindustrial do Leite no Estado do Rio de Janeiro vem passando por intensas transformações, sobretudo a partir dos anos 90, quando uma série de mudanças de cunho político e econômico passaram a se desencadear. Tais transformações, que dizem respeito às formas de produção, comercialização e consumo, vêm afetando diretamente as áreas produtoras do país, e dentre elas, aquelas situadas no Estado do Rio de Janeiro.

Em virtude do acelerado ritmo em que se desencadeiam estas mudanças (decorrentes da subordinação dos produtores às lógicas de mercado), os pequenos produtores passam a ser preferencialmente afetados, já que os novos padrões de exigência em relação à produção leiteira geram novas demandas e maiores necessidades em relação à disponibilidade de capitais a serem investidos. Com isto, as implicações sócio-espaciais em áreas produtoras do Estado do Rio de Janeiro tornam-se evidentes, assim como a conseqüente demanda de medidas que visem à criação de possibilidades de manutenção das parcelas da população ligadas a pecuária leiteira nesta atividade.

PALAVRAS-CHAVE

Complexo Agroindustrial; Pecuária de Leite; Estado do Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO

A atividade leiteira no país, ao longo de todo o século XX, veio passando por transformações que viriam a caracterizar diferentes momentos em sua trajetória. O processo de “modernização da agricultura” a partir dos anos 50 e a conseqüente conformação dos Complexos Agroindustriais (CAI’s) na década de 70 no país promoveram mudanças nas estruturas produtivas do país, incluindo-se a atividade leiteira, que veio gradualmente inserindo-se nas novas lógicas de produção que se configuravam.

A partir da década de 90, mudanças de cunho político e econômico ocorridas no Brasil afetaram novamente de forma significativa o setor produtivo leiteiro. Com isto, os impactos em áreas produtoras, como as localizadas no estado do Rio de Janeiro, foram evidentes e determinantes para as suas transformações sócio-espaciais. Estas puderam ser percebidas a partir de mudanças no âmbito da produção, da comercialização e do consumo, no momento em que novas imposições de mercado levariam muitos produtores à marginalização, ou até mesmo à exclusão do processo produtivo.

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Desta forma, busca-se compreender as transformações atuais que vêm ocorrendo na cadeia leiteira – sobretudo na década de 90 – bem como suas implicações sócio-espaciais no estado do Rio de Janeiro. E, assim, torna-se fundamental analisar os processos que vêm se desencadeando em escala nacional. Estas mudanças estão diretamente relacionadas a medidas de caráter político e econômico que se constituem, por sua vez, em reflexos de um contexto global, em que o papel do Estado vem gradualmente perdendo sua força.

Este trabalho tem como objetivo analisar a atual configuração espacial do Complexo Agroindustrial da pecuária de leite no estado do Rio de Janeiro, caracterizando-a e contextualizando-a, com destaque para as transformações ocorridas nas estruturas produtivas do país na década de 90. Para isto, a questão central deste trabalho é saber quais as principais implicações sócio-espaciais decorrentes das transformações recentes desencadeadas na década de 90 que afetaram o setor leiteiro nacional e que resultaram na atual conformação do CAI da pecuária de leite no estado do Rio de Janeiro. E desta questão desdobram-se outras: Como as transformações recentes na estruturas produtivas do país afetaram as relações agricultura-indústria – de um modo geral –, e como afetaram o setor leiteiro – especificamente?; Qual vem sendo o papel do Estado e suas políticas setoriais frente às mudanças que se desencadeiam?; Qual o papel do setor privado na configuração das novas dinâmicas produtivas?; Como comportam-se os produtores de leite, em especial os pequenos, frente às aceleradas transformações por que vem passando o setor leiteiro nacional, tomando-se como exemplo a atividade leiteira no estado do Rio de Janeiro?

Para a elaboração deste trabalho foram realizadas leituras em gabinete sobre assuntos pertinentes ao tema, bem como ampla coleta de dados, relativos ao setor leiteiro nacional, junto ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sobretudo no que diz respeito à atividade leiteira no estado do Rio de Janeiro. Além disto, foram realizados trabalhos de campo nas principais regiões produtoras do estado, entrevistando-se funcionários de escritórios regionais e locais da EMATER, de secretarias estaduais e prefeituras, bem como funcionários das principais cooperativas do estado, além de outras de menor porte.

I. OS COMPLEXOS AGROINDUSTRIAIS NO BRASIL: CONCEITUAÇÃO E REORGANIZAÇÃO1

Para efeitos de análise2, a noção de CAI pode ser compreendida a partir de duas concepções, ou formas de interpretação, diferenciadas. A primeira delas diz respeito ao entendimento de CAI como parte de uma estrutura maior, formada pelos complexos industriais de toda a economia. Esta concepção, adotada por Müller – entre outros estudiosos do assunto – resulta na noção de “macro” CAI e não remete à particularização dos complexos por gênero de cultivo, o que ocorrerá somente na segunda concepção, com a noção dos CAI’s “micro”.

