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Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274 | V. 1 | N.2 | janeiro-junho de 2014 | p. 3-14 Revista “O Bumba meu Boi já vai abusado”: Tempo um divertimento “perigoso” Amazônico na São Luís oitocentista Marcos Melo de Lima * Resumo: Este artigo analisa a brincadeira do bumba meu boi na cidade de São Luís durante o século XIX. Considerado diversão de escravos e sujeitos pobres, o bumba meu boi foi classificado pelas elites locais como um lazer bárbaro e que afetava a imagem do que se acreditava ser “civilizado”. Desta forma, houve uma preocupação por parte das autoridades públicas que fizeram uso das leis e dos aparatos de policiamento na organização e no controle desse divertimento. O bumba meu boi na visão dessas autoridades provocava distúrbios pela cidade e ameaçava a tranquilidade pública, além de ser constantemente criticado nos jornais locais como pretexto para reunião de “vadios”, “moleques”, “pândegos”, “ladrões” e “foco de imoralidades”. Busca-se também discutir as estratégias e táticas utilizadas tanto por esses sujeitos pobres como por sujeitos escravizados que faziam das ruas o local privilegiado de suas folganças. Palavras-chave: Bumba meu boi. Controle Social. Repressão. São Luís. Séc. XIX. Abstract: This article analyzes the joke of the bumba meu boi in São. Luís during the nineteenth century. Considered leisure of slaves and poor subjects, the bumba meu boi, was classified by local elites as a barbarian and leisure that affected the image of what was believed to be "civilized". In this way, there was a concern on the part of public authorities which made use of the laws and of the policing apparatus in the organization and in control of that fun. The bumba meu boi in the vision of those authorities provoked riots by the city and threatened the public tranquility as well as being constantly criticized in the local newspapers as a pretext for gathering of "bums", "kids", " drunkards", "thieves" and "focus of immoralities." The aim is to also discuss the strategies and tactics used by these poor guys and enslaved to the streets the privileged place of your fun. Keywords: Bumba meu boi. Social Control. Repression. São Luís. Century XIX. * Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274 | V. 1 | N.2 | janeiro-junho de 2014 | p. 3-14

Revista “O Bumba meu Boi já vai abusado”: Tempo um divertimento “perigoso”

Amazônico na São Luís oitocentista

Marcos Melo de Lima*

Resumo: Este artigo analisa a brincadeira do bumba meu boi na cidade de São Luís durante o século XIX. Considerado diversão de escravos e sujeitos pobres, o bumba meu boi foi classificado pelas elites locais como um lazer bárbaro e que afetava a imagem do que se acreditava ser “civilizado”. Desta forma, houve uma preocupação por parte das autoridades públicas que fizeram uso das leis e dos aparatos de policiamento na organização e no controle desse divertimento. O bumba meu boi na visão dessas autoridades provocava distúrbios pela cidade e ameaçava a tranquilidade pública, além de ser constantemente criticado nos jornais locais como pretexto para reunião de “vadios”, “moleques”, “pândegos”, “ladrões” e “foco de imoralidades”. Busca-se também discutir as estratégias e táticas utilizadas tanto por esses sujeitos pobres como por sujeitos escravizados que faziam das ruas o local privilegiado de suas folganças.

Palavras-chave: Bumba meu boi. Controle Social. Repressão. São Luís. Séc. XIX.

Abstract: This article analyzes the joke of the bumba meu boi in São. Luís during the nineteenth century. Considered leisure of slaves and poor subjects, the bumba meu boi, was classified by local elites as a barbarian and leisure that affected the image of what was believed to be "civilized". In this way, there was a concern on the part of public authorities which made use of the laws and of the policing apparatus in the organization and in control of that fun. The bumba meu boi in the vision of those authorities provoked riots by the city and threatened the public tranquility as well as being constantly criticized in the local newspapers as a pretext for gathering of "bums", "kids", " drunkards", "thieves" and "focus of immoralities." The aim is to also discuss the strategies and tactics used by these poor guys and enslaved to the streets the privileged place of your fun. Keywords: Bumba meu boi. Social Control. Repression. São Luís. Century XIX.

* Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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Foi com o título “O bumba meu boi já vai abusado” que um leitor do jornal

Pacotilha pediu providências à polícia para o fim do espetáculo do Boi que acontecia na Rua

do Sol. Na ocasião, a brincadeira, que ocorria em frente à casa do Sr. Dr. Augusto Rosa,

“embargava completamente o transito”.1 Porém, às vésperas dos dias consagrados a Santo

Antonio, São João e São Pedro, como eram de costume, os participantes da brincadeira do

Boi, reuniam-se para os ensaios.2 Reclamações dirigidas ao chefe de polícia eram feitas pelos

jornais, contra o avanço dos brincantes nas áreas nobres da cidade. Vejamos uma delas:

Pede-se ao exm. Sr. Desembargador chefe de polícia, que lance suas vistas para um ensaio de Bumba meu Boi, que está fazendo junto ao cemitério dos Passos, pois muito incomoda aos moradores daquele lugar com a zuada que os ensaiadores

fazem, já tendo na noite de quarta-feira, saindo do sítio onde ensaiam e passando pelo Caminho Grande, até a entrada do sítio do Sr. Comendador José Joaquim Lopes da Silva. Breve estará, pelo que se vê, dançando no Largo do Palácio, ainda mesmo contra a postura municipal, que os priva de ir à cidade, e mesmo de ensaiar; pois os mesmos ensaiadores, além de batuque que fazem, costumam visitar os quintais da

vizinhança, como já tem acontecido.3

Se a diversão do Boi desagradava a uma parcela da “boa sociedade” ludovicense, da

outra parcela saíram vozes em defesa ao “clássico e tradicional brinquedo denominado

Bumba meu Boi”.4 A voz que ecoava nas páginas do jornal, ressentia-se das proibições do

bispo às festas de arraial nas portas das igrejas e da possível privação pelo chefe de polícia ao

“inocente e aplaudido divertimento”5 do Bumba meu boi. Essa nota alegava que o

1 PACOTILHA. O bumba meu boi já vai abusado. 11 jul. 1881, p. 3. Optamos por atualizar a grafia neste artigo. Cabe destacar que os jornais têm múltiplas funções. Registram eventos da vida diária com suas variadas crônicas, um órgão “livre”, que promove a discussão de uma diversidade de assuntos. Desse modo, faz circular ideias e sistemas de valores e se constitui como um espaço público de representação simbólica. Quanto ao jornal Pacotilha, foi fundado pelo jornalista Victor Lobato, em outubro de 1880. A princípio circulava como um periódico popular e sem filiação partidária. Entretanto, foi se apresentando como abolicionista e republicano. Deixou de circular em definitivo no ano de 1938. Ver IGNOTUS (Joaquim Serra). Sessenta anos de Jornalismo: a imprensa no Maranhão (1820-1880), São Paulo: editora Siciliano, 2001. Ver também SILVA, Celeste Amância Aranha e. Jornais Maranhenses 1821-1979. São Luís: Func/Biblioteca. 2 Em outros Estados do Brasil, a festividade do Bumba meu boi ocorre no mês de novembro até a noite de Reis (6 de janeiro), fazendo parte do Ciclo de Festas Natalinas. No Maranhão, os festejos são sempre feitos no mês de junho. Segundo Maria Michol: “O bumba-meu-boi maranhense é, tradicionalmente realizado na intenção de São João, com base na crença de que agrada a esse Santo (...). Através dos cantos, danças e demais elementos do ritual de bumba, seus participantes rendem homenagem a São João, pagam promessas feitas, ou seja, o boi funciona como veículo de comunicação espiritual, como ponte de ligação entre o Santo e os devotos”. CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Matracas que desafiam o tempo: é o Bumba-Boi do Maranhão, um estudo da tradição/ modernidade na cultura popular. São Luís, s.n.1995. p. 40. 3 PACOTILHA. Publicações a Pedido. 17 jun. 1881, p. 2 (Grifo do autor). 4 PACOTILHA. Bumba meu boi. 20 jun. 1881, p. 2. 5 Ibid. Sobre a construção simbólica do Bumba meu boi como a principal imagem da cultura maranhense e como essa, se constituiu na fala de seus agentes ao longo do final do século XIX e a primeira metade do século XX, ver CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Bumba-meu-boi do Maranhão: A construção de uma identidade. 2001. Dissertação (Mestrado em História Cultural) – Programa de Pós-Graduação em História Cultural, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2001. Ver também o estudo de BARROS, Antonio Evaldo Almeida. O

