o clube do gibi!: letramento e linguagem em um...

19
37ª Reunião Nacional da ANPEd 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC Florianópolis O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM PROJETO ESCOLAR Raquel Leão Luz UFRGS Resumo Este trabalho é resultado de uma pesquisa interpretativa, realizada em uma escola da rede municipal de Porto Alegre. O foco de investigação baseou-se no estudo das práticas de letramento e das aprendizagens dos alunos em um grupo de leituras, produção visual e escrita intitulado Clube do Gibi. Para investigar as práticas letradas nesta oficina, utilizamos procedimentos metodológicos para geração de dados relativos à pesquisa qualitativa-interpretativa. Partimos do estudo de letramento como prática social e de estudos que se debruçaram sobre o conceito de projetos de trabalho e trabalhos coletivos para compreendermos o Clube do Gibi. Consideramos os estudos de linguagem como interação a fim de compreendermos as práticas de letramento dos estudantes como ações de linguagem para participarem do projeto. Ao final da pesquisa, consideramos que os aprendizados proporcionados pelo grupo relacionam-se, principalmente, à arte plástica e à realização de tarefas em conjunto, o que contribui para a construção de aprendizagens individuais na medida em que ocorrem com propósitos coletivos. Ser parte do Clube do Gibi é reconhecer-se como engajado em um coletivo de trabalho. Palavras-chave: projeto, letramento, linguagem. O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM PROJETO ESCOLAR Contextualização da pesquisa O trabalho que aqui apresento é resultado de uma pesquisa longitudinal na área de Linguística Aplicada, realizada ao longo dos anos de 2011 e 2012, como Mestrado Acadêmico em Letras. Partindo de estudos de linguagem como interação social, realizei uma investigação de caráter qualitativo-interpretativo com foco em um projeto escolar em que a participação e a construção conjunta de conhecimentos sobre língua e

Upload: lekhue

Post on 30-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM PROJETO

ESCOLAR

Raquel Leão Luz – UFRGS

Resumo

Este trabalho é resultado de uma pesquisa interpretativa, realizada em uma escola da

rede municipal de Porto Alegre. O foco de investigação baseou-se no estudo das

práticas de letramento e das aprendizagens dos alunos em um grupo de leituras,

produção visual e escrita intitulado Clube do Gibi. Para investigar as práticas letradas

nesta oficina, utilizamos procedimentos metodológicos para geração de dados relativos

à pesquisa qualitativa-interpretativa. Partimos do estudo de letramento como prática

social e de estudos que se debruçaram sobre o conceito de projetos de trabalho e

trabalhos coletivos para compreendermos o Clube do Gibi. Consideramos os estudos de

linguagem como interação a fim de compreendermos as práticas de letramento dos

estudantes como ações de linguagem para participarem do projeto. Ao final da pesquisa,

consideramos que os aprendizados proporcionados pelo grupo relacionam-se,

principalmente, à arte plástica e à realização de tarefas em conjunto, o que contribui

para a construção de aprendizagens individuais na medida em que ocorrem com

propósitos coletivos. Ser parte do Clube do Gibi é reconhecer-se como engajado em um

coletivo de trabalho.

Palavras-chave: projeto, letramento, linguagem.

O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM PROJETO

ESCOLAR

Contextualização da pesquisa

O trabalho que aqui apresento é resultado de uma pesquisa longitudinal na área

de Linguística Aplicada, realizada ao longo dos anos de 2011 e 2012, como Mestrado

Acadêmico em Letras. Partindo de estudos de linguagem como interação social, realizei

uma investigação de caráter qualitativo-interpretativo com foco em um projeto escolar

em que a participação e a construção conjunta de conhecimentos sobre língua e

Page 2: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

2

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

linguagem estiveram envolvidas. O objetivo da pesquisa foi o de analisar os

significados de aprender sobre língua e linguagem em um projeto intitulado Clube do

Gibi1, desenvolvido e sustentado por estudantes do terceiro ciclo do ensino

fundamental, em conjunto com a professora de Língua Portuguesa e com a biblioteca

escolar. Neste projeto, os estudantes reuniam-se para planejar e executar ações de

linguagem de seu interesse. Mediavam produções individuais e coletivas, produziam e

publicavam suas produções.

A pesquisa permitiu a investigação acerca das práticas sociais envolvidas na

aprendizagem da linguagem visual e escrita para a construção de identidades de grupo

na escola EMEF José Guedes. Nesse sentido, buscou-se refletir e questionar o papel do

ensino de língua materna na escola, do ponto de vista de aprendizados mais voltados

para o texto como produção de imagem e de identidades sociais.

Neste artigo, apresento, portanto, uma breve reflexão acerca do entendimento

de língua e linguagem que fundamentam a pesquisa, bem como as possíveis funções da

escola para a construção de uma educação linguística. Apresento três asserções

afirmativas como resultados da investigação e as considerações acerca da realização da

pesquisa.

Linguagem e interação

(...) a realidade fundamental da linguagem é o fenômenos social da interação

verbal. Nesse sentido, a linguagem verbal não é vista primordialmente como

sistema formal, mas como atividade, como um conjunto de práticas

socioculturais - que têm formatos relativamente estáveis (concretizam-se em

diferentes gêneros do discurso) e estão atravessadas por diferentes posições

avaliativas sociais (concretizam diferentes vozes sociais). (FARACO, 2009,

p.120)

Podemos considerar que como sujeitos, somos compelidos a agir pela

linguagem em relação a tudo o que está fora da esfera do “eu”. Usar a língua é agir no

mundo com uma atitude que não seja indiferente ao “outro”. “Eu” e “outro” estão

sempre tensionados nas atividades de linguagem, pois “eu” assume sempre uma atitude

responsiva em relação ao discurso do “outro”. Pela tensão ideológica entre o “eu” e o

“outro” é que se constroem as atividades de linguagem em diferentes campos de atuação

em que estamos socialmente inseridos.

1 Todos os nomes adotados na pesquisa, dos participantes, da escola, dos projetos, foram mantidos em

anonimato. Nomes fictícios foram utilizados para a proteção de suas identidades.

Page 3: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

3

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Agir pela linguagem é, portanto, assumir uma atitude responsiva a outros

enunciados proferidos por outros sujeitos na história da atividade a que me ponho a

realizar em conjunto. Ser “eu” é estar imbuído de valores sociais e de uma univocidade

discursiva que, necessariamente, só se torna individual no contraste com o social, com

os valores simbólicos da cultura e da história dos “outros”. Portanto, usar a língua é

interagir por ela e com ela, modificando-a na relação que se estabelece entre sujeitos,

numa interação: verbal ou não-verbal, pela palavra escrita ou pela imagem. A interação

verbal face-a-face, nesse sentido, é apenas uma das formas de se relacionar

dialogicamente com o outro.

Nesta pesquisa, o entendimento de diálogo é apoiado na perspectiva de Bakhtin

(2010) e Bakhtin & Volochínov (2010): a interação social verbal contém em diversas

camadas forças discursivas de criação ideológica que a instituem. Enfatizamos, assim, a

importância do entendimento dessa perspectiva, visto que não nos propomos a

investigar os movimentos enunciativos materiais (as formas do diálogo dos

participantes, as marcas de seus discursos, como conversam entre si), mas olhar para os

fenômenos sociais envolvidos nessas interações.

As práticas de linguagem que observamos estão relacionadas às ideologias que

as abrigam; nosso objetivo, portanto, é olhar para as interações pela linguagem entre

participantes como um todo e não em eventos repartidos.

Neste trabalho, linguagem significa interação em uma determinada atividade,

sempre mediada pelas relações orgânicas com o que é da ordem do social e do

culturalmente organizado. Nesse sentido, entendemos que a língua, através dos

enunciados (construídos a cada interação e abrigados pela estabilidade relativa do

campo de atividade em que estão concebidos) é uma manifestação da linguagem (que é

da natureza humana). Partimos desse entendimento para a reflexão acerca do papel da

língua e da linguagem no espaço escolar.

A escola como lugar social de interagir pela linguagem

Quanto melhor dominamos os gêneros discursivos tanto mais livremente os

empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade

(onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação

singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre

projeto de discurso. (BAKHTIN, 2010, p. 285)

Page 4: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

4

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Iniciamos esta discussão por meio da compreensão de que o papel do trabalho

com a linguagem na escola está intimamente relacionado ao objetivo de ampliar os

conhecimentos das variadas manifestações de linguagem e dos diversos discursos que

os alunos encontrarão a cada nova atividade em que atuarem. De um ponto de vista

interacionista, agir pela linguagem na escola significa aprender as mais variadas

maneiras de utilizar a língua com responsabilidade e segurança.

Em nossa perspectiva, a escola cumpre a essencial tarefa de promover as

práticas sociais de linguagem como práticas de todas as áreas do conhecimento com as

quais o aluno lida em seu cotidiano de aprendizagem. Isso significa que a língua, por

exemplo, não é um conhecimento isolado do aprendizado da arte, da linguagem do

corpo, da linguagem matemática.

Simões (2012, p. 38) afirma que “a língua não existe de forma imanente: não é

um objeto em si, não é um repertório de estruturas abstratas, nem de formas concretas,

porém já usadas, consagradas e, portanto, acabadas”. A língua tem um caráter dinâmico

e, por isso, é reconstruída nas interações por sujeitos históricos. Mas para ser

reconstruída nas interações, esses sujeitos precisam conhecer o que caracteriza a

historicidade da língua, de suas formas, dos elementos linguísticos que a compõem e

que valores sociais estão implicados a cada novo uso e escolhas. Desse ponto de vista, a

língua que se aprende na escola é a língua em uso nas diferentes esferas de atividades

humanas relevantes aos alunos, aos professores – aos participantes da escola envolvidos

em uma determinada prática de linguagem.