O modelo de Complexo Agroindustrial utilizado nesta pesquisa será o do “micro” CAI, visto que o entendimento de cada um desses complexos com base em sua particularização por gênero de produção torna-se altamente relevante, uma vez que as formas de produção no setor 1 Capítulo elaborado com base em Marafon (1998a), Marafon (1998b), Mazzali (2000) e Marafon e Barbosa (2002). 2 De acordo com Graziano da Silva (1996), em trabalho realizado em co-autoria com Kageyama: “A agricultura brasileira hoje é uma estrutura complexa, heterogênea e multideterminada. Só se pode entendê-la a partir de seus elementos constitutivos (como os CAI’s, por exemplo), com suas dinâmicas específicas e interligadas aos setores industriais fornecedores de insumos e processadores de produtos agrícolas.” (Silva, 1996, p.5-6)

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agropecuário, bem como as de beneficiamento, são variáveis de acordo com cada gênero produzido, tendo portanto suas especificidades também no que se refere às formas de integração entre setor agropecuário e indústria, e recebendo ainda tratamento diferenciado no que diz respeito ao papel do Estado e suas políticas de atuação setorial. Isto cabe diretamente ao CAI do leite, com suas particularidades e conformação específica.

Desta forma, o CAI atua como importante via de análise, pois as contínuas e aceleradas transformações ocorridas em seu interior promovem o desencadeamento de impactos sócio-espaciais marcantes no espaço fluminense. Porém, para melhor compreendê-lo nos dias atuais, devemos levar em conta as novas formas de organização que vêm se configurando no interior das relações agricultura-indústria a partir dos anos 80, o que levou estudiosos do assunto, como Miranda Costa e Leonel Mazzali (2000), a afirmarem estar havendo uma perda do poder explicativo do conceito de CAI.

Neste sentido, devemos nos remeter aos anos 80 – quando da redução das intervenções do poder público no âmbito do desenvolvimento do setor agropecuário – passando em seguida pela década de 90 e suas transformações político-econômicas – que afetaram fortemente o setor agroindustrial – para, por fim, chegarmos ao atual padrão de estrutura em ‘redes’ que vem marcando o processo de reordenamento desencadeado na estrutura produtiva do país, atingindo as cadeias agroindustriais, dentre elas a leiteira.

Deste modo, enquanto na década de 60 o modelo de desenvolvimento do setor agropecuário implementava-se sob a égide do Estado, nos anos 80 com o cenário marcado pela crise fiscal, apontando para dívidas públicas e poupança pública negativa, este quadro se reverteu em virtude da redução do poder público frente ao seu papel regulador, paralelamente à conquista de mais autonomia por parte dos agentes econômicos (empresas) atuantes no setor agroindustrial.

Desta maneira, este setor, no pós-anos 90, encontra-se marcado pelo processo de reorganização das relações intra e inter-empresas, onde os segmentos agroindustriais sofrerão um processo de complexificação e dinamização, no que concerne às articulações entre diferentes elementos em seu interior. Isto fará com que as “novas” relações agricultura-indústria não devam ser compreendidas isoladamente, com base apenas em sua matriz insumo-produto sem que sejam levadas em conta as estratégias de ação que conferem dinamismo ao processo de reorganização produtiva implementado no setor agroindustrial. No caso da atividade leiteira, a concentração industrial, o aumento da concorrência entre empresas e a terceirização de atividades complementares foram marcantes no novo cenário que se configurava, marcando assim o processo de reorganização do interior do CAI leiteiro no país.

II. A ATIVIDADE LEITEIRA NO BRASIL 2.1. Os Anos 90 e as Principais Características da Atividade Leiteira no Brasil Atual

A produção brasileira de leite vem passando por intensas mudanças, tendo na década de 90 o principal marco temporal de suas transformações. Isto se deu pelo fato de uma nova fase na produção nacional ter se iniciado nesta década, tendo sido marcada por constantes mudanças que se estendem até os dias atuais.

Entre elas podemos citar, primeiramente, a liberação do preço do leite, em 1991, resultando na extinção de programas sociais que anteriormente se voltavam para o setor e que absorviam grande parte da produção de leite pasteurizado e em pó. Além disto, a ocorrência da abertura comercial, e especialmente a consolidação do Mercosul, provocaram a ampliação da

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importação de produtos lácteos, em função do acordo de liberação tarifária entre os países membros, aumentando assim a concorrência, e logo provocando mudanças nos diversos segmentos da cadeia leiteira. Este cenário da década de 90 também foi marcado pelo Plano Real em 1994, que promoveu a estabilização dos preços na economia brasileira.

Destaque importante, ainda nesta década, deve ser dado à ampliação do poder das multinacionais e às novas configurações nos processos de comercialização, com os supermercados assumindo importante papel, o que, num cenário marcado por estratégicas alianças no meio empresarial, gerou acirradas disputas, no que se refere à oferta e demanda do leite. Ou seja, em todos os segmentos da atividade leiteira nacional (do produtor ao consumidor, passando pela indústria e pela distribuição) ocorreram modificações advindas destas transformações desencadeadas na economia, e em especial no setor leiteiro brasileiro.

Também não podemos nos esquecer do aumento do nível de exigência em relação ao padrão de qualidade do leite, o que se deu em decorrência de fatores mencionados anteriormente, tais como a presença mais acentuada das multinacionais, o papel dos supermercados como postos de venda do leite Longa Vida, e a própria consolidação do Mercosul.

Hoje em dia, em termos de produtos da agropecuária brasileira, temos o leite como um dos mais importantes, encontrando-se à frente de produtos como o arroz e o café. De acordo com Carvalho et al (2004), dos 103,5 bilhões de reais, referentes ao valor bruto da produção agropecuária estimado para 2002, 41 bilhões são de produtos pecuários em geral, e destes, 6,6 bilhões são referentes ao leite. De 1985 a 1995, em termos de faturamento de produtos da indústria brasileira de alimentos, o produto lácteo apresentou um aumento de 248%, que se mostrou bem superior em relação aos demais segmentos, conforme pode ser observado no Quadro 1.

QUADRO 1: Faturamento de alguns segmentos da indústria brasileira de alimentos (US$ bilhões):

PRODUTOS 1985 1995 Variação (%)

Café, chá 4,7 8,3 76

Carnes 4,9 6,4 30 Óleo e gordura 4,9 6,9 41

Laticínio 2,9 9,9 248

Açúcar 2,3 4,2 85

Chocolate, cacau 1,3 1,8 40 TOTAL 21,0 37,5 78

Fonte: Vilela (1998), elaborado com base em ABIQ (1995).

A produção leiteira nacional, que ocupa hoje o sexto lugar em volume total no ranking mundial3, vem crescendo a uma taxa anual de 4%, superior a dos demais países que ocupam as 3 De acordo com Zoccal (2002), com base em dados da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations).

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primeiras posições. Esta produção responde por 66% do volume total do leite produzido pelos países componentes do Mercosul, de acordo com Carvalho et al (2004).

Nos últimos 25 anos, a produção de leite nacional teve um aumento de 150%, passando de aproximadamente 8 bilhões de litros em 1975 para mais de 21,5 bilhões em 2002, de acordo com dados do IBGE destes respectivos anos. No Gráfico I podemos observar o crescimento da produção referente a este período. GRÁFICO 1: Produção de Leite no Brasil

0

5

10

15

20

25

1975 1980 1985 1990 1995 2002

Bilhões de Litros

Fonte: IBGE – 1975, 1980, 1985, 1990, 1995, 2002.

Este crescimento ocorreu, de acordo com Zoccal et al (2002) dentre outros fatores, devido à abertura de novas fronteiras como Goiás, Rondônia, Mato Grosso, Sul do Pará, Triângulo Mineiro e Alto Parnaíba, entre outras. A produtividade também aumentou muito passando, de acordo com Vilela (1998), de cerca de 700 litros/vaca/ano, para cerca de 1.400 litros/vaca/ano, o que fez com que a produtividade anual chegasse a ser cinco vezes maior em algumas bacias leiteiras tradicionais e em propriedades com rebanho especializado, em relação aos dados referentes a meados da década de 70.

De acordo com Carvalho et al (2004), este panorama atual da produção tem contribuído para a alteração a médio prazo da condição de país importador de lácteos que vem sendo assumida pelo Brasil. Ainda de acordo com estes autores, é cada vez maior a tendência de se exportarem produtos pecuários – o que já vem ocorrendo – e entre estes o leite e seus derivados, já que este aumento anual da produção vem numa perspectiva de garantir excedentes de oferta. No mapa 1 podemos observar o desempenho dos estados brasileiros no ano de 2002:

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MAPA 1:

Fonte: IBGE, Pesquisa Pec uária Munic ipal, 2002.Org.: Madanêlo, 2004

Legenda:0 a 300 milhões301 a 600 milhões601 a 900 milhões901 a 3000 milhões

Produção Leiteira no Brasil - 2002

Porém, este fenômeno merece um cuidado especial, sobretudo no que diz respeito às

interferências diretas e indiretas que trarão para o pequeno produtor, num contexto de elevação do padrão de qualidade e oscilação de preços, o que é preocupante frente à carência de políticas de auxílio a este segmento fragilizado da cadeia leiteira. Neste sentido, reconhecemos que os agentes atuantes no setor lácteo devem adaptar-se às constantes necessidades de transformação e modernização da produção, com vistas a atender às exigências de um mercado globalizado, onde padrão de qualidade, flexibilização na produção (oferta de produtos com maior valor agregado) e concentração da indústria são características marcantes. De acordo com Vilela et al (1998, p. 268), referindo-se à indústria:

À medida que este setor se desenvolve, sua verticalização e sua especialização ampliam-se, agregando mais valor aos produtos elaborados. Nesse processo evolutivo, cresce a

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disputa no mercado, exigindo mais eficiência e competitividade para sobrevivência nesse ambiente.

Na cadeia de lácteos, os maiores investimentos no setor estão associados em geral aos

grandes produtores, ocorrendo um esquecimento em relação aos pequenos e médios. Isto se deve à falta de recursos e dificuldades de obtenção de crédito por parte dos mesmos, o que está relacionado à carência de auxílios por parte dos governos. Isto vale não só para a cadeia leiteira, mas para o setor agropecuário nacional como um todo.

