as toadas de bumba-meu-boi sociabilidades, conflitos e associaÇÕes

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O bumba-meu-boi, consagrado patrimônio imaterial do Brasil, écomposto por um conjunto de toadas, que compõem a cena musical de umadas mais belas e tradicionais manifestações do Maranhão. Esse artigopretende sobrepor a lógica de análise clássica do estudo das letras dessastoadas, buscando efetuar o estudo sobre os discursos presentes revelados nocotidiano dos sujeitos retratados nestas narrativas. Neste sentido, as toadassão marcadas por relações de poder que tanto expressam conflitos comosoluções. O discurso corrente mostra associações, sociabilidades e outrosmodos de integração, assim como a compreensão dessas manifestaçõesprotagonizadas por esses atores envolvidos podem conduzir a entenderproblemas sociais, bem como apontar possíveis soluções.

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    Anais do 10 Encontro de Letras da UCB ISSN: 2175-6686 Os textos so de inteira responsabilidade dos autores.

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    AS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI: SOCIABILIDADES, CONFLITOS E ASSOCIAES

    Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho28 Heridan Guterres Pavo Ferreira29

    Denise Maria Soares Lima30

    Resumo: O bumba-meu-boi, consagrado patrimnio imaterial do Brasil, composto por um conjunto de toadas, que compem a cena musical de uma das mais belas e tradicionais manifestaes do Maranho. Esse artigo pretende sobrepor a lgica de anlise clssica do estudo das letras dessas toadas, buscando efetuar o estudo sobre os discursos presentes revelados no cotidiano dos sujeitos retratados nestas narrativas. Neste sentido, as toadas so marcadas por relaes de poder que tanto expressam conflitos como solues. O discurso corrente mostra associaes, sociabilidades e outros modos de integrao, assim como a compreenso dessas manifestaes protagonizadas por esses atores envolvidos podem conduzir a entender problemas sociais, bem como apontar possveis solues.

    Introduo

    Religio e festas so temas importantes no cotidiano das camadas populares e denotam quais valores so considerados na formao de uma identidade tnica e cultural. De modo especial no estado do Maranho e em todo o nordeste, religio e festas constituem tema de grande relevncia na vida de muitas pessoas, as quais vem suas rotinas modificadas no percurso do ano, pela organizao ou participao em festas e atividades como o bumba-meu-boi.

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    Professor da rede pblica municipal e estadual do Maranho, mestrando em Educao da Universidade Catlica de Braslia/DF e pesquisador da Ctedra UNESCO da mesma Universidade e do Grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA. 29

    Professora mestra, graduada em Letras e professora Assistente da Universidade Federal do Maranho e pesquisadora do Grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA. 30

    Professora, advogada, mestre em Educao da Universidade Catlica de Braslia/DF e pesquisadora da Ctedra UNESCO da mesma Universidade.

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    As festas no representam somente momentos de lazer. Constituem-se trabalho rduo, porm prazeroso para aqueles que delas fazem parte e, no que concerne ao bumba-meu-boi, isto no diferente.

    Brincar bumba-boi no somente atrai como envolve as pessoas que dele participam, no Maranho, esse envolvimento se d por conta do ciclo junino que comea logo aps o carnaval e segue at meados de setembro. Esse o bumba-boi em seu plano ritual, que comea com o batizado que ocorre no incio de ms de junho; logo em seguida, se tem o perodo das brincadas, que vai do ms do comeo do ms de junho, logo aps o batizado do boi, at o final do ms de junho. Embora essa seja a configurao original das brincadas, no ms de julho tem-se a extenso desse perodo por mais um ms com o projeto Vale Festejar. Logo aps as brincadas vem a morte do boi, tambm chamada da matana, palhaada ou doidice

    Esta brincadeira afrodescendente se tornou a mais expressiva manifestao cultural do estado, e sua diversidade to grande que ela dividida em categorias, que so chamadas de sotaque (AZEVEDO NETO, 1997, REIS, 2000). O sotaque tenta organizar as brincadeiras, tentando assim classificar os tipos de bumba-boi pelas suas caractersticas, os sotaques mais conhecidos so: Matraca ou Ilha, Zabumba ou Guimares, Pindar ou Baixada, Orquestra e Costa de mo. Esses sotaques, por sua vez, so caracterizados pela composio de mltiplas expresses artsticas, entre essas o teatro, a msica, a dana, a poesia e a literatura, sendo as toadas um elemento importante neste vasto repertrio cultural regional.

    Nesse contexto, este trabalho se prope a analisar os valores afro-brasileiros, presentes nas toadas de pique, entoadas no bumba-meu-boi sotaque de matraca, tomando como base para tal anlise, a poesia trovadoresca, haja vista a mesma, especialmente no que diz respeito s cantigas de escrnio e s de maldizer, apresentarem semelhanas com as toadas de pique.

    Contextualizando as toadas: literatura e cultura oral

    Encontram-se na literatura da antropologia e da sociologia publicaes que abordam a temtica das manifestaes culturais, inclusive o bumba-meu-boi, considerando-o sobre vrios aspectos. No Maranho, mais precisamente na cidade de So Lus, muitos so os grupos de bumba-meu-boi. No passado, havia uma maior predominncia dos grupos do sotaque Matraca ou Ilha, com o

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    passar do tempo os grupos de Orquestra foram se multiplicando e hoje representam maioria.

    Tais grupos de bumba-meu-boi, a cada ano, apresentam novas toadas que levam sempre em considerao ou mesmo inspirao, como dizem os cantadores a lua, a natureza, Jesus, os reis da encantaria, entre outros. Os bois em geral dividem as apresentaes da seguinte forma: a) guarnic, que o reunir da brincadeira; b) chegada, que representa a entrada da brincadeira no terreiro; c) l vai, que representa o momento em que o boi j est no terreiro e comea a evoluir; d) o urro, que representa o momento em que o boi entra na brincadeira e e) a despedida, que a ltima, ou ltimas toadas cantadas antes de o boi encerrar sua apresentao.

    As toadas, porm, no so somente para render louvor a So Joo, a So Pedro e a So Maral. Elas tambm servem para manter vivas tradies, exaltando caractersticas peculiares das comunidades de origem. Nos bois de Matraca entre o urro e a despedida, geralmente se cantam algumas toadas chamadas de toadas de pique, que so toadas feitas para desafiar e, muitas vezes, para ridicularizar o cantador do outro grupo ou o grupo inteiro. Essas toadas so carregadas de ironia e irreverncia e fazem lembrar as cantigas de escrnio e maldizer que eram muito usadas em antigos festivais na Europa na Idade Mdia.

    Nas ltimas dcadas, tem se intensificado os estudos a respeito de identidade multicultural, focando-se, principalmente, a questo dos valores identitrios afro-brasileiros, que permeiam os sujeitos e suas relaes no pas, onde se considera principalmente a contribuio do negro na formao do povo brasileiro. Considera-se, ainda, que no contexto dos valores identitrios afro-brasileiros se fazem presentes a oralidade, a ancestralidade, a circularidade, entre outros, que se manifestam nos usos e nos costumes do brasileiro, inclusive, na cultura popular, por exemplo, as danas circulares como o tambor de crioula e o bumba-meu-boi.

    No que diz respeito contribuio do branco, destaca-se a poesia trovadoresca portuguesa. Segundo Moiss (1981), duas se destacam pela irreverncia: as cantigas de escrnio e de maldizer, que no Brasil se manifestam nos repentes e tambm nas toadas de pique, objeto do estudo proposto.

    As toadas de pique, tais como as cantigas de escrnio e de maldizer, se caracterizam por dizer mal de algum, sendo que ambas se diferem pela maneira como o fazem. Segundo Moiss (1981), a cantiga de escrnio indireta e apresenta traos de ironia e sarcasmo, enquanto que a cantiga de

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    maldizer faz uma stira direta, emprega palavras maldosas e, muitas vezes, de baixo calo; na maioria das vezes, nomeia a pessoa criticada.

    As cantigas de escrnio e de maldizer eram propagadas por jograis, que eram espcies de trovadores oriundos das classes marginalizadas e que cantavam em troca de seu trabalho artstico. De acordo com Saraiva (1985), no eram apenas os jograis que compunham as cantigas satricas. Tambm os fidalgos trovadores o faziam, havendo disputas entre estes ltimos e os primeiros:

    Vislumbramos, assim, uma dissenso evidente entre os jograis e trovadores, uma vez que estes queriam corroborar a hierarquia existente, na qual ocupavam o patamar mais alto. Aqueles ansiavam por ascender a uma condio mais respeitvel no meio em que atuavam. Logo, os trovadores no se dedicavam apenas s cantigas lricas, pois, pelo menos o que as interpretaes tericas nos permitem dizer, desejavam ser responsveis pela composio de todas as cantigas. Sendo assim, o carter marginal era relegado ao jogral e no, propriamente, s cantigas satricas, que, por vezes, eram compostas por ele. (SARAIVA,1985, p. 67).

    Vale ainda dizer que as cantigas satricas, no eram, necessariamente, canes de protesto, possuam um cunho humorstico, haja vista trazerem em seu bojo ironias tanto ao clero quanto s camadas economicamente mais privilegiadas da sociedade. Para tanto, sua linguagem fugia s convenes formais, sendo muitas vezes livre e obscena.

    As toadas, as relaes de conflito e associao

    Considerando que tanto nas cantigas satricas quanto nas toadas de pique existe uma espcie de embate entre oponentes, observando-se uma espcie de conflito, George Simmel (1988) afirma que o conflito pode modificar os grupos de interesse, unies, organizaes. paradoxal pensar que um movimento que tenha essa filosofia possa culminar em um outro fenmeno chamado de sociao.

    Pensar esse fenmeno como um organismo nico quebrar a ideia daquilo que o gerou. A sociao necessita que haja pelo menos dois indivduos para que ela acontea, entendendo-se que o conflito acontece por conta de aes dissociativas e que por meio desse mesmo conflito que o grupo se

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    Os fatores de dissociao dio, inveja, necessidade, desejo so causas do conflito; este irrompe devido a essas causas o conflito est assim destinado a resolver dualismos divergentes; um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda que atravs da aniquilao de uma das partes conflitantes (SIMMEL, 1988, p. 155).

    Assim sendo, o bumba-meu-boi encontrou nas toadas de pique uma forma de trazer tona no apenas antagonismos como tambm reivindicaes com relao s condies em que viviam negros, ndios e mestios, podendo assim exigir direitos que lhes eram negados. Por apresentar tal cunho reivindicativo o boi visto como uma manifestao de cunho agressivo como diz Marques (1999, p.59) que o boi aparece j em 1820 como um folguedo agressivo, violento baderneiro, inslito, barulhento e atentador da ordem moral.

    Simmel (1988) ressalta que toda sociedade precisa de foras de atrao e foras de repulso e desse modo, o bumba-meu-boi um movimento marcado por esse tipo de sentimento, evidenciado pelos escritos que, embora poucos, refletem exatamente o conflito existente nos encontros de agremiaes de bumba-meu-boi nos bairros de Madre Deus e no Joo Paulo, em So Lus do Maranho.

    Marques (1999) salienta que a represso policial ou a irmandade que perpassava pelos grupos de boi gerava o que se conhece hoje como o desafio de um contrrio que, se resumiam a toadas irnicas, satricas, que so compostas na hora da apresentao e cantadas para provocar o outro, mas tambm para causar riso, para fazer a platia participar e escolher de que lado ficaria na disputa.

    Saber que a disputa nem sempre foi nesse molde atual, fazer um resgate da cultura do bumba-meu-boi no Maranho, pois as disputas que hoje se do por meio de palavras para se chegar a uma vitria simblica sobre o outro grupo e que tem linguagem armamentista eram bem mais violentas, no passado, e chegavam a desfechos fatais como ocorreu no bairro do Joo Paulo, na capital maranhense, como descreve Marques (1999):

    Se a violncia funciona como elemento catrtico e unificador de todos os grupos na luta contra a represso social, por outro, serve tambm para legitimar as tentativas de supremacia de um grupo sobre o outro. Uma violncia, considerada necessria para acabar com o

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    antagonismo que levam at a morte, como ocorreu em 1930 em So Lus, numa briga em frente fbrica de tecidos Cnhamo, entre os bois da Madre Deus e do Centro, no pique de uma apresentao. O pescador da comunidade chamado de Z-nos-Peito dana no meio do povo, com a cala arriada, a bunda exposta, espera da palmada que iniciaria a briga, [...] Uma violncia consagrada no bairro do Joo Paulo onde os grupos, sob as mangueiras, desafiavam uns aos outros, originando uma tradio at hoje desenvolvida e estimulada (MARQUES, 1999, p. 63).

    Nesses encontros no bairro do Joo Paulo aconteciam os desafios de um grupo ao outro no dia de So Maral, fato esse descrito por Marques (1999) e que ainda mostra como aconteciam as disputas e como se consagrava o vencedor de tal disputa, todo esse ensejo relatado da seguinte forma:

    Todos os anos no dia 30 de junho, dia de So Maral, os grupos do sotaque matraca se renem no bairro do Joo Paulo para ver quem o batalho mais pesado, quem faz o melhor desafio, quem possui mais seguidores, quem consegue mais aplausos, e assim por diante. um espetculo que nasceu da violncia e que se transformou num ritual coletivo, onde todos participam do desfile ao longo da avenida (MARQUES, 1999, p. 63).

    Mauss (2001) discorre que nas sociedades os inmeros subgrupos, o poder poltico, a propriedade, o estatuto poltico, e o estatuto domstico acham-se intimamente misturados. Pensando dessa forma, o autor demonstra que os grupos e subgrupos esto, embora organizados internamente, tambm organizados entre si, ou seja, uns em relao aos outros. A esse fenmeno d-se o nome de sistema de arranjo.

    No caso apresentado do bairro do Joo Paulo, o festejo formado por grupos e essa integrao termina sendo um fator de extrema significncia para a manuteno tanto do encontro anual como dos grupos por deix-los mais coesos entre si. Mauss (2001) deixa bem claro esse tipo de relao ao dizer que:

    Esses arranjos entre grupos, muito mais do que entre indivduos localizados nestes grupos, tem um carter de perpetuidade e de segurana que os contratos individuais de nossos direitos no tm. A esses arranjos corresponde todo um sistema de expectativas de todos para todos, e para sempre, mesmo para alm das geraes (MAUSS, 2001, p. 106).

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    Nos encontros dos bois, fica evidente o que o autor comenta a respeito desse tipo de relao, ele diz que essas esferas so animadas de movimentos respectivos e solidrios entre si. O Bumba-meu-boi , de fato, um movimento que gera o conflito e se fortalece tirando sua existncia dele, fato que reforado pelo cuidado que os amos dos bois tm em compor todos os anos: toadas que faam o seu grupo sair vencedor de um combate de batalhes. Deste modo, observa-se o respeito entre os lderes dos cls, fato esse que serve para fortalecer cada organismo individualmente.

    As teorias, pois, de Simmel (1988) e Mauss (2001) reforam a ideia de como a toada de pique no bumba boi de matraca serve como elemento de conflito entre os grupos, e, alm do conflito, pode-se observar, entre os grupos, uma relao de coeso social estabelecida.

    Toadas de pique: anlise dos conflitos e linguagem

    A cultura popular apresenta caractersticas que ajudam a definir e caracterizar um determinado grupo ou segmento social, como o caso do bumba-meu-boi, que apresenta, conforme exposto, variados sotaques, com caractersticas peculiares, que se mostram na batida e nas msicas entoadas, denominadas toadas. No caso do bumba-meu-boi de matraca, chamam a ateno as toadas de pique, que geralmente so provocaes ou respostas a estas provocaes, que um grupo lana a outro em forma de cano. Essas toadas, entoadas no bumba-meu-boi sotaque de matraca so importantes elementos para aferir-se em que medida os valores afro-brasileiros se fazem presentes no contexto da cultura popular, possibilitando a construo de uma identidade tnica.

    A seguir, apresentar-se-o algumas dessas toadas, buscando relacion-las s terias anteriormente expostas, tomando-se como base as canes de escrnio e as canes de maldizer. Observem abaixo as toadas Meu compadre mentiroso e palhao:

    Toada I: Meu compadre mentiroso31 (CHAGAS AT AL, 2007)

    Meu compadre mentiroso T acabando com o bumba boi da madre Deus E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba 31

    Compositor Joo Chiador

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    Meu compadre mentiroso T acabando com o bumba boi da madre Deus E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba Sa de l fui contratado pra Ribamar, por l ele ficou, O que ele fez foi espalhar o povo do lugar Agora quer ser o maioral viola desafinada, Agora quer ser o maioral viola desafinada O Cantador da Maioba, vou dizer pro povo como ele t feito mineira velha, quando no tem mais paj.

    Toada II: Palhao32 (CHAGAS AT AL, 2007)

    Palhao, mentiroso tu J enrolou a ilha inteira de norte a sul Quem no conhece a tua histria Em Ribamar enganou Iraci Na rodoviria ajudou quebrar Vitria L Oiteiro, de ruim tu no passa T igual um palhao que no sabe fazer graa.

    Como j exposto, as cantigas satricas portuguesas representavam crticas ao comportamento social de seus pares, difamavam alguns nobres ou denunciavam damas. Do mesmo modo, as toadas de pique tambm revelam em suas letras condenaes ou censuras, como nos exemplos acima. As toadas citadas demonstram os conflitos entre grupos rivais. Ambas, no ttulo, j expressam essas animosidades: um chama o outro de mentiroso; enquanto o segundo j responde devolvendo a ofensa, chamando o primeiro de palhao. Vale acrescentar que esses termos mentiroso e palhao, assim como nas cantigas de escrnio e de maldizer assumem um carter irnico, reforados no decorrer do texto.

    Do mesmo modo, os cdigos sociais entre os grupos tambm so denunciados, quando desrespeitados: O primeiro grupo, em tom de denuncia: T acabando com o bumba boi da madre Deus, ou seja, descaracterizando-o, 32

    Compositor Z Alberto

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    cometendo equvocos; o segundo grupo, em rplica: J enrolou a ilha inteira de norte a sul. E assim, a toada resulta em um confronto, um jogo, conforme j exposto na teoria simmeliana.

    Alm dos conflitos presentes nessas expresses culturais, a linguagem se aproxima da poesia trovadoresca europeia. Nas toadas Meu compadre mentiroso e Palhao as caractersticas presentes nas cantigas de escrnio esto visveis em algumas passagens analisadas abaixo:

    a)Presena de ironia e de equvoco: Agora quer ser o maioral viola desafinada (Toada I). J enrolou a ilha inteira de norte a sul (Toada II).

    b) Palavras de duplo sentido: t feito mineira velha, quando no tem mais paj (Toada I). T igual um palhao que no sabe fazer graa(Toada II).

    c) No j identificao direta da pessoa satirizada: Meu compadre mentiroso (Toada I). Palhao, mentiroso tu (Toada II).

    d) Referncias indiretas: E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba (Toada I). Em Ribamar enganou Iraci. Na rodoviria ajudou quebrar Vitria (Toada II).

    Nas toadas acima, observaram-se algumas similaridades entre as composies cantadas pelo cantador de bumba-meu-boi e o trovador. Note-se que os elementos presentes nas cantigas de maldizer tambm esto presentes nas toadas, por exemplo: crticas de modo mais direto, linguagem ofensiva, palavras de baixo calo e identificao da pessoa satirizada. Para ilustrar essas caractersticas, cita-se uma conhecida poesia trovadoresca:

    Cantiga de maldizer (PORTO SO FRANCISCO, 2012)

    Marinha, o teu folgar tenho eu por desacertado, e ando maravilhado de te no ver rebentar; pois tapo com esta minha

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    boca, a tua boca, Marinha; e com este nariz meu, tapo eu, Marinha, o teu; com as mos tapo as orelhas,os olhos e as sobrancelhas, tapo-te ao primeiro sono; com a minha pia o teu cono; e como o no faz nenhum, com os colhes te tapo o cu. E no rebentas, Marinha?

    Na poesia acima, o trovador utiliza uma linguagem ofensiva carregada de ironia, termos grosseiros e palavres; alm disso, identifica explicitamente a pessoa satirizada. Da mesma forma a toada abaixo, utiliza esses elementos expressos na cantiga de maldizer:

    Toada III: O vira lata33

    Olha cantador chegou a tua vez Vou te dar uma grande surra pra pagar pelo que fez Tu conhece o peso do meu batalho Cachorro doido que anda babando a multido Eu j falei com a sade pra mandar te examinar Eu sou canrio novo do amanh, Dessa vez tu vais passear na carrocinha da SUCAM Tu disse que estou com falazar, no sou eu tu Que j comeou a secar J mandei Z Alberto te vacinar Ele disse: no tem mais jeito pro vira lata do Ribamar.

    Nos trechos acima, o toador critica direta e explicitamente a pessoa, usando termos claros para reforar os insultos pretendidos (vira-lata, vacina, carrocinha, examinar, cachorro doido, baba), deixando ntida a inteno do toador. De maneira que algumas referncias presentes na linguagem das cantigas do trovadorescas esto presentes no bumba-meu-boi considerando-se o carter satrico das toadas de pique, presentes nesta manifestao cultural maranhense.

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    Annimo

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    Consideraes finais

    Embora seja um estudo ainda em curso, pode-se entender, que o conflito gerado pelas toadas ditas de pique, so fator preponderante para a unio do grupo. Estes grupos tendem a se fortalecer por uma vitria simblica que conquistada no momento em que o cantador de um grupo diz uma toada mais bela que a do outro, rebaixando-o, causando uma desagregao do seu grupo e consequentemente fortalecendo o outro, bem como pela questo da organizao do grupo como um todo que leva em considerao a animao de cada uma de suas indumentrias.

    Isso fica claro em festivais como o Encontro de Gigantes e o Festejo de So Maral nos quais a disputa em termos de toada e o desempenho por parte dos grupos ajudam no seu fortalecimento e unio, causando assim, uma associao ou sociao, como dizem Mauss e Simmel.

    As toadas de pique tm grande semelhana com as cantigas trovadorescas e os repentes to usados nos grandes festivais na regio Nordeste, nesses festivais os repentes tambm so conhecidos como duelos, onde a disputa ocorre verso a verso. Espera-se no decorrer da pesquisa conseguir aferir melhor as questes j levantadas possibilitando futuramente um trabalho com resultados mais apurados e precisos.

    Referncias

    AZEVEDO NETO, Amrico. Bumba-meu-boi no Maranho. 2 ed. So Lus: Alumar, 1983.

    CHAGAS at al. Toadas de pique de duelos. [s/l], 2007. CD-ROM. Especial. MARQUES, Francisca Ester de S. Mdia e experincia esttica na cultura popular: o caso do bumba-meu-boi. So Lus: Imprensa Universitria, 1999.

    MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. So Paulo: Perspectiva, 2001.

    MOISS, Massaud. A literatura portuguesa. So Paulo: Cultrix, 1981.

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    PORTO SO FRANCISCO. Trovadorismo, 2012. Disponvel em: . Acesso em: 12 maio 2012.

    REIS, Jos Ribamar Sousa. dos. Bumba-meu-boi, o maior espetculo popular do Maranho. 3 ed. So Lus: LITHOGRAF, 2000.

    SARAIVA, Antnio. Histria da Literatura portuguesa. In Lus de Cames. 11. ed. Porto Editora, 1979. p. 223-367.

    SIMMEL, George. A natureza sociolgica do conflito. In: MORAES FILHO, Evaristo (Org.). Simmel: Sociologia. So Paulo: tica, 1988. p. 122-164.