A língua, portanto, torna-se material de estudo por meio do trabalho que

focaliza o texto na escola. O texto representa o produto de uma atividade enunciativa – é

a materialidade de um conjunto de enunciados produzidos em uma atividade de

linguagem, pelo conhecimento de determinados modos de dizer, de saber para quê se

diz e de responder a textos outros.

Se consideramos que o texto é o foco de estudo na escola e não apenas sua

materialidade discursiva, mas a relação tensa entre forças sociais que o produziram, isso

significa que consideramos que o estudo do texto implica saber ler e escrever (d)esses

textos. E mais uma vez nos colocamos diante do axioma de que, então, ler e escrever

cabe a todas as áreas de conhecimento em uma escola. Pois para haver leitura e

produção em cada uma delas, é necessário dominar a esfera de atividade que envolve

cada uma dessas áreas de conhecimento: sua linguagem, os elementos linguísticos

Page 5: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

5

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

estáveis de determinado discurso dessa atividade, os interlocutores preferenciais de cada

discurso que se elabora, os propósitos desse discurso – decorrentes das próprias

escolhas textuais e dos sujeitos.

Guedes & Souza (2011, p.19), nos trazem uma importante reflexão acerca do

ensino de leitura e de escrita na escola: “Ensinar é ensinar a ler para que o aluno se torne

capaz dessa apropriação, pois o conhecimento acumulado está escrito em livros,

revistas, jornais, relatórios, arquivos. Ensinar é ensinar a escrever porque a reflexão

sobre a produção de conhecimento se expressa por escrito.” Nesse sentido, para saber

do conhecimento acumulado pela humanidade e produzir conhecimentos, ler e escrever

são competências a serem desenvolvidas pelas áreas conjuntamente.

De nosso ponto de vista, o estudo da língua na escola deve possibilitar o

aprendizado de seus usos, em suas diferentes situações de produção. É uma competência

a ser alcançada, na educação escolar, o trabalho que oportunize significativamente o uso

da língua. Para participar da vida social de que faz parte, o aluno precisa conhecer a

língua por meio de textos variados que reflitam variados gêneros.

Assim, uma educação que tenha como base o uso da linguagem nas mais

diversas situações propõe-se como uma educação linguística: em que se valoriza a

prática de reflexão e uso da língua no aprendizado de suas estruturas, regularidades e

irregularidades, em que o que se aprende sobre a língua contribui para a produção e

leitura de textos – verbais ou imagéticos.

O estudo dos textos organizado por projetos oportunizam maior engajamento

dos estudantes. Nessa perspectiva de educação linguística, a experiência com o texto

organiza, conforme Todorov (2009), imagens mais coerentes do mundo, que, podemos

nos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e

nuançadas. (p. 82)

O Clube do Gibi: um espaço coletivo de aprendizagem de linguagem

Ao considerarmos a língua e a linguagem como práticas para agir no mundo,

em interações com o outro, e a escola como instituição (re) produtora e mediadora

dessas práticas, partimos para a investigação em campo. O trabalho de observação

participante desenvolveu-se na EMEF José Guedes, devido à parceria que esta escola da

rede municipal estabelecia com a universidade. O foco do trabalho concentrou-se na

pesquisa acerca das práticas de letramento do Clube do Gibi, grupo gerido e sustentado

Page 6: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

6

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

por estudantes que se reuniam na escola, fora do horário escolar, para ler gibis e

mangás, escrever e produzir desenhos de seus interesses. O grupo tornou-se foco de

nosso estudo durante o processo de aproximação a campo e geração de dados, visto que

demonstrou abertura para a participação da pesquisadora e interesse em discutir, com a

pesquisadora, meios de produção de seus textos e trabalho com suas leituras. Para

investigarmos as práticas letradas do grupo, suas relações com materiais escritos e

visuais, ao longo do trabalho, construímos nossas perguntas investigativas, dividas em

dois grandes eixos:

Eixo 1: Os significados de fazer o Clube do Gibi e as práticas letradas

envolvidas 1. De que modo o texto se torna relevante aos participantes nos encontros do

Clube do Gibi?

1.1 Que textos?

1.2 O que os participantes fazem com esses textos? (comentam, discutem,

escrevem, leem, colam em murais, distribuem, publicam, guardam, entregam

para alguém etc).

1.3 Os textos são produzidos e/ou servem para o estudo?

1.3.1 Se são produzidos no Clube do Gibi, quem os produz?

Eixo 2: Eixo II: Planejamento de tarefas e da execução de atividades

pelos participantes no Clube do Gibi 1. Quais são as tarefas planejadas pelos participantes no Clube do Gibi?