Ainda com relação às mudanças desencadeadas no Complexo Agroindustrial Leiteiro a partir dos anos 90, verificamos que, apesar da tradição de país importador de leite (chegando a 30% do consumo interno no início da década de 90), a partir de 1999 o Brasil passou a adquirir uma nova tendência – conforme pode ser observado no Quadro II – que aponta para uma evolução na receita com exportações, em paralelo à redução dos gastos com importação. QUADRO 2: Exportações e Importações de Leite e Derivados pelo Brasil, 1997/2002:

Exportações Importações

Ano Mil kg US$ 1000 FOB Mil kg US$ 1000 FOB

1997 4.304 9.410 318.748 454.669

1998 3.000 8.105 384.174 508.907

1999 4.398 7.520 383.674 439.951

2000 8.928 13.361 307.062 373.100

2001 19.371 25.030 141.188 178.610

2002* 21.053 23.707 132.163 153.247

* De janeiro a julho de 2002 Fonte: Retirado de www.cnpgl.embrapa.br/sistema/cerrado/mercados.html, elaborado com base em MDIC Alice Web. Data de acesso: 16 de janeiro de 2004.

Com as mudanças do início da década de 90 (abertura da economia, liberação de preços e

o Plano Real), ocorreram relevantes modificações no CAI do Leite no país, tais como o aumento de investimentos no setor e crescimento do mercado consumidor e da produção. Este momento foi marcado pelo aumento do interesse de grandes empresas internacionais em investirem no

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setor leiteiro nacional, o que promoveu uma grande concentração da indústria4, já que muitos laticínios nacionais foram sendo incorporados a estas empresas. Esta tendência, que pôde ser observada desde a década de 70, acentuou-se consideravelmente nos anos 90, elevando o poder de negociação das mesmas junto aos produtores e consumidores.

Outro aspecto marcante foi o aumento do consumo de produtos lácteos, que se deu por diversos fatores, tais como crescimento populacional, aumento do poder de compra por parte de alguns segmentos da população5, e até mesmo algumas mudanças ocorridas nos hábitos alimentares, sobretudo com a maior variedade de produtos lácteos com maior valor agregado, que ganham a preferência de grande parte da população. O leite Longa Vida e produtos como queijos e iogurtes por exemplo foram os que apresentaram estes maiores índices, conforme pode ser observado no Quadro 3. QUADRO 3: Variações na venda e nos preços de derivados de leite (1996 – 1998):

Produto lácteo Vendas (%) Preços (%) Leite asséptico 106 -11 Leite flavorizado 43 -8 Petit-suisse 35 -15 Creme de leite 27 -12 Sobremesas gelificadas 23 -6 Iogurte 19 -14 Leite condensado 18 -10 Leite em pó 9 -21 Doce de leite 8 -16

Fonte: Acnielsen (1998), citado por Martins (2001), retirado de www.cnpgl.embrapa.br/sistema/cerrado/mercados.html. Data de acesso: 16 de janeiro de 2004.

Neste sentido, torna-se clara uma transformação no interior do CAI leiteiro, a qual se dá

em função do consumo final, já que a indústria de transformação é responsável pela consolidação do segmento de mercado, e ao mesmo tempo oferta seus produtos, de acordo com os índices de consumo.

Esta transformação, diretamente relacionada às mudanças desencadeadas no setor agroindustrial nacional a partir da abertura dos mercados, trouxe conseqüências não só para o segmento ‘agroindústria’, no que se refere à cadeia leiteira, como também para os demais

4 De acordo com Stevanato (2002, p. 21), com base em dados obtidos a partir da EMBRAPA: “Um pequeno número de empresas nacionais e multinacionais constitui a maior parte da indústria de processamento e comercialização.” Ainda de acordo com esta autora, destas empresas, as 12 maiores, incluindo-se a Parmalat e a Nestlé, são responsáveis por mais da metade da produção formal nacional. 5 Isto ocorreu sobretudo no início do Plano Real, devido ao imediato aumento do poder de compra, que decairia posteriormente. De acordo com Carvalho et al, nos últimos 25 anos o salário mínimo reduziu o equivalente R$ 9,00, enquanto o preço dos produtos aumentou consideravelmente.

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segmentos da mesma. Com relação à indústria a montante, ou indústria para agricultura, esta pôde ganhar maior dinamismo devido aos avanços em pesquisa e desenvolvimento – apoiados pelo governo federal e pelas grandes indústrias – que visavam conferir incremento e melhorias à produção, que, por sua vez, tendo seu nível de qualidade exigida aumentado, proporcionou aos produtores mais capitalizados a possibilidade de modernizarem-se e inserirem-se nestas novas lógicas de mercado. Enquanto isso, a pequena produção, neste novo contexto, encontrava-se marginalizada em relação às políticas de fomento, e excluída deste contínuo processo de modernização da produção. 2.2. Caracterização do Setor Leiteiro nos anos 90 no Brasil

A partir da década de 90, a produção do país tem crescido consideravelmente, apesar da

permanência de uma série de problemas que vêm afetando este setor há muitos anos, como a prevalência da produtividade relativamente baixa, por conta de questões de caráter técnico, político e socioeconômico. Sendo assim, as políticas de preços instáveis, a alta carga tributária, e o alto custo de produção, juntamente com o debilitado potencial genético da maioria do rebanho, problemas de ordem sanitária e a deficiência alimentar agravam ainda mais esta difícil situação.

Segundo Vilela (1998), a baixa produtividade da terra (menor que 800 litros/hectare/ano), da mão-de-obra (menor que 100 litros/dia/homem) e do capital (menor que 1.000 litros/vaca/lactação) marca o quadro da produção brasileira de leite. E, com relação a isto, sabemos que a falta de políticas direcionadas ao setor leiteiro limita a produção, a qual se apresenta muito abaixo da capacidade em potencial que o país dispõe para produzir.

Dos problemas mais aparentes na cadeia do leite podemos citar a instabilidade da renda do produtor, a qual se deve, sobretudo, à sazonalidade da produção, às demandas de consumo e à instabilidade nos preços do leite. Neste caso, mesmo o produtor tecnificado/modernizado, que se caracteriza por produção e custos estáveis durante o ano, prejudica-se em função das variações estacionais no preço do leite. Por outro lado, o mercado também é afetado, já que, apesar de a oferta ser maior no período das águas, a demanda é constante, o que, além de promover um acirramento das disputas por lucros, pode também, por outro lado, promover um aumento nos preços dos laticínios.

Outro problema relacionado à instabilidade de preços do produto é a questão do custo de processamento, que já é por natureza mais elevado que o custo em países como Uruguai e Argentina, não variando em função dos preços do mercado interferindo na condição dos produtores.

Um dos fatores que dificultam a inserção da pequena produção no mercado é justamente este alto custo de produção, que faz com que este tipo de produtor muitas vezes obtenha um leite cuja qualidade apresenta-se muito aquém daquelas que condizem com os padrões mercadológicos de exigência, cada vez mais rigorosos.

A má qualidade do leite brasileiro – no que se refere aos baixos níveis de higiene na produção e no armazenamento, sem contar com a significativa queda nos índices de produtividade nos períodos de seca –, apontada por estudiosos (a exemplo de Vilela et al) como um dos mais graves problemas nacionais do setor, tem sido alvo de medidas que visam solucioná-la, como será melhor explicado adiante. Porém, por outro lado, estas mesmas medidas

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vêm excluindo os pequenos produtores (que representam a maior parte dos produtores do país), já que não existe auxílio efetivo que garanta sua permanência no mercado6.

Neste contexto, o aumento do padrão de qualidade do produto – um dos maiores entraves à manutenção dos pequenos produtores no setor leiteiro atualmente – ocorre em função da disputa por mercados no âmbito das grandes empresas, repercutindo diretamente na qualidade da produção dos grandes produtores e na dinâmica das cooperativas, para, por fim, repercutir no âmbito da pequena produção. De acordo com Vilela et al (1998, p.266):

A principal conseqüência das mudanças em curso foi o aumento da concorrência, tanto na compra da matéria-prima quanto na venda de leite e derivados. Para enfrentar o aumento da concorrência na captação de leite, a indústria pratica uma política de pagamento ao produtor, a qual considera um preço-base mais bonificações por volume e qualidade. Com essa estratégia, busca-se atrair os maiores produtores. Nessa mesma linha está o programa que facilita a colocação de resfriador de leite nas fazendas, o qual é, em geral, financiado pela indústria e pago com a moeda-leite, num prazo médio de três anos.

Estas estratégias utilizadas pelas indústrias transformadoras visam garantir a melhor

qualidade da matéria-prima por elas captada, o que denota, assim, a crescente exclusão dos menores produtores, descapitalizados. Por outro lado, as precárias condições de higiene do armazenamento e transporte do leite em latões levou à necessidade de adoção de políticas que visassem a melhoria da qualidade deste produto.

Desta forma, as relações de produção determinam um espaço marcado pela marginalização e exclusão social, já que as condições de disputa em relação aos elementos anteriormente mencionados são por demais díspares, o que se torna ainda mais agravado em função da ineficiência das políticas públicas efetivas voltadas à pequena produção.

III. O COMPLEXO AGROINDUSTRIAL DA PECUÁRIA DE LEITE NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: TRANSFORMAÇÕES RECENTES NA INDÚSTRIA E NA PRODUÇÃO

Inserida no atual contexto de mudanças por que veio passando o setor leiteiro no país, a

atividade leiteira no estado do Rio de Janeiro passa a sofrer uma série de transformações no que diz respeito às novas condições de produção e comercialização impostas aos produtores, o que contribuirá em grande parte na definição e conformação do papel desempenhado pelas cooperativas do estado nos dias de hoje.

Atualmente, podemos dizer que são grandes as diferenças na dinâmica da produção de leite encontradas entre as duas maiores regiões produtoras do estado: o Médio Vale do Paraíba e o Noroeste Fluminense (mapa 2), a começar pelo sistema cooperativista.

6 Temos as políticas de bonificação por qualidade microbiológica da produção, bem como o armazenamento e transporte do leite resfriado (granelização), como algumas das medidas excludentes adotadas com relação à atividade leiteira nacional.

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MAPA 2:

São Franciscode Itabapoana

ItalvaSão José de Ubá

Itaperuna

Natividade

Porciúncula

Varre-Sai

Bom Jesusdo Itabapoana

Miracema

Laje doMuriaé

São Joãoda Barra

São Fidélis

Cardoso MoreiraCambuci

Aperibé

Santo Antôniode Pádua

Macuco

Campos dos Goytacazes

CarmoCantagalo

Santa Maria Madalena

São Sebastiãodo Alto

Itaocara

Macaé

Trajano de MoraisConceiçãode Macabu

Carapebus

Quissamã

Nova Friburgo

Sumidouro

Duas Barras

Bom Jardim

Cordeiro

IguabaGrande

S.Pedroda Aldeia

Cabo Frio

Arraial do Cabo

Cachoeirasde Macacu

São Gonçalo

Niterói MaricáSaquarema

Rio Bonito Araruama

Silva Jardim

Casimiro de AbreuRio das Ostras

Magé

Guapimirim

Itaboraí Tanguá Armação de Búzios

S. José do Valedo Rio Preto

ArealParaíba do Sul

Rio Claro

Itaguaí

SeropédicaQueimados

Japeri

Duquede Caxias

Engº Paulode Frontin

Mendes

Paracambi

Rio das Flores

VassourasPaty do Alferes

Petrópolis

Teresópolis

Nilópolis

S. Joãode Meriti

Belford Roxo

Piraí

Rio de JaneiroMangaratiba

Miguel PereiraBarra do Piraí

NovaIguaçu

Barra MansaPinheiral

PortoReal

Resende

Angra dos Reis

Valença

Itatiaia

Quatis

Parati

Com. Levy Gasparian

Três Rios

Sapucaia

VoltaRedonda

Fonte: IBGE - Pesquisa Pecuária Municipal, 2002.Org.: Madanêlo, 2004.

0 10 30 50 Km

ATLÂNTICOOCEANO

SÃO PAULO

MINAS GERAIS

ESPÍRITO SANTO

Produção de Leite no Estado do Rio de Janeiro - 2002 (mil litros/ano)

Legenda:0 a 4000

4001 a 80008001 a 1200012001 a 16000

A Cooperativa Agropecuária de Barra Mansa, situada na região do Médio Vale do

Paraíba Fluminense é a maior de todo o estado, captando, atualmente, uma média de 120 mil litros de leite por dia7 de aproximadamente 1.000 associados, dos quais 80% são pequenos produtores. Esta cooperativa repassa cerca de 5 a 10% de sua produção diária para a empresa Nestlé – atual Nestlé D.P.A. (Dairy Partiners Américas)8, tendo, portanto, autonomia sobre o restante da mesma.

Em termos de beneficiamento e agregação de valor ao produto ‘in natura’ a Cooperativa Agropecuária de Barra Mansa, que produz queijos, iogurte, manteiga, doce de leite, bebidas lácteas, e leite “barriga-mole”, é a única cooperativa do estado que produz também o leite Longa Vida. Isto ocorre em virtude desta possuir o aval da empresa monopolizadora deste tipo de embalagem: a Tetra Pak, ficando, portanto, condicionada a pagar os preços pela mesma conforme lhe forem impostos.

7 De acordo com informações obtidas através de entrevistas realizadas com funcionários da Cooperativa Agropecuária de Barra Mansa em julho de 2003, este volume tende a crescer, já que esta cooperativa visa atingir um total de 200 mil litros diários captados, capacidade maior que a vigente quando da data da entrevista. 8 Cabe mencionar que grande parte da produção captada pela Nestlé provém da Cooperativa Agropecuária de Amparo, também em Barra Mansa, que repassa a ela 90% de um total de pouco mais de 10 mil litros diários.

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Desta forma, a Cooperativa Agropecuária de Barra Mansa passa a possuir sua maquinaria financiada por esta empresa, o que explica em grande parte o seu destaque em termos de produção e abrangência de mercados. Por outro lado, isto aumenta ainda mais as exigências em relação ao leite comprado do produtor, além de retirar parte da autonomia da cooperativa em relação à transformação da matéria-prima, absorção de segmentos específicos de mercado e controle dos lucros, descentralizando, de um modo geral, o seu poder administrativo. Um exemplo de mudança vigente, em relação ao controle do beneficiamento diz respeito ao leite “barriga-mole”, que vem perdendo cada vez mais seu mercado para o leite em caixa, com maior aceitação nos supermercados e demais postos de venda.9 De acordo com dados obtidos a partir de trabalho de campo realizado em julho de 2003, dos 120 mil litros diários que a cooperativa recebe 100 mil são destinados à produção de Longa Vidas e apenas 8 mil de “barrigas-mole”, os quais atingem apenas o mercado dos pequenos estabelecimentos, como padarias e mercearias. Com relação à área de abrangência alcançada por esta cooperativa, vimos que ela é extensa no que concerne à atividade leiteira e suas consideráveis proporções em relação à escala estadual, em termos de áreas de captação de matéria-prima. Os municípios do estado do Rio de Janeiro polarizados pela cooperativa são: o próprio município de Barra Mansa, além de Piraí, Rio Claro, Volta Redonda, Barra do Piraí, Quatis, Porto Real, Resende, Paraíba do Sul e Rio das Flores, sendo o leite, nestes dois últimos municípios, captado diretamente de suas cooperativas. Além destes mencionados, o alcance da cooperativa também estende-se a alguns municípios de Minas Gerais e de São Paulo. Isto se deve em grande parte à proximidade destes com o estado do Rio de Janeiro, bem como aos preços ofertados pela cooperativa. Com relação à comercialização de seus produtos finais, esta cooperativa abrange amplos mercados no estado, tendo maior alcance do que a CAPIL em virtude do maior nível de modernização de suas instalações e da sua maior preocupação em atender aos padrões mercadológicos de exigência em relação à qualidade de seus produtos, aceitos não só em pequenos postos de venda, como em supermercados de municípios do Médio Vale do Paraíba Fluminense e da Região Metropolitana do estado, inclusive o município do Rio de Janeiro.

Já com relação à CAPIL (Cooperativa Agropecuária de Itaperuna Ltda.), podemos dizer que sua relação travada ao longo dos anos com a Fleischmann & Royal e a Kraft Foods International, e, posteriormente, com a Parmalat, apresenta-se de forma estreita, havendo uma forte dependência da primeira em relação às demais, nos seus respectivos períodos de atuação na região. Deste modo, a autonomia relativa da Cooperativa Agropecuária de Barra Mansa, como pôde ser observado, não irá condizer com o tipo de relação cooperativa-empresa observado na CAPIL.

Conforme foi mencionado anteriormente, o atual momento da atividade leiteira no Brasil vem sendo marcado por uma forte concentração industrial, que, se por um lado, em sua relação com produtores e cooperativas representa garantia de mercado, por outro lado promove perda de autonomia por parte do produtor rural, bem como da cooperativa agropecuária em sua relação com o mesmo.

Desse modo, no caso da CAPIL – segunda maior cooperativa do estado do Rio de Janeiro –, esta repassa 50% dos 60 mil litros diariamente captados diretamente à Parmalat; empresa esta

9 O leite vendido do produtor para a cooperativa custa em média R$ 0,50/litro, e, no caso dos Longa Vidas, chegam às mãos do consumidor final custando cerca de R$ 1,40. Ou seja, ocorreu uma média de 180% de acréscimo sobre o valor inicial do produto.

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que se instalou em dezembro de 2001 na região, pondo fim à gestão da Kraft Foods International, que até então ali permanecia.

Dos 50% restantes da produção – que não são repassados à agroindústria – são produzidos manteiga, queijos, requeijão, doce de leite, iogurte e o leite “barriga-mole” do tipo “C”. Posteriormente, estes produtos são comercializados nos mercados da região, bem como de alguns municípios da Região das Baixadas Litorâneas.

Ainda com relação à subordinação da CAPIL à Parmalat, um fato muito recente que vem comprovar esta forte relação de dependência da primeira com a segunda diz respeito à “quebra” desta empresa em dezembro de 2003 e a conseqüente desestabilização da cooperativa e de seus 1.250 associados do Noroeste do estado. Como resultado, em conseqüência da repentina perda de sua principal compradora, a cooperativa entra, desavisada e despreparada, em sua primeira grande crise, que pode ser visível a partir da dívida que vem se instalando entre ela e os produtores.

Cabe lembrar que a pecuária leiteira é a principal atividade agropecuária do Noroeste Fluminense, e representa a principal atividade de sustento de grande parte dos moradores da região e de suas famílias. Deste modo, os impactos sócio-espaciais decorrentes deste abalo podem ser profundos, caso medidas políticas de caráter emergencial não sejam tomadas.

Vemos então que a importância do sistema cooperativista se dá, dentre outros fatores, por conta da necessidade de centralização e organização, sobretudo da pequena produção, o que se realiza através das cooperativas agropecuárias. Desta forma, este sistema representa a via de inserção dos produtores menos capitalizados no âmbito dos mercados.

Atualmente, existem mais de 30 cooperativas de leite no estado do Rio de Janeiro, a maioria delas polarizadas pelas duas maiores cooperativas do estado (conforme pode ser observado no mapa 3) – a Cooperativa Agropecuária de Barra Mansa e a CAPIL – porém, todas, de certo modo, encontram-se atreladas às dinâmicas produtivas atuais, tendo, portanto, que se modernizarem para que possam permanecer inseridas no âmbito das disputas por mercados.

MAPA 3:

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Cabe salientar, ainda, que as mudanças ocorridas nas estruturas produtivas do país que

marcaram a década de 90 – conforme foram mencionadas anteriormente – afetaram também as articulações entre setor agropecuário-cooperativa-indústria. Este segundo elemento, inserido no âmbito da concorrência com vistas à garantia de mercado, responde às mudanças acima mencionadas por meio da terceirização de atividades acessórias (transporte de matérias-primas e produtos finais, por exemplo) e do aumento das exigências por níveis de qualidade do produto condizentes com aqueles impostos através dos padrões de aceitação dos mercados.

Com isto, nota-se claramente um enfraquecimento do sistema cooperativista, que, atrelado às lógicas empresariais, perde seu caráter de ‘cooperação’ passando a atuar como agente intermediário entre produtor rural e agroindústria, na maioria dos casos apenas mediando as relações por esta determinadas, não oferecendo nenhum tipo de apoio técnico (na maioria dos casos) aos produtores associados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Entraves e Perspectivas O estado do Rio de Janeiro, com sua produção de caráter extensivo e com baixíssimos níveis de modernização, encontra hoje (sobretudo no que se refere aos pequenos produtores – que compreendem a grande maioria dos produtores de leite do estado) na granelização um dos maiores entraves para a compatibilização de sua produção aos padrões mercadológicos de exigência que vêm sendo impostos. Deste modo, prevê-se a médio prazo a exclusão de grande

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parte dos produtores, já que a inserção nas lógicas de produção granelizada terá caráter obrigatório a partir de 2005, conforme o previsto pelo governo federal. Como este tipo de armazenamento (a granel) é muito custoso ao pequeno produtor – em função dos altos preços a que os tanques de resfriamento são encontrados no mercado –, torna-se nítido seu caráter excludente. Um dos maiores agravantes que interferem diretamente no baixo desempenho e nas dificuldades que vêm sendo encontradas pela pequena produção é a ausência de políticas públicas efetivas direcionadas a este segmento fragilizado da cadeia leiteira. A implementação deste tipo de política ganha caráter ainda mais emergencial frente à subordinação das cooperativas de leite ao capital privado, em que a obtenção de lucros por parte das multinacionais ocorre por intermédio de fortes relações de dominação, nas quais os imperativos ditos “globais” se sobrepõem aos locais, privilegiando as questões de cunho econômico em detrimento daquelas de caráter social. Atualmente, temos no caso da “quebra” da Parmalat um forte exemplo desta relação de desequilíbrio e dependência, visto que a CAPIL (Cooperativa Agropecuária de Itaperuna Ltda.), maior fornecedora da empresa do estado do Rio de Janeiro, acaba de entrar em crise por conta das dívidas que se instalaram entre a empresa e a cooperativa, desestabilizando as condições financeiras de seus aproximados 1.250 produtores cooperados, que têm na pecuária leiteira sua principal ou única atividade de sustento da família. Este fato vem provocando fortes impactos na esfera social no Noroeste Fluminense, sobretudo em seus produtores de leite. Por fim, não se pretende aqui propor, de forma simplificada, soluções aos problemas complexos e abrangentes que envolvem questões do âmbito político, econômico e social. E, sim, ressaltar alguns aspectos relevantes que devem ser levados em consideração por órgãos planejadores das esferas administrativas municipal, estadual e federal, com o objetivo de solucionar os problemas de ordem social que vêm assolando, dentre outros, o setor agropecuário. Deste modo, uma primeira medida que deve ser pensada diz respeito à criação de possibilidades de manutenção das parcelas da população ligadas a pecuária leiteira nesta atividade. Neste sentido, incentivos e auxílios financeiros por parte dos governos devem ser direcionados à compra e utilização de tanques de expansão comunitários, que visem elevar a qualidade da pequena produção, atendendo às exigências de mercado. De um modo geral, além desta questão de caráter emergencial relativa à granelização da produção, demais medidas devem ser tomadas em relação aos pequenos produtores, tais como apoio técnico e extensão rural, políticas de crédito e fomento, e até mesmo de auxílio às cooperativas agropecuárias, já que estas representam as vias de inserção da pequena produção no âmbito dos mercados.

Ou seja, entendemos que a elaboração de políticas públicas voltadas aos pequenos produtores rurais, e especificamente aos produtores de leite, é de extrema importância, já que o forte dinamismo que tem impulsionado esta cadeia produtiva gera a constante necessidade de mudanças na produção, demandando investimentos e melhorias condizentes com os mercados e suas lógicas. Para finalizar, o CAI da pecuária de leite no estado do Rio de Janeiro veio ao longo dos anos incorporando novos elementos dinamizadores de sua estrutura interna, alavancados primeiramente pelo processo de modernização da agricultura implementado sob a égide do Estado, pela posterior redução da atuação do poder público frente ao modelo de desenvolvimento adotado – e o conseqüente aumento de autonomia das empresas, sobretudo as multinacionais, conferindo, assim, maior complexidade às relações existentes no interior do CAI.

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Como este cenário acabou sendo fortemente marcado pela concorrência empresarial e disputas por mercados, o CAI do leite acabou ficando caracterizado pelo enfraquecimento do sistema cooperativista, e pela crescente dificuldade de inserção dos produtores na produção cada vez mais modernizada, conforme pôde ser constatado no estado do Rio de Janeiro. Deste modo, torna-se evidente a necessidade de que as cooperativas do estado ganhem maior autonomia em relação às grandes empresas beneficiadoras para que possam alcançar mercados consumidores mais amplos para seus produtos finais, bem como continuar garantindo aos pequenos produtores a possibilidade de comercialização de sua produção.

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