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divertimento não seria batuque ou mesmo “danças de preto” como o denunciaram e que as

pessoas que participavam deste ensaio, eram livres e o local da brincadeira ficava fora da

cidade, nunca tendo resultado em “desordem e nem mesmo prejuízo a ninguém” 6 e disparava

a dizer que a tal denúncia só poderia vim de “algum sujeito despeitado por não ter sido

admitido na sociedade do Bumba que se estava ensaiando naquele Sítio”.7 E citava o artigo

94, do Código de Postura de 1866, para demonstrar que o Bumba não se enquadrava nas

proibições da legislação:

Fala o anônimo em posturas, mas o que dizem elas? Vejamos: artigo 94. É proibido fazer vozerias, alaridos e dar gritos nas ruas sem ser para pedir socorro ou capturar algum criminoso. Aos contraventores a multa de quatro mil réis, e 24 horas de prisão. Estará o brinquedo do bumba neste caso? Não: porque não pede ele socorro nem capturam criminosos, e muito menos faz vozerias nas ruas da cidade.8

Porém, um “incomodado” voltou a se manifestar, na edição de 21 de junho de 1881,

do mesmo jornal, apontando a voz defensora de ter sido “convidado para pai Francisco” e de

“faltar com a verdade” no artigo do dia anterior. Acusava as autoridades policiais de não

cumprirem as normas porque os ensaios “continuam [ocorrendo] até às onze e meia da noite”.

Perguntava qual autoridade tinha permitido o Bumba e se os dançantes eram ou não todos

livres, como havia dito o “Sr. Defensor”, afirmando que a maioria dos dançantes era composta

de escravos. E acrescentava insatisfeito:

Quanto às festas de arraial e igreja, entenda-se com o Sr. D. Antônio, não há dúvida

que no boi também há padres que batizam e confessam sem licença do mesmo. O que não vai bem é o ajuntamento de povo nestes lugares trazendo grande

quantidade de fogo acabando por cabeças quebradas e pancadaria.9

Dias depois, a discussão seguiu com ofensas. Certo “Cramuella”, assinou um artigo

intitulado “Bumba meu boi”, em que chama o tal “incomodado” de “pobre diabo”, “cachaceiro” e “ladrão de galinhas”. Ressaltava que a brincadeira era promovida por “homem trabalhador e ordeiro” e que o Boi dançaria naquele ano, pois, não seria qualquer “manga de camisa” que daria ordens “à gente boa e séria” e prosseguia:

Que tolo é o tal incomodado. Pobre diabo carregado de esteiras velhas, empalmador do espólio do seu falecido irmão, como qualquer Martins das vestias, cachaceiro, pretende uma vez só, ser gente por meio dos seus figurados incômodos causados pela dança do bumba, o que não há de conseguir porque, nesta terra, a autoridade

pública não serve de instrumento às paixões e ódios pessoais, e muito menos de

cachaceiro.10

Pantheon encantado: culturas e heranças étnicas na formação de identidade Maranhense (1937-65). 2007. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2007. 6 PACOTILHA. Bumba meu boi. 20 jun. 1881, p. 2. 7 Ibid. 8 Ibid. 9 PACOTILHA. Bumba meu boi. 21 jun. 1881, p. 2 (Grifo do autor). 10 PACOTILHA. Bumba meu boi. 23 jun. 1881, p. 3 (Grifo do autor).

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Os ensaios e a festividade do Bumba meu boi poderiam ser autorizadas desde que,

não causassem nenhum incômodo às famílias, pois, na visão das autoridades policiais e dessas

elites, o brinquedo só serviria para congregar gente desordeira e escravos que fugiam de seus

afazeres. Essas autoridades públicas trabalharam no intuito de reprimir essas manifestações

tentando normatizar, fiscalizar e controlar essas folganças, embora como tenha constatado

Correia, as práticas dos agentes do policiamento “apontam mais para um apego aos “usos

reprovados” do que para a integral defesa de uma ordem que se anuncia”.11

Quase um mês antes uma denúncia fazia referência a outro ensaio ocorrido “para os

lados da Madre Deus”, lembrando à polícia que houve “pancadaria velha, sábado último” e

que o lugar já fora palco um ano antes, de: “cacetes, facas, navalhas e soldados do 5º

batalhão”.12 Os cadetes deste mesmo batalhão na véspera da noite de São João na Rua de São

Pantaleão canto da de São Thiago por volta das dez e meia, surraram copiosamente um sujeito

por nome Anacleto Gonçalves Ferreira, que supostamente havia atirado busca-pés nos ditos

cadetes. A recuperação dos ferimentos de Anacleto, segundo os médicos que fizeram o corpo

de delito, seria de vinte e cinco dias.13

Essa violência policial contra a população pobre e escrava era sempre denunciada

nas páginas dos jornais, onde também eram publicadas acusações de que essa força policial

era ineficiente e se utilizava de estratégias e métodos ineficazes de controle e repressão ao

crime e aos atos atentatórios à “moral” das “famílias de bem”. A rotina de agressão era

habitual nas abordagens dos soldados do corpo de polícia. O tratamento dado aos suspeitos

era sempre acompanhado de socos, pontapés e cacetadas. Embora, quando em desvantagem,

tais soldados tenham sido alvos da fúria dessa população que sofria constantemente com os

abusos de autoridade.

Foi o que aconteceu com a patrulha da Rua de São Pantaleão, que foi agredida

brutalmente por vários indivíduos que estavam vindo de um chinfrim em uma das ruas

próximas. O grupo não acatou a ordem da patrulha para que seus membros se recolhessem as

suas casas. Estes, com seus pandeiros na mão, desferiram uma copiosa surra nos soldados,

deixando um desses praças bastante machucado.14 Meses depois nas festividades juninas, os

marinheiros da canhoneira de guerra Lamego, desarmaram dois soldados que faziam a ronda

11 CORREIA, Maria da Glória Guimarães. Nos fios da trama: Quem é essa mulher? Cotidiano e trabalho do operariado feminino em São Luís na virada do século XIX. 1998. Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1998. p. 86. 12 PACOTILHA, 17 maio 1881, p. 3. 13 PACOTILHA, 30 jun. 1886, p. 3. 14 PACOTILHA, 16 abr. 1883, p. 3.

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no Caminho Grande e tomaram a farda de um desses. Os marinheiros continuaram a assistir o

espetáculo do Bumba meu boi quando foram surpreendidos por dez praças. Crescencio, o

marinheiro mais afoito, foi recebido a golpes de rifles que segundo o jornal o deixaram em um

“estado deplorável”.15

As condutas habituais dos soldados que compunham as patrulhas urbanas eram em

parte criticadas pela sociedade. As constantes indisciplinas, o íntimo relacionamento dos

soldados com os sujeitos pobres e os escravos (estes tidos como desordeiros, criminosos)

destoavam do ideal de uma força policial protetora da ordem. Força que se mostrava ineficaz

na política de controle social insistentemente emperrada pelo comportamento “marginal” dos

seus membros. Silva, ao analisar a polícia e os aparatos de policiamento no Piauí, durante o

século XIX, afirmou que: “controlar o comportamento cotidiano dos membros da polícia

significava manter a própria ordem da instituição”.16 Em São Luís, durante este mesmo

período, o corpo policial também se mostrou “incorrigível” e incapaz de inspirar a confiança

das elites; ineficientes no desempenho de suas atividades (manutenção da ordem e combate ao

crime), por fatores como: falta de armamentos, fardamento, alimentação, salário ou mesmo de

homens. Assim, essa força em nenhum momento serviu como um bastião civilizador ficando

aquém do idealizado pelas elites locais.

Embora as queixas de desordens promovidas pelos participantes e acompanhantes do

Boi chegassem aos reclames do jornal Pacotilha, a brincadeira, ao que parece, gozava de certa

aceitação. Nas “Publicações a Pedido” do Pacotilha de 18 de junho de 1883, convidavam-se

os romeiros da capital a “tomarem parte nos bailes, reuniões e folguedos de tão belas noites

quando dançam os bois e caburé, coisa muito bonita e especial”.17 Já no anúncio, “O

ramalhete”, do jornal O Paiz18, de 25 de julho de 1880, as famílias são convidadas a se

fazerem presentes na “concorridíssima” brincadeira do Boi, folguedo que acontecia “num

grande Circo no Caminho Grande”, começando às 4 horas da tarde com a participação dos

“Srs. camponeses”, que levariam o Boi. Para participar da festa era preciso pagar 200 réis; se

fosse acompanhado da família, 400 réis. Era anunciado que a diversão também contaria com a

15 PACOTILHA, 25 jun. 1883, p. 2. 16 SILVA, Mairton Celestino da. Batuque na rua dos negros: cultura e polícia na Teresina da segunda metade do século XIX. 2008. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. p. 86. 17 PACOTILHA, 18 jun. 1883, p. 2. 18 Esse jornal foi fundado em 1863, por Temístocles Aranha, jornalista e seu editor por vinte anos. Até 1878, circulava três vezes por semana, com o subtítulo de jornal católico, literário, comercial e noticioso. Passando a partir deste mesmo ano a ser diário e editado com o subtítulo de “Órgão Especial do Comércio: órgão de classe”. Ver: IGNOTUS (Joaquim Serra). Op. Cit., p. 39-40.

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presença de uma banda de música para animar o ambiente, tudo “na melhor ordem”,

procurando retirar a imagem cristalizada de que esses divertimentos não eram coisas de

“família de bem” ou que eram associados a “rolos”, “cacetes” ou “desordens” de alguma

natureza. A estratégia dos organizadores era não só adequar o divertimento às normas fixadas

no Código de Posturas e nas portarias da polícia, mas também agregar a determinados bois o

certificado de brincadeira ordeira e civilizada. Entretanto, a contragosto das autoridades

policiais e das elites, muitos brincantes, ainda preferiam os bois mais livres e gratuitos, que se

espalhavam pelas cercanias da cidade, com os quais podiam se divertir ao som das matracas e

dos pandeirões, sem esperar pelo beneplácito das autoridades policiais.

Silva, se referindo às festividades do Bumba meu boi no Piauí, afirma que lá a

brincadeira durava todo o ano. Destacavam-se dois momentos: as vésperas de São João e São

Pedro (o “boi de junho”) e os meses de dezembro e janeiro (o “Boi de Reis”), quando

comemoravam o nascimento de Cristo e homenageavam os três reis magos na igreja de São

Benedito, atraindo pretos e escravos da capital piauiense.19 A exemplo de São Luís, a

brincadeira precisaria de uma licença municipal concedida pelo delegado de polícia, pois,

causava muita preocupação às autoridades policiais e as elites locais, ambas temerosas em

relação às possíveis desordens que essas diversões poderiam causar.

Na Rua do Alecrim, em casa de certa Prudência, os reclamantes faziam um

trocadilho com o seu nome e partiam para a denúncia: “todas as noites há imprudência de

ensaiarem Bumba meu boi com vozeria terrível”.20 No dia seguinte, a organizadora dos

ensaios foi acusada de continuar com as encenações mesmo com gente bexigosa na casa e

com o alerta de perigo à salubridade pública. A brincadeira seguia seu ritmo transgredindo os

ideais de civilidade. Para os diversos articulistas desses jornais, o comportamento dos

brincantes ameaçava o sossego público e perturbavam a ordem, porque, os seus participantes

promoviam “vozeria terrível”, “bebedeiras”, “berreiros de dançantes” e logo deveriam ser

reprimidos ou definitivamente proibidos em nome da cidade civilizada. Certo que esses

folguedos populares não eram bem aceitos pelas elites, e quando possível eram denunciados à

polícia como reuniões de desordeiros. O jornal A Flecha21 em tom jocoso trazia uma

19 SILVA, Mairton Celestino da. Op. Cit., p. 106. .20 PACOTILHA, 18 jun. 1883, p. 3. 21 Esse periódico foi o primeiro sistematicamente ilustrado a circular em São Luís em fins do século XIX (1879-1880). A Flecha, como de resto a maioria das revistas ilustradas do período, não tinha o mesmo compromisso com o jornalismo diário que as outras publicações. Foi uma revista de oito páginas com quatro de ilustrações, redigida por João Affonso e que contou com a colaboração de Aluísio de Azevedo. Iramir Alves se referindo a esse periódico destacou: “A Flecha compunha um cenário em que jovens intelectuais tocados pelos novos ventos

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reclamação do Divino Espírito Santo e de Santo Antonio a São Pedro com a alegação de não

serem bem festejados no Maranhão, devido o não consentimento do subdelegado.

Fonte: A FLECHA, 1880, v. 2, n. 41, p. 16.

Nas brincadeiras do Bumba meu boi, também eram muito apreciados os fogos de

artifícios, que se tornaram um dos pontos de destaque destas festividades. As bombas de

pistola, as bichinhas, bombas e os temidos busca-pés que rabeavam em diversas direções

faziam a alegria dos moleques que se aglomeravam em torno do Boi. Era proibida tanto a

fabricação quanto a venda destes fogos pela legislação municipal de 1866, que, segundo o

artigo 108 do referido código determinava: “fica proibido o fabrico bem como a venda de

fogos de artifícios denominados busca-pé. Os contraventores serão multados em dez mil réis e

na, reincidência, no dobro e quatro dias de prisão”.22 Entretanto, os busca-pés nunca estiveram

fora dos divertimentos e eram amplamente utilizados tornando-se um atrativo à parte e

multiplicando-se a cada novo “arraial”. Os anúncios de jornais explicitam a venda às claras

que sopravam da Europa e de centros como Recife e Rio de Janeiro, combatiam pelo fim da escravidão e pela república; propunham uma nova estética literária; enfrentavam, com as armas de que dispunham, o poder da Igreja e seus representantes na província; envolviam-se em disputas locais contra os poderes constituídos tanto no que diz respeito à prestação de serviços públicos quanto à representação legislativa – ou a ausência dela –, pelo menos no plano físico de comparecimento à Câmara, pelos deputados”. ARAUJO, Iramir Alves. A Flecha,

a pedra e a pena: um olhar sobre a primeira revista ilustrada do Maranhão – 1879/1880. 2013. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-graduação em História Social, 2013. p. 12. 22 PUBLICADOR MARANHENSE. Edital. 24 jul. 1866, p.3. Esse jornal foi fundado em julho de 1842. Saia três vezes por semana até 1862, quando se tornou diário. Entre seus articulistas destaca-se João Lisboa, Sotero dos Reis, Temístocles Aranha, Ovídio Gama e Henrique Leal. O Publicador, além de folha noticiosa, doutrinária e encarregada do expediente do Governo, inseriu, de certo tempo em diante, os debates da Assembleia Provincial. IGNOTUS (Joaquim Serra). Op. Cit., p. 29-30.

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destes fogos, o que comprova que a fiscalização não era assim tão eficaz. Em um anúncio

veiculado no Pacotilha de 10 de junho de 1885, lê-se que a “Casa Brasileira”, que ficava no

Largo de Nossa Senhora das Mercês nº 7, vendia:

Busca-pés, luz à boca, dúzia 3$800. Carretilha, idem idem 1$900. Pistolas, idem idem, 3$800 Rodinhas especiais, idem idem, 900 rs. Cento de bichinhas corredeiras, 800rs. Bombas, cento, 1$800. Cartas de bichinhas de estalo 200rs. Foguetinhos, dúzia 900rs.23

Em outro anúncio do mesmo jornal é possível constatar a variedade de fogos

disponíveis para os mais variados gostos e bolsos. A Casa Americana que ficava no Largo do

Carmo oferecia fogos como: a serpente do Diabo, Luz elétrica, Vulcões, Copos Mágicos,

Mergulhadores, Fontes de Pérolas, Estrelas do Paraíso, Cascata de Niágara, Vesúvio, Velas

Napolitanas e Pirâmides do Egito.24 Os mais populares eram sempre os “tradicionais” busca-

pés, pistolas e bichinhas devido o preço e a grande quantidade oferecida tanto por lojas

autorizadas e legalizadas quanto de forma clandestina. Em ilustração do jornal A Flecha sobre

os meses do ano é possível ver o destaque que o jornal dá aos fogos na sua representação

sobre o mês de junho.

Fonte: A Flecha. Meses Maranhenses, 1880, v. 2, n. 41, p.40.

23 PACOTILHA. Fogos Garantidos. 10 jun. 1885, p. 1. 24 PACOTILHA. Fogo Chinez para Salão. 19 jun. 1885, p. 4.

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O que não faltou foram incidentes causados pelo uso descontrolado e impericioso

dos fogos. Na véspera do dia de São Pedro, uma mulher por nome Catharina, que

acompanhava o festejo do Boi, foi atingida no umbigo acarretando um profundo ferimento

com risco de perder a vida.25 A brincadeira de jogar busca-pés na Rua de São Pantaleão

tornou a rua intransitável para os pedestres, era o que afirmava a denúncia do Pacotilha.26

Mais uma vez a nota acusava os “diversos indivíduos sem ocupação”27 de não respeitar as

“famílias” uma vez que, eram “atropeladas pelos busca-pés”28 e obrigadas a se recolherem em

uma casa. O denunciante ainda fazia críticas à polícia que não tomava nenhuma providência

“para o abuso praticado com o pernicioso brinquedo do busca-pé”29 e dormia o “sono da

indolência”.30 Este mesmo jornal descreveu a agitação da cidade nestes dias em que

imperavam as homenagens a São João. Escravos e sujeitos pobres saiam pelas ruas

acompanhados de suas matracas como em um grande cortejo atrás do cultuado Boi. O jornal,

como era de costume, viu nestas manifestações populares algo de barbarismo afirmando que

se um estrangeiro presencia-se tal ato, “julgaria estar a dois séculos atrás nos sertões da

África”.31 Não faltaram nesta descrição da brincadeira as referências aos “desastrosos”

brinquedos de busca-pés e às “esbordoadas de cacete” às quais sempre se referiam as notas

deste jornal. Foi assim que o articulista do jornal Pacotilha descreveu a festa do Boi ocorrida

no Caminho Grande:

A noite de sábado passado foi uma noite de prazeres, de alegrias, de toda espécie de loucuras própria da ocasião, uma noite ruidosa, festiva, iluminada por um luar esplendido. Pelas ruas andava muita gente em patuscadas, folgando, divertindo-se. No ar eram lançadas grandes quantidades de bombas de pistolas. Busca-pés corriam em todas as direções, rabeando umas caudas longas: bichinhas estalavam; bombas estoravam; fogueiras ardiam – produzindo um calor insuportável; ouvia-se a música por toda a parte; dançou-se muito. Lá no Caminho Grande, ante o concurso de uma multidão que ali estava, brincava o boi, produzindo uma gritaria selvagem. Um estrangeiro que presenciasse aquilo julgaria estar á dois séculos atrás nos sertões da África. De todos os lados eram atirados busca-pés sobre o boi, numa quantidade prodigiosa, que o envolviam num oceano de faíscas, e, os vaqueiros, de chapéus arrumados, esgoelavam-se num berreiro furioso, batendo as matracas. E o boi sempre dançando, e os busca-pés caindo-lhe sobre o dorso estrelado, numa abundância de dilúvio, cruzando-se em todos os sentidos, numas irradiações brilhantes, zig-zando por ali fora, espalhando o povo, fazendo correr o mulherio que lá estava apinhado. O boi, opondo aquele ruído infernal a sua eterna mudez movia-se no meio de seus vaqueiros, impassíveis, imperturbáveis, ante tanto busca-pé. E de

25 PACOTILHA, 4 jul. 1881, p. 2. 26 PACOTILHA. A Polícia. 20 jun. 1881, p. 3. 27 Ibid. 28 Ibid. 29 Ibid. 30 Ibid. 31 PACOTILHA, 25 jun. 1883, p. 2.

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lá saiu muita gente esbordoada, com os lombos amarrotados pelos cacetes, e com a pele queimada pelo busca-pé.32

Percebemos, então, que as “diversões de vadios”, desafiavam a todo instante as

autoridades, e iam à contramão da disciplina e do controle almejado pelas elites. O discurso

do progresso evidenciou o embate entre os governantes e a população pobre que, segundo as

lentes elitistas, possuíam uma tendência ao vício, à desordem, ao ócio e à imoralidade.

Todavia, os sujeitos pobres e os escravos não ficaram passivos ao controle sistemático de que

foram alvos. Resistiram criando espaços múltiplos de solidariedade.

Em uma das seções do Pacotilha intitulada “Montes e Vales”, o autor demonstrava

um certo descontentamento com o “costume da terra” que ocorria principalmente em dias de

festas de São João. Afirmava que durante este período festivo, “brancos e pretos confundem-

se, fraternizando nas tradicionais festas de São João”.33 A rua e as diversas manifestações

culturais que nela se abrigavam – a procissão, a festa de igreja, o entrudo – eram o lugar dessa

confraternização dos extremos como já destacou Gilberto Freyre, pois os diversos sujeitos:

“foram fazendo das ruas e praças mais largas – da rua em geral – zonas de

confraternização”.34 Embora algumas dessas ruas abrigassem certas “confraternizações”, em

dias festivos elas também se evidenciavam como focos de tensão e de conflitos entre

extremos sociais.

Cinco dias depois, o mesmo autor da já referida seção fazia críticas ao bumba meu

boi. Para ele, àquela altura do mês o Boi já tinha cumprido sua missão, que era “encher de

vozes o espaço e provocar busca-pés”.35 Em sua opinião, não se podia aturá-lo por muito

tempo, porque não passava de “divertimento grotesco das massas populares”.36 Para a lente

deste articulista, os divertimentos populares não passavam de uma manifestação grotesca, um

incômodo à civilidade, especialmente pelo fato de seus participantes fazerem parte das

camadas mais pobres da população e de alguns desses participantes serem escravos, o que,

segundo ele, necessitaria de um maior controle policial, porque seus costumes eram

considerados “bárbaros”.

32 Ibid. 33 PACOTILHA. Por montes e valles. 25 jun. 1885, p. 3. 34 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 15ª ed. São Paulo: Global, 2004, p. 32. 35 PACOTILHA. Por montes e valles. 30 jun. 1885, p. 2. 36 Ibid.

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BIBLIOGRAFIA

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