1.1 Quem as planeja?

1.2 Quando são planejadas?

1.3 Onde são planejadas?

1.4 Como são planejadas (que procedimentos, que práticas estão envolvidas

para este planejamento)?

1.5 Para que elas servem?

1.6 Para quem elas servem?

Por meio do movimento analítico dos dados gerados a partir de notas e diários

de campo, entrevistas e documentos, catalogamos e analisamos alguns índices para

responder nossas perguntas. Aqui, portanto, apresentamos três asserções interpretativas

que permitiram analisar nossos dados e construir entendimentos a respeito da

construção conjunta de conhecimento pelos participantes no Clube do Gibi. As

asserções apresentadas são parte do estudo maior e são formuladas a partir de uma breve

amostragem dos dados.

a) Os participantes do Clube do Gibi tornam a linguagem visual

essencialmente relevante em suas práticas letradas

Page 7: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

7

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Nas fotografias documentais registradas durante a pesquisa, encontramos

inúmeras ocorrências de ilustrações feitas pelos participantes do Clube que denotam

entendimentos bastante representativos sobre a semiose envolvida em “ser Clube do

Gibi”. Abaixo, apresentamos cinco fotografias que encetam formas de entendermos o

que significava texto para os participantes, que textos eram esses com os quais lidavam

e de que modo lidavam. Além disso, em todos os nossos dados, notamos a presença

dessa construção identitária por meio da imagem, acerca de ser um Clube. Neste

trabalho não foi possível realizar um estudo que enfocasse o conceito de identidades e,

por isso mesmo, utilizamos esta palavra de modo genérico. Entretanto, para nossos

propósitos de identificar e entender como se configuraram os eventos de letramento dos

participantes, consideramos haver a presença de uma identidade do Clube do Gibi sendo

formulada pelos participantes também suas produções visuais.

Observamos que as imagens nesses conjuntos de sentidos estão intimamente

ligadas à relação dos participantes com o universo do mangá e dos quadrinhos. Os

personagens que estampam os cartazes de divulgação do Clube fazem parte do

entendimento do grupo sobre o tipo de texto que leem, de que gostam. Nesses textos

imagéticos, vemos a construção de personagens pelos próprios alunos ou ilustrações

copiadas de mangás que costumavam ler. O mangá Naruto e a Turma da Mônica Jovem

são reiterados por meio dessas produções dos participantes. Os cartazes apresentam

referências diretas a esses materiais escritos ou interpretações acerca deles. Abaixo,

apresentamos algumas dessas produções fotografadas.

Divulgação do Troca-Troca (Feira de troca de livros organizada pelos participantes)

Divulgação do Troca-Troca e do

Cosplay

Page 8: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

8

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Feira do Livro da EMEF José Guedes

Page 9: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

9

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Divulgando o Clube do Gibi

“Le banana men” e “Le Troca-Troca”

Page 10: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

10

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Reprodução de imagem de mangá

Page 11: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

11

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

As produções acima denotam a preferência dos alunos pelo universo dos

quadrinhos e do mangás – pela produção de imagem. Ser o Clube do Gibi tem a ver

com essa identidade, representada nos cartazes espalhados pela escola. Abaixo,

trazemos um excerto de diário de campo em que a cena de trabalho dos alunos é sobre a

imagem que estão produzindo para divulgar a feira do Troca-Troca. Nesse breve

excerto, notamos a importância da pintura e das cores dos cartazes para os participantes.

Excerto de diário de campo “eu também sou boa nas cores,

né sora?” Ismael pega seu cartaz e diz que está pronto. Ele fez um recorte e colagem no

formato de um livro, com uma capa preta e com letras grandes desenhadas e

vazadas. Depois contornou as letras com marca texto verde limão. Disse a ele

que a combinação de cores era muito bonita. Disse para ele levantar o cartaz

e mostrar ao grupo. Ana Carolina olha e diz “que lindo!”. Depois diz “eu

também sou boa nas cores, né sora?”. Concordo com ela, digo que ela pinta

superbem. Vagner diz “ela é a pintora do Clube”. Vagner também está

finalizando seu trabalho, que ficou muito parecido com o de Ismael. Vanessa,

Emília e Lidiane fizeram uma produção juntas, mas que ainda não estava

pronta. Passaram cola colorida no seu cartaz, com uma frase grande escrita

no centro “Venha para a feira do Troca-Troca” e disseram que tinham que

esperar secar. Denilson terminou o seu “The Le banana men” e colou no

friso. Depois desenhou uma outra personagem, uma bola de futebol com um

rosto e chamou de “A chica”. Escreveu o nome da personagem no cartaz e

disse que queria colar no friso também.

Nesse sentido, compreendemos no trajeto da pesquisa, que

a) os eventos de letramento no Clube do Gibi estavam ligados a eventos com

textos imagéticos, visuais.

b) arriscamos afirmar que, a identidade do grupo era bastante relacionada à

cultura visual dos mangás e dos quadrinhos.

c) a preferência dos alunos pelos materiais escritos envolvia materiais que

dialogavam com textos visuais.

b) As práticas de letramento envolvem o trabalho coletivo dos alunos

Não por acaso o nome que recebe esta oficina é Clube. Clube do Gibi. Esse

nome carrega significados que indicam ações coletivas. É claro que observamos esse

senso de coletivo nas ações e na documentação que registramos em campo. Entretanto,

não podemos deixar de notar que, desde a escolha deste nome os participantes já se

orientavam para algo que aconteceria em um grupo.

Page 12: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

12

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Ao longo do percurso, fui percebendo que os professores geralmente usavam a

seguinte frase ao se referirem ao Clube: “aqueles ali se autogerem.” Apesar dessa frase

não estar anotada em um diário de campo e ser fruto da minha memória (muito viva, por

sinal) do que foi a EMEF José Guedes na minha vida, sinto a obrigação de escrever

aqui. Foi esse um dos primeiros conhecimentos sobre o Clube que tive, quando me

coloquei à disposição para mediar a oficina com os alunos. Eles geriam a si mesmos e

não precisava “mandar” fazer.

O excerto de entrevista abaixo é representativo de nossa análise. Nele, Marta

expressa o que para ela foi essencial no aprendizado dos alunos no Clube.

Excerto de entrevista – “como se criou a ideia de Clube, cada um

cuidava, a ideia do patrimônio comum que era de todos, entende?”

Pesquisadora: Que conhecimentos foram aprendidos nesse tempo de Clube?

Marta: Coisas assim... o fato de tu ter que aprender a partilhar um espaço. O

cuidado que se tem em deixar o livro nas mesmas condições pra outros, não

rasgar o livro. O que que acontecia, que aconteceu já? Os caras, ahn,

pegavam os livros, rasgavam, pegavam só a parte que queriam e levavam pra

casa.

Pesquisadora: Aham

Marta: Isso aconteceu. Só que o Clube do Gibi, como se criou a ideia de

Clube, cada um cuidava, a ideia do patrimônio comum que era de todos,

entende? Isso foi um conhecimento aprendido. Quando tu tem um patrimônio

comum tu cuida daquilo, tu devolve, tu coloca ali, né.

Pesquisadora: Sim

Marta: Por outro lado a coisa assim, especificamente da linguagem, porque

tem muita coisa da linguagem, mas a coisa plástica. Da coisa plástica, muita

coisa foi aprendida, porque eles desenhavam muito, né.

Pesquisadora: Aham

Marta: Então por exemplo assim: eu sou professora de língua portuguesa,

mas boa parte do Clube do Gibi foi envolvido em questões de desenho e foi

aprendido muito. Os alunos que sabiam mais eles desenhavam e eles

ensinavam as técnicas de desenho, de sombreamento, de construção de

expressividade do olhar, de como é que tu faz a articulação lá, o cara virar pra

cá, pra lá...a coisa que eu não sei.

Pesquisadora: Aham

Marta: Eles aprenderam lá, uns com os outros. E, também, eles aplicaram

conhecimentos que aprenderam nas aulas de arte e Arteducação.

Pesquisadora: Aham

Marta: Porque os professores da Arteducação ensinam isso pra eles, então

eles aplicaram lá. Tu tá entendendo? A gente via e eles aplicavam livremente.

Como que via isso? Os alunos maiores, que já tinham passado pelas aulas de

Arteducação, das nossas colegas, ensinavam os pequenos e dizem, ó, é assim

Page 13: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

13

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

que se faz. E isso não é uma perda de tempo. Eles estavam ensaiando até

pegarem o jeito.

Pesquisadora: Sim...

Marta: E teve a coisa do origami também. Então, quer dizer, a cultura oriental

acabou entrando no fluxo por conta desses interesses dos alunos, que

acabaram expandindo o Clube dessa forma. Os nomes japoneses, esses

personagens. A coordenadora cultural chamou um dos meninos pra ser

oficineiro de origami a partir do Clube do Gibi, essas coisas né.

Pesquisadora: Sim, é mesmo.

Marta: O que faltou foi aprender essa coisa de saber fazer um enredo mais

complexo, a gente não chegou nisso, não chegou porque não deu tempo,

Pesquisadora, porque não era um curso. Então, na verdade, a gente abriu uma

brecha e dessa brecha a gente fez um caldo maravilhoso. Isso foi no

interstício de outras coisas. Quando eu vi que o pessoal veio atrás eu me

assustei até, eu preciso fazer isso.

Marta expressa sua opinião sobre o aprendizado dos alunos apontando, em

primeiro lugar, o aprendizado do trabalho coletivo, de compartilhamento do material,

das produções. Ainda reitera que aprenderam muito sobre “a coisa plástica”, pois

“aplicavam” o que era aprendido nas aulas de Arteducação. Marta reconhece que o

aprendizado de língua portuguesa pode não ter ocorrido da forma como desejava, por

não ter havido tempo para isso e, inclusive, pela própria configuração da oficina, no

“interstício de outras coisas”.

O excerto que reportamos abaixo denota certos entendimentos dos

participantes envolvidos nessa cena de produção no Clube. Era uma cena cotidiana

bastante comum do Clube: alunos sentados em mesas redondas, em grupos, fazendo

desenhos e escrevendo, conversando entre si, pedindo ajuda uns aos outros, ou em

silêncio. Apresentamos uma cena representativa das que no Clube envolviam escolhas,

conversas, tomadas de decisões coletivas, feitas pelo diálogo entre seus membros e não

pelos desejos individuais.

Excerto de diário de campo - “Venha pra Feira do Troca-Troca e traz

um Gibi”

Pergunto a eles como foi a feira do Troca-Troca no ano anterior. Ismael toma

a palavra. Diz que eles montaram uma mesa no pátio da escola, no sábado da

feira do livro da escola. Que colocaram uma caixa com gibis e que faziam a

troca com quem chegasse. Perguntei que gibis eram esses. Ismael disse que

eles arrecadaram gibis com os alunos e que no dia trocaram com quem

apareceu com algum gibi para trocar. Vanessa interrompeu e disse que eles

enfeitaram a mesa, fizeram umas faixas com o nome “Feira do Troca-Troca”.

Depois ficou um silêncio. Disse para eles que o Clube do Gibi era

responsável por essa organização todos os anos e que esse ano precisávamos

começar a pensar em como faríamos essa divulgação. Ana Carolina

Page 14: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

14

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

interrompeu e disse que o Clube tinha que fazer cartazes grandes chamando

para a Feira, assim “Venha pra Feira do Troca-Troca e traz um Gibi”. Ismael

interrompeu e disse “e traga seu Gibi”. Ana Carolina diz, “isso, traga seu

Gibi”. Falei que era uma boa ideia fazer esses cartazes. Pergunto se mais

alguém quer dar uma ideia. Vagner diz que temos que fazer cartazes mesmo.

Pergunto a Luan o que ele acha. Ele balança a cabeça afirmativamente, mas

não me olha, segue olhando para a revista que tem na mão.

Depois disso ficou um breve silêncio. Perguntei então se eles queriam

começar a produzir esses cartazes de divulgação. Ismael, Vagner, Ana

Carolina dizem que sim. Abro o armário e pego os trabalhos da semana

anterior. Digo a eles que alguns precisam continuar os personagens e suas

descrições para colocarmos no friso do fundo da sala. Vou colocando sobre a

mesa os trabalhos incompletos. Ana Carolina diz que quer terminar a sua

pintura. Diz também que ela pode ir colando na parede os trabalhos que já

estão prontos. Vagner pergunta se eu vi que tem desenhos novos no friso, que

não estavam. Disse a ele que sim e depois perguntei quem tinha feito. Ele me

explicou que foram os trabalhos que eles fizeram no Clube do Gibi de terça

de tarde. Continuou dizendo que eles desenharam uns personagens que são

eles na verdade, que são como eles gostariam de ser. Vagner levanta e vai até

o cartaz. Toca com a mão em um dos desenhos e diz que é o dele. Observo

que é um personagem que ocupa quase toda a folha; está sorrindo; é feito só

de lápis preto, sem pintura. Depois ele vai dizendo de quem são os outros

desenhos.

Luan se aproxima de Ana Carolina e diz em voz baixa pra ela que vai ajudar

a colar na parede os cartazes. Coloco então a caixa com materiais e o estojo

grande (com lápis, canetinha...) sobre a mesa mais próxima ao armário. Nela

já estão Luan e Ana Carolina. Vagner volta ao seu lugar, em que está sentado

Ismael. Entrego para Ana Carolina uma fita adesiva e mostro como ela pode

fazer para recortar os pedacinhos de fita sem precisar usar tesoura ou a boca.

Ela observa e diz, “tá bom sora”. Eles começam a colar e conversar sobre os

lugares em que preferem. Ana Carolina diz pra Luciano que quer colar bem

retinho. Luan argumenta que é mais legal colar tudo espalhado.

O excerto apresenta vários aspectos que queremos destacar. O primeiro deles é

a ação conjunta entre a pesquisadora e os alunos sobre o que vão fazer naquele dia e

como podem fazer. Os alunos dão sua opinião e deliberam sobre as ações para aquela

manhã de trabalho. O segundo aspecto importante nessa construção coletiva é a

indicação de Vagner sobre o friso. O friso que estava na parede, feito pelo nosso grupo,

era também um friso para o outro grupo que frequentava a biblioteca em outro dia da

semana. O apontamento de Vagner foi de destaque da participação dele mesmo no

encontro da terça – que contava com membros novos nessa oficina. Todos, portanto,

usavam o friso. O terceiro aspecto que salientamos é a ação de Luan e de Ana Carolina.

Luan, espontaneamente, decide colar os desenhos junto com Ana na parede. Ela aceita a

ajuda e eles começam esta tarefa. Em seguida, passam a discutir o que estão fazendo e

como preferem fazer.

Page 15: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

15

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

O resultado final do cartaz não é o mais importante para refletirmos sobre esse

evento de letramento de produção do cartaz. Mas esse processo de escolher em

conjunto, de se propor como parceiro do outro. É nesse conjunto de ações e escolhas

que os participantes do Clube tornam-se um grupo de trabalho que age conjuntamente.

Assim, aos aspectos abordados anteriormente, acrescentamos que

a) participar do Clube do Gibi significa trabalhar em conjunto: decidir, opinar,

contribuir para o que está sendo feito com todos;

b) os aprendizados que se adquiriram no Clube foram, principalmente, em

relação à arte plástica e ao trabalhar em grupo, compartilhar materiais, contribuir com

sua individualidade em uma construção mais coletiva;

c) o planejamento das atividades ocorre em grupos e faz parte das atividades de

letramento desse grupo; planeja-se junto e na hora em que o Clube começa.

c) Gostar de artes visuais: os participantes do Clube do Gibi têm

engajamentos em atividades de letramento de sua preferência.

Observamos que os participantes do Clube do Gibi, em geral, estabeleciam

relações com variadas atividades de letramento, para além do Clube ou das aulas na

escola. O participante Luciano, por determinação pessoal, cultiva um caderno de

desenhos só seus e uma pasta também. Ele portava esse caderno em vários encontros do

Clube e, muitas vezes, os alunos tiravam cópias de seus desenhos e passavam a manhã

toda envolvidos em pinturas e colagens das imagens do Luciano.

Caderno de desenhos de Luciano

Page 16: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

16

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Na entrevista que reproduzo abaixo, Luciano mostra que gosta de arte e o que

conhece sobre arte está relacionado ao que tem aprendido na escola. Esse interesse

mobiliza o garoto a ser membro do Clube: um membro muito colaborativo no incentivo

a eventos de letramento com textos imagéticos, visuais.

Excerto de entrevista – “Van Gogh, eu adoro Van Gogh”

Pesquisadora: Então tu faz robótica e Clube do Gibi, né Luciano... Tu tem

alguma ideia do que tu quer seguir profissionalmente?

Luciano: Olha, profissionalmente eu quero fazer faculdade de artes... história

da arte.

Pesquisadora: Hum, e por que tu quer fazer isso?

Luciano: Ah, eu sou muito ligado em artes, eu desenho muito bem, qualquer

coisa que me passem em artes eu tô muito ligado... ahn, quando a sora manda

fazer algum trabalho em artes eu sei de cor às vezes até. É uma coisa muito

interessante e eu acho os quadros estilosos, ah, é contemporâneo, é bem legal.

Van Gogh, eu adoro Van Gogh também eu...

Pesquisadora: Tu gosta do Van Gogh...

Luciano: Eu adoro. Edgar Degas também, “As Bailarinas”. Adoro.

Pesquisadora: Aham... e por que tu gosta disso, o que que tu acha bonito

nisso?

Luciano: Ah, os quadros deles demonstram... um sentido, assim, tem um

sentido diferente de outras coisas que a gente vê. É uma coisa meio do

contemporâneo, meio antigo, assim, meio estiloso...

Pesquisadora: Aham...

Page 17: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

17

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

Luciano: A arte mostra uma coisa bem diferente assim...

Pesquisadora: Tu curte essas pinturas então...

Luciano: Ah, adoro...

Pesquisadora: E tu conheceu esses pintores, esses artistas onde assim?

Luciano: A professora Luciana ela, ela começou a falar sobre esses pintores e

eu comecei a gravar na cabeça e comecei a ler os livros também...

Pesquisadora: Na aula vocês olhavam esses livros deles ou imagens...

Luciano: É, a sora ela vem aqui na biblioteca, pega os livro, aí depois ela

mostra pra gente e a gente faz a pintura ou às vezes a gente faz os desenhos

ou...

Pesquisadora: Que legal isso. Interessante. E tu faz algum tipo de desenho

desses?

Luciano: É, eu faço pinturas de, de quadros desses, ahn, como é que é, dos

que eu falei agora?

Pesquisadora: Dos artistas?

Luciano: É, dos artistas, do Van Gogh. Eu tenho um monte em casa que eu

fiz no colégio e levei pra casa...

Pesquisadora: Produções tuas...

Luciano: É, todas produções minhas... Eu, eu tenho um monte assim que eu

olhei e fiz assim, pintei, desenhei.

Os estudantes do Clube do Gibi demonstraram ao longo da pesquisa interesses

por atividades letradas de diversos campos. Além disso, cinco outros participantes

faziam parte de projetos paralelos, fora da escola, na AABB (Associação Atlética Banco

do Brasil). Muitas vezes saíam dos encontros do Clube com o uniforme da AABB e se

organizavam no pátio para pegarem o ônibus e participarem das atividades promovidas

pela associação.

O perfil dos participantes do Clube é variado, mas muito voltado para aqueles

que têm interesses pessoais e que, nas interações, conseguiam conjugar com os

interesses do grupo. Era uma preocupação pungente de Marta que mais alunos

participassem das atividades de letramento oferecidas pela escola e não apenas os que

apresentavam interesses genuínos por essas atividades.

Assim, consideramos que

a) os participantes do Clube do Gibi têm interesses individuais que se associam

aos interesses coletivos;

Page 18: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

18

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

b) os interesses individuais dos participantes contribuem para o trabalho

coletivo, pois estimulam a produção voltada para as representações visuais e para jogos

e mídias que envolvem personagens de mangás.

Algumas considerações

Consideramos, assim, que a biblioteca da EMEF José Guedes é um espaço que

promove a participação dos alunos em atividades de letramento. Essas atividades abrem

oportunidades para o protagonismo e a produção coletiva na escola. Além disso,

observamos que os textos que fazem parte dos eventos de letramento dos alunos,

configuram-se como textos de sua preferência, vinculados, principalmente, aos mangás

do personagem Naruto e à Turma da Mônica Jovem. Interpretamos, para a confirmação

da circulação desses materiais de preferência nas práticas letradas dos alunos no Clube

que, os materiais textuais circulantes considerados despreferidos a) envolvem certo

custo interacional aos participantes e b) esse custo ratifica a preferência pelos títulos

citados acima. Os materiais de linguagem verbal e visual, circulantes nas interações no

Clube, indicaram que as práticas de letramento desses estudantes estão diretamente

ligadas à cultura visual dos mangás e/ou dos quadrinhos. Nesse sentido, grande parte

das práticas letradas valorizava muito mais a relação dos participantes e a construção de

identidades ligadas ao visual (muito mais que ao verbal).

As práticas de letramento dos atores do Clube envolvem o trabalho coletivo

dos alunos: o manuseio de textos, o desenho, a produção escrita com materiais de sua

preferência é feita de modo coletivo e colaborativo. Planejar, definir propostas e os

pequenos projetos em que se inserem no cotidiano dos encontros faz parte dessas

atividades de negociação coletiva, conforme a análise dos dados. Por fim, consideramos

que as preferências dos participantes desse grupo contribuem para aprendizagens de

várias naturezas e, destacamos, que as preferências individuais tornam-se relevantes no

grupo e contribuem para o que se aprende coletivamente – como vimos acerca da

participação de Luciano, por exemplo, “que adora arte”.

Compreendemos, assim, que a escola em foco se configurou como um espaço

de publicação em linguagem que torna as fronteiras escolares porosas, pois considera

textos de circulação social que se hibridizam na esfera social escolar. O projeto Clube

do Gibi configura-se como um espaço de publicação dos textos dos alunos. As

Page 19: O CLUBE DO GIBI!: LETRAMENTO E LINGUAGEM EM UM …37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT16... · Partimos do estudo de letramento como prática social e de

19

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

publicações dos alunos eram, geralmente, visualizadas no seu momento de produção – o

que oportunizava discussões e intervenções coletivas nesses trabalhos.

Consideramos ainda relevante enfatizar que o Clube do Gibi enceta formas de

ser uma espécie de imprensa escolar na medida em que se constitui como espaço da

cultura letrada midiática, de circulação entre alunos. Assim, entendemos que o projeto

O Clube do Gibi significa, portanto, um projeto de publicação livre e coletiva, em que o

protagonismo e a autoria fazem-se no momento mesmo da produção e da publicação

dos textos verbais e visuais dos membros envolvidos.

Referências

BAKHTIN, M. (2010). A Estética da Criação Verbal, 5ªed. São Paulo: Martins Fontes,

2010.

________________; VOLOCHÍNOV, V.N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São

Paulo: Hucitec, 2010.

_______________. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2010.

FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: As ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São

Paulo: Parábola.

________________. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola,

2008.

FILIPOUSKI, A.M.; MARCHI, D.; SIMÕES, L. (2009) Referenciais Curriculares para o

Ensino de Língua Portuguesa e Literatura. Rio Grande do Sul, Secretaria de Educação do

Estado.

SIMÕES et al. Leitura e autoria: planejamento em Língua Portuguesa e Literatura. Erechim:

Edelbra, 2012.

TODOROV, T. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.