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1 "O boi não faz mais matança": folclorização, patrimonialização e outras transformações na brincadeira do boi 1 Luciana Gonçalves de Carvalho (Ufopa/PA) Resumo: Este trabalho foca uma forma de expressão integrante do Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão, registrado como patrimônio cultural pelo Iphan em 2012. Trata especificamente das performances cômicas conhecidas como matanças, cujo desgaste foi ressaltado tanto na documentação do registro quanto no inventário que o precedeu, iniciado em 2001. Muito significativas em determinados contextos, principalmente no meio rural da região de Guimarães, e extremamente diversificadas do ponto de vista temático, elas constituem um repertório oral e dramático particularmente rico e próprio dessa celebração, o qual é atualizado pelos palhaços dos bois. Desde os anos 1960, no entanto, tais performances têm sido recorrentemente negligenciadas pelas políticas públicas de folclore, turismo e cultura popular, em favor de outras formas expressivas que tendem a reificar uma versão unívoca do auto do boi, supostamente originária e mais autêntica, fixada em livros, vídeos, folhetos turísticos e outros suportes. Uma pesquisa de campo realizada recentemente em Guimarães, junto a dezenas de palhaceiros, revelou que a maioria dos bois “não faz mais matança” e que o repertório cômico da brincadeira está cada vez mais presente na memória do que na prática dos brincantes. Na medida em que o Iphan reconhece a indissociabilidade dos vários elementos que compõem a brincadeira, investiga, neste cenário, as condições de atualização e transmissão do patrimônio oral associado às matanças do bumba meu boi. Palavras-chave: Bumba Meu Boi. Matanças. Patrimônio imaterial. Por que as matanças O bumba meu boi do Maranhão foi reconhecido como patrimônio cultural do Brasil e inscrito no Livro de Registro de Celebrações pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2012, pouco mais de dez anos depois do início do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do Complexo Cultural do Boi do Maranhão, realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), do qual tive oportunidade de participar de 2001 a 2004, ao mesmo tempo que desenvolvia pesquisa de tese de doutoramento sobre o tema. Nesse inventário entendia- 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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"O boi não faz mais matança": folclorização, patrimonialização e outras

transformações na brincadeira do boi1

Luciana Gonçalves de Carvalho (Ufopa/PA)

Resumo: Este trabalho foca uma forma de expressão integrante do Complexo Cultural

do Bumba Meu Boi do Maranhão, registrado como patrimônio cultural pelo Iphan em

2012. Trata especificamente das performances cômicas conhecidas como matanças, cujo

desgaste foi ressaltado tanto na documentação do registro quanto no inventário que o

precedeu, iniciado em 2001. Muito significativas em determinados contextos,

principalmente no meio rural da região de Guimarães, e extremamente diversificadas do

ponto de vista temático, elas constituem um repertório oral e dramático particularmente

rico e próprio dessa celebração, o qual é atualizado pelos palhaços dos bois. Desde os

anos 1960, no entanto, tais performances têm sido recorrentemente negligenciadas pelas

políticas públicas de folclore, turismo e cultura popular, em favor de outras formas

expressivas que tendem a reificar uma versão unívoca do auto do boi, supostamente

originária e mais autêntica, fixada em livros, vídeos, folhetos turísticos e outros

suportes. Uma pesquisa de campo realizada recentemente em Guimarães, junto a

dezenas de palhaceiros, revelou que a maioria dos bois “não faz mais matança” e que o

repertório cômico da brincadeira está cada vez mais presente na memória do que na

prática dos brincantes. Na medida em que o Iphan reconhece a indissociabilidade dos

vários elementos que compõem a brincadeira, investiga, neste cenário, as condições de

atualização e transmissão do patrimônio oral associado às matanças do bumba meu boi.

Palavras-chave: Bumba Meu Boi. Matanças. Patrimônio imaterial.

Por que as matanças

O bumba meu boi do Maranhão foi reconhecido como patrimônio cultural do

Brasil e inscrito no Livro de Registro de Celebrações pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2012, pouco mais de dez anos depois do

início do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do Complexo Cultural

do Boi do Maranhão, realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular

(CNFCP), do qual tive oportunidade de participar de 2001 a 2004, ao mesmo tempo que

desenvolvia pesquisa de tese de doutoramento sobre o tema. Nesse inventário entendia-

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

2

se por “Complexo” o conjunto heterogêneo de expressões que compõem o bumba meu

boi maranhense, considerando-se todos os seus sotaques2. Assim, junto a dezenas de

grupos em diferentes regiões do estado, foram pesquisados e documentados, entre

outros aspectos da brincadeira, artesanatos3, músicas, danças e – o que interessa

especificamente, aqui – representações dramáticas mais ou menos elaboradas por

personagens conhecidos como palhaços ou Pais Francisco4, associadas ao chamado

“auto do boi”.

Esse auto, que aparece como um ciclo mítico disseminado sob diversas rubricas

da tradição oral e escrita no Brasil (CAVALCANTI, 2006), relata o drama vivido pelo

casal de escravos Pai Francisco e Mãe Catirina a partir do momento que ela, grávida,

passa a desejar comer a língua (ou o fígado) do boi mais precioso do amo da fazenda

representada na brincadeira. O casal atravessa uma série de contratempos provocados

pelo insensato desejo da mulher, que acaba resultando na morte ou no roubo do boi, e,

em consequência, na prisão e punição do marido, com ajuda dos índios (tapuios).

Obrigado a pagar ou a ressuscitar o boi, o homem se desespera e pede socorro a

doutores e pajés, até que consegue reparar a perda e recuperar a liberdade depois

protagonizar muitas estripulias que dão às desventuras do casal um forte apelo cômico.

Nas centenas de bois existentes no Maranhão, esse relato mítico assume os mais

diferentes contornos. Não há, hoje, e nem parece ter havido em outros tempos,

homogeneidade nas narrativas que são representadas nas brincadeiras. Por um lado,

variam as versões da trama, assim como ela se articula ou dá lugar a outros dramas que

também são trazidos à cena. Por outro lado, inúmeros grupos nem sequer fazem alusão

ao enredo do “auto” ou a seus personagens; outros, se o fazem, apenas caracterizam Pai

Francisco e Mãe Catirina muito timidamente com máscaras, roupas velhas e rasgadas, e

um barrigão no caso dela.

2 Os sotaques podem ser entendidos como diferentes formas de operar o “idioma social” (EVANS-

PRITCHARD, 1999) do bumba meu boi maranhense. Cada sotaque corresponde a estilos rítmicos e

musicais, assim como a personagens, indumentárias, formas de organização social, padrões coreográficos

e territórios específicos. Convencionalmente, os bois classificam-se nos sotaques de zabumba ou de

Guimarães, de matraca ou da Ilha, de pandeirões ou de Pindaré ou da Baixada, de costa-de-mão ou de

Cururupu, e, finalmente, de orquestra, muito associado ao Vale do Munim, mas em franca expansão por

todo o estado. Embora a categoria sotaque seja acionada recorrentemente como sinal diacrítico pelos

grupos de boi, orientando inclusive políticas públicas diferenciadas conforme o sotaque, ainda assim as

convenções não são capazes de classificar toda a diversidade dos bois maranhenses. 3 Destacadamente os bordados feitos em veludo, com miçangas e canutilhos coloridos, para compor a

indumentária dos brincantes e o couro do boi – espécie de manto que cobre a estrutura do boi de

brinquedo, também feita artesanalmente com fibras vegetais. 4 O termo palhaço é mais usado no interior do Maranhão, ao lado de outros como palhaceiro, chefe da

matança, chefe da palhaçada. Registra-se Pai Francisco principalmente em São Luís.

3

Mesmo assim, importantes estudos de folclore e antropologia sustentam a

centralidade do “auto” como núcleo agregador de sentidos da brincadeira, ainda que

reconheçam que o seu “tema constante” (VIEIRA FILHO, 1977) possa ser enriquecido

no transcurso dos anos “com novos elementos e novas situações produzidas pelas

relações sociais” (ARAÚJO, 1997, p. 60). Para alguns, esse “auto” com acréscimos

constituiria uma espécie de revista anual a narrar o cotidiano dos brincantes

(CARVALHO, 1995). Na base dessas interpretações – como bem observa Maria Laura

Cavalcanti – repousa a formulação de Mário de Andrade do bumba meu boi como uma

dança dramática, estruturada em torno do mito que, em última análise, subordinaria e

explicaria o rito que a outros pareceu um “agregado de disparates” (GAMA, 1996).

5 De

acordo com Cavalcanti, “o ‘auto’ é sobretudo a crença dos pesquisadores no auto, em

uma notável cristalização do efeito de ilusão do arcaísmo, característico dos estudos

folclóricos e também antropológicos da cultura popular” (CAVALCANTI, 2006, p. 69).

Creio ter demonstrado em trabalhos anteriores (CARVALHO, 1995; 2011) o

quanto essa visão andradiana influenciou as políticas públicas de turismo e cultura

popular no Maranhão, sobretudo a partir da década de 1960, quando diversas expressões

populares foram se tornando atrações turísticas e objetos de ações governamentais

pautadas num ideário de valorização de tradições que estariam em vias de “se perder”.6

Num processo de folclorização e turistificação, celebrações como o bumba meu boi

experimentaram uma série de transformações significativas, das quais cabe destacar

aqui as que se referem às performances cômicas da brincadeira. No caso, percebe-se a

progressiva cristalização do “auto do boi” como versão autêntica e originária, em

detrimento de outros repertórios narrativos.

Porém, em que pese à reificação do “auto”, corroborada por acadêmicos e

agentes estatais, no início dos anos 2000 registrou-se junto a bois do sotaque de

zabumba ou de Guimarães – reconhecidos como os mais apegados às dramatizações –

um variado repertório narrativo e performático, o qual extrapola as categorias de

classificação e análise com que, de fora, se tem regularmente observado as práticas

5 Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama escreveu no jornal pernambucano O Carapuceiro, em 1840, a

seguinte crítica ao bumba-meu-boi: “De quantos recreios, folganças e desenfados populares há neste

nosso Pernambuco, eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e destituído de graça como o aliás bem

conhecido Bumba-meu-boi. Em tal brinco não se encontra um enredo nem verossimilhança, nem ligação:

é um agregado de disparates”. 6 Remeto à “retórica da perda” (GONÇALVES, 2002) que caracteriza grande parte dos discursos sobre o

patrimônio cultural, assim como sobre o folk lore e a cultura popular (CHARTIER, 1995; REVEL, 1989).

4

cômicas da brincadeira. Com efeito, descobriu-se7 nas matanças da região de Guimarães

uma verdadeira profusão de referências simbólicas que levam a questionar o “auto”

como eixo de significado do bumba meu boi, exigindo também a adoção de

perspectivas alternativas para a compreensão da brincadeira.

Acompanhando o brincante Herberth Mafra Reis, que uma vez declarou

ironicamente que “auto [alto] é o céu, que Deus está lá” e “auto que eu conheço é um

edifício bem alto”, a abordagem desenvolvida tomou como ponto de partida a polifonia

e a multivocalidade do universo expressivo das performances do boi de Guimarães, as

quais, com frequência, são subvalorizadas em relação aos modelos festivos (e

explicativos) que prevalecem em São Luís. Assim, a opção por abordar o tema a partir

das categorias nativas (matanças, comédias, palhaçadas) busca aceder ao ponto de vista

dos sujeitos que criam e encenam as performances em questão, a fim de melhor

compreendê-las.

Foi partindo dessas considerações que, no início dos anos 2000, procedi ao

registro de matanças narradas e/ou encenadas, nas quais a função autoral dos palhaços

sobressai, em oposição ao que ocorre no “auto” cristalizado que bois da capital

procuram contemplar, ainda que apenas com a caracterização de personagens, a fim de

honrar a tradição que é reconhecida no campo da cultura.8 Dotadas de um caráter

cômico acentuado e sem demonstrar preocupação com a suposta tradição, as matanças

documentadas envolvem vários personagens e tratam de temas tão variados como a

venda de quengas, o sequestro da velha, o namorado capado, o assassinato da morte, o

falso santo milagreiro, o batizado do filho, a visagem na roça, o vendedor de verdade e

mentira, o vaqueiro fiel, a velha que virou jumenta, a vaca encantada, o homem que

servia de montaria para o feiticeiro, entre outros.

Essas expressões foram destacadas em todos os documentos integrantes do

processo de registro do bumba meu boi do Maranhão como patrimônio cultural do

Brasil. No dossiê e nos pareceres emitidos pela Procuradoria Jurídica, pelo

Departamento do Patrimônio Imaterial e pelo Conselho Consultivo do Iphan, a riqueza

das tramas produzidas no interior do estado foi contraposta ao processo de

7 Remeto principalmente à ideia da descoberta antropológica, que é fruto da etnografia enquanto exercício

dialógico em busca da compreensão de alteridades. Mas refiro-me também à “descoberta” feita após uma

angustiante busca do “auto” nos mais variados contextos etnográficos, em diversos municípios

maranhenses (CARVALHO, 2005; 2011). 8 Em São Luís, o respeito à suposta tradição do auto chega a constituir critério de avaliação dos bois para

fins de distribuição de recursos públicos para a brincadeira. Também ocorre de o auto constituir exigência

contratual em certas apresentações fomentadas pelo Estado.

5

empobrecimento e desaparecimento do auto nas apresentações na capital. Nos mesmos

documentos foram expressamente recomendadas ações de salvaguarda que visem à

documentação, à difusão e ao apoio àquelas formas de expressão narrativa e

performática tradicionais, verificadas principalmente no interior do estado.

As considerações do Iphan estimularam um retorno recente à região de

Guimarães, ocorrido no âmbito de uma iniciativa que almeja a salvaguarda das tradições

cômicas da brincadeira.9 Os objetivos da pesquisa de campo realizada em 20 dias dos

meses de fevereiro e março foram: investigar a prática das matanças dez anos depois de

seu registro e prospectar possibilidades e limitações da própria salvaguarda. Foram

revisitados palhaços e brincantes entrevistados no INRC e na pesquisa de tese, e

contatados outros interlocutores nos municípios de Mirinzal, Cedral, Porto Rico, Central

do Maranhão, Santa Helena, Cururupu e Guimarães10

, ao norte da Baixada Ocidental

Maranhense, e, por fim, em São Luís.

Os bois de Guimarães e as matanças

De acordo com teorias nativas, supõe-se que na região de Guimarães estariam

localizadas as origens históricas e as matrizes culturais não só do sotaque de zabumba,

mas do próprio bumba meu boi maranhense. A brincadeira, em sua concepção mais

difundida no estado, teria sido criada por negros escravizados nessa região, em eventual

colaboração com indígenas. E a formação do sotaque de zabumba, segundo memórias

registradas por pesquisadores, dataria da década de 1860, quando

Gregório Malheiros, no povoado denominado Jacarequara (que fazia

parte, à época, do município de Guimarães), resolveu substituir esses

pandeiros grandes por zabumbas e tambores-de-fogo. E enfim,

Damásio, já com os instrumentos novos, criou o ritmo de Guimarães,

o qual foi, depois, gerando outras variações (AZEVEDO NETO,

1997, p. 34).

Embora os bois de zabumba ainda sejam uma referência cultural da população

formada por lavradores e pescadores concentrados nas zonas rurais e lacustres, observa-

se, hoje em dia, a desvalorização de suas formas expressivas mais tradicionais na região,

9 A recente pesquisa foi viabilizada pelo projeto cultural intitulado Palhaceiros da Graça de Deus,

patrocinado pela Petrobras. 10

Guimarães é o município mais antigo entre os mencionados, do qual se emanciparam Cururupu,

Mirinzal, que mais tarde deu origem a Central do Maranhão, e Cedral, de onde se desmembrou Porto

Rico. O município de Santa Helena também foi anexado a Guimarães e, depois, a Pinheiro, antes de sua

emancipação. Guimarães está a cerca de 50 km de distância de São Luís, em linha reta, mas,

considerando-se as rotas de acesso, deve-se percorrer mais de 400 km. O percurso pode ser feito por terra

ou por terra e mar, atravessando-se a Baía de São Marcos em ferry boat.

6

que vem experimentando alterações significativas nos modos de celebrar o bumba-boi.

Notam-se, no bojo desse processo, transformações semelhantes às ocorridas, nas últimas

décadas, nos bois da capital, que incluem desde o desenvolvimento de novos padrões

espaciais, temporais e estéticos de realização da brincadeira até a substituição de

modelos tradicionais de organização, com base em relações de vizinhança, parentesco,

afinidade e compadrio, pela constituição jurídica dos grupos na forma de associações ou

sociedades beneficentes (AZEVEDO NETO, 1997; CARVALHO, 1995; CARVALHO,

2011; MARQUES, 1999).

Essas mudanças estão intimamente ligadas à transformação do bumba meu boi

em um espetáculo folclórico de grandes proporções, que passou a se constituir em

atração para maranhenses e turistas, relativamente independente do universo místico-

religioso em que a brincadeira tradicionalmente era feita como pagamento de promessas

e prova de devoção a São João Batista. Segundo a tradição secular, que muitos atribuem

aos antigos escravos, o bumba meu boi nasceu como uma celebração em homenagem ao

santo que batizou Jesus Cristo. A comédia, por sua vez, tematizando fatos relativos ao

contexto da promessa feita pelo devoto responsável pela brincadeira, constituiria um

testemunho da intervenção de São João. Nessa visão mais tradicional do boi, a função

dos palhaços estaria, portanto, duplamente fundada na noção de graça: no sentido de

fazer rir e de dar testemunho da dádiva divina.

Brincar boi, até hoje, constitui para os devotos um modo de louvar o santo.

Embora essa prática, muito significativa no passado, venha se tornando cada vez menos

usual, muitos integrantes e donos de boi no Maranhão ainda mantêm a brincadeira em

função de compromissos assumidos com São João e/ou, eventualmente, com outras

entidades (do tambor de mina, por exemplo) e santos católicos (principalmente os

festejados no período junino, a exemplo de Antônio, Pedro e Marçal). Assim, ainda há

promesseiros que “dão” ou “fazem” o “boi de promessa”, isto é, arcam com os custos de

realização da brincadeira em pagamento por graças recebidas. No entanto, a maioria dos

bois atualmente sobrevive com recursos públicos e privados destinados à cultura, pagos

aos grupos na forma de cachês e patrocínios, além dos investimentos feitos pelos

próprios donos.

Nesse tempo a brincadeira era promessial. A gente só fazia um boi na

promessa, aí tinha de ter aqueles assuntos para a gente poder crescer.

E agora não, é comercial, tudo no comércio. Nesse tempo não. Se eu

fizesse um boi aqui em Santa Maria, é porque eu tinha uma promessa

de fazer um boi, aí eu dava aquele boi, a pessoa fazia gosto de brincar.

Assim é que era. E agora não, está do mesmo estilo de São Luís

7

(entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da Graça de Deus por

José Carlos Vieira, em Santa Maria dos Vieiras, Guimarães, em 28 de

fevereiro de 2014).

Os fluxos de indivíduos, favorecidos pela participação no bumba-boi e em outras

brincadeiras populares, intensificam-se a cada período junino e, com eles, aceleram-se

também as trocas culturais entre diferentes grupos sociais. Dessa forma, o circuito dos

bois de zabumba pressupõe um intercâmbio constante entre moradores das zonas rurais

e urbanas, que nem sempre é avaliado de forma positiva pelos primeiros. Há um intenso

trânsito de brincantes residentes em uma série de povoados rurais (muitos dos quais são

atualmente reivindicados por comunidades remanescentes de quilombos) em direção às

sedes municipais do interior. Com frequência, esse circuito se expande para cidades

maiores e alcança também São Luís, já que muitos donos de bois estabelecidos nessa

cidade, que são naturais do interior, convidam parentes e amigos para brincar em seus

grupos em determinadas datas do período junino.

Aqui quem botava o bumba-boi, que vinha sempre, era esse povo mais

velho. O Leonardo11

deu continuidade em São Luís e chamava o

pessoal daqui para brincar. Acho que deve ter umas trinta a quarenta

pessoas que brincam, são daqui e brincam lá em São Luís. Brincam

em São Luís com ele, depois ele vem para cá e eles brincam aqui. Aí,

ficou essa tradição (entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da

Graça de Deus por Célia Reis, em Santa Maria dos Vieiras,

Guimarães, em 28 de fevereiro de 2014).

Com efeito, os bois do sotaque de zabumba mantêm uma considerável unidade

simbólica no interior e na capital, formando verdadeiramente uma rede, e continuam se

afirmando como aqueles que mais prezam as práticas cômicas da brincadeira. Embora

as matanças tenham mais importância no interior e tenham praticamente desaparecido

em São Luís, onde restam as apresentações contratadas do “auto”, até mesmo aí se

reconhece nos brincantes desse sotaque competências especiais para atualizarem as

performances que culminam no atentado ao boi. É nos bois de zabumba, portanto, que

os autores e atores cômicos ganham papéis de destaque, surpreendendo inclusive os bois

de outros sotaques.

O sotaque de zabumba é muito bonito porque eles montam comédias,

têm especialistas em montar comédias. E o boi de matraca segue a

tradição, não expande, nunca teve a criatividade de montar comédias.

Ele faz tudo aquilo que sempre vem fazendo desde o início. Só que no

boi de zabumba, eles fazem coisas engraçadíssimas mesmo (entrevista

11

Leonardo Martins Santos, finado dono do Boi da Liberdade, considerado um dos mais tradicionais de

São Luís.

8

concedida por Humberto Barbosa Mendes ao INRC do Bumba Meu

Boi do Maranhão apud CARVALHO, 2009, p. 121).

Os “especialistas em montar comédias” são os palhaços, personagens aos quais

cabe efetivamente a autoria e a encenação das matanças, mesmo que outros brincantes

desempenhem nelas papéis importantes, como é o caso dos cabeceiras ou cantadores e

os vaqueiros, com os quais os palhaços encetam diálogos estruturantes nas histórias

encenadas.

O primeiro interlocutor do palhaço é o vaqueiro, é ele que vem

atender ao palhaço. O vaqueiro é quem fala com o fazendeiro, diz o

nome de quem quer falar com ele e apresenta os dois. Depois disso é

que os palhaços vão negociar com o fazendeiro, que expõe a desculpa

dele, e o palhaço, a dele, para ver se fecham o negócio. Enfim, o

interesse da gente é a jogada de conversa com aquelas piadinhas para

fazer o povo rir. O tema é aleatório. São proposições inventadas, por

isso a gente tem uma porção de enredos, uma porção de ideias

(entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da Graça de Deus por

Valdemar Piedade Pereira, em São Luís, em 14 de março de 2014).

As comédias propriamente ditas sempre começam depois de o cabeceira cantar

sucessivas toadas, que são acompanhadas pelo coro de brincantes. Essas toadas

obedecem a uma ordem que alinhava todas as etapas da brincadeira: o “guarnicê” é uma

espécie de convocação para os brincantes se prepararem e afinarem seus instrumentos,

ou seja, guarnecerem o boi; a “reunida” arregimenta o grupo para começar a

brincadeira; o “lá vai” anuncia o cortejo de brincantes que, rapidamente, toma conta do

espaço em fileiras ordenadas; a “licença” ou o “boa-noite” é um cumprimento aos

anfitriões e espectadores da brincadeira; o “traz-o-boi” manda o vaqueiro trazer a

prenda da fazenda; o “chegou” anuncia a entrada do próprio em cena. A partir do “lá

vai” os palhaços podem entrar em ação.

Tem as horas certas de matança, tem a hora de fazer. Por exemplo,

tem a reunida na fogueira, tem a levagem do boi, para levar na porta.

Não é propriamente na porta, chama lá e reúne. É uma chamada. E

canta duas toadas que vai fazer a matança, para dar a continuação e

fazer. São umas toadas de aviso de matança, de fazer matança, roubar

boi, palhaçada (entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da Graça

de Deus por José Augusto Araújo, em Central do Maranhão, em 2 de

março de 2014, grifo nosso).

As performances são elaboradas a partir de fatos observados no cotidiano,

notícias transmitidas pelo rádio e pela televisão, sonhos ou inspirações de caráter

místico-religioso, incluindo-se nessa classe os motivos de promessas feitas por

9

brincantes do grupo ou pessoas de seu relacionamento próximo. As tramas desdobram-

se em vários assuntos: relações de trabalho, direito a terra, doença, morte, hierarquia,

relações de afinidade e parentesco, traição, engodo. Nelas, a perda do precioso animal –

por morte, roubo ou dano – revela-se como uma ideia recorrente a organizar as

performances dos bois, constituindo-se como desfecho das mais diversas sequências

cômicas, quase sempre deflagradas pela expressão não controlada do desejo humano.

Nesse sentido, apesar da variedade temática das histórias, elas invariavelmente

culminam num ato dramático chamado “meia-lua”, marcado por uma toada

correspondente ao momento de perda, roubo ou morte do boi, ao qual se segue a

restituição do animal à fazenda simbólica delimitada pelas fileiras de vaqueiros e

rajados de fitas.12

Em toda matança a finalidade é roubar o boi. Daí que surgem as

histórias em que o boi é a vítima. A história da Catirina é porque a

mulher grávida quer comer a língua do boi. Mas nós inventamos

outras também. Somos ladrões negociantes que querem negociar o que

não têm com aquilo que você tem. Você que tem muito e eu não tenho

nada, eu vou buscar alguma coisa que você tem. Essa é a graça da

matança. É acusação. Quando não se quer devolver o boi roubado,

aparece o gato maracajá, a onça para devorar o cara, os índios para

bater. Tudo isso é para pressionar o sujeito a pagar o boi que tinha

sido levado. Mas o ladrão oferece um jabuti, um tatu e faz aquela

comédia doida (entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da Graça

de Deus por Valdemar Piedade Pereira, em São Luís, em 14 de março

de 2014).

Os personagens assumidos nas matanças são os mais variados e representam

homens, mulheres, animais, visagens, santos, bichos encantados, entre outros. Para

representá-los, os palhaceiros lançam mão de expedientes como roupas, máscaras e

acessórios (bolsas, espingardas de pau, colares etc.) relativamente simples, mas também

de bonecos bem elaborados, que são confeccionados exclusivamente para compor os

enredos. Produzidos pelos próprios palhaços ou artesãos especializados, esses

apetrechos levam materiais simples e retirados das matas do interior: por exemplo,

madeira de jeniparana, fibra de buriti, saco de cimento, papelão, jornal, cola, tinta,

plástico, náilon e tecidos.

Geralmente, as matanças mais elaboradas e com maior número de personagens

são feitas no âmbito das “brincadas”, eventos nos quais o ato de “brincar boi” se

caracteriza pelo tom familiar dos contatos entre os brincantes e entre eles e o seu

12

Personagens que cantam e dançam no círculo formado pela brincadeira.

10

público, que participa ativamente da ocasião, interagindo com os palhaços e

prestigiando as encenações preferidas. Trata-se, em regra, de um público que, em seu

cotidiano, dispõe de poucas opções de lazer e que tem – ou tinha, no caso dos mais

idosos – nas festas juninas sua principal diversão.

Era muita gente. Em Pinheiro, era na casa de senhor José Raimundo.

Lá era tudo em um círculo, mas a assistência toda assistia. A

arquibancada era todo mundo sentado. A gente brincava muito. Em

um ano, nós brincamos boi em Mojó e fomos para Pinheiro. Nós

começamos a brincar no dia 22, no Mojó; 23 nós brincamos em

Bequimão; 24 nós brincamos nas Três Marias. De lá fomos para

Pinheiro e de lá para a Ilha de Fora. Fomos e brincamos na Santa

Helena, de lá para Centrinho, em cima de Santa Helena, quem vai para

Machadinho. Do Centrinho fomos para Guariramã e de lá para o

Abaixadinho. Brincamos duas noites. Brincamos em um lugar que tem

para lá do Guariramã, já no Pará. Lá, nós pegamos lancha às sete

horas da manhã e chegamos sete da noite em Santa Helena. Depois

viemos por Juçaral, município de Perimirim. Chegamos uma hora da

madrugada em Juçaral. No outro dia, fomos para a Vila do Meio, no

Mojó, onde era a brincadeira. Brincamos lá e de manhã viemos

embora.Vinte e dois dias direto (entrevista concedida ao projeto

Palhaceiros da Graça de Deus por Arcângelo Reis, em São Luís, em

18 de março de 2014).

As “brincadas”, normalmente, ocorrem na zona rural, em frente à casa de algum

conhecido, ou em praça pública, na área urbana, fugindo ao modelo festivo demarcado

pelo espaço do arraial. Elas são bastante livres e, em função do local, podem se estender

por até mais de oito horas, do início da noite até a manhã seguinte, durante as quais se

representam de uma a três tramas para públicos essencialmente compostos por

familiares, amigos e vizinhos.

Uma boa matança passa uma hora de relógio. Para fazê-la, a primeira

coisa que você vai fazer é ensaiar com o grupo, porque o cabeceira vai

fazer a toada em cima do que o chefe da matança for apresentar pra

ele. Por exemplo:

PALHAÇO: Meu irmão, nós vamos fazer uma matança.

CABECEIRA: Que enredo?

PALHAÇO: Rapaz, eu vou vender um carro. Vou ser vendedor de

carro.

CABECEIRA: O que tu vais chegar a apresentar?

PALHAÇO: Eu vou apresentar o carro.

Depois vamos combinar os nomes dos personagens etc. A ideia que eu

quiser dizer, eu digo. E ele também se manifesta para fazer a toada em

cima do meu nome. Assim começa a brincadeira (entrevista concedida

ao projeto Palhaceiros da Graça de Deus por Valdemar Piedade

Pereira, em São Luís, em 14 de março de 2014, grifo nosso).

Nesse aspecto, as “brincadas” se distinguem marcadamente das “apresentações”,

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categoria que corresponde às exibições realizadas nos arraiais juninos montados nas

principais praças das cidades do interior, que já seguem o mesmo modelo que se

consolidou em São Luís após os anos 1970, quando as festas de junho começaram a se

descentralizar, espalhando-se por vários bairros da capital. Os arraiais são espaços

montados para apresentação das brincadeiras juninas, entre as quais o bumba meu boi.

Em geral, compõem-se de um palco ou uma área delimitada para exibição dos grupos e

são rodeados de barraquinhas que vendem bebidas e comidas típicas. Os espectadores,

quando não estão consumindo algo nessas barraquinhas, aglomeram-se em volta dos

brincantes durante as apresentações, principalmente das atrações mais concorridas,

feitas pelos grupos mais famosos da região e, especialmente, da capital.

Nos arraiais, os brincantes interagem com comerciantes e políticos locais,

desconhecidos, eventuais turistas e pesquisadores, entre outros agentes externos a seu

círculo próximo de relações. Sujeitas a regras dispostas por contratos firmados pelo

grupo com indivíduos ou instituições pagantes, as “apresentações” feitas em arraiais têm

duração limitada a períodos curtos, raramente ultrapassando uma hora de duração, nos

quais se desenvolve, quando muito, um formato mais compacto de matança que

desagrada à maioria dos palhaços. Ainda assim, há quem defenda o aproveitamento do

tempo curto para a representação de alguma comédia, para não “perder a tradição”.

É só uma hora, certo. Mas, dentro de uma hora, você faz muita coisa!

Eles cantam o “lá vai”; às vezes a gente também de sem-vergonha fica

bebendo uma cerveja, larga eles uivando lá na porta... É quatro, cinco

toadas e quando a gente chega, eles já estão zangados! Mas é porque o

sistema daqui! Mas, se você vai a São Luís, que é só uma hora,

quando canta o “lá vai”, você já vai preparadinho. Dentro de uma hora

você apresenta! Se começasse a apresentar isso, estava lá em São

Luís, isso! Hoje, todo mundo iria! Seria o mesmo que o reggae hoje.

Eu fico imaginando como o reggae tomou conta do Maranhão. Me

lembro que, quando começaram a sair as primeiras músicas de reggae,

ninguém queria. Botava em uma festa e o salão esvaziava. Hoje, se

não tiver reggae, a festa não presta! No Maranhão todo é reggae! E

assim seria com a matança. O pessoal de São Luís não ia gostar de

início. Tem muitas coisas que a gente começa, mas, até ela evoluir,

precisa de tempo. Mas depois, o povo ia apoiar (entrevista concedida

ao projeto Palhaceiros da Graça de Deus por Carlos Augusto dos

Santos, em Mirinzal, em 3 de março de 2014, grifo nosso).

Os atuais modelos festivos do bumba meu boi do Maranhão incorporaram uma

série de mudanças ocorridas nas últimas gerações, as quais vêm afetando sobremaneira

as práticas cômicas da brincadeira, assim como a seus realizadores, tendo em vista a

dificuldade de adaptação às “apresentações” consideradas rápidas demais, em arraiais

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frequentados por pessoas estranhas ao universo mais próximo dos cômicos, que não são

capazes de entender as suas piadas.

No ano retrasado teve um boi ali em Cururupu, dos velhões. Nesse

ano eu me assanhei para ir. Até sonhei brincando boi! Aí eu disse para

o Valter: “olha, compadre, nós vamos para Cururupu. Nós vamos para

lá!” Ele se empolgou, atentou, atentou e nós fomos. Meu Deus do céu!

Quando chegou lá, só tinha os velhões. Todos cansados. Coitados,

sem força!

No Dia dos Pais fizemos uma apresentação, tinha umas dez pessoas na

porta. Fazer papel de besta, já está bom! Eu vou fazer o quê? Senhor,

tudo quanto é brincadeira, você só tem atração para você trabalhar se

você tiver o calor! Quanto mais você tem o calor do público, mais lhe

dá a vontade para você trabalhar! Mas já não tