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ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

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E S T U D O SDE FOLCLORE CEARENSE

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E S T U D O SDE FOLCLORE CEARENSE

EDUARDO CAMPOS

Fortaleza1960

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AS CLÁSSICAS DUAS PALAVRAS

O que se vai ler a seguir, exceção feita ao �O texto teatraldo bumba-meu-boi�, que é um estudo inédito, todos 08 de-mais trabalhos foram publicados em �Unitário� (Fortaleza) e�O Jornal� (Rio de Janeiro), na agradável imposição semanalde uma colaboração jornalística que, se outro proveito nãoteve, pelo menos ofereceu-nos a oportunidade de entrar emcontato com novos temas do folclore cearense.

É escusado dizer que afora o empenho de pesquisar,com honestidade, e fazer chegar aos outros o que pensamosdescobrir, em sua integridade, nenhuma pretensão de ordemliterária animou-nos. Se algum valor existir nesses trabalhos,insistimos, sê-lo-á, para honra nossa, o da pesquisa sincera. Eacreditamos que tão por isso - o bastante para recompensar otrabalho feito - é que o Magnífico Reitor Antônio Martins Fi-lho, da Universidade do Ceará, resolveu patrocinar a presen-te edição.

O interesse que o modesto livro suscitará, valerá por certocomo estimulo aos que, como nós, sempre se empenharamna procura da verdadeira linguagem de sabedoria e emo-ções do povo.

E.C

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SUMÁRIO

AS CLÁSSICAS DUAS PALAVRAS

O TEXTO TEATRAL DO BUMBA-MEU-BOI........................... 9

INFERNO, CÃO E ENXOFRE ................................................ 49

CANTORIA E RELIGIOSIDADE ............................................ 59

O CAIU � TEMA FOLCLÓRICO ............................................ 69

HERÓIS E VALENTES NO CONCEITO DO POVO .............. 79

DOS REPASTOS, DA REIMA E DE SUASCONSEQÜÊNCIAS ................................................................. 93

MAGIA E MEDICINA POPULAR ......................................... 109

CERÂMICA POPULAR CEARENSE ...................................... 119

MAU OLHADO E OUTROS TEMAS ................................... 127

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O Texto teatral do bumba-meu-boi

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11ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

O bumba-meu-boi ou, simplesmente, o boi, é ofolguedo popular de maior e melhor aceitação entre os me-nos abastados da terra cearense. Quando, aos poucos, vaidesaparecendo a encenação de pastoris e torna-se rara a fun-ção dos congos � distanciando-se a época em que existiram eforam documentados, com facilidade, por escritores comoGustavo Barroso � o bumba-meu-boi conserva-se firme à suatradição de divertir o povo, superando as dificuldades impos-tas pelos tempos modernos e o desinteresse das elites, agora,mais caracterizadamente desamorosas aos sentimentos cole-tivos dos pobres.

Em parte, o desinteresse pelos folguedos populares decor-re do advento dos meios modernos de diversões � o cinema,o rádio, por exemplo � do futebol, da vida social mais inten-sa em clubes, sob a influência de novos hábitos; do próprioencarecimento do custo de vida, tornando difícil a formaçãode novos grupos festeiros para divertimentos sadios e, emúltima análise, da falta de estímulo do poder público poucoreceptível a essa modalidade de entretenimento das massas.

Tema apaixonante para numerosos folcloristas, o bumba-meu-boi tem ido às páginas de diversos livros, merecendojudiciosos estudos e interpretações. Dentre tantos, que a me-mória não ajuda a citar sem as inevitáveis omissões, podere-

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mos lembrar os nomes de Gustavo Barroso, Luís da CâmaraCascudo, Rodrigues de Carvalho, Melo Morais Filho, OneydaAlvarenga, Florival Seraine, Ascenço Ferreira.

O folguedo popular, tendo como principal figura o boi,não é divertimento somente nosso. Pode-se descobrirsemelhanças no �Beef Gras� dos franceses, na �pantomimataurina chamada �La Barroza�, que se realiza na localidadede Ovejar, da província espanhola de Soria, com um touro dedisfarce�, conforme lembra Florival Seraine, citando HoyosSáinz, de onde teria se gerado. E de acordo com outros, ins-pira-se o autodramático no culto ao boi, animal que nessedesfilar de séculos já conheceu fases em que foi homenagea-do com respeitosa adoração. Não faz muito tempo, no Ceará,existiu um touro considerado milagroso. O fato ocorreu emJuazeiro do Norte. O animal pertencia ao beato José Louren-ço e foi morto por ordem do deputado Floro Bartolomeu daCosta, em face da exploração e do fanatismo que se forma-vam em volta do animal, cuja urina era receitada para oftalmias.

Pelo que temos lido, melhor ainda, pelo que temos igual-mente pesquisado, o boi, antigamente, era folguedo em queavultavam os versos musicados, cantados pelos foliões quese acompanhavam de instrumentos comuns ao ambiente. Écerto que sempre houve uma parte dialogada, mas tão pe-quena, que servia apenas para dar seqüência aos númerosmusicais que os brincantes entoavam, e auxiliar a interpreta-ção que as figuras desejavam emprestar à brincadeira.

Imaginamos ser o bumba-meu-boi um autodramático,de gênero quase idêntico àquele que Gil Vicente, por ocasiãodo nascimento de D. João III, fez representar na corte portu-guesa. Brito Rebelo, autor da biografia de Gil Vicente (edi-tada em 1912, em Lisboa), conta-nos que se achavam �nacâmara da real puérpera, além de D. Manuel, seu esposo, aduquesa de Bragança, irmã deste, e a mãe de ambos a infanta

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d. Beatriz, a quem a rubrica chama rainha. Entrou a certotempo um vaqueiro, que fingindo-se agredido pelos guardas,à entrada, refere o que passou nesse conflito: depois dirigin-do-se ao príncipe e à rainha apresenta-lhe os seus ascenden-tes, e termina por fazer entrar diversas figuras em trajo depastores...�

Somos levados a crer que os promotores do folguedo,cujas raízes se perdem no tempo, tentando favorecê-lo paramelhor aceitação, atualmente estão enriquecendo-o de maisdiálogos. E é principalmente essa fase que oferece ao boimaiores possibilidades de penetração em seu público, sem-pre numeroso.

É bem verdade que em certas passagens da brincadei-ra surgem diálogos em que vão repetidos lugares-comuns defarsas, embora predomine no desenrolar do tema a mesmaespontaneidade, marcada pelo espírito atilado e, muitas ve-zes, irreverente do homem do sertão.

Dispondo-nos a realizar esse trabalho, não tivemos apreocupação de escrever uma interpretação definitiva, ou pelomenos diferente do bumba-meu-boi, mesmo porque podería-mos sacrificar o ângulo de exame pelo qual o acompanha-mos em sua evolução, sem livrá-lo do grave prejuízo da adoçãode alguma infeliz e pretensiosa teoria. Desejamos servir oresultado de nossa pesquisa sobre a atualidade do boi a ou-tros estudiosos, como simples contribuição, e assim fazemo-lo, não por comodismo, mas por precaução e zelo.

Em verdade são poucos os elementos elucidativos e hátodo um caminho a percorrer � no qual a pesquisa há de terinestimável valor até que seja encontrado o aferidor para asalterações que está sofrendo o mais importante folguedo po-pular do Ceará, tornando-se entre nós, decididamente, umautodramático marcado por viva dialogação, espontânea ealegre, que distrai, e que não vimos repetida em trabalhos

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anteriores sobre o assunto, o que nos encoraja a acreditartratar-se de uma particularidade do Ceará, ou, não preten-dendo muito, um detalhe importante até agora posto à mar-gem pelos pesquisadores.

Para o presente estudo tivemos que assistir à exibiçãode vários bois, selecionando os dois que nos pareceram me-lhores, denominados: Boi Paraense e Boi Fortaleza. O pri-meiro, vimo-lo apresentar-se em Mondubim, distrito doMunicípio de Fortaleza, a poucos quilômetros do centro dacidade. O segundo � de características mais interessantes parao estudo que ora empreendemos � fazia exibições restritas àorla marítima, notadamente em pontos como Mucuripe, Voltada Jurema e adjacências. De um modo geral, nada de especi-al existe para os distinguir de tantos outros bois estudadosanteriormente por diligentes pesquisadores. Os personagensque participam do folguedo são quase os mesmos e vestem-se modestamente. Os homens, via de regra, apresentam-sede calças de laquê amarelo e blusa azul; as mulheres, de saiaverde ou azul ou blusa igualmente amarela. Tipos definidoscomo a negra Catirina (que retrata uma velha metida numvestido velho, rasgado e desabusada), os índios (de cocares epenas), o Vaqueiro: (com a sua veste de couro, gibão, etc.),são exceções nesse precário guarda-roupa. Acrescente-se quepequenos detalhes na fantasia de cada um serve sempre paraexplicar-lhe a identidade. Assim sendo, em ambos os bois, oCapitão usava um quepe e exibia uma chibata (símbolo daautoridade) � a Rainha ostentava bonita Coro:a e o Doutor: �que fazia duas ou três entradas � aparecia nessa ocasião car-regando uma mala, exagerada versão da maletinha médica.Quanto às figuras, tirante a do Caboré que vimos descrita,anteriormente, apenas por outro estudioso da matéria (trata-se de uma ave noturna), as demais são comuns no folguedo:boi, burrinha, ema, etc.

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15ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

O boi é uma armação de sarrafos e taliscas de madei-ra, às vezes feito de vime entrelaçado, dando forma a umarcabouço taurino que se assemelha ao real. Referidoarcabouço é coberto de fazenda grossa � quase sempremorim � pintada de branco com pintas pretas. Outros boissão pintados de azul ou amarelo, mas em todos existe aparticipação do branco dando-lhes colorido especial. De-baixo dessa armação esconde-se um homem � o mais astu-to do grupo que se diverte � que dança e, em váriasoportunidades da brincadeira, corre atrás dos meninos,ameaçando-os com os cornos.

As figuras, à imitação do boi, tanto quanto possível,acercam-se da semelhança do animal representado, emboranão seja necessário esconderem-se os dançarmos sob a arma-ção para movimentá-los, como no caso do boi. O dançarinoaparece por inteiro, dando a impressão de que está montan-do no animal. Sirva de exemplo a burrinha. Geralmente afigura é uma composição híbrida: homem e bicho ao mesmotempo, e que invariavelmente assusta as crianças.

Nas apresentações do Boi Fortaleza assinala-se que ape-nas três figuras o integram, enquanto avultam em númerobem acrescido os personagens. Existem alguns deles que rara-mente vimos citados anteriormente, como o noivo, a noiva eo padre. Aliás, registre-se de uma vez por todas: nas pagodei-ras coletivas do povo cearense, principalmente no tríduo mo-mino, o casamento é uma pantomima das mais representadas.É inevitável, no carnaval, a presença do casamento, cena hu-morística, rememorando casamentos que se realizam na roça,quase sempre numa crítica pouco feliz aos nossos irmãossertanejos.

Até bem pouco tempo não havia divertimento de mo-ças e rapazes que não incluísse o tão animado casamentocom a presença dos noivos, dos padrinhos, do padre e de

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um sacristão que, normalmente, serve para sublinhar as pas-sagens mais jocosas com perguntas e respostas disparatadas.O autodramático da praia, denominado Boi Fortaleza, é maisteatral do que o seu homônimo de Mondubim, que aindaguarda a semelhança com os demais bois estudados antes.Os cantos que marcam as entradas das figuras e dos persona-gens são em menor quantidade e não têm a riqueza do fol-clore musical apresentado pelo primeiro.

Guardando absoluta fidelidade aos diálogos, anotamostodas as cenas, de maneira cuidadosa, e para tanto tivemosque assistir a ambos, mais de uma vez. O que se vai ler aseguir, na medida do possível, é a linguagem saborosa, na-tural, dos nossos artistas populares. Muitos dos repentesregistrados na primeira vez não se repetiram depois, o queprova existir muita improvisação no desenrolar da brinca-deira. Entretanto, em linhas gerais, o bumba-meu-boi de-senvolve-se, guardando as mesmas características, adotandooutras quando se desloca para ambientes onde a populari-dade e a importância de seu patrocinador exige que se alte-rem algumas passagens dos diálogos ou dos versos, em suahomenagem.

Obedeceremos à prosódia natural dos dois grupos defoliões, na reprodução do texto teatral, mesmo porque registrá-los de outra maneira seria correr o risco de prejudicar o rotei-ro de palavras que serve de apoio a ambos os folguedos.

Preferimos, igualmente, adotar o sistema teatral na ma-neira de redigir, ficando entendido que a parte descritiva,sem nenhuma ligação com o texto, estará sempre desenvol-vida entre parênteses.

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�BOI PARAENSE� (Da Serrinha)

Personagens: Vaqueiro:GalanteGalante IIDondonGeneralGeneral IICapitãoCatirinaRainhaÍndios (4)

Figuras: Papangus (3)BoiBurrinhaEmaCaboré

Local: Mondubim, residência do Sr. JoaquimAlves da Mota. Véspera de Reis (1953).

(Aproxima-se o grupo que exibe o bumba-meu-boi. Àfrente, fazendo passos e volteios, vem o boi. A ponta do chifreprende-se uma lamparina. Há gritos cadenciados dos vinte epoucos personagens que o seguem: �Éh boi!� ��Éh boi!�. Dian-te da casa do senhor que patrocina a exibição, o bando estaca.Os que se divertem, formam um círculo. A essa altura o patro-cinador da exibição e seus familiares já se encontram sentadosà calçada, pois o folguedo vai ser apresentado na rua).

Vaqueiro: (Com um bastão na mão, dando pulos, vaiaté aonde se encontram os promotores da festa). E canta:

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O BOI

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19ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

�Entremos, entremos,Em ordem de fogo!Stamos com muita alegriaCom Nosso SenhorCom a Virgem Maria!�

Coro: (Repete) �Entremos, entremos...�

Vaqueiro: �Nós somos soldadosDe dois batalhõesDe costa e de frenteCom joelho na terra

Coro: (Repete) �Entremos.. entremos.

Vaqueiro: Entremos, entremos,Em jardim de florPor Nosso SenhorPor Nossa SenhoraPor Nosso SenhorPor Nossa Senhora

Coro: (Repete) �Por Nosso Senhor, etc....

Doutor: (Bate palmas, a poucos passos do Vaqueiro:que agora, após ouvir o Coro:, está calado).

Vaqueiro: Quem está batendo aí?

Doutor: A mão direita na esquerda.

Vaqueiro: (Levantando a voz, fazendo-a ao mesmo tem-po gutural)

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Me responda quem tá batendo aí, e se a mãodireita tem dono?

Doutor: Essa mão direita qui tá batendo na esquerda éa gota serena. O que eu quero aqui é o sibite.

Vaqueiro: Que sibite qual nada. Fale direito: é o seguinte!

Doutor: Mas minha língua num dá pra dizer seguinte.

Vaqueiro: E você num disse agora?

Doutor: (Fingindo-se esquecido) E eu disse? Mas eudisse mesmo se-guin-te?

Vaqueiro: Cabra, eu puxo sua orelha! (Pega-o de sur-presa e puxa-lhe as orelhas).

Doutor: Ai! Ai! Ai! Eu vim aqui foi contar uma história.Então conte. Não seja desaforado. (Seguran-do-o pelas orelhas, abana-lhe a cabeça de umpara outro lado). Respeite as incelências!

Doutor: Virge! Você pensará que eu sou gaveta praficar pra lá e pra cá?

Vaqueiro: (Dá-lhe uma bofetada. O Doutor: cai). Toma!

Doutor: Ai, que dor no camburão!

Vaqueiro: Que camburão, cabra ignorante! Coração.Não tem acanhamento de vir dizer besteirana praça pública!

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21ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Doutor: Massa puba? Me dá dois tostão dela pra eudar pros porcos...

Vaqueiro: Que massa puba! Eu falei em Praça Pública.(Pausa). Pois é, aqui na avenida...

Doutor: (Fazendo-se desentendido) � Na ferida?

Vaqueiro: Que ferida qual nada. Eu não tenho ferida.Eu vivo bem.

Doutor: É, mas o poleiro dos outros é que sofre com isso...

Vaqueiro: Mas diga lá o que você vinha dizer.

Doutor: Eu vinha trazer um remédio pra sua mãe.

Vaqueiro: Quando é que ela morre?

Doutor: Ela morre daqui pro fim da vida.

Vaqueiro: Diga que remédio você trouxe?

Doutor: Tenha carma. Foi coisa que eu nunca vi: qua-tro pebas num buraco, lagartixa mascar fumoe galinha cheirar tabaco.

Vaqueiro: Mas diga o remédio, cabra!

Doutor: Bom, o remédio é cabelo de cobra, perna detamborete, numa panela sem fundo. E pronto.

Vaqueiro: Doutor: das miseras! (Corre atrás do Doutor:que se esconde no meio dos outros. Apita.

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Canta o Coro: com acompanhamento de pe-queno regional).

Coro: �Eu tava na peneiraEu tava penerandoEu tava no namoroNamora, tou namorando�.

Vaqueiro: �Quando eu vim lá de casaE passei no IguatuTodo mundo me diziaVocê roubava peru�.

Doutor: �Eu tava na peneira... etc.�

Doutor: �Menina, se queres bemNão te põe a magináQuem magina cria medoQuem tem medo num vai lá�

Coro: �Tava na peneira, etc..

Vaqueiro: �Lá vem a lua saindoRedonda como um anelQuem namora moça bonitaVai direto para o céu�.

Coro: �Tava na peneira, etc

Doutor: �Doninha, diga a seu paiQue eu sou trabalhadorChovendo, não vou pra roçaCom sol quente lá não vou

Coro: �Tava na peneira, etc...

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23ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Vaqueiro: �Escute, meu caro Doutor:Dê valor ao meu cantarEu sou Vaqueiro: velhoNum prometo pra faltar�.

(O Vaqueiro: apita outra vez. Os índios, que estavammais afastados, aproximam-se do centro do círculo dos foliões.O Coro:, que é constituído da Rainha, Galantes e índios � dosquatro, dois são mulheres � principia a entoar a outra canção).

Coro: �Meu canário amareloCantador!Se tu vais, ó peneiraEu também vou!

Vou tirar essas penasQue tu tem!Pois amar a donzelaE querer bem

(O Coro: silencia. No mesmo instante o Doutor: batepalmas, como o fizera no início do espetáculo).

Vaqueiro: Quem está batendo?

Doutor: É a mão direita na esquerda.

Vaqueiro: Pois entre.

Doutor: Já �stou dentro.

Vaqueiro: Quem é você?

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A BURRINHA

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25ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Doutor: Eu sou o dr. Fôia seca.Vaqueiro: Que Fôia seca. Você quer dizer Fonseca...Doutor: É, mas minha língua não dá pra dizer

FON-SE-CA.

Vaqueiro: E você num disse agora?

Doutor: E eu disse? (Para o público). Vocês ouviram?Eu falei nisso?

Vaqueiro: (Autoritário). Venha cá. Explique pros ho-mens o que veio fazer aqui.

Doutor: Eu vim negociar.

Vaqueiro: Negociar o que?

Doutor: Eu vim vender o Burelzinho.

Vaqueiro: que é que ele sabe fazer

Doutor: Ele sabe somar, dividir, diminuir, roubar...Doutor:(Pausa, mudando logo de tom) � Roubar, não.

Vaqueiro: Chame o menino.

Doutor: Vem cá, Burelzinho.

(O conjunto de pau e cordas principia a to-car. Burelzinho � que é um menino que dan-ça representando a Burrinha � faz a divertidacoreografia. De repente, como se acometido

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por um mal súbito, cai ao chão. Há um alvo-roço exagerado de todos os personagens...)

Doutor: Virgem! O menino morreu!

Vaqueiro: Vamos, Doutor:, dê um jeito.

Doutor: Não posso não. O menino �stá morto. (Pau-sa) Este menino é seu filho. Se você chamarpor ele, ele fica bom e se levanta.

Vaqueiro: Que meu filho qual nada!

Doutor: Pois vamos fazer uma aposta.

Vaqueiro: Dez cacetadas contra dez.

Doutor: Pois chame o menino, três vezes

Vaqueiro: (Meio tímido, desajeitado, aproxima-se de Bu-relzinho): Meu filho, meu filho, meu filho.

Doutor: Chame novamente..

Vaqueiro: Meu filho, meu filho, meu filho!

Doutor: Virgem! Parece que o menino é meu filho.(Vai até perto do menino). (Voltando-se parao Vaqueiro:) Se fosse já tinha acordado.

Vaqueiro: Chame alto.

Doutor: (Com receio, ainda baixo) filho, meu...

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27ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Burelzinho: (Acordando): Inhor, meu pai.

Vaqueiro: É seu, cabra, se prepare para apanhar.

Doutor: Não faça isso comigo Tenha piedade. (Dei-ta-se ao chão).

Vaqueiro: Se levante, cabra, que eu só dou em homemem pé.

Doutor: Pois eu então não me levanto. (Desenvolve-se um diálogo muito rápido entre o Vaquei-ro: e o Doutor:, causando hilaridade aopúblico. Burelzinho principia a chamar depai a um e a outro. Tão empolgados ficamna discussão que se erguem Burelzinho e oDoutor:. O conjunto de pau e corda volta atocar. É a vez do Coro:).

Coro: �Cai, cai, chuva miudinhaNa copa do meu chapéuEu também sou miudinhoComo a estrelinha do céu.Vaqueiro: �Cajueiro pequeninoCarregado de fulôEu também sou pequeninoCarregadinho de amô�.

Coro: �Cai, cai, chuva miudinha, etc.�.

Doutor: �A estrela marianteEsteve lá no alto marEu também sou mariantePara o mar vou navegar

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Coro: Cai, cai, chuva miudinha... etc.�

Vaqueiro: Necessidade, calafrio, tosse e preguiça.

Vaqueiro: �Joguei meu limão n�águaDe pesado foi ao fundo.Triste da mocinha novaQue cai na boca do mundo�.

Coro: �Cai, cai, chuva miudinha, etc...

Doutor: �Menina dos olhos grandesSobrancelha de veludoSeu pai não tem dinheiroMas seu riso vale tudo...�

Coro: �Cai, cai, chuva miudinha, etc...

(O Vaqueiro: apita. Cessa o Coro:. O Doutor:já está mais afastado, batendo palmas).

Vaqueiro: Quem está aí, batendo palmas?

Doutor: Pronto, seu Vaqueiro:, sou eu...

Vaqueiro: Eu quem?

Doutor: O homem que vem vender um boi.

Vaqueiro: Vender um boi? E esse boi presta?

Doutor: Presta. Esse boi sabe fazer tudo. Dança,pinota corre atrás de menino, é valente, dápontada...

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29ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Vaqueiro: O boi é meu. Pago toda a minha fortuna porele.

Doutor: Qual é a sua fortuna?

Vaqueiro: Necessidade, calafrio, tosse e preguiça.

Doutor: Não serve! O boi é bom mesmo. Só vendopor cem contos!

Vaqueiro: Pois é meu. No dia se São Nunca volte aquie eu lhe pago. (O boi se aproxima, fazendopassos, enquanto a orquestrinha já voltou atocar outra vez. Há uma curiosidade exage-rada de todos os personagens para ver o boi.O boi no meio do círculo continua fazendovolteios�.

Vaqueiro: �Vá buscar o meu garroteNas campinas do sertão,Meu Deus, meu amo me chamaMeu Deus, para que será!�

Coro: �Sete dias, sete noitesQue ando na vaquejadaAtrás do Boi ParaenseQue não dormiu na malhada�.

Vaqueiro: Chama a Catirina! Onde anda negra!

Catirina: (Entra aos pulos, com um cabo de vassouraprocurando atingir os presentes com paula-das) Ai, que sou a negra danada!

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Vaqueiro: Cadê o meu chapéu de couro, Catirina?

Catirina: Vim só trazer ele, meu amo. (Entrega-lhe ochapéu de couro).

Coro: �Ó mana, vamos nós doisPegar o boi!Ajudar o MatheusPegar o boi!�

Vaqueiro: �Pastorinhas belasQue andam fazendo?Pastorando o gadoQue estão comendo!�

Coro: �Ó mana, vamos nós dois, etc�.

Vaqueiro: �Me dga pastoraQue faz aquiPastorando o gadoLá do meu Piauí

Coro: �Ó mana, vamos nós dois, etc�.

Vaqueiro: (Vai para a frente do boi, a excitá-lo compalavras e gestos, convidando-o à dança): Va-mos pra frente, meu boi bonito! Passa pracá! Olha o pessoal!(A orquestra toca em ritmo apressado. O boidança, enquanto o Vaqueiro: vai cantando)

Pega essa roupa!

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31ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Coro: É boi!Sem galizia!

Coro: É boi!

Fasta pra trásOlha esse negroSe o negro é doidoSabe lutarSem padrinhoCom valentiaQuando eu mandarEle vai emboraVai descansarBumba-meu-boiQuero um serviçoCapitão, olhe o boiPreste atenção!Que eu vou cantarQuando eu mandarNão tenha medoFaça carreiraBoi ParaenseBoi ladainhaPega de jeitoFaz continênciaPra essa RainhaEla vai dominarCom o chefe Vaqueiro:Em todo lugar, etc., etc.

(Depois de alguns minutos o boi, de repen-te, prosta-se ao chão. Há gritos dos persona-gens: �O Boi morreu!� E o Vaqueiro: curiosoanda à procura de saber quem matou o boi).

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32 EDUARDO CAMPOS

A EMA

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33ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Vaqueiro: Quem matou o boi?

Doutor: Só pode ter sido a morte.

Vaqueiro: Mas você é o Doutor:, precisa dar um jeito!...

Doutor: Quem dá jeito é queda de cabeça pra baixo...

Vaqueiro: Eu paguei o boi. Quero o boi vivo!

Doutor: Pronto, já me lembrei Vou fazer um remédiopra ele.

(Sai correndo atrás dos meninos. Quandoagarra um deles, trá-lo às pressas e joga-oaos fundilhos do boi. Há meninos que cho-ram, outros que gritam... e as gargalhadastomam conta da platéia improvisada).

Coro: �Boa noite, seu moçoComo está, como passou?Vim vender a língua do boiQuem morde sem fazer dorSenhor dono do boiNão acredite, é mentira!

Boa noite, seu fulano (nome da pessoa im-portante presente ao folguedo)

Como está, como passou?Vim vender o fígado do boiQue dá sustança a Doutor:Senhor dono do boiNão acredite que é mentira.

Boa noite, seu fulano, etc.�

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34 EDUARDO CAMPOS

Assim vão distribuindo todas as vísceras do boi. Há ver-sos interessantes, principalmente quando a distribuição che-ga à partilha dos chifres (símbolo da infidelidade conjugal) eda rabada. Essa última parte fica sempre para a rapazeada,no aproveitamento lógico da rima. Concluída a partilha � eenquanto se processa corre uma bandeja recolhendo o di-nheiro, principalmente das pessoas contempladas com a di-visão do boi � o coro volta a cantar, mais alegre comacompanhamento de orquestra).

Coro: �Eu vou mimbora,Maneiro pau, maneiro pau!Segunda-feira que vemManeiro pau, maneiro pau!

Quem não me conhece choraManeiro pau, maneiro pau!Que fará quem me quer bemManeiro pau, maneiro pau�.

Vaqueiro: �Se não for na lancha novavou no rebocadorVou mimbora pra serrinhaO paraense é o vencedor�.

Coro: �Eu vou mimbora, vou mimbora,Maneiro pau, maneiro pau!Segunda-feira que vem, etc., etc.�

(Retiram-se todos. O Boi, já de pé, marcapassos, procurando atingir os circunstantescom marradas, enquanto é grande o alvoro-ço dos que se dispersam. Na ponta do chi-fre, novamente, a lamparina acesa...)

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35ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

II

�BOI FORTALEZA� (Das praias de Fortaleza)

Personagens: VaqueiroMateusDoutorÍndios (4)PadreNoivoNoivaCatirinaCapitãoInocêncioPapangus (4)

Figuras: BoiBurrinhaUrubu

Local: Mucuripe, Fort. 1952.

(Como no auto anterior, os que participam do folguedose aproximam do terreiro da casa aonde vai ter lugar a fun-ção. A função, no caso, é a dança do bumba-meu-boi. Ogrupo se aproxima, e forma diante da casa do patrono dabrincadeira).

Coro: �Senhora dona da casaNão queremos seu dinheiroQueremos sua licençaPra brincar no seu terreiro (bis)�

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Vaqueiro: �Cajueiro pequenino NoivoCarregado de fulôEu também sou pequeninoCarregadinho de amô�.

Coro: �Senhora dona da casa, etc...

Vaqueiro: �Se essa rua fosse minhaEu mandava ladrilharCom pedrinhas de diamantePara o meu boi passear�.

Coro: �Senhora dona da casa, etc.�

Vaqueiro: �Chove, chuva miudinhaNa copa do meu chapéuEu também sou miudinhoComo as estrelas do céu�.

Coro: �Senhora dona da casa, etc...�(É feito um círculo mais ou menos de quinzemetros. No centro, ao findar o canto, Catirinasapateia com Inocêncio, quando batem pal-mas. Os dois param de dançar).

Inocêncio: Que diabo é isso. Parece que tão batendopalma com uma mão de pilão. Vai lá, Catirina.

Catirina: Não é ninguém não, meu velho. é um rapazque quer falar com você.

Inocêncio: Manda ele entrar.

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37ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Noivo: Bom dia, seu Inocêncio, eu quero uma con-versa com o senhor.

Inocêncio: Vá dizendo o que quer.

Inocêncio: Seu Inocêncio, eu quero casar cum a sua fiaFrancisquinha. Eu vim pedir a sua fia em casa-mento.

Inocêncio: (Virando-se para Catirina. Evidentemente fin-ge que é moço e que entende tudo ao con-trário. É a graça da brincadeira) Mas minhavelha esse homem veio dizer que as meni-nas andam no calçamento.

Noivo: Não seu Inocêncio. Eu vim foi pedir a mãoda sua fia.

Inocêncio: Ah, quer casar com ela. Minha fia que estru-mo tanto. Você trabalha em que?

Noivo: Eu sou birreiro. Faço birro de almofada.

Inocêncio: Como é que você quer sustetnar minha fiacom birro.

Noivo: Ora, eu sustento até o senhor e a d. Catirina.

Inocêncio: �Stá bem. Quando é isso?

Noivo: É na quinta-feira.Inocêncio: Catirina, chama a noiva.

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Catirina: (Gritando para o lado) Anda, minha fia, queo homem quer casar.

Noiva: (Entrando) � Ai, ai, ai, ai!

Inocêncio: Virgem, como anda isso de facho aceso!

Noivo: Preciso ir chamar o padre!

Catirina: Quem vai buscar ele sou eu. (Alegrando osdemais) Viva o noivo, viva a noiva! (Aorquestrinha principia a tocar. O Vaqueiro:faz o boi dançar, enquanto o coro principiaa cantar...)

Coro: �Levanta, Boi FortalezaBoi primeiro do lugarLá vem o boi, lá vai o boi!De lá, daqui pra lá!�

Vaqueiro: �Desde que meu boi nasceununca mais serrei as pontasLá vem boi, lá vai boi!E eu torno a cantar�.

Coro: �Levanta, Boi Fortaleza, etc.�

Capitão: �Onde está o meu vaqueiroQue eu não ouço falarSe ele é vivo ou se é mortoQuero mandar enterrar�.

Coro: �Levanta, Boi Fortaleza, etc.�

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39ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

Vaqueiro: �Levanta, Boi Fortaleza,Boi primeiro do lugarBoi de fama como esteNos sertão não haverá.�

Coro: �Urrou! Urrou!Urrar! Urrar!Urra meu boi nas campinasE canta a sereia do mar (bis)�.

Capitão: Matheus, vá ver se Catirina já vem com opadre! Mateus: É já, meu capitão.

Capitão: �É ele, já vem chegando. (O padre se apro-xima, seguido de Catirina)

Mateus: É o padre Maçarico!

Padre: Maçarico não, Maçalino. Pra que me manda-ram chamar?

Inocêncio: Foi pra casar minha fia. (Outro tom) Cadêessa praga? Onde se meteu a noiva?

Noiva: Tou aqui, pai.

Padre: Num vamos perder tempo. O noivo pra esselado e a noiva pro outro. (Virando-se paraum dos personagens). Sacristão, quando eumandar tu baixar, tu te alevanta, quando eumandar levantar, tu te baixa... Agora. (Demaneira solene, diz em voz alta as seguintespalavras como se fosse uma oração). Orate

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frate... Urucubaquinha da miúda, sebo depulga, misturada com banha de cafute, ligueesses dois pedaços de mau caminho... Sa-cristão, diz Amem! Pronto.

Capitão: Aconselhe agora os noivos, seu Padre.

Padre: Praga de percevejo, bicho de pé tome contade vós. Hão de viver como gato e cachorro,hão de ter tanto sossego como as ondas domar. E, agora, eu quero meu dinheiro.

Capitão: Paga o padre, Catirina.

Inocêncio: Mete a bexiga nele! (Catirina corre atrás dopadre para castigá-lo. O padre foge. Há gri-tos dos circunstantes. Principiam todos a can-tar com acompanhamento do conjunto depau e corda).

Capitão: Ele é meu boi � É boi!Meu boi bonito � É boi!Amola as pontas � É boi!Dá nesse povo � É boi!Dá meia volta � É boi!�

Matheus: vaqueiro, olha o boi, te prepara cabra, segu-ra o boi pelas pontas.

Capitão: �Ele é meu boi � É boi!Dá no Vaqueiro: � É boi!Vaqueiro olha o boi � É boi!Dá nesse cabra � É boi!�

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Vaqueiro: �Mateus olha o boi � É boi!Dá nesse negro � É boi!Olha o boi, Mateus, segura ele pelas pontasCatirina olha o boi � É boi!Dá nessa nêga � É boi!Dá no boi, Catirina � É boi!Pega a nêga com jeito � É boi!�

(O boi, a certa altura do folguedo, deita-se.Pára de movimentar-se. O capitão, aflito, in-terpela ao Vaqueiro: e a Mateus. Cessa oacompanhamento musical. Cala-se o coro).

Capitão: Como é que esse boi �stava dançando e derepente fica doente? Só mandando buscar oDoutor: pra consertar ele. Mateus, vai nabotica e diz ao Doutor: que é preciso recei-tar o boi. Tu não vai chamar o Doutor: deCanabraba, o nome dele é Canabrava.

(Mateus sai ligeiro, e, um pouco afastado dogrupo principal da brincadeira, dá o recado).

Mateus: Dr. Canabraba, seu capitão mandou dizer prosenhor ir consertar o boi que está doente,tudo vomita o que come.

Doutor: (Aproximando-se, acompanhado de Mateus).Dr. Canabraba o que, seu Patife, canela suja!Meu nome é Canabrava. Vê lá se eu sou dou-tor do boi. Eu sou é formado nas estranjas,Doutor: pra ganhar dinheiro.

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Mateus: É pra ganhar dinheiro, seu doutor.

Doutor: (Pára a poucos passos do capitão). Diga praele que só vou de automóvel!

Mateus: (Indo ao Capitão) Seu Capitão, o doutor foimordido de cachorro doido. Disse que sóvem se for de astromove.

Capitão: Vai na garage e tira um carro pra ir buscar odoutor.

Mateus: (Dá umas voltas e se aproxima outra vez doDoutor:). � Pronto, se amonte aqui nas mi-nhas costas, que o automóvel chegou.

Doutor: (Sobe para os ombros do outro, que o levapara o centro do círculo em que se desen-volve o folguedo) Pronto, cheguei. Pra queme mandaram chamar?

Capitão: É o meu boi do Piauí que �stá doente e euqueria que o doutor passasse uma receita.

Doutor: O que é que tem o boi?

Capitão: Sei lá, seu doutor. Se eu soubesse não lhemandava chamar.

Doutor: Bem, vamos receitar. Bote a língua do boipra fora, Mateus. (Mateus procura executaras ordens). Chi... o boi �stá com os figos es-tragados. Esse boi andou comendo cimento

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43ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

armado. Vou passar a receita. Dê ao boi umasaca de sessenta quilos de sal-amargo dissol-vido numa xícara dágua. E eu vou logo dáuma injeção de raio de chifre. Agora, eu queromeu dinheiro.

Capitão: Paga o doutor, Catirina. Taca a bexiga nele! (OBoi levanta-se e volta a dançar outra vez). CorreMateus! (Catirina e Mateus, sob a assuada dosmeninos, correm atrás do doutor, castigando-o.O Boi levanta-se e volta a dançar outra vez).

Coro: �Vaqueiro: de chapéu de couroBabicacho de pendãoQuantas carreiras deu hojeQuantos bois botou no chão?�

Vaqueiro: �Não pegue na folha do couveNão rasgue pendão de alhoVocê diz que couve é couveÉ couve, cebola, é alho!�

Coro: �Vaqueiro: de chapéu de couro, etc.�

Vaqueiro: �Ai, meus canários belgas

Coro: �Ai, meus curiós!Ai quem de mim tem pena!Ai quem de mim tem dó!�

(Há gritos e palmas. Alguns anunciam: Olhea Burrinha! E a Burrinha entra em ação,saltitante, dançando. Todos cantam).

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Coro: �Olê, ô-lá-lá! Olê, ô-lá-lá!Peia a burra, meu cabôcoNão deixa a burra se soltar!�

Mateus: �A burrinha de meu amoCome carne com arrozArrenego dessa burraQue não pode com nós dois!�

Coro: �Olê, ô-la-lá! Olê, ô-lá-lá!, etc.�

Mateus: �Quem quebrou as cadeirasQue mande consertarQue as minhas já quebreiSó de tanto requebrar�.

Coro: �Olê, ô-la-lá! Olê, ô-lá-lá!, etc.�

Mateus: �A burrinha do meu amoCome carne com feijãoSó não come carne velhaSexta-feira da paixão�.

(Entra em seguida a Ema. É outra animaçãopara os circunstantes e, principalmente, paraos que integram o folguedo. Enquanto a emafaz o seu �penerado�, coro canta).

Coro: �Olhe o pássaro que voaPeneruê (Peneiro eu)Lá no meu sertãoPeneruêTodo pássaro avoaPeneruê�.Só a Ema não,Peneruê

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Capitão: �Voa, voa Minha Ema,Se tu queres avoarA cabeça pra baixoE as perninhas pro ar!�

(Retiram-se as figuras secundárias, ficandoapenas o boi que continua marcando os pas-sos de sua dança, enquanto o Vaqueiro: vaidizendo num canto triste... ):

Vaqueiro: �Varre o terreiro com vassoura de algodãoQue a barra do boi é branca!Não pode arrastar no chão! (Bis)�.

Capitão: �Cabeça de bagre não tem que chuparQuanto mais se chupa mais tem que chuparIsto tudo é amar, isto tudo é amar.Tarrafeia meu amo, nas ondas do mar�

Vaqueiroe coro: �Varre o terreiro com vassoura de algodão, etc.�

Capitão: �Sinhá Mariquinha mandou me chamarQue a boca da noite, queria falarIsto tudo é amar, isto tudo é amarTarrafeia meu amo, nas ondas do mar�.

Vaqueiroe coro: �Varre o terreiro com vassoura de algodão, etc�.Capitão: �Sinha Mariquinha mandou me dizer

Que a boca da noite queria me vêIsso tudo é amar, isto tudo é amarTarrafeia meu amo, nas ondas do mar�.

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(Depois desse cântico, que é triste, o boimorre. Viram-se todos, espantados, para oboi que está no chão, sem movimentos. OCapitão dá ordens).

Capitão: Quero preso, aqui, já-já, quem matou meu boi!

Vaqueiro: Corre, corre, que morreu o boi de meu amo!

Catirina: Isso foi algum menino danado aqui do lugá...

(Está morto o boi. Como não encontram o responsávelpela morte do animal, procedem a seguir a repartição do boi.Ainda como vimos no autodramático anterior, o processo é omesmo. Apenas, há mudança de personagens nas alternati-vas do canto. O Coro: entra num estribilho especial e o Capi-tão, ora o Vaqueiro:, vai fazendo a distribuição da carne doboi, com os presentes, atendendo-os por ordem de importân-cia. As partes principais do boi, o filé, a chá de dentro, a cháde fora, são �vendidas� as pessoas mais importantes. As fis-suras para os empregados, para a gente sem expressão soci-al. Corre também uma bandejinha (ou uma tijela de ágata) �recolhendo donativos. Terminada essa cena do boi, que édivertida, principalmente na hora de serem distribuídos oschifres � pois ninguém os quer � o Vaqueiro canta:

�Levanta, Boi FortalezaÉ hora de levantarO brinquedo já terminou,A gente vai se retirar!�

(O boi ergue-se. Volta a dançar. O bando se organizacom os índios, papangus, etc., para deixar o local da exibi-ção. E entre aplausos retiram-se, entoando esta canção:

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47ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

�Levanta meu boi!É, bumba!

Toca pra frente! Ê, boi!Dá com as pontas!

Ê, boi!Dá nessa nêga! Ê, boi!

Dá nesse povo! Ê, boi!Encosta na ema! Ê, boi!

Não deixa a burrinha!Ê, boi!

Vamos simbora!Ê, boi!

Desse lugar, É, boi�!

Em linhas gerais, é esse o bumba-meu-boi que pode servisto em Fortaleza. O cenário de atuação está cada vez maisrestrito pelo desinteresse das autoridades e, possivelmente, dasociedade, que já não encontra satisfação no divertido folguedo.O boi sobrevive. Certamente � e isso já ressaltamos noutraoportunidade � vai tendo o seu campo de ação deslocado paraos subúrbios (conforme verificamos nesse próprio estudo).Diante da pouca receptividade do poder público aos en-tretenimentos populares, em face do pouco amor de quasetoda cidade, ao curioso folguedo � em função de fenômenosos mais diversos � os organizadores da brincadeira já não re-cebem convites para visitar residências de pessoas ricas. Loca-liza-se o boi, como espetáculo autêntico, em sua própria zona.É divertimento da classe pobre, coletividade mal compreen-dida, sem amparo, que apesar de todas as injustiças é o repo-sitório, por tradição, do nosso folclore, no que temos de maisprofundo e humano. É ao mesmo tempo o boi, nessa sua fase,dança, música e teatro do povo, principalmente teatro, comum texto próprio e profundamente significativo.

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Inferno, cão e enxofre

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E idéia generalizada de que dominam o inferno fogoe enxofre. A literatura popular, mais do que a religiosa, estáreferta de lendas, de histórias, de simples incidentes em quecaldeiras fervendo, fartum de enxofre, gritos lancinantes depessoas atiradas às chamas caracterizam o indesejável terri-tório para onde vão, sem remissão, os pecadores.

Ruth Guimarães, que escreveu �Os filhos do Medo�,delicioso estudo de demopsicologia, referindo-se ao tema,teve a seguinte reflexão a respeito do fogo: �O fogo predomi-na em quase todas as criações infernais, com exceção doinferno dos escandinavos, chamado Niftleim, onde não háfogo. Os filhos da neve amam demais o calor, para considerá-lo um castigo. Também o inferno dos brâmanes, Naraka, estácheio de mosquitos, serpentes, escorpiões e tigres�.

O demonismo (segundo o que nos ensina WilliamGraham Sumner, �Folkays�, pág. 621) reúne sortilégios, ma-gia, feitiçaria, augúrios, oráculos, etc., �pelos quais se acredi-ta que os homens podem obter poderes superiores� (espíritos,demônios, etc.). �O inferno será � em contrapartida a esseprincípio de poder religioso � o castigo para os que se dei-xam atrair pelas graças dos poderes demoníacos�.

O inferno do nordestino, do caboclo dos sertões cearen-ses, é um caldeirão fervendo, enorme. Procure ouvir-se uma

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definição de tão hórrida região, e logo se terá esta em quesão demarcadas as suas características principais: o demôniosentado sobre brasas, com um espeto na mão, a catucar osque ali foram parar por conta de seus pecados, obrigadosnessa nova existência a jogar lenha às caldeiras, a garantircombustão ao fogo do inferno.

A idéia de caldeiras é substituída, via de regra, pela decaldeirões � e talvez nisso haja uma confusão do povo quenão distingue bem o significado das palavras � e aceita semtergiversar que os caldeirões de ferro instalados sobre trem-pes fervem a água mais quente do mundo e na qual sãosubmersos os pecadores. E o enxofre, com o seu odordesignativo, está presente para completar o quadro. Aliás,entende o sertanejo que qualquer mau cheiro pronunciado,o que classifica de catinga, é astúcia do demônio ou de al-guém que tem pauta com ele.

Dizem: �Hum, isso está cheirando a cão�, ou, então, �éuma catinga de cão...

O inferno, em resumo, é o lugar para onde ninguémdeseja ir. A primeira ofensa, numa discussão, é mandar-se odesafeto para lá. �Vá pro inferno, seu infeliz!�. Inferno tam-bém é sinônimo de lugar distante. Esclarece o sertanejo emconversa: �Fica lá pras bandas do inferno�. Ou então: �Longeque só o inferno!�

Em sua compreensão, o inferno está situado no centroda terra. Por isso é que, às vezes, a terra treme, fendese embrechas enormes. Tanto que �pras profundas� é igualmentesinônimo de inferno. Diz, ainda, o nosso homem do campo,quando está exaltado: �Vá pras profundas!�. Tanto isso é ver-dade � isto é, esse pensamento a respeito da localização dosdomínios demoníacos � que, quando principiam os rurícolasa cavar uma cacimba e vêem que ela se aprofunda muito,sem que apareça água, comentam:

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53ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

� �Homem, tome cuidado, se não você vai sair noinferno�.

Não muito em raro, surge um espirituoso citando ver-sos em que o inferno, apesar de quente, de ser terra ondedominam as chamas, possui vida organizada, estabelecimen-tos comerciais, etc., à semelhança de uma cidade. Há os queafirmam que os castigos, ali, são terríveis, enquanto garan-tem outros que nas ígneas profundas da terra os corretivossão leves.

José Pacheco, historiador popular, em seu folheto �AChegada de Lampeão no Inferno�, relata o seguinte:

Houve grande prejuízo no inferno neste diaqueimou-se todo dinheiroque Satanás possuíaqueimou-se o livro de pontosperdeu-se vinte milcontos somente em mercadoria

Reclamava Satanás:� Horror maior não precisaos anos ruins de safraagora mais esta pisase não houver bom invernotão cedo aqui no infernoninguém compra uma camisa.

Mas a impressão de que o inferno é uma grande caldei-ra, um caldeirão ou um poço de águas ferventes, nunca seapaga da memória do sertanejo. No romance do �BoiMandingueiro e do Cavalo Misterioso� há a conversa de qua-tro urubus (�mais preto do que carvão�), e um deles perguntaenquanto o outro responde:

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�E a Vaca MisteriosaO que ela está fazendo?� Tomando banho num poçoQuente que está fervendoSemelhante a um tachoDe cabeça pra baixoVive subindo e descendo�.

O demônio, eis outra faceta de sua atribulada existên-cia, gosta de apresentar-se aos incautos utilizando os maisdiferentes disfarces. Ora é o homem que vai criar um meninoque desejou ser seu afilhado, ora é sambista de fama que estádançando na casa de um amigo e, no final da história, semquerer, deixa aparecer sob a boca da calça comprida o pé depato. Há ainda outras versões: a do cantador misterioso, porexemplo, que desejou enganar um tocador de viola, etc.

Aliás, o cafute, embora desejando mostrar-se astucioso einteligente, sempre acaba se traindo, como no caso da festa emque o menino gritou � �chega gente, esse homem é o cão, temo pé de pato!� � E daquela estranha narrativa em que a mulher,que era custodiada pelo demônio, fê-lo entrar para o interior deuma garrafa. Desconfiando que o guarda deixado pelo marido,para vigiá-la, era o próprio Satanás, a mulher disse:

� O senhor que tem tanta força, que faz tudo que quer,aposto como não pode entrar dentro dessa garrafa. � Apon-tou para uma garrafa que estava ao pé da parede.

� Ora, não entro. Quem lhe disse isso?E entrou na garrafa. Mal se arrumara no vidro, já a mu-

lher, ardilosa, chegava ao gargalo uma rolha, fechando-a.José Bernardo da Silva, autor do folheto �Peleja de Ma-

noel Riachão com o Diabo�, dá-nos em versos bem interessan-tes mais uma descrição do Satanás, no caso, o cantadormisterioso, que se apresentou para porfiar:

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Riachão estava cantandona cidade do Assuquando apareceu um negroda espécie de urubutinha a camisa de solae as calças de couro cru.

Beiços grossos e viradosComo a sola de um chineloum olho muito encarnadoe outro muito amareloeste chamou Riachãopara cantar um martelo.

O desafio desenvolve-se com ataques de ambas as par-tes. Enquanto Riachão, surpreso, procura descobrir-lhe aidentidade, sem declinar o nome, o outro vai, aos poucos,mostrando até onde influencia o seu poder:

Você sabendo eu quem soutalvez que fique assombradosuperior a vocêcomigo tem se espantadoos grandes de sua terraeu tenho subjugado.

Os últimos versos não fogem à regra geral das históriasde que participa o demônio.

O negro olhou Riachãocom os olhos de cão danadoRiachão gritou: Jesus!Homem Deus sacramentadovalha-me a Virgem Mariaa mãe do verbo encarnado!�

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O negro soltou um gritoali desapareceuuma catinga de enxofrea casa toda encheuos cães uivavam na ruao chão da casa tremeu.

É idéia dominante entre os sertanejos que o Demônio érealmente feio, horripilante, às vezes. Daí ser comum dize-rem de alguém que possui má catadura: �Vôte, tem a cara dodemo� ou então: �É feio que só o Satanás�. A presença dealgum desconhecido no vilarejo deixa logo homens e mulhe-res sobressaltados. Sucedem-se as informações:

� �Tem aí um tipo feio que parece um feiticeiro. Isto écapaz de ser obra do Satanás�.

Outro arrisca: � Dizem que o demo aparece assim, semdizer nada, mas é só a gente fazer o sinal da cruz, vê logo seele é mesmo...

O folhetinista José Bernardo da Silva, em seu famoso�Aviso do Pe. Cícero�, publicado para despertar os descuida-dos e converter os pecadores, dá-nos uma idéia diferente doinferno, quando alude às cavernas:

Ou a penitência ou o infernoVejo aqui os renitentesOu a minha companhiaOu a das feras valentesOu a salvação eternaOu trancados na cavernaChorando e rangindo os dentes.

A verdade é que o inferno, sob esse ou aquele aspecto,está sempre situado no meio da terra, nas profundas; tem

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caldeirões fervendo ou caldeira com muita lenha, a arder semcessar, e o enxofre domina o ambiente, saturando o ar com oseu olor esquisito. Numa coisa está de acordo o povo: nuncase ausentam do inferno os que a ele vão consignados. Só odemônio, parece, desfruta o privilégio de percorrer o mundoe levar consigo, para a tal caverna de que nos fala o poeta, ospecadores desprevenidos que não ouvem a palavra de Deus.Sob os mais diferentes disfarces apresenta-se aos mais crédu-los, sendo identificado por Satanás, Capiroto, Demo, Cão,Maligno, Tinhoso, Preto, Cafute, Feiticeiro, Bicho, etc.

Muito, de raro em raro, surgem histórias, fragmentos decontos, em que se tem a referência a diabinhos, etc. Normal-mente é o Satanás perseguidor dos incautos, violador de cora-ções bondosos, que aparece pelos caminhos que a vida tem,à procura de suprimento para as suas caldeiras.

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Cantoria e religiosidade

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O temor a Deus, conduta principal ditada pelos portugue-ses como único caminho para atingir os céus, é a pedra detoque da religiosidade das populações sertanejas. Gente inculta,de uma maneira geral, apreende as explicações religiosas pelolado primário e prático. Daí a idéia que têm de inferno, ondeferventes caldeirões preparam a água para receber os pecadoressem perdão, e o pensamento a respeito do céu, que na imagina-ção popular é lugar onde as pessoas tomam sexo diferente doque tiveram em vida na sua superfície geográfica.

O prof. Joaquim Alves, cuja memória é sempre lembra-da, viu de maneira mais objetiva esse problema: �Foi esseexcesso de religiosidade herdada dos portugueses que, entreas populações resultantes da missão progressiva de dois sécu-los, entre portugueses, índios e afros, contribuiu, em grandeparte, para o misticismo das populações sertanejas que pro-curam, nas peregrinações aos santuários do interior, manterum permanente contato com a Divindade�.

Esse contato, a que alude o sociólogo, jamais é descurado.Principia que os filhos, via de regra, recebem na pia batismal onome de santos, sendo prática batizar em homenagem aossantos mais conhecidos (São José, Santo Antônio, São Pedro,São Francisco, etc.), dando-lhes seus nomes ou escolhendo oque a folhinha indicar como santo do dia. Com receio das

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trovoadas fortes do sertão há atrás de cada porta uma oração,como existe um ensalmo pendurado ao pescoço da mulherque deu à luz o menino, ou de alguém enfermo.

Nos folguedos populares, exceção talvez feita ao bumba-meu-boi, em todos persiste a invocação de santos, e o temorao castigo dos céus ou de Deus � que vem dar na mesmacoisa � é sempre posto em destaque.

Sou cativa de JesusFui batizada em BelémQuem quiser viver felizFaça o que eu fiz também.

Na cena da tomada da rainha, do �Quilombo de Juazeirodo Norte�, há essa passagem:

Pode vim quando quiserQue cá estou preparadoNão sou guerreiro assombradoQue anda morrendo em péSou discípulo de NoéTenho Embaixador a meu lado

As 44 linhasÉ uma décima bem glosadaUma posição bem dadaComo eu faço as minhasQue estas nossas cabecinhasSão obras do OnipotenteQuero ver falar contenteEm toda nossa belezaÉ linda por naturezaAs 44 linhas!�

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No Auto dos Congos, anotado por Gustavo Barroso (In�Ao Som da Viola�, 1949, pág. 181):

O Secretário:

Minha Virgem do RosárioCantemos vossos louvores (bis)Os anjos cantam no céuE na terra os pecadores!

Se o inverno tarda, o sertanejo atribui a fatalidade, quese aproxima à seca, aos seus pecados e aos pecados dos queintegram a sua coletividade. Em Juazeiro do Norte houvetempo em que o povo se organizava em procissões, invocan-do a proteção divina, para que chovesse, enquanto algunsgritavam, choravam, outros se martirizavam em autoflagelação.

A Dança de São Gonçalo, que já foi mais difundida no�hinterland� nordestino, é também uma das manifestaçõespopulares junto a um santo de devoção � São Gonçalo, nocaso �, para que patrocine um bom inverno e o sertão voltea ter fartura. São várias jornadas de conformidade com o quese pede ao santo.

Se São Gonçalo soubesseO que minh�alma mais desejaAs portas do céu abertaE as portas da igreja.

Em cima daquela mesaTem duas velas acesasUma é pra São GonçaloE a outra de Santa Teresa

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O mês de junho, considerado o mês dos santos, peloprestígio daqueles que mais se entranharam na memória ena querença do povo, reúne versos e orações onde estásuficiente demonstrado o temor a Deus, o respeito aos san-tos e aos céus. Santo Antônio, por exemplo, não é apenas oprotetor das boas virtudes, mas o que há-de procurar ouapontar um noivo para a moça casamenteira. Aliás, o apro-veitamento do santo faz-se ao máximo, e isso não é novida-de, pois o mesmo já ocorre em Portugal, senão vejamos oque nos diz o folclorista Luis Chaves, autor do livro �Folclo-re Religioso�: �A serventia do Santo, para tudo que lembreaos homens, levou-o a presidir aos atos comerciais, legíti-mos e ilegítimos, dos seus patrocinandos; nesta utilizaçãoda boa vontade atribuída ao Santo, como sol de eterna dura,o homem associa a si o poder sobrenatural do patrono, enão compreende quanto há de deslocado e invertido naordem dos valores espirituais. Este pragmatismo, tãocomezinhamente utilitário, já o encontramos com o mesmoconceito nas estatuetas de Mercúrio, dentro de nichos, naslojas comerciais dos Romanos.�

Refletindo o ambiente em que se desenvolve, admita-mos, com certo exagero essa religiosidade, os cantadores quepercorrem os sertões não deixam de se impressionar com asfiguras da corte celestial, sendo raros os que não ligam paraas citações divinas. O verdadeiro cantador, na acepção dapalavra, deve ser antes de mais nada um homem temente aDeus, porque sem essa qualidade o demônio se meterá emsua cantoria e, a todo momento, estará levando-o a vergo-nhosas traições da memória.

No desafio hipotético de um Negro (que seria o de-mônio) com o cantador Manuel Riachão, narrada por JoséBernardo da Silva, podemos ler essas sextilhas que seseguem:

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Riachão : Não quero saber de tiPorque tu és traidordesobedeceste a Deussendo ele o criadorfizeste a traição a elequanto mais a um pecador.

Negro: Riachão amas a DeusSendo mal recompensadoDeus fez de Paulo um MonarcaDe Pedro um simples soldadofaz um com tanta saúdeoutro cego e aleijado.

Riachão: Se Deus fez Paulo um reiporque Paulo mereciaSe fez de Pedro um soldadoera o que Pedro cabiase não fosse necessárioo grande Deus não fazia.

Na peleja de João de Lima com um cantador da Bahia(e por acaso é esse o título do folheto anônimo editado pelaFolhetaria Santa Luzia do Norte) o menestrel do recôncavobaiano, José Pacheco, aceitando a sugestão de seu contendor,para mudar o desafio em um martelo a galope, propõe canta-rem �sobre os dados que se ler no Testamento: a morte deJesus Cristo, desde o seu nascimento�:

Lima: �Permitido por Deus casou MariaCom José, um varão reto e honradoPorém antes de terem se ajuntadoGravidez em seu corpo ela sentia

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E José defamala não queriaPor ser justo e bondoso coraçãoProjetou de fazer-lhe deixaçãoMas um anjo por sonho lhe avisouLhe dizendo: José, Deus me mandouTe dizer que não faças esta ação�.

Pacheco: �Não desprezas Maria que é puraQuanto a lua que brilha e reluzSurgirá de seu ventre o bom JesusA mais santa e sublime criaturaO eterno lhe orna de canduraEstá cheia de graça e perfeiçãoA divina potência pôs-lhe a mãoEntre todas as mulheres a escolherPara um fruto bendito conceberPois é digno de esta conceição�.

O cantador José Gustavo que cantou com Maria Rou-xinha, da Bahia, no final do seu desafio, escreveu o seguinteacróstico:

G � Grande Deus ouve eu ti digoU � Um espírito de maldadeS � Semeou em todo mundoT � Toda sua malindadeA � A treva enundou a luzV � Vem logo ou manda JesusO � Ouve a humanidade

Um dos desafios mais conhecidos em todo o sertão é odo Preto Limão com Bernardo Nogueira. Existem vários fo-lhetos com os versos dessa porfia que fez época no sertão. E,

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mais uma vez, é demonstrada, na exuberância do improvisodos cantadores, o desprezo em que é atirado os que nãoacreditam em Deus. Vejamos o que diz o cantador BernardoNogueira:

B: E �Este homem já vive desvalidoÉ descrente de Deus e da igrejaLucifer no teu rasto já festejaTu só podes viveres sucumbidoÉs tão ruim que só andas escondidoPara Deus nunca mais serás fieltua raça é descendente de Lusbéle que do céu já perdeste a preferênciae farás tua eterna convivência,lá embaixo dos pés de São Miguel�.

Livros como �Missões Abreviadas� e �Lunário Perpétuo�vão-se tornando raros no sertão. �Missões Abreviadas� � in-forma-nos Joaquim Alves � �livro piedoso que constituiu obreviário do sertanejo por muitas décadas, contava fatos ex-traordinários, de castigos, em vida, de penas, de sofrimentosdos que transgrediam a Lei Divina�, já não existe. E, na au-sência dele e do �Lunário Perpétuo� (ainda editado em Por-tugal, mas pouco conhecido hoje em dia), cabe ao cantadordifundir as idéias e princípios que ensinam essas obras. Daípor que em quase todos os desafios há sempre as inevitáveis,mas necessárias, citações de santos e da vida de Jesus.

O que escrevemos até aqui sobre o assunto é pálidatentativa de estudo de um tema do nosso folclore religiosoque está a exigir o trabalho de um pesquisador mais profundo.

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O caju � tema folclórico

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Em outubro estão floridos os cajueiros. Alguns prin-cipiam a oferecer-nos os frutos sazonados. E não é para me-nos. As chamadas �chuvas do caju� que se precipitam sobreos campos do Nordeste, desde os fins de agosto até meadosde outubro � também denominadas �chuvas de rama� �, asvezes ultrapassam os limites da tradição, resultando algumasprecipitações pluviáteis consideráveis. Na cidade, a chegadada safra do caju é uma alegria para o pobre; um regalo parao homem que aprecia tomar um aperitivo e já elegeu, hámuito, o suculento fruto de apreciáveis reservas de vitamina�C� para seu �tira-gosto� preferencial.

Os nordestinos, principalmente os cearenses, não to-mam aguardente ou outra bebida sem que não se sirvam do�tira-gosto�, que sempre a fruta regional, no período da safra,ou cédea de queijo, naco de carne assada, etc. De tantos�tira-gostos� que a fantasia dos bebedores excita e descobre,nenhum se compara ao caju cortado e servido aos pedaços,em prato fundo, apanhado pelos degustantes, higienicamen-te espetados em palitos. Mulher grávida, no sertão, não es-quece os conselhos dos mais velhos de que �mulher quepega menino� na safra do caju �não passa miséria�, isto é,tem sempre vigor, força para atravessar galhardamente osincômodos que lhe exige a situação.

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Se é verdade que já não se observam na capital, commais freqüência, grupos de crianças contando castanhas decaju, ou delas se utilizando para diversas brincadeiras de suarisonha existência, persistem, ainda, no �hinterland�, todosos admiráveis passatempos que foram incluídos na infânciade quantos, como nós, tiveram seus dias mais distantes vivi-dos em contato direto com o meio rural.

Tempo de caju, é tempo de menino jogar �pé-de-caste-lo�. A castanha maior que encontra, a mais bonita por certo,é colocada em pé, encostada a uma parede, enquanto pelafrente, a uma distância de três a quatro metros, quatro oucinco meninos ficam atirando castanhas rasteiras, ao impulsodo dedo indicador que funciona, com o auxílio do seu ho-mônimo da outra mão, como besta, em tiros que devem al-cançar a castanha e desencastelá-la.

As diversas castanhas assim jogadas ao impulso do dedodeslizam pelo cimento da calçada e vão-se amontoar nas pro-ximidades do �pé-de-castelo�. Se por ventura alguém do ban-do que se diverte consegue atingi-la, terá por recompensatodas as castanhas que restaram inúteis, sem atingir o alvo,perto da parede.

Para o exercício do jogo é necessário, muitas vezes,uma escolha judiciosa e técnica de determinadas castanhas.Evidentemente, nem todas se prestam ao brinquedo, sendopreferíveis as mais delgadas, que têm essa qualidade físicaapurada pelo atrito a que são submetidas, de propósito, emcimento carrasquento. Outros, no afão de obterem melhoresresultados, levam suas castanhas ao sol, repetidas vezes, con-seguindo com tal expediente que percam parte do óleo quecontêm, tornando-as fáceis ao manejo.

No sertão, portanto, e muito em raro, já em cidadescomo Fortaleza, o �pé-de-castelo� é novamente prática reto-mada à infância, de geração a geração. Quando vier o desfastio

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pelo divertimento � e isso sempre ocorre depois de dois outrês meses � as castanhas são assadas, (utilizam, geralmente,uma banda de folha de zinco sobre um tripé onde é improvi-sado violento fogo alimentado por paus e papéis velhos), ébem possível que restem alguns meninos doentes que assimestarão pagando pelo excesso das amêndoas deglutidas.

A época do caju é, sem dúvida, de muita importânciana vida da comunidade. Todos, sem distinção, procuramseus frutos: as donas de casa mais diligentes fazem gostoso�mocororó�, caldo que se obtém de frutos escolhidos e quepela introdução da cola perdem certa substância, os tani-nos, que isentam a bebida de qualquer gosto amargo. Sur-gem, então, as cajuinas, excelente bebida produzida poresse caldo, mas já obedecendo a outros requisitos fabris,pois são filtradas e pasteurizadas. Completando as refeições,o caju como que desperta o apetite, sendo aconselhado oseu uso, pelo gosto que produz, cortado e servido de mistu-ra com o feijão.

Fugindo dessa influência puramente gastronômica, ocaju avança e penetra, com sua decisiva participação, na lin-guagem do povo, em sua medicina, em suas modas, em seusrepentes, enriquecendo ainda mais o folclore nordestino. Acastanha de caju, já anotáramos em nosso �Medicina Popu-lar� (Edição da Livraria Editora da Casa do Estudante do Bra-sil), aberta ao meio, atada sobre a �vermelha� (erisipela), éremédio usado no Cariri. Chá de castanha de caju, queimada,faz desaparecer a enxaqueca mais persistente. A castanha ésimpatia adotada pelo povo contra determinadas enfermida-des, devendo os enfermos conduzi-la, sempre que possível,no bolso da calça.

Na ordem das adivinhações não é rara a contribuiçãoda castanha ou do próprio caju. É adivinha generalizada emtodo o Nordeste a que se segue:

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�Qual é a fruta que tem a semente por fora?�E as cantigas? as trovas em que se sente a querença do

homem do campo pela árvore amiga? Théo Brandão, quenos deu um excelente repertório dessa inspiração popular,recolheu os seguintes versos alusivos ao cajueiro:

�Cajueiro, abaixa a galha,Deixa o meu gado passar;Meu gado já vem cansadoDo Sertão do Ceará�.

E a trova popular que inspirou o bardo Juvenal Galeno?Não há quem não tenha, nessa jornada de outubro para no-vembro, vontade de declamar os versos tão simples e tãopuros do �Cajueiro Pequenino�:

�Cajueiro pequenino,Carregadinho de florEu também sou pequeninoCarregadinho de amor�.

O tema do caju, envolvendo o cajueiro, a castanha, cadavez se entranha mais no sentimento popular. Já se diz dealguém que nos desilude: �É tal e qual certos cajus: no come-ço, doces; depois, deixam na boca da gente um ranço queincomoda...� Há estas observações bem judiciosas: �Ah, fula-no é um cajueiro! Tem dinheiro a valer, mas, quando a gentepede, ele tem sempre uma desculpa. É uma rezina danada!�Coisas que de repente surgem ao meio do nosso caminho,como dádiva, são, via de regra, recebidas pelo sertanejo comcerta desconfiança, o que faz reeditar aquele velho conceito:

�Esmola grande o pobre desconfia�. Realmente, caju embeira de estrada, ainda no pé, é sinal de que é azedo. Se

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fossem doces, bons, já teriam sido comidos. O tempo realizatodos os fins de ano a revitalização do caju como tema folcló-rico. E isto, em parte, porque nascemos e crescemos à lem-brança daqueles versos populares que nos falam de um�cajueiro pequenino, carregadinho de flor�, como repetimoshá pouco, tão delicados e tão profundamente familiares.Juvenal Galeno soube aproveitar, com o requinte de seusdons poéticos, a inspiração do povo de sua terra, incorporan-do esses versos, com o sabor de seu estilo, ao nosso patrimônioliterário:

�Tu és um sonho queridoDe minha vida infantilDesde esse dia... me lembro...Era uma aurora d�abril,Por entre verdes ervinhasNasceste todo gentilCajueiro pequeninoMeu lindo sonho infantil�.

Nascemos, já dissemos, e crescemos principalmente sen-tindo os temas que o caju e o cajueiro nos inspiram. Ora, sãoos frutos amarelos ou vermelhos apregoados em anúnciospreguiçosos pelas ruas da cidade, ora as castanhas sendoassadas, ante o olhar guloso das crianças e até dos adultos,deixando no mundo todo um cheiro ativo que aguça o ape-tite. Somente isso? Cajueiro e caju incorporam-se de tal modoà nossa vida, que deles não pudemos prescindir em nossosmomentos de prazer. Se vamos ao banho, e se o banho é derio em localidade mesmo próxima à capital, há de aparecer ofruto recortado em rodelas, para o acompanhamento maissábio que se conhece e mais a gosto da aguardente. Se asmulheres se encaminham à maternidade, não faltará a elas

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uma boa penca de cajus, fruto aconselhado por médicos ecurandeiros para abrir o apetite e fixar no organismo, por serabonado dela, a indispensável vitamina C.

Em longo artigo escrito no �O Ceará� (de RaimundoGirão e Antônio Martins Filho, 2a. edição, Editora Fortaleza,1945), autor que não assina o nome comunica-nos ter-lhedito o escritor Renato Braga ser costume dos antigos soltaremos escravos �quando doentes de ascite, feridas e febres, noscajueiros para fazerem as suas curas de cajus, com sinaisevidentes de melhora�. Não sabemos se ainda hoje, para en-fermidades semelhantes, é válida essa prática terapêutica.Entretanto, não desapareceu o poder medicinal da apreciadafruta, como vimos linhas atrás.

A idéia de que o cajueiro poderia transformar-se emtema para excelente livro deve ter acudido a muita gente,mas, persistente, estudioso e sobretudo interessante em as-suntos de nossa geobotânica, foi o sr. Mauro Mota o desbra-vador do assunto, dando-nos, agora, em outra edição, o seupasseio sentimental, que como certas viagens de turismo temum título que é convite simples, mas incisivo: �O CajueiroNordestino�.

O bem lançado volume é uma edição do Ministério daEducação e Cultura, na fase decisiva de José Simeão Leal,homem de cultura cuja simpatia alcança até mesmo os queainda não experimentaram o calor de sua amizade nem otoque de seu estímulo literário. O livro que temos em mãos,vencida uma primeira leitura, a toque de caixa, integra a co-leção �Vida Brasileira�, e é o último volume publicado numarelação de seis, em que avultam trabalhos de Luís da CâmaraCascudo, Manuel Diégues Júnior e outros.

O sumário da obra está representado em quinze capítu-los em que o leitor encontrará a história do cajueiro entre osindígenas, os seus primeiros vagidos, a sua peregrinação de

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ordem geográfica; a castanha, a descoberta de suas utilida-des, o �cajueiro entre os flamengos�, na conversa fácil e sa-borosa do povo, e, finalmente, o que atesta o trabalho dopesquisador, a sua dedicação, extensa bibliografia que seencerra com cento e cinqüenta livros e folhetos consultados.

Ao analisar o problema da devastação � não apenas desua superfície geográfica, mas de todo o País � o escritorpernambucano atinge-o em cheio. �No Nordeste, a mata cos-teira não foi só banida com a tomada do terreno pela cana. Acana teria de consumi-la em extensões consideráveis na fasede sua transformação nos �bangüês� e muito mais nas usinas.Às bocas das usinas de açúcar, as maiores e mais devorantes,outras se juntaram cheias de apetite na refeição arbórea con-tínua. Bocas de outras fábricas têxteis, principalmente, delocomotivas, de fogões domésticos. A penetração dos trilhosferroviários no interior do Nordeste representou uma obracivilizadora, construída sobre derrubadas e fogueiras.�

A descrição é simples mas envolve grande verdade. In-felizmente, no Nordeste, ninguém respeita uma árvore nemmesmo o velho cajueiro que, como já vimos, está cada vezmais ligado à nossa existência. Se existe uma dessas árvoresem meio a um roçado, não será poupada na hora da derruba-da, mas, como milagre, vão aparecendo, multiplicando-se maiscajueiros em quase toda região, principalmente agora com acampanha do plantio do cajueiro chamado de �seis meses�.

Existem, necessariamente, os cajueiros e os cajus paraque sejam sempre repetidos os bonitos versos populares ��Cajueiro pequenino, carregadinho de flor � À sombra dastuas flores � Venho cantar meu amor� �, para que as mu-lheres prenhes alimentem-se de suas vitaminas, assim comoos doentes de asma recorrem aos chás obtidos de suas fo-lhas. Existem, repetimos, para que a infância continue rica deentretenimentos, divertindo-se à vontade com os jogos do

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�pé-de-castelo�, �soldadinhos�, do �buraco�, do �pé-de-pa-rede�, etc.

E existem, finalmente, para que escritores consciencio-sos, apreciadores do belo e do útil, possam legar à posterida-de, no traço firme de sua pena, mensagens de elogio, delouvação, como é esta que nos dá, agora, em magnífica apre-sentação, o escritor Mauro Mota.

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Heróis e valentes no conceito do povo

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Ao reunirmos subsídios para um estudo mais deti-do sobre frases injuriosas usuais em desafios populares, e, aomesmo tempo, na tentativa de fazermos um levantamento dafanfarronice dos nossos cantadores, reforçamos a idéia deque a classificação de valente não corresponde à de herói nolinguajar popular � salvo uma ou outra exceção � e que oshomens considerados valentões são, via de regra, desprezí-veis tipos que não obtêm as simpatias do sertanejo.

Não será em espaço tão restrito que se pretenda discor-rer sobre o assunto, dando-o, logo, por resolvido. A verdadeé que essa atitude de julgamento de caracteres parece aosque estudam o comportamento do nosso homem do campouma defesa muito natural do clã sertanejo no desejo de li-vrar-se dos malfeitores, à imitação do que ocorria nos peque-nos grupos primitivos que, segundo William Graham Sumner,orientavam-se sob o espfrito de preservação e de lutas com aformação dos �nosso grupo� e �grupo de fora�.

O valentão, ou simplesmente o valente, parece aosertanejo um perigo para o seu grupo social. Não alcançaaquelas qualidades que elevam o homem à situação de he-rói, de exemplo à comunidade. E nem poderia ser de outramaneira: herói é o astucioso, homem que sabe vencer aoutros pelas artimanhas, tal e qual o Krisma, �herói astuto e

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habilidoso, que sabe fazer o que fazer para sair de umadificuldade ou para realizar um propósito�, figura central daliteratura épica. Ainda o citado William Graham Sumner,além de outros exemplos, apresenta-nos o de Ulisses, dequem os gregos �admiravam os estratagemas engenhosos ebem sucedidos�.

O valente, no entender do rurícola, não é aquele queconsideramos destemido, homem disposto a enfrentar situa-ções difíceis, sem temer nem a própria morte. Muito ao con-trário: é um tipo malandro, assaltante de estrada, briguento,que para demonstrar coragem é capaz de ofender a honra dafilha de um amigo, de cometer, nesta mesma pauta de indig-nidades, os crimes mais censuráveis.

A �Cantiga do Vilela�, fornecida pelo cego Sinfrônio, aofoiclorista Leonardo Mota, (Cantadores, Editora A NOITE, págs.31, 32 e seguintes) apresenta-nos um autêntico valente den-tro do conceito que o povo pobre do �hinterland� cearenseaprendeu a julgar os desordeiros:

�Meu povo, preste atençãoAo que agora vou contáDe um homem muito valenteQue morava num lugáE até o próprio gunvêrnoTinha medo de o cercá.

Vilela era naturalDo sertão pernambucanoE ele, desde o princípio,Que tinha o gênio tirano:Comete o primeiro crimeCom a idade de dez ano.

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Com doze ano de idade,Numa vespa de S. JoãoVilela mais o seu manoTivero uma altercação:Só por causa dum cachimboVilela mata o irmão�.

No romanceiro popular o valente, quase sempre, não éo tipo decidido, possível de ser enquadrado nesta definiçãoque nos oferece o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa,organizado por Francisco da Silveira Bueno: �que tem valor,que tem força; intrépido; enérgico; rijo; resistente; s.m. ho-mem esforçado ou corajoso; paladino; campeão;�. Valente,pelo menos e o que se depreende da maioria dos versospopulares, é homem provocador, sem moral, assassino frio,sórdido, que na hora de enfrentar um caboclo decidido en-trega-se a ele, pedindo-lhe demência ou tenta fugir de qual-quer maneira. Na peleja de João Atayde com José FerreiraLima, há os seguintes versos alusivos a valentes:

�Colega de que lhe serveTanta soberba e orgulhoo comum dos valentesQue apreciam barulhoFugir sem saber para ondeVê o perigo, se escondeE os outros vão no embrulho.

Colega não sou valenteNão fujo nem me escondoPorém sou como trovãoSe relampeja eu estrondoO colega não dê crençaComo há gente que inda pensaQue o mundo não é redondo�.

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Uma das maiores satisfações de cantador é contar lorotaspara crescer aos olhos dos presentes, demonstrando a capaci-dade que tem de mover céus e terra, de destruir os que seapresentam com a legenda de valente. Há sempre referênciasnas cantorias, principalmente em desafios, ao homem valen-te, não desejando nenhum cantador ser classificado como tal,o que seria deslouvor perante a assistência.

No desafio de João Atayde com Mota Júnior, o últimodisse as décimas que seguem, com as bravatas normais:

M � �Pelo que conheçoNão temo embaraçoAquilo que faço,Nunca mais esqueçoAndo sem tropeçoNada me atraiNão conheço paiPara palhaçadaNa minha jornadaComigo não vai�.

Em resposta, João Atayde, mais uma vez, referiu-se aovalente logo no início de suas décimas, com esta veemência:

A � �Se eu fizer caretaTodo mundo corre,O valente morreCom a cara preta ...�

Raimundo Pelado, rebatendo os ataques e as bravatasdo cantador João Atayde, em peleja famosa, foi claro em seujulgamento a respeito de valentão:

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P � �Não há ninguém valentãoquando conhece o perigoagora está sucedendodo mesmo jeito consigose acaba doido e malucocantador de Pernambucoque vem discutir comigo�.

Mais adiante, já quando a peleja se encaminhava emanimado martelo, o mesmo Raimundo Pelado assim se mani-festou:

�De que serve o senhor se pabularque só conta grande valentiajá mostraste a tua covardiae vai correndo com medo de apanharse fugires eu corro até pegara minha volta ninguém se livra delacom uma mão no peito e outra na guelamas se o bruto salvar-se desta vezeu pego ele, tranco no xadreze o Pelado servirá de sentinela�.

A paremiologia cabocla é bastante expressiva a esserespeito. Luis da Câmara Cascudo in �Vaqueiros e Cantadores�,referindo-se ao adagiário pertinente a negros e �cabras� (mes-tiços), anotou: �Negro só é valente atrás de pau�, �Cabra va-lente não tem semente�, �Valentia de cabra é matar aleijado�.

Diz-se em conversa: �Lugar de valentão é cemitério�,isto é, porque há uma frase que vive na boca do povo queconsidera cadeia lugar próprio para homem. Daí escutar-se:�Cadeia foi feito pra homem�. Homem é, portanto, toda cria-tura destemida, capacitado a fazer valer os seus direitos. Por

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isso é que, no entender do sertanejo, não se registra nenhumdesdouro em ser um homem aprisionado, desde que a penaassim imposta tenha sido provocada por atitude de corageme disposição em defesa de seus princípios.

Valentes e valentões acabam no cemitério, e já dizia umcantador que �nunca viu rua de valentões�. Tipo socialmenteà margem das coletividades rurais, encontra de rijo a antipa-tia do povo que se manifesta em seus versos, em suaparemiologia, nas conversas, contra os desordeiros.

Joaquim Batista de Sena, autor de �Os amores de Chi-quinha e as bravuras de Apolinário�, abre o seu modestofolheto com estas duas sextilhas que sublinham as qualida-des físicas e de espírito que fazem um homem de bem:

�Bravura, força e coragem,gênio, nobreza e ação,destreza e velocidadebriosa disposiçãoé dote que Jesus Cristonão dá a todo cristão.

Mas sempre tem se encontradohomem muito valorosoque defende a sua honrano ato mais perigosoe enfrenta peito a peitoum batalhão de medroso�.

II

Nós, os citadinos, de uma maneira geral, erramos quan-do teimamos classificar os cangaceiros como valentes, partin-

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do do princípio de que a qualidade de ser valente é a quemais agrada ao sertanejo. É um erro. O cangaceiro pode sercorajoso, e entre corajoso e valente, principalmente se levar-mos em consideração o que já vimos anteriormente, há todauma classificação social a percorrer. O homem corajoso é umhomem de brios, de vergonha � �aquele cabra tem a vergo-nha na cara�, como diz o sertanejo � que se transforma emcangaceiro quando a Justiça falha, quando o �coronel�, emgeral o chefe do clã político da localidade, deseja que o ca-boclo simplório, mas decidido, presta-lhe um favor, elimi-nando um inimigo perigoso etc. Os bandidos do Nordesterecebem as mais diversas classificações � e as mais designati-vas reuniu-as o professor Abelardo F. Montenegro in �Histó-ria do Cangaceirismo no Ceará�, mas em nenhuma delas secogitou figurar o valentão, o arruaceiro que difere do bandode grupos organizados � do cangaço, naturalmente �, e quetem contribuído com uma legenda de fatos infamantes para ahistória social do �hinterland�.

Francisco Sales Arêda, poeta popular, ao escrever a histó-ria do �Verdadeiro encontro de Antônio Cobra Choca com oSertanejo Valente�, já em décima nona edição, contribuiu paraauxiliar-nos nessa tentativa de conceituação de valentões eheróis dos sertões. Logo à página dois, depois de apresentaras características físicas e morais de ambos os personagens,dá-nos a idéia de um tipo, o do topador de valentão, no casoAntônio Cobra Choca, herói da história:

�Deixamos o coronelno engenho Lageirãoe o valente Zé Mendonçapelas zonas do sertãofalamos em Cobra-Chocatopador de valentão�.

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O topador de valentão é homem que não admite injus-tiça, e tem a coragem suficiente para desafiar valentes damarca do sertanejo Zé Mendonça, tipo reconhecidamenteperigoso. Coronel Piancó � que deve representar a figurainfluente na hierarquia do clã sertanejo, deu-lhe notícias doatrevido Zé Mendonça, o que bastou para ele perguntar: �Ondeestá esse bandido�? Tendo ciência do esconderijo do valen-tão, � �lá nos confins do estado, do famoso Pernambuco,terra de cabra afamado� � Cobra Choca foi dizendo:

�Isso de fama é besteiraQuem é brabo também morreSe o senhor quiser eu vouBuscá-lo e ele não correCaso ele com a nêgaSó Jesus Cristo socorre

Armado de facão, de posse de um rifle, punhal e cartu-cheira, o nosso herói viajou duas semanas até chegar à loca-lidade onde estaria o arruaceiro. Em lá chegando � era umdia de feira � os habitantes do lugar estavam a fazer compras,alguns conversando com amigos, outros à procura de no-tícias da capital, etc.

�Quem é que conhece aquiO Zé Mendonça falado?Cabra brabo pra mulhere pra homem desarmadoDevedor da honra alheiaLadrão, cretino e safado?

Nessa voz de Cobra ChocaPulou um cabra de lado

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E disse: quem é você?Que chegou tão assanhadoO Zé Mendonça sou eu,Seu covarde vil sambado.Se deseja alguma coisaBoa ou má, bonita ou feia,Se prepare e venha a mim,Não seja cabra de peiaPra chegar esculhambandoNas portas da casa alheia.

Cobra Choca respondeu-lhe� com você não quero trocae saiba que está pegadoCom Antônio Cobra ChocaMacho bamba de TeixeiraDo Sitio Pororoca.

Num vim aqui a BuiqueVisitar o seu sertãoVim buscá-lo preso ou mortoPro Engenho LageirãoPra casar com a negrinhaSujeito sem coração�.

Sacando de seus punhais os dois homens atracam-senuma luta terrível. Cobra Choca, já se vê, encarnando a figu-ra do herói, do homem destemido que procura fazer justiçacom as próprias mãos � o que é de agrado do sertanejo �lança-se ao valentão com toda a sua astúcia e força, castigan-do-o por ter, no engenho do �coronel�, desonrado umadonzela, pobre negrinha indefesa. No desenrolar da porfia eem toda a descrição da história há sempre à reincidência de

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referências desprimorosas aos valentões, ali representados porZé Mendonça.

Repetem-se os versos nesse sentido:

� �Mas sei que você é falsomanhoso e muito atrevido!�

� �Ninguém foi por Zé Mendonçapor que ele era insolente�.

� �Vim buscá-lo preso ou mortopro Engenho Lageirãopra casar com a negrinha,sujeito sem coração�.

� �Aquele safado agoravai descansar muita gente�, etc., etc.

Vencido, é o valentão conduzido à presença do coronelPiancó, que, incontinenti, manda chamar um padre para ofi-ciar o casamento do bandido com a negrinha enganada:

�Piancó e Cobra Chocanaquele mesmo momentomandaram ver o juizpra fazer o sacramentotrouxeram a negra e o padree foi feito o casamento.

Zé Mendonça disse agorajá que casei vou vivero coronel disse entãotrabalhe pra proceder

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porque se der certo mesmotenho com que lhe proteger.

E entregou logo a eleo engenho da TabocaZé Mendonça foi vivercom sua negra Marocaporém jurando vingar-sede Antônio Cobra Choca�.

O verdadeiro valente, aquele em que se ajusta o con-ceito exato, está desempenhado por Zé Garcia, herói do ser-tão e que dá nome ao folheto �História do valente sertanejoZé Garcia�. É ele mesmo quem se identifica:

� � Eu não vivo de matarquando a sorte me obrigaeu luto pra escapar!�

É a história deliciosa de um homem do sertão que, de ummomento para outro, vê-se na situação de abandonar o lar dopai, em virtude de uma infâmia que lhe é atribuída, marchandopara o Piauí em procura de seu protetor, um tal capitão Feitosa,que recebe a carta de recomendação enviada pelo seu genitor.Em todos os versos Zé Garcia demonstra dignidade, coragem esobranceria. Quando o pai o inquiriu sobre se devia ou nãoalguma coisa à honra da filha de Militão, disse José Garcia:

� � A ela não devo nadaeu nunca dei atençãoaquela moça acanalhadaminha consciência é limpamuito desembaraçada�.

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As aventuras se sucedem. E Zé Garcia vence todos osobstáculos, ora casando-se com a moça que raptou, paramostrar que é honrado, ora abatendo os bandidos que oameaçam em sua integridade física.

Significa ele, em última análise, o herói, personagemmuito do agrado do nosso homem do campo, que, geral-mente, mostra-se rancoroso e hostil aos chamados valentes evalentões que, sob sua interpretação, existem tão somentepara fazer mal ao próximo.

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Dos repastos, da reima e de suasconseqüências

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D isse Napoleão � e deve ter dito com experiênciaprópria: um exército vale pelo bom funcionamento do estô-mago de seus soldados. As palavras, decerto, não foram es-sas exatamente, mas o pensamento do grande �condotieri�está respeitado nesta citação que a memória sempre teimosanão quer acertar. A verdade é que não se pode conceber umexército de subalimentados, de soldados vencidos pelo esgo-tamento, sem as calorias de uma cozinha substancial.

Mas, não é da fome que desejamos falar. É da gula, dainquietadora qualidade inerente à espécie humana que osmanuais de boas maneiras registram ou rotulam de gastrono-mia. E o gosto inquieto e exagerado pelos prazeres das refei-ções, dos vinhos (e ao vinho, inevitavelmente, teremos queacrescentar o sexo frágil) vem de muito longe. Há de se per-der, consideramos nós, na primeira reunião de amigos e vizi-nhos numa gruta à comemoração de proveitosa caçada.

Os romanos foram mestres na arte de comer. Certamen-te, é fácil concordar com o leitor mais exigente, não tinhameles aquilo que compreendemos ser elegância refinada. Meti-am as mãos à comida, a despeito da civilização que repre-sentavam; e a posição horizontal que adotavam � sobre seipouco recomendável à deglutição � deveria atrapalhar a di-gestão de seus repastos freqüentemente tão suculentos. Infenso

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a churrascos, aproveitando a aproximidade do assunto,lembramo-lo aqui como uma revivescência dos banquetesromanos, aos quais se permitia ampla gula e incontrolávelfalta de educação, com a diferença, já se vê, imposta pelotempo: o racionamento de carne, autodefesa dos organizadoresde tais convescostes públicos.

O cearense, via de regra, não nasceu para ser enqua-drado no conceito generoso de bom gastrônomo. Homemque não dispõe de boa água para suas refeições, sofre geral-mente do fígado, e entre um repasto e outro mais violento,possivelmente mais gorduroso, há de se valer de toda a nos-sa farmacopéia indígena, graças a Deus, abundante. Mas,enquanto há meizinhas, vamos todos nós fazendo agradáveisincursões aos domínios da mesa farta. A verdade é que nãosomos muito exigentes, e nem poderemos ser, diante da nos-sa culinária cabocla, que exige estômagos fortes e resolutos.Mas podemos lembrar aqui, como entrada ao assunto, doisexcelentes pratos regionais: o baião-de-dois, legítimo arrozcom feijão verde e queijo, e pitu com arroz, ambos servidos,acompanhados com um cálice de superior aguardente de canaque desafia o fastio de qualquer um. A avoante assada ousimplesmente guisada estará enquadrada na série dos bonspratos que honram a mesa do mais exigente caçador.

Facilmente poderão observar os nossos leitores que ospratos nordestinos omitem as verduras. É uma pena. Mas, oque se fazer, se sertanejo não aprecia a alface, não gosta deagrião, beterraba, tomates, pimentão ou repolho? Esclarecen-do o assunto, diz simplesmente: �Moço, homem como eunum come folha. Quem come mato é bicho�. Daí se alterna-rem os pratos, sem mudança digna de registro, servidos compirão ou simplesmente acompanhados de arroz.

Mário de Andrade, admirável poeta e animador do mo-vimento modernista brasileiro, apesar de sua úlcera no duo-

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deno, foi incorrigível gastrônomo. A respeito dos pratos quemais apreciou, ao viajar pelo Brasil, escreveu um trabalhoque é, realmente, preciosidade para os estudos da matéria.Relendo-o, outro dia, encontramos o seu �Tacacá com tucupi�,gostoso artigo escrito em 1939, no qual conta suas experiên-cias na arte culinária nacional. Principia fazendo referênciasao poeta Bíalse Cendrars, que teria descoberto determinadosrequintes em nossa culinária: �Quem me chamou uma aten-ção mais pensamentosa para a cozinha brasileira foi, unsquinze anos atrás, o poeta Blaise Cendrars. Desde que teveconhecimento dos pratos nossos, ele passou a sustentar atese de que o Brasil tinha cultura própria (ou melhor: teria, sequisesse...), pois que apresentava uma culinária completa eespecífica. A tese lhe vinha da experiência, e o poeta garantiaque jamais topara povo possuindo cozinha nacional que nãopossuísse cultura própria também�.

A cozinha brasileira é excelente, pelo menos para umpaladar não muito sofisticado. Temos o prazer de enumerardezenas de pratos típicos que tivemos a oportunidade de deglu-tir � como dizem os que sabem comer com distinção � poresses Brasis, com agradáveis surpresas. No Amazonas, desde apescadinha de água doce até o suculento Pato no tucupi, pas-sando pelo violento pirarucu assado, com farinha, há outrospratos de sabor quase selvagem. Para falar a verdade, não nospareceu ir muito bem o tacacá. Aquela goma líquida dentro deuma cuia, retendo entre ervas um camarão, não me apeteceu.E tomei-a na rua � permitam-me narrar essa aventuragastronômica � como gente do povo, pagando cinqüenta cen-tavos por uma cuia da preciosa alimentação. A tartaruga, bem,a tartaruga prescinde do nosso elogio. É prato apetitoso, capazde representar um banquete pela sua decisiva qualidade. É deuma versatilidade a toda prova: é servida como filé � sempredeliciosa; assada, cozida, em forma de sarrabulho, etc.

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Vale a pena, nessas considerações sobre culinária emque a nossa intromissão é evidente, citar mais uma vez opoeta Mário de Andrade: �As cozinhas francesas e inglesaspodem comparecer como protótipos das duas orientaçõesnormativas da culinária. A inglesa se orienta pela idéia doBem: mais simples, mais franca, buscando apenas variar pe-los molhos a monotonia das suas bases. Até o uísque de apósjanta, mais digestivo e funerário, é um valor fácil como amaioria dos heróis shakespereanos, se o compararmos aosabor montaigue de uma �fine�. A cozinha francesa se orientafrancamente pela idéia do Belo. As bases alimentares quasedesaparecem, sutilizadas, às vezes, em combinações de uminesperado miraculoso. Isso é invenção desnecessária, é arte,às vezes, do mais gratuito hedonismo�.

No entanto, a nossa cozinha não tem somente algumasqualidades francesas ou inglesas. Há de, forçosamente, pos-suir outras. Mário de Andrade morreu antes de sentir a in-fluência do �ice-cream� e dos refrigerantes provocada pelosnort~americanos, gente que não tem cozinha específica eque se vale dos refinamentos técnicos e da complementarpanqueca para cativar-nos, principalmente, pela visão. É oregime do doce, do açúcar polvilhado ou dissolvido nágua,dos bolos que escondem sua fatura sob confeitossuperdesenhados.

A cozinha brasileira, um tanto amoldada à influênciaalheia, vai sendo servida à americana, à francesa, etc. Temqualidades especiais que, apesar das influências prejudiciais,não se dispersam nunca. E quanto mais nossa a comida, istoé, mais detidamente regional, melhor sabor de ineditismo, decoisa pura, encontramos nela. Todos nós precisamos provaruma fritada de sururu em Alagoas, para ver como sabe bem.É igualmente necessário o turista nacional ir até Teresina,arrostar o calor, banhar-se na Socopo e comer a famosa gali-

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nha da Júlia, rica de temperos caboclos e que vai bem comuma ou duas garrafas de cerveja, geladíssimas.

Na Paraíba podemos experimentar uma buchada de car-nefro, prato de grande opulência, capaz de deixar o SenadorChateaubriand com inveja. É prato violentíssimo, ou, no di-zer de Mário de Andrade, estabanado. Servido com aguar-dente, só mesmo poderá medir-se a ele em suntuosidade eviolência a panelada. Não precisa de sobremesa. É necessá-rio. no entanto, um sono forte, ferrado, desses que nos dei-xam incapacitados a qualquer reação. Acrescente-se: um sonoforte e ferrado em rede branca do nordeste...

II

Não imaginamos que fossem tanto os gastrônomosincontroláveis, e que existissem, entre nós, em elevado nú-mero, capazes de saber apreciar os bons petiscos regionais.Após a publicação da primeira parte desse trabalho na im-prensa local, fomos forçados a redescobrir o tema diante dapersistência dos que reclamavam a odiosa omissão dos bonsaperitivos, dos doces e de outros excelentes pratos que,involuntariamente, esquecemos de citar.

Encontramos até mesmo exaltado nativista, desses queenaltecem a violência da cozinha nortista, para exigir-nos umartigo completo sobre o que previamente denominou de �co-midas brabas�, refeições � imagina-se logo � de caráter cam-pestre, com todo aquele sabor do nosso �habitat�, no qual oconceito de alimentação estabanada jamais se desfigura. Difícilpara nós, é forçoso confessar, voltar ao assunto e contentar aosreclamantes. E se em assim fazemos, eis a verdade, é por amora determinados pratos que, imerecidamente, foram esqueci-dos naquela digressão culinária, enquanto outros, talvez até

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mesmo inferiores, figuraram no artigo com requintes de umasopa � permita-se o exemplo � de ninhos de andorinhas...

E o que exigem de nós, agora, é mais do que umaprova de conhecimento: é a anunciação de outros tantos pra-tos apetitosos, com o sacrifício da nossa gula, que, por esseou aquele motivo de ordem funcional, ou de situação geo-gráfica, já não pode voltar a experimentá-los. Ainda hojelembramo-nos de um omelete de ovos de anum(CROTOPHAGA ANI Lin.) que tivemos o prazer de saborearnos idos da mocidade. Não acreditamos que a sopa de ni-nhos de andorinhas, da cozinha chinesa, que dizem comer-se num restaurante dos Três Lagos, sob receita de um talHangchow, ofereça paladar mais refinado.

À lista dos pratos esquecidos acrescentaríamos nestarevisão imposta pelos leitores (ou pelos seus estômagos?) anossa popular feijoada (ah, considerem a carne seca a sedesfiar de cozida, o toucinho se liqüefazendo...), o abaráatormentador do fígado, o caruru feito com quiabos e tempe-rado com cebola, coentro, pimenta e tanta coisa mais gosto-sa, sem esquecer os camarões ressequidos, e o já nacionalvatapá que, nascendo na Bahia, é servido, vez por outra,como derivativo dos mais distintos em almoços e jantares decaráter sério.

Muita gente, ao ouvir falar em muçu (SYMBRANCHUSMARMORATUS), sente calafrios, exterioriza repugnância.Mas, vá lá, é excelente prato da cozinha cabocla. Aconteceé que a arte de fazer boas comidas não foi ensinada a todos.Pouco adiantam as lições dos cursos de arte culinária deinstitutos, escolas, a quem não nasceu para aprender todosos segredos dos temperos nem a maravilhosa maneira deaplicá-los. Diz-se entre os sertanejos: �Fulana tem a mãomaneira pra temperar...� Realmente, nem todo mundo sabepolvilhar o tempero na medida exata. O muçu, por exem-

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plo, não deve ser fritado sem ter ido antes à panela empostas, para uma fervura demorada. Retirado ao fogo, de-pois dessa precaução, apanhará na frigideira inconfundívelgosto, sem o abuso de sua enjoenta gordura.

E as paçocas? Quem já não as provou em viagem peloalto sertão? Nada mais gostoso do que a mistura de farinhade mandioca com carne assada, às vezes, com banana, socadaao pilão. De todas, no entanto, a melhor que já experimenta-mos foi a de carne de avoante (ZENAIDA AURICULATAVIRGATA BERTONI). Mas, embora não tenhamos comido,informam que passoca (ou paçoca) de carne de veado érealmente digna de ser servida em qualquer mesa. A carnedo cervos, bem conhecemos, é seca, sem gordura, e deótimo paladar.

Não precisamos dizer também que não somente os pra-tos mais populares mas outros de certo requinte foram esqueci-dos por nós. Aliás, é bem explicável que tal acontecesse,pois, ao escrevermos, não nos animava fazer um estudo tãolongo, e, possivelmente, enfadonho, mas tão somente falarsem o tom de mestre, com humilde �soto voce�.

E os doces? Não se pode falar neles sem antes transcre-ver o mestre Gilberto Freyre: �Procuremos num esforço quetalvez não resulte inteiramente em inutilidade valorizar a tra-dição da cozinha nordestina, hoje em perigo de vida. A velhacozinha pernambucana: a do pitu, a do peixe de coco, a dosbolos, dos doces de caju, araçá, goiaba. Não nos envergonha-mos deles � peixes, bolos e doces, segundo receitas que nos-sos avós nos deixaram por escrito ou na tradição oral dasfamílias ou das velhas negras cozinheiras. Tampouco nos en-vergonhemos delas � as negras cozinheiras�. E acrescenta:�superiores a muitos �mestres-cucas� estrangeiros�. As nossasvelhas doceiras são mestras no fabrico doméstico de doces ebolos. É sempre um prazer podermos saborear um doce de

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leite caroçudo ou raspar a panela onde se preparou um docede coco, a respeito do qual correm abusivas anedotas.

Viaja-se o Brasil inteiro, de norte a sul, de leste a oeste,e nos acontecem sempre agradáveis surpresas. Como sabembem, por exemplo, o doce de bacuri ou de cupuaçu do Pará!Como é gostoso o tradicional arroz-doce com doce-de-leiteque se vende à margem da estrada de ferro de Sobral, noCeará! E o doce de buriti do Crato? E a cocada-puxa que secome na Cidade do Salvador?

Ainda ao poder evocativo da memória lembramo-nosdos vendedores populares de puxa-puxa da cidade de Forta-leza. À rua D. Teresa, há mais de vinte anos, existia umanegra que fazia deliciosas puxas que eram avidamente com-pradas tanto por crianças como por adultos. Hoje, apenasnas casas tradicionais ou no sertão, é que se costuma aindafazer puxa-puxa. Mas vale a pena, na dificuldade de provardoce tão nosso, pelo menos rememorá-lo.

Na ordem dos aperitivos, impôs-se uma explicação: nãoexiste requinte numa refeição, se faltar uma bebida das cha-madas espirituosas. Não se pode conceber panelada sem areconfortante aguardente, como é fora de propósitos servir-se peixe sem a companhia de vinho apropriado.

A Filosofia chinesa de moderação mais uma vez podeser aproveitada por nós. �Não se deve estranhar, pois, queum festim de vinho dure duas horas. O fim não é comer nembeber, mas divertir-se e fazer bastante barulho. Por tal razão,quem meio bebe, melhor bebe, como o poeta Táo Yuaningque tocava música num instrumento sem cordas. Para o be-bedor, o que importa é o sentimento�. Nós, os brasileiros,somos terrivelmente exagerados. Não é possível imaginar-seuma reunião campestre, entre nós, que não entre em cena ainevitável cerveja ou a aguardente. E se fossem as bebidasaqui servidas sob o princípio da temperança chinesa, que

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nos ensina Lin Yutang, a coisa seria outra. E, já que se nãopode dar jeito, é aceitar tudo nesse natural �status quo�. Edizer que é excelente a aguardente injetada no caju e sorvi-da, depois de um momento, como não é menor a classe daaguardente retirada de recipiente, no qual estiveram de mo-lho algumas ameixas. Maracujá, açúcar e cachaça, eis outrafórmula muito elogiada pelos que apreciam os bons aperiti-vos. A meladinha � aguardente com mel de abelha e rodelade limão tem por função abrir o apetite e sabe bem, sendomelhor do que a mistura que se obtém também do vinho dojenipapo ou da jurubeba com cana.

Chiang Sing, em seu artigo �Introdução à cozinha chi-nesa�, conta que o imperador Yen Loh apreciava realizar tor-neios culinários entre os cortesãos. As receitas vencedoras eramaprovadas e certamente, dizemos nós, obrigatórias em todo oimpério. Dai, quem sabe! o famoso Pato de Pequim, a Sopa deNinhos de Andorinhas, as Tâmaras Douradas, e tantos outrospratos que devem ser deliciosos mesmo através dos livros. Já étempo de aparecer entre nós um novo Mecenas, não paradistribuir prêmios literários � que já ninguém se interessa poreles � mas para premiar �gourmets� e �mestres-cuca� da cozi-nha nacional, tão debilitada à falta de maior estímulo.

Enquanto isso não acontece, continuamos a sofrer ainfluência da cozinha estrangeira, mesmo porque sem reeduca-ção dos nossos estômagos de gente da cidade jamais podere-mos suportar a violência dos pratos regionais, de um maneirageral, sempre pesados. A cozinha nortista guia-se pelo idealda Sustança, pouco interessando o Belo e o Bom. Por isso éque a coalhada deve ser adoçada com rapadura, a umbuzada,feita com leite de curral, e as pamonhas, as canjicas, commuito leite de coco.

As receitas � tal como acontecia no Recife � continuampassando de geração a geração. Antigamente, toda dona de

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casa possuía, em casa, um livro de receitas, espécie de cader-neta com os ensinamentos e fórmulas de dezenas e dezenasde guloseimas. Hoje, com o lançamento de obrasespecializadas, já as donas de casa não precisam mais pedirreceitas às amigas. As verdadeiras receitas, essas continuamsendo repetidas pelas negras de cozinha, gente que veio dointerior e que, quando aprende a cozinhar, sabe, sempre,fazer pratos deliciosos. Não são bonitos, nem belos, poder-se-á dizer, mas são de encher o estômago pela impressão desustança, de vigor...

As comidas no Nordeste, de um modo geral, dividem-se em duas classes distintas: reimosas e inocentes. Diz-se queé reimosa uma comida quando provoca distúrbios orgânicos,e inocente, quando não faz mal, podendo ser servida, indistin-tamente, a crianças e adultos. Certamente que existem mui-tos tabus alimentares, mas partindo-se do princípio de que�as proibições tabus carecem de todo fundamento lógico esão, portanto, de origem desconhecida� (vejam Josué de Cas-tro, in �Fisiologia dos Tabus�), a posição assumida pelo serta-nejo em face das refeições tidas e havidas por reimosas einocentes filia-se a uma influência de Empédocles e seus se-guidores, como por exemplo, Galeno e Avicena.

Para Empédocles, as enfermidades surgiam do desequilí-brio de quatro elementos sobre os quais repousava a vida:água, ar, terra e fogo, em luta contra os quatro humores quecriavam a existência humana: o sangue, a fleuma, as bílisnegra e amarela. Dessa desarmonia criava-se a matéria �morbo-sa� que, prejudicando a vida humana, gerava excretos que,por sua vez, iriam formar as doenças.

É evidente que assim como receitavam os antigos o ardas montanhas, as massagens, os exercícios, a água, comoagentes terapêuticos, iam mais longe aconselhando os bene-fícios da natureza, entre os quais incluíam as aves, os animais

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e os frutos silvestres. Contra essa chamada matéria morbosaque sempre inquietou os antigos, Hipócrates cumpria e aconse-lhava uma terapêutica para eliminá-la, com o �empleo de lospurgantes (eléboro negro), enemas, vomitivos (eléboro blan-co), ventosas, sangrias, etc.�

A reima a que alude o nosso homem do campo não éoutra coisa senão o humor a que se referiam igualmente osantigos seguidores da teoria esposada por Galeno. É, em úl-tima análise, fator misterioso que se esconde em determina-dos alimentos, prejudicando a quem os dirige. Ou porquesejam realmente fortes e indigestos ou porque sejam simples-mente coincidentes em provocar achaques em mais de umapessoa, certas carnes, certas frutas tornam-se quase queproibitivas. Somente os mais corajosos é que não respeitamas recomendações das pessoas mais experimentadas que semanifestam da seguinte maneira:

� Isso é loucura! Você num sabe como isso (a comida)avexa o sangue?

� Não coma, não. Dá uma reima danada!O �Lunário e Prognóstico Perpétuo�, de Jeronymo Cor-

tez, diga-se de passagem, um dos livros mais citados, maiscomentados por cantadores e pelos mais velhos do�hinterland�, responde por esse receio que o nosso cabocloainda devota a certos alimentos. Há um capitulo especial nesselivro de Jeronymo Cortez onde estão reunidos conselhos einformações de terapêutica dos antigos. São arroladas, ali, assentenças em favor da saúde, as indicações mais em uso,originárias de Avicena, Hipócrates, Almançor, Galeno, etc. �Acarne de cabra, de bode, de lebre e de boi não é boa paraconservar a saúde: porque, como diz Almançor, cap. de Ani-ma, a tal carne gera humores grossos e o sangue melancóli-co�. Ainda no mesmo capítulo: �Isaac escreve (in diaetisuniversalibus) que as carnes de boi e bode são duras, carre-

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gadas (o grifo é nosso) e de má digestão, e que criam humo-res melancólicos e pesados�.

Para o sertanejo, tudo que é reimoso e carregado�. Eessa designação toma aspecto de tal importância em suamedicina que até mesmo nomeia as doenças venéreas de�carregação�. Foi �carregado� o alimento, já se sabe que éreimoso, provocará distúrbios no organismo, febres, etc.

Luís da Câmara Cascudo, in �Dicionário do Folclore Bra-sileiro�, ao definir reima (ou reuma) � transcreve os seguintesversos populares recolhidos por Leonardo Mota:

�Maria Tebana, agoraDigo uma graça contigo;A reima do bicho homeNasce da maçã do figo,A reima do bicho femeEu sei, mas porém não digo...�

É ponto pacífico que a reima ou reuma é algo queexiste em determinadas coisas e que em contato com o or-ganismo do homem provoca uma série de reações desagra-dáveis. E os apologistas da reima são tão exagerados que jáincorporaram o termo para designar inclusive certas mani-festações puramente temperamentais. Na linguagem popu-lar quando se deseja, exageradamente, uma pessoa do sexooposto, diz-se:

� Estou com uma �reima� danada por fulano!Reima aí significa mais do que �doença�. É desejo, pai-

xão que já se torna obsessão, em última instância, enfermida-de. Daí surgir o combate à reima, ato que se representa noseguinte: a pessoa que tanto deseja a outrem, fecha a mão epede a um amigo que faça o mesmo. Em ato contínuo, passam

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ambos com violência uma mão pela outra, atritando-as nasfalanges. Denomina-se essa terapêutica mágica: �tirar a reima�.

Adoece de reima quem desrespeita as proibições domés-ticas, comendo frutas como ata (a mais reimosa delas), mu-rici, cajá, etc. Capote e pato representam os galináceos epalmípedos na classificação das aves reimosas. De um modogeral, quase toda a carne de caça tem reima, atribuída ao fatode ter morrido o animal de �morte matada�, o que deixa osangue �preto�, agitado. Trafra, camurupim... e, principalmente,a curimatá representam os três peixes mais perigosos na for-mação de humores. Carne de porco é um veneno, não fican-do atrás a carne de preá, de peba e de tatu. Quem, porventura,sofrer de alguma dermitose, não deverá comer caranguejos.Aos que estão convalescendo, não podem ser servidos pratoscomo os já referidos. Deverão fazer refeições �inocentes�:caldo de galinha, sopa, etc. E assim vai a sabedoria popular,influenciada diretamente pelo �Lunário Popular� e por outrospropagadores da ciência médica antiga, instruindo e prepa-rando os nossos irmãos sertanejos contra a terrível reima...

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Magia e medicina popular

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Medicine, magie et sorcellerie� é um livro de MarcLeproux editado pela Presses Universitaires de France, comprefácio de Arnold Van Gennep, que nos abre mais horizon-tes sobre os estudos da medicina popular. Trata-se de umacontribuição ao folclore charentais (Angoumois, Anuis, Sain-fonge) e oferece ao leitor centenas de informações sobre te-rapia popular, quase todas estribadas na experiência de anose anos de estudos e pesquisas do autor.

Arnold Van Gennep, apresentando o sr. Marc Leproux,tem palavras, no prefácio da obra, bastante elogiosas, e quenos dão idéia do homem que se dispôs a colher tantas infor-mações para oferecê-las em alentado volume. �Ce volume �diz o autor do prefácio � et l�on en dira autant des suivants� est une ceucre de science, c�est-à-dire impartiale, dontles théoriciens pourront tirer parti en faveur de leurs pro-pres opinions ou contre elles�. Destaca-se, e isso é eviden-te, o espírito de seriedade da pesquisa e o acatamento quetrabalhos dessa natureza recebem por parte de cientistascategorizados.

A justificativa, para tudo que ali se pode ler, está comoque consubstanciada na citação que o autor faz do foicloristaVan Gennep e que, em última análise, é a definição exata doespírito da medicina popular: �11 est difficile de séparer ces

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deux ordres d�ativité (magie et médecine populaire) � parceque la médecine populaire se distingue prêcisement de lamédicine scientifique en ce qu�elle fait appel à des forces oupuisances immatérialles et non pas seulement à des réactionsphysico-chipuimiques, doinc aussi physiologiques�.

Sem magia, sem o cunho de mistério, de iniciação mági-ca, vamos dizer, não existe medicina popular. Observe-se queem quase todos os tratamentos populares há sempre a decla-rada manifestação do doente ou de alguém para se valer deforças imateriais, superiores ao domínio humano. Repontamem dezenas e dezenas de indicações terapêuticas inerentesao povo características de magia.

Vejamos alguns exemplos: pessoas que sofrem de con-vulsões devem beber pelo menos uma colher de sumo dearruda e receber, logo em seguida, fricções de arruda, gergelime jalapa, em cruz, isto é, aplicadas de início no braço direito,depois na perna esquerda, a seguir no braço esquerdo, naperna direita e assim por diante. Para quem sofre de sezãonão há melhor tratamento do que ir ao mato, munido de umcordão de certo tamanho até encontrar uma árvore de troncobem grosso. Avistando-a, deve o doente fazer a �amarração�,isto é, amarrar o tronco de uma árvore com o cordão,pronunciando a seguinte oração:

�Ave-Maria!Eu te amarro pela virilhaCheia de graçaEu te amarro por baixo dos braçosO senhor é convoscoEu te amarro pelo pescoço...

Nesses dois exemplos aqui citados � outros poderiamser repetidos dentro dos mesmos limites � evidencia-se de

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maneira irrefutável esta condição de magia que influencia aterapêutica do homem do povo, dessa gente que para recupe-rar a saúde em perigo não titubeia lançar mão de práticasinfantis, destituídas de fundamento.

Principalmente nisso é que reside a grande diferença damedicina popular para a medicina científica. O caboclo, quevive distante da civilização e não sentiu ainda na esfera dacoletividade em que gravita os efeitos de ensinamentos médi-cos bem dirigidos, desde cedo acostumou-se a vencer a morte,a salvar-se dos mais diversos perigos pela ação de certas pala-vras cabalísticas, de ensalmos que continuam sendo recitadosde pai para filho, através de gerações e gerações.

Nesse estado de incultura, sem receber a contribuiçãode pessoas mais evoluídas, o homem é o mesmo, tanto noCeará como na região de Saintongealse ou de Angoumoisine.Marc Leproux, com a sua admirável obra, confirma tudo aquiloque, através dos anos, vimos repetindo para os nossos leito-res, principalmente a quantos se interessam pelos estudos danosso demopsicologia.

Em Confolentaise, por exemplo, �la mêre prend le bon-net de l�enfant et le jette dans les flammes. Le mal doit dis-paraitre en même temps que bonnet se consume�. Lá, comoaqui, o mesmo costume. A diferença é que não jogamos aofogo o chapéu da criança, mas se costuma queimar a roupade quem morre, para que o mal não volte a dominar outrapessoa que habite o mesmo lar. O princípio de magia é idên-tico, não difere. O fogo funciona como purificador, capaz deextinguir o mal, de fazer desaparecer a influência perniciosados maus espíritos.

Qualquer �comadre� (parteira) dos sertões cearenses sabereceitar, para a mulher que está custando a descansar, soprarna boca de uma garrafa. Há até quem aconselhe, na falta deuma garrafa, fechar as mãos, imitando um gargalo e soprar

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pelo orifício assim feito. Quando se pensa que a prática éexclusiva da gente atrasada do Nordeste, eis que surge o Sr.Marc Leproux contando a mesma indicação médica, e emfrancês, o que torna a receita mais solene: �dans la régionsam-tongeaise, on faisait asseoir la malade sur son vase demuit et elle souflat bien fort dans une bouteille�.

Brasileiros e franceses não dispensam uma �soprada�na boca da garrafa. E não é somente nesta receita que os doispovos tomam determinados pontos de contatos. Em outras, eem muitas outras, notamos a semelhança de meios emprega-dos para a recuperação da saúde abalada. O que se deveressaltar é que, de um modo geral, jamais se distanciam asreceitas médicas populares da influência da magia. Há sem-pre um apelo às forças imateriais. Um rito, qualquer coisaque transcende à compreensão humana.

III

A observação talvez não seja nova ou não representenenhuma contribuição decisiva aos que estudam a medicinapopular e suas aplicações pelo homem do povo. Entretanto,vale a pena registrar, o mais importante nos tratamento, mui-tas vezes, é o ritual com que o mesmo se processa sem que odoente venha a saber como lhe preparam o remédio quetomou. Não há dúvida, o sertanejo, de um modo geral, acres-centa maior importância ao sentido sigiloso de determinadostratamentos. Rezadores, curandeiros e raizeiros com quemmantive a mais estreita amizade sempre me advertiram dovalor de certos gestos e atitudes quando estão preparando osremédios ditados pela experiência.

De um para outro meizinheiro verificam-se apenas li-geiras modificações na maneira como externam seu pensa-

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mento a esse respeito. Dizem: �É preciso ter �ciência� prasalvar o doente� ou �a força do remédio está no segredo�.Realmente, recomendam as pessoas interessadas o mesmocuidado quando transmitem a fórmula do tratamento dos maisíntimos:

� Olhe, não diga a fulano (o doente), pois assim o re-médio não terá valor nenhum

Se o enfermo fica bom é porque nenhuma força estra-nha surgiu para impedir a ação benéfica da meizinha receita-da ou o poder mágico do remédio não teve a sua açãoprejudicada pela quebra do sigilo, condição �sine qua non�,já se vê, da medicamentação indicada.

Para este trabalho anotamos algumas receitas dessa tera-pêutica popular, em que não faltam as recomendações desigilo, desenvolvendo-se o tratamento debaixo de sete-cha-ves, como se se tratasse de um mistério de alta e merecidaimportância. Pessoas de minha amizade, para citarmos o pri-meiro caso, estão submetendo um parente, que sofre de asma,a um desses misteriosos tratamentos. O coitado já bebeu duasvezes, em chás, gotas de sangue de um gato preto, obtidasda orelha. A verdade � e certamente deve haver milagrosacoincidência por conta da estranha beberagem (o sangue foidado a beber ao paciente, dissolvido num xícara de chá) � oasmático já não sofre a turbação dos acessos. Até desapare-ceu o �piadinho� das manhãs, quando a friagem é bastanteagradável. Os diálogos em torno do assunto evidenciam asua influência:

� Ah, se ele souber, �o piado� volta forte, em cima dasbuchas!

� Dizem que o �segredo� do remédio está no fato de odoente ignorar o que bebeu.

� Não digam pra ele.Outro mais compadecido: �Coitado do gato...�

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Os gatos, infelizmente, para eles, têm um prestígio excep-cional no tratamento da asma. Já anotáramos em nosso �Me-dicina Popular� como são utilizados, de diversas maneiras.Ora servidos apenas os pelos do focinho, ora o próprio san-gue, puro, bebido de uma vez, sem rebuços, ou, em últimainstância, um verdadeiro cozido da carne de um gato mourisco(trata-se do �Felus Jaguarundi�), citado com destaque peloromancista Cordeiro de Andrade em seu livro �Cassacos�, ro-mance impregnado de cenas da vida campestre do Ceará.Dessa ou daquela maneira, insistimos, o repugnante remédiodeve ser ministrado sob aquele princípio de mistério tanto dasimpatia dos nossos queridos irmãos sertanejos...

Chá de �jasmim de cachorro�, para citar mais exemplos,é outra recomendação em que se têm aproveitado os excre-mentos de um cão, quase a se transformarem em pó, emremédio dos mais repugnantes. Poucos são aqueles que ten-do sarampo no �hinterland� nordestino escaparam de bebê-lo. A verdade é que, sendo meizinha sobremodo generalizada,é temida por todos os doentes. Quem adoece de sarampofica logo desconfiado. Passa a recusar os remédios.

� Que é isso? Tem um cheirinho esquisito.� Tolice. Tome o remédio.� Mas isso parece...� Parece, mas não é. Você não quer ficar bom?Quem não desejará recuperar a saúde? E vai o enfermo

facilitando, facilitando... Quando menos espera, está ficandobom, mais disposto. Ao recuperar-se, dias depois, estarrecido,sabe por intermédio de algum indiscreto que tomou, semsaber, chá de �jasmim de cachorro...�

Ainda para o tratamento da asma, de que nos valeucomo primeiro exemplo o ritual das gotas do sangue da ore-lha de um gato preto, convém lembrar que um canção amar-rado ao pé da cama de quem sofre da doença é santo remédio.

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O importante, na história, é não descobrir ao asmático que opassarinho, aprisionado debaixo de sua cama, tem comoobjetivo acalmar-lhe os acessos que tomam conta do corpo.

Há quem aconselhe manter o cancão dentro de umagaiola, no interior da casa, sem que o doente saiba qual amissão terapêutica que vai desempenhar. Enquanto não hou-ver comentários a respeito, tudo será favorável a que o enfer-mo recupere a saúde, ficando livre do �piado� que é,realmente, incômodo. Mas, falou alguém sobre a ação dopassarinho, está decretada a sorte do asmático:

� Foram falar, botaram o remédio fora!E existem sempre as informações de casos reais em que

o doente, logo que soube para que se destinava o cancão,piorou terrivelmente, precisando até de médico.

� Dizendo é pior. Quebra a força do remédio e a doen-ça vem com força mesmo....

Não existem somente esses exemplos em que se eviden-cia a atitude sigilosa, mágica, do sertanejo quando se vale deseus recursos, ora repugnantes, ora perfeitamente aceitáveis,no combate às diversas enfermidades comuns à sua área geo-gráfica. A maioria dos remédios esquisitos obedece a um ri-tual todo especial. Existe como que uma série de normas quedevem ser cumpridas pelos familiares do enfermo, sob penade o tratamento não surtir o efeito desejado.

Quando falham as medidas de precaução para encobrira repugnante realidade de certas meizinhas, podemos estarcertos: falha igualmente o tratamento.

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Cerâmica popular cearense

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Com o objetivo de estudar a cerâmica popular doNordeste, e, com essa idéia, interessado em obter informa-ções que melhor nos forrassem para o agradável cometi-mento, procuramos na cidade de Natal o folclorista Luís daCâmara Cascudo, solicitando-lhe uma bibliografia que va-lesse a pena ser consultada. A resposta daquele estudiosodo nosso folclore deixou-nos amargurado: �A bibliografiade que me fala poderá ser iniciada agora, se para tanto vocêestiver decidido a escrever um livro�. Daquele dia a estaparte já lá se vão quatro ou cinco anos. Não tinham surgidoainda para a curiosidade dos leitores, e até mesmo dos pró-prios estudiosos, os pequenos mas necessários estudos, comopor exemplo, de Walter Piazza (A Cerâmica PopularCatarinense), de Mário Baldi, (A Cerâmica dos Índios Carajás),e mais outros trabalhos da mesma natureza que, insertosem revistas ou reunidos em livros, já contribuem para faci-litar e até estimular os estudos da arte que sempre foi umapreocupação dos povos.

O Ceará não é uma região produtora de cerâmica comer-ciável, isto é, de obras preferidas e elogiadas pelos que admi-ram a criação popular mais vistosa e por isso mesmosofisticada. Os colecionadores � e até de certo modo algunsestudiosos, talvez mais pelo exagero do queremismo regio-

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nal � preferem sempre os bonecos do mestre Vitalino, deCaruaru, Estado de Pernambuco. Declaramos aqui � e talvezcorrendo o risco de exacerbarmos os ânimos dos que admi-ram exaltadamente os calungas de Pernambuco � que nãoapreciamos os atuais bonecos daquele artista popular, princi-palmente os desta sua fase de rebuscamentos, quando a obracriada, plasmada por suas mãos e a de seus auxiliares, jámuito se assemelha ao que é vendido em lojas, etc.

Artista de mais fatura � pelo menos dentro das caracte-rísticas isentas de influência que se exige no homem do povo� exatamente pelo movimento que empresta às suas figuraspela simplicidade das peças zoomorfas ou antropomorfas queconcebe, é ilustre anônimo natalense, homem do povo, quetrabalha com uma argila escura, decorando-a com tinta bran-ca. De sua criação possuímos dois ou três trabalhos de pode-rosa expressão e ritmo. Não temos notícias nem de seu nome,e ninguém o quis chamar de mestre, mesmo sendo ele umverdadeiro ceramista, fiel ao seu método primitivo de traba-lho e produzindo como realmente deve produzir, isto é, semo interesse de colorir as figuras que cria de modo a confundi-las com estatuetas de lojas.

Nossa coleção particular (de aproximadamente cem pe-ças) reúne material dos mais representativos. Para os que jáse acostumaram ao colorido dos artistas da área pernambu-cana, essas peças � referimo-nos ainda às do ceramista na-talense � não poderão agradar. Enquanto os bonecos daquelaregião são pintados a óleo, com colorido brilhante, nos traba-lhos dos ceramistas do Ceará a tinta utilizada é sempre suave,discreta, obtida à base de anilinas. O artista popular do �hin-terland� cearense não faz objetos para turistas ou coleciona-dores exigentes, nem tem a seu favor um verdadeiro DIP deintelectuais, nativistas, a exaltar o entusiasmo de seus feitos,um pouco distorcidos da verdade, vamos dizer, folclórica.

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As peças zoomorfas ou antropomorfas são criadas sob ainspiração dos temas de sua própria geografia ambiente. Se olouceiro � designação comum do homem que trabalha o barro� tem sua residência situada num pé-de-serra, e a paisagem queDeus lhe concedeu para encher-lhe a existência é esta que seconstitui de animais que transportam frutas em caçuás, de ex-tensos comboios de burros e éguas tilintando seus chocalhospelas ladeiras, de animais � bois e vacas � pastando pelos cam-pos, etc., naturalmente nela o louceiro terá a verdadeira seara desua inspiração. O ceramista será incapaz de modelar um médi-co, um dentista, um agrimensor, um locutor de rádio. Tais figu-ras não existem obrigatoriamente no colorido humano de seuambiente onde predominam animais, e por isso mesmo nãopodem influenciá-los de maneira decisiva. Nessa peregrinaçãode mais de quinze anos, em interesse da cerâmica do Ceará,cerâmica em bases honestas, sem o perigoso estimulo defazedores de mestres, jamais encontramos nas feiras do interiorcearense � quer fosse em Pacatuba, Iguatu, Maranguape, Juazeirodo Norte, Barbalha, Crato, etc. � figuras em que se sentisse afuga do artista popular aos elementos de seu �habitat�.

A cerâmica popular do Ceará conserva-se simples, gran-diosa e fiel à sua simplicidade. Duas localidades contribuemcom o que há de melhor no assunto: Cascavel e Ipu, princi-palmente Ipu onde a cerâmica alcança uma leveza fora docomum, plasmada em argila amarelada, algumas vezes umtanto esbranquiçada, recebendo um tratamento de cor emque predomina o vermelho claro em harmonia com a peça.Cascavel dá-nos, a seu turno, uma cerâmica branca, às vezesdemasiadamente branca. Aí, a coloração é diferente. O artistaresponsável pelas diversas peças decora-as com tinta azul(anilina, sempre anilina), não alcançando equilíbrio estéticosatisfatório. Dessa região possuímos um �homem passeandoa cavalo, de chapéu na cabeça�, capaz de disputar valor e

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qualidade, em igualdade de condições, a qualquer peça demestre Vitalino que, em amor à verdade, apesar do mal quelhe fizeram os seus orientadores dessa sua fase moderna, érealmente um artista de valor.

É simples a figura do cavalo; imponente a do cavaleiro,vestindo uma camisa azul com gola encarnada. O chapéucompleta o traje desse tipo impressionante que nos lembra,de pronto, uma critica direta aos filhos dos coronéis, gentede desmandos que sob a influência do dinheiro apreciamequitar diante do olhar e do elogio de pobres roceiras.

Vale a pena insistir: o ceramista cearense não é um artistaque se liberte dos temas de seu ambiente para dar outra natu-reza à sua obra, ou caracterizá-la sob influências citadinas. Fá-la de acordo com o seu conhecimento, com o que lhe serve aNatureza em todos os momentos de sua existência. Anotamosa seguir, como contribuição aos estudiosos, os motivos que, anosso ver, são os temas principais de sua inspiração:

CavalosBurrosJumentos com caçuasBoi (de preferência o zebu)

Zoomorfos: PapagaioGalinhas, perus, demais aves domésticasCachorroJacaré (fidelidade às histórias da Amazônia)CágadosCoelhos

CangaceiroMúsicos (tocador de sanfona, deviolão, repentistas, etc.)

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Antropomorfos: Homens e mulheres dançandoRendeiraBanda de músicaBotador d�águaVaqueiros, etc.

A combinação de cores preferida: encarnado-azul. Ou-tra igualmente utilizada com freqüência: verde-encarnado.Pode ver-se ainda pintura à base de preto-amarelo. Todos osbonecos (figuras humanas) têm os olhos assinalados por tin-ta vermelha; poucos se apresentam com orifícios que os des-taque, e são raros os que representam os dedos das mãoscom talhes feitos a ponta de faca. Algumas peças zoomorfas,como perus, pavões, são enfeitadas com penas autênticas,sendo características as pernas de palito, recurso que contri-bui para acrescentar às peças certa leveza e graciosidade. Éinteressante a solução técnica do sertanejo, que evita a des-truição da peça e confere à mesma uma semelhança maisaproximada do modelo.

Trabalha o ceramista como todo louceiro. A argila quecolhe no barreiro, geralmente próximo de casa, é levada parao seu terreiro e posta a �dormir� em bolões especiais, atéperder a força. Depois de algum tempo é o barro novamenteesfarinhado e em seguida mesclado até garantir determinadaconsistência. Prontas as peças, são submetidas a uma tempera-tura razoável (se o fogo é produzido por combustão de lenhaou carvão), até adquirirem o tom que agrada ao artista ouque esse pensa ser do agrado de seus compradores. No mes-mo dia, se houver tempo, ou no dia seguinte, são feitos os�enfeites�, isto é, desenhos com tinta vermelha, azul, etc.,simbolizando trajes, arreios de animais, etc.

O louceiro trabalha a semana inteira para, no dia defeira, geralmente sábado ou domingo, ir à cidade levar ao

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comércio o produto de seu trabalho. Como a sua principalocupação é fazer recipientes domésticos (alguidares, pratos,vasilhas, moringas, etc.), apronta-os em maior número parasatisfazer à constante procura de uma freguesia que pouco seutiliza da louça vitrificada das cidades.

Não esquece, porém, de levar nos alguidares, acomoda-dos em folhas secas de bananeiras, os bonecos de barro quevão fazer a delícia das crianças que comparecem às feiras.Cada peça é vendida a um cruzeiro. As grandes (pois o valornão é conferido pela qualidade artística e sim pelo tamanho)custarão no máximo dois ou três cruzeiros. Ao lado de burri-cos, cangaceiros, galinhas, perus, etc., concebidos em argila,vendem também miniaturas de alguidares, quartinhas (morin-gas), ferros de engomar, que são disputados pelas meninasinteressadas, para as suas brincadeiras de �comadre�.

Nessas rápidas e despretensiosas linhas tentamos umainterpretação sincera da cerâmica dos sertões cearenses que,para nós, sem exagero, destaca-se pela sua fidelidade aostemas da região, aos princípios rudimentares de tão expressi-va arte. O ceramista caboclo, de chapéu de couro e alpercatas,não se decidiu ainda pela tinta a óleo para decorar seus bone-cos, nem tampouco pela criação de objetos que não estejamintegrados em sua existência.

E isso o isenta de qualquer influência estranha, pernici-osa e civilizadora, o que representa mais um motivo paraelogiar-se o seu trabalho, que é simples e natural.

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Mau olhado e outros temas

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As turbações que modificam o destino das criatu-ras são atribuídas ao efeito nocivo do mau olhado. Para ohomem do povo, a planta que míngua sem produzir, a doen-ça que o surpreende, o filho que adoece repentinamente sãofatos decorrentes da ação maléfica de invejosos, daquelesque, tendo pauta com o demônio, transformam as coisas boasem más pela simples e rápida ação de um olhar.

A esse respeito muito se tem escrito. Em mais de umaoportunidade nós mesmo abordamos o assunto e a ele volta-mos, agora, para tecer alguns comentários sobre o que seconsidera �mau olhado� e �jetatura�. É compreensível, e todomundo sabe, que o mau olhado é malefício que atinge afelicidade alheia, enquanto a jetatura é a ação perniciosa queleva aos outros desgraça, doenças, e até a própria morte. DizWilliam Graham Sumner: �Jetatura é a encantação maléficalançada voluntariamente por pessoas que têm o dom do mauolhado e podem lançar tais encantações, talvez inconscientee involuntariamente�.

O sertanejo confunde mau olhado com jetatura. Paraele tudo que lhe chega de surpresa � doença, más notícias,azares da vida, etc. � decorre da inveja alheia, da força dodemônio que se manifesta pelos olhos do homem mau. Adona da casa esconde a planta bonita para que a vizinha

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invejosa, com o mau olhado, não a faça definhar. O rurícolacoloca um chifre de boi no roçado para que a pessoa quetiver �força no olhar� não prejudique a colheita de sua messe.

Há um temor generalizado a certas criaturas. Logo quese nota em alguém um olhar mais diferentes todas as precau-ções são de pronto tomadas para que o demônio não semanifeste em suas múltiplas perseguições. Diz-se: �Cuidadocom Fulano. Ele tem um olho mau...� É esse �olho mau�, oolho da impiedade, que corrompe, que prejudica, queinfelicita. Daí as medidas de proteção. O cuidado que tem ohomem do povo escondendo um jarro de plantas, fazendocertas transações comerciais longe da vista de terceiros, sim,porque ninguém sabe muitas vezes quem possui realmente omalefício do mau olhado.

Em Bornu, lemos em William Graham Sumner (�Fol-kways�), �quando se vende um cavalo de boa qualidade, aentrega se faz à noite, por temor ao mau olhado (olhos cobi-çosos e invejosos) dos circunstantes�. Entre os núbios � diz-nos William F. Fielding, � não se carrega comida descoberta,com medo da contaminação do mau olhado. Entre os serta-nejos do Nordeste há uma série de práticas defensivas, irmãsdas que citamos. E, fortalecendo-as, há o emprego dos talismãs,o que não é nenhuma novidade, pois o coral vermelho, naEuropa, é um meio defensivo à ação maléfica do mau olha-do, como também o se pintar um olho entre os latino-ameri-canos, ou exibi-lo, como o fazemos nós no Brasil. A ferradura,símbolo de boa sorte, pregada no portão das estâncias, tem amesma ação do chifre que colocamos nos roçados ou nojardim de nossas residências, até mesmo nas capitais.

Ainda na ordem dos talismãs é oportuno que se lem-bre: não há criança que não receba dos padrinhos, logo aonascer, uma figuinha para protegê-la do mau olhado. A crian-ça sertaneja já nasce, pode dizer-se, sob o signo da proteção

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ao �olho do mau�, satânico poder que conturba o destino dosfelizes e faz com que o bonito fique feio, o sorridente entris-teça, e, de tristeza em tristeza, muitas vezes, chegue à morte.

A verdade é que a humanidade sempre temeu o poderde determinados olhos. Os órgãos mais poderosos do senti-do � porque vislumbram tudo; encantam, seduzem,transparecem o ódio, a magoa que se esconde no coração, �sempre amedrontaram os homens. E para tranqüilizarem-se,através os tempos, sempre utilizaram talismãs, a invocaçãode seres poderosos (na Grécia foi criada um poder maior,Medusa, capaz de enfrentar a ação destruidora do mau olha-do), e as orações.

Há várias orações no �hinterland� cearense contra a in-veja que se manifesta pelo �olho do mau�. João Ferreira Lima,autor de �Segredos da Natureza e a Sabedoria Humana� (es-pécie de �Lunário Perpétuo�, dos sertões cearenses) � re-colheu a seguinte oração: �Se teus negócios estão sendoperturbados por irradiações de pessoas invejosas e dotadasde má vontade, faça o seguinte: Durante nove dias, compre-endendo três segundas-feiras, três quartas-feiras e três sextas-feiras, à noite, de 8 às 9 horas, ou seja, das 20 às 21 horas,acenda três velas em triângulo e dê um defumador de incen-so de igreja em intenção dos 7 Mistérios Divinos e de MariaSantíssima. Deve dizer mentalmente que os efeitos dos mausolhados, das más irradiações, os atrasos e más vontades queperseguem os negócios, planos e desejos sejam anulados eaniquilados por completo, em nome de Deus Todo Podero-so. Reze um oficio da Mãe de Deus, como é de costume, comtoda obediência, sinceridade e fé. Será melhor de Lua Nova eLua Cheia�.

Na medicina popular do Nordeste, a cada passo,encontramos noticias de pessoas que, para se precaveremcontra os efeitos dessa ou daquela enfermidade, usam certos

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amuletos, principalmente dentes de porco ou de jacaré. Re-presentam eles mais uma manifestação simbólica contra osefeitos do mau olhado. E tanto isso é comum que na Índia,segundo o já citado William Graham Sumner, usa-se um den-te ou uma garra de tigre, bem como símbolos obscenos, oufios de búzio, para afugentar o mau olhado.

É costume nosso, no Nordeste, em certas ocasiões, di-zer exatamente o contrário daquilo que pensamos de umacriatura. Se é um menino bonito que contemplamos, devere-mos dizer: �ô criança feia�! Dizem que, assim fazendo, estare-mos afugentando os maus espíritos que poderiam invejar abeleza da criança. Interessante é que na Hungria existe amesma precaução, de onde se conclui que o medo, o temorao mau olhado e os meios de defesa que deles nos utiliza-mos são semelhantes no mundo inteiro.

Com figas, orações, determinados rituais, através os tem-pos, o homem tem repetido o mesmo temor ao mau olhadoque acometeu as coletividades primitivas.

II

Mário Ypiranga Monteiro, que pontifica em Manaus so-bre assuntos do folclore amazônico, em seu estudo �O Com-plexo Gravidez-Parto e suas conseqüências�, escreve oseguinte: �A concepção é o estado fisiológico da mulher quemais impele a curiosidade exterior. Quando esse estado atin-ge a sua máxima importância, desperta o interesse coletivo,desde que se expõe ela aos comentários insinuantes da rua.

Inicia, assim, aquele pesquisador do extremo norte,definindo com palavras acertadas sua tomada de posição noque diz respeito ao problema que representa a gravidez paraa mulher, de um modo geral. Logo que as companheiras de

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uma coletividade descobrem que a amiga está grávida, ummundo de comentários, de palavras chistosas principia a cir-cular. Existem as perguntas capciosas; frases maldosas, mas,na maior parte das vezes é simples brincadeira; excesso deintimidade.

Dizem: �Virgem�, o que tu andou comendo que ficou�assim�? � Menina, tu já tá �gorda�, outra vez? � �Logo vi que�isso� era novidade...� � �Pensei que você estava doente, masagora estou vendo que a �doença� era menino!� ��Espere?Você comeu melancia?� � (Aludindo a uma anedota muitopopular no Nordeste: �O trem tá passando perto de tua casa?�)� �Tá veno em que dá a �brincadeira� de pobre?�

� �Você parece que andou comendo vento...�Os comentários envolvem o problema da vida difícil,

das coisas caras, a situação de pobreza em que vivem os dolugar. Pobre não sabe a tabela dos dias daquele cientista chi-nês que descobriu os dias estéreis na mulher; nasce meninoquando Deus determina. Não adianta tomar remédio, nemtomará, mesmo que a recomendem. Os meios abortivos sãoutilizados por donzelas infelizes, nunca pela mulher sertanejaque todos os anos se encarrega de trazer ao mundo mais umbrasileiro. Há frases mais ou menos como estas: �Riqueza depobre é filho, d. Maria � ��Atrás do pobre anda um bicho�� ���Coragem de pobre é ter filho� � �Mulher foi feita pra termenino� etc. etc. Raramente ouvem-se sentenças contra aque-las que todos os anos procriam, mas, às vezes, comentamcom certa impiedade: �Aquilo é que é mulher enxerida. Temfilho todos os anos...

Por outro lado constitui anormalidade das mais sériasna vida da comunidade sertaneja qualquer mulher descansargêmeos. Se o parto for em número superior a dois, então ofalatório correrá por toda a vila, reforçando o escândalo davizinhança:

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� �Ave Maria... só bicho é que �pare� de muito...�, ouentão: �Parece rato...�

De um modo geral, a mãe sertaneja, exatamente pelaslimitações de sua pobreza, não pode preparar o enxoval dofilho. No máximo uma camisinha � que será a do batizado �e alguns pedaços de pano que servirão para envolver a crian-ça nos primeiros dias até o segundo ou terceiro mês de nasci-mento. Como todo rebento da terra, vai criar-se rústico: pisandono chão, apanhando verminoses, e experimentando os maisestapafúrdios remédios da medicina popular.

Arrolamos, para quantos se interessam pelos estudos einformações sobre o assunto, algumas práticas, superstiçõese remédios de que se utiliza a mãe sertaneja. Uma ou outra,talvez, já registramos em nosso �Medicina Popular�, mas valea pena tê-la aqui novamente: 1 � Para se saber se vai nascermacho ou fêmea, deve proceder a futura mãe da maneiraseguinte: joga para cima uma camisa do enxoval e �repara�como ela cai. Caindo embolada será menino. Se cai estirada,já se sabe: mais uma Maria no mundo...

2 � Mulher grávida não deve passar por cima de ca-bresto de animal. Se tal ocorrer, o parto será muito difícil.Evita-se, entretanto, o transtorno, amarrando a mulher pelacintura com um cabresto de couro cru.

3 � Gestante não deve sentar-se em batente de porta.Terá complicações post-parto.

4 � Para que o parto se processe rapidamente, deverá agestante, todos os meses, andar de quatro pés dentro doquarto.

5 � Mulher grávida só deve ver pessoas bonitas. Se con-templar um cego ou aleijado, o menino nascerá com defeitofísico.

6 � Pentear os seios, com um pente fino, facilita a saídado leite na hora da amamentação.

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7 � Azeite doce também serve para �amolecer� o leite.Basta aplicá-lo nas mamas.

8 � Não se deve guardar chave à altura do seio, pordentro do vestido. É danado � dizem � para fazer meninonascer de beiço lascado.

9 � Medalha ou até mesmo escapulário, pendurado ao pes-coço, se o cordão for grande, pode fazer �sombra� e manchar omenino. Isto é, o menino nascerá com algum sinal no corpo.

10 � O umbigo do recém-nascido terá que ser enterra-do na porteira do curral ou no pé do Cruzeiro, para que omenino seja sempre feliz.

11 � Azeite doce, amornado no fundo de uma coité, ser-ve para aliviar os seios que sofreram arroto de menino novo.

12 � Meter na boca do recém-nascido a cabeça de umpinto que acaba de deixar o ovo, faz o menino falar depressa.

13 � Se a criança demora a andar, já se sabe: não hámelhor remédio do que meter suas pernas no fato de um boi,ainda quente.

14 � Para o mesmo fim, anda o pai três domingos se-guidos, pela manhã cedo, antes de falar com alguém, emvolta da casa, fazendo-se acompanhar do menino e convi-dando-o três vezes a ir à missa.

E, assim, sucedem-se as superstições, as práticas da me-dicina popular no que diz respeito à gravidez e ao parto dasmulheres.

III

Não será difícil negar aos números influência sobre o des-tino das criaturas. Entretanto, são eles, principalmente os de umaté dez, relacionados com freqüência pela literatura popular, ora

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como símbolos de tratamentos mágicos, ora como verdadeirostabus que infelicitam os menos avisados, ora na contagem ouritual de um medicamento da terapêutica cabocla.

O homem do povo sem sentir-se vai adotando determi-nados números; implicando com outros aos quais atribui odia ruim que teve, o desfecho de um caso amoroso ou apouca sorte no jogo. Se é cantador, gosta de aludir ao encan-tamento dos números, ao seu sortilégio, fazendo versos emque se sente, nitidamente, a presença mágica, cabalística dosalgarismos.

A oração aconselhada para curar bicheira, em qual-quer área territorial do Nordeste brasileiro, após as primei-ras palavras, terá infalivelmente o apoio dos números, damaneira que se segue: �Hás de ir caindo de dez em dez, denove em nove, de oito em oito, de sete em sete, de seis emseis, etc�. Se não houver esse processo diminuente (de dezem dez, de nove em nove, etc). � os bichos não abandonamos animais. José Teixeira, autor de �Folklore Goiano�, citan-do João Ribeiro, acredita que o referido processo seja umaherança européia. Lá, como aqui, há orações com a mesmaorientação:

�Nine duble is heNow from nine double to ei ght doubleAnd from eight double to seven doubleAnd from eigh double to sixAnd from eight double to five... etc., etc�.

O método, de tanto ser chamado a intervir na terapêu-tica popular, foi, aos poucos, entrando igualmente na cantoria,principalmente nos desafios. Gustavo Barroso, em seu valio-so livro �Ao som da viola�, recolheu versos cuja característicaestá no crescendo dos números:

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�Poeta dez vezes mil!Uma vez e tão somenteDuas vezes dois me disseras,Três vezes três quem tu eras,Quatro vezes quatro ciente.Quatro vezes quatro cienteCinco vezes cinco liquentes�.

Jacó Alves Passarinho, ou, mais propriamente, Jacó Pas-sarinho, a respeito de quem Leonardo Mota disse ter tidoprovas, várias vezes, dos seus dotes de grande improvisadore ágil repentista, apreciava os �numerais�. Os que desejaremconhecer quase cinqüenta versos dessa natureza, poderãoencontrá-los no livro do inesquecível folclorista cearense, �Can-tadores�, do qual repetimos esta sextilha:

�O home que rapa a crôaOu é padre, ou frade ou reis.Eu p�ra cantar nunca tiveDia, semana, nem mês;É treze, é doze, é onze, é dez;É nove, é oito, é sete, e seis.�

No desafio de Sebastião de Enedina com Zé Eusébio(titulo, aliás, de um folhetim) publicado pelo poeta popularde Recife, (segundo informações de Luís Câmara Cascudo,não é muito exato que tenham existido os referidoscontendores), quando os dois cantadores passam das �col-cheias� as décimas� abordam o mais interessante tema de�numerais� da literatura popular. Embora os versos procuremrumos e rimas para os números, envolvem sempre as mes-mas características: caixeiros numa venda, navio no oceano,certos viajantes, armazéns, etc.

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�Dez viajantes comendoNove panelas de tripaOito cabras bons na ripaSete aleijados correndoSeis cegos se maldizendoCinco pragas de ciganoQuatro corre em cada anoTrês barcos cheios de farinhaDois trens correndo na linhaUm navio no oceano

Mas a peleja de João Athayde com Leandro Gomes (edi-tada por José Bernardo da Silva, de Juazeiro do Norte (CE),reúne inegavelmente a melhor demonstração do processo decantoria sob a influência dos números. Principia tudo por ummote dado por Leandro ao seu desafiante (�Uma nação reu-nida � uma moradia distante � um porto na beira-mar � umhomem comerciante�) que tem em resposta esta glosa deAthayde:

�Dez fortalezas salvandodez homens numa questãodez vapores de saídadez caixeiros num balcão�.

Voltou Leandro já numa décima, aproveitando o expedi-ente dos números:

�Dez fortalezas salvandonove batalhões formadosoito generais armadossete cometas tocando6 pedras infernais queimando

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139ESTUDOS DE FOLCLORE CEARENSE

cinco tinas de gelada (cerveja)quatro casas de moradatrês comandantes de linhaduas cidades vizinhasuma nação reminada (revoltada)�.

E por aí se desenvolve a cantoria. Leandro, após cantarvários versos um pouco inferiores aos de seu antagonista,apresenta-se com esta �décima�, que vale a pena:

�Dez caixeiros num balcãonove fregueses comprandooito poetas glosandosete patacas de pãoseis metros de gorgurãocinco meninas galantesquatro sujeitos pedantestrês despachantes ligeirosdois automóveis cargueirosum homem comerciante�.

Athayde não se deu por vencido, respondendo rapidamente:

�Um homem comerciantedois automóveis cargueirostrês despachantes ligeirosquatro sujeitos pedantescinco morenas galantesseis metros de gorgurãosete patacas de pãooito poetas glosandonove fregueses comprandodez caixeiros num balcão�.

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Os números na antigüidade, principalmente para os babi-lônios, possuíam atributos sagrados. Eram símbolos que de-safiavam a inteligência humana sempre disposta a decifrá-los.Por uma tradição que perde seus laços através do tempo, onosso sertanejo continua a reverenciá-los, a sentir a mensa-gem mágica, a revelação do destino e, ao mesmo tempo, desabedoria que neles existe.

IV

Não esperem os leitores possamos repetir, naexiguidade do espaço, mesmo porque para tanto desfale-cemos de engenho e arte, a proeza de Basílio de Maga-lhães a contar-nos as aventuras do café na História, noFolclore e nas Belas-Artes. Seu livro �O Café� é dessas obrasque esgotam o assunto: contam tudo. Não fosse a obriga-ção semanal deste contato com os leitores, menos obriga-ção do que prazer, não estaríamos, hoje, a escrever umastantas observações, a registrar outros tantos fatos interes-santes, ocorrências e versos, dizemos melhor, a respeitoda deliciosa bebida.

Verdade é que os nordestinos não dispensam uma xí-cara de café. Aliás, pobre não bebe em xícara, mas em tijela, que nela o café parece ser servido com mais liberalida-de, e ao se levar o recipiente à boca tem-se a impressão deque a fragrância é mais forte e sabe a bebida realmentegostosa. Café é o licor do pobre. Homem do povo que nãopode oferecer ao amigo, ao compadre que o visita, umaxícara de café, podem crer, anda mesmo mal de vida. E jávimos, em artigos anteriores, numa tentativa de estudos daetiqueta da vida rural do Ceará, que é medida de bom-toma pessoa, que ingere a bebida, dizer frases como estas: �Tem

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um gostinho de venha mais�, �Vou repetir outra vez�, �Sótomando outra�... etc., etc.

Não é apenas o café a bebida ideal para as visitas. Valemais alguma coisa, pois vale quase para tudo. Funciona comoveículo de feitiçarias, bastando ser coado em peça íntima demulher, para quem dele sorver alguns goles ficar enrabicha-do, termo que na geografia mulherenga do Nordeste signifi-ca: apaixonado.

Na medicina popular alcança um emprego dos maissalvadores: para corte que se dê, na perna ou no braço, atémesmo para uma perebinha sem importância, não há como aaplicação do pó, já servido. Nascemos e crescemos ouvindoos nossos maiores dizerem:

� Taca pó de café no golpe, que estanca o sangue!...Menino que dá vertigem em igreja, à falta de vinho de

missa, não há como tomar uma xícara de café, amargo, bemquente. �Dá quente, que levanta as forças�. Quente e amar-go, serve para muita coisa: para tontura em mulher que estáesperando criança, isto é, que vai muito em breve sentir asdores do parto; para quem andou bebendo demais, enchen-do a cabeça de aguardente, etc. Aliás é interessante a referên-cia que faz o homem do povo ao setor do corpo humano emque presume agir a aguardente. No �bucho�, e isso pode serverificado facilmente, ficam sempre as comidas estabanadasdo Nordeste. A cabeça, ao contrário, enchesse de cachaça.Mas, para quem �encheu� a cabeça ou o �juízo� de aguar-dente, o remédio infalível é café sem açúcar. Daí o dizer-se,quando alguém serve café com pouco açúcar: �Éta, isso écafé de bebo!�, ou então, �Será que você está pensando queestou embriagado?� Conforme a densidade, o paladar queoferece ao bebedor, o café ganha várias classificações: quan-do está fraco demais, feito com economia de pó, a frase maisusada é esta: �Arre, até parece lavagem de espingarda. �Quem

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passou o café num pode se casar ainda�. Só pode casar-sequem sabe passar café: é lei. Existem, ainda, os que dizem:�Este café é mesmo marca três FFF�. Significa: Fraco, Frio eFedorento.

Afrânio Peixoto, citado por Basilio de Magalhães, trans-mite-nos uma crendice a respeito da terrível ação do café:�Queimar os cabelos produz loucura. O mesmo efeito pro-duz café com suor de cavalo�. De uma maneira ou de outra,a verdade é que sertanejo é meio desconfiado a respeito dasmisturas de café com suor ou com outras secreções. Se o cafénão tiver o gosto normal, ninguém se arriscará a tomá-lo,mesmo porque já ouviu dezenas de histórias de pessoas queficaram dementes pela ingestão de certas bebidas, possivel-mente café com suor, etc.

Já ouvimos: �Café ruim tem mandinga ou dá dor debarriga�. Há dezenas de frases semelhantes que nos autori-zam reconhecer que o sertanejo, desconfiado como é, nãoserá capaz de ingerir café em casas de estranhos, sem certotemor. Se existe algum amor em perspectiva, é comum ouvirconselhos dessa natureza: �Cuidado com o café, que é comele que a moça pega a gente�, ou então: �Café quente, tempoquente�, etc.

Siqueira de Amorim, poeta popular dos mais festejadosdo Nordeste, é grande apreciador da bebida que é o pesomaior em nossa balança comercial. Seus versos dedicados àrubiácea são simplesmente deliciosos:

�Em qualquer lugar que andoTenho feito um certo estudo:Em casa de gente pobreOu de pessoal graúdoDepois de almoço ou de jantaSempre o café manda tudo.

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Ao chegar de uma viagemQuem quiser preste atençãoDe cavalo ou de automóvelOu mesmo de pé no chãoO café varre o cansaçoQue temos no coração.

Quando o café vem passadoPor um boa cabocaBebe-se olhando prá elaO gosto é uma coisa louca!Mesmo que a gente não queiraFica com água na boca�.

Como todo nordestino, o trovador popular não deixade proclamar as virtudes da bebida que não falta à casa dopobre ou do rico. E nos adverte com muita sabedoria:

�Quem receber qualquer golpeDa cabeça, do corpo ao péPegue um pano, amarre em cimaParte de pó de caféSara com rapidamenteComo milagre de fé.

Depois da farra danadaDe bebedeira valenteManda-se passar caféMuito forte, amargo e quenteÉ este o maior remédioPra ressaca de aguardente�.

E, assim, louvado por trovadores, elogiado pelos que o apre-ciam em suas boas qualidades, vai o café cada vez mais incorpo-rando-se ao grande acervo das tradições populares de nossa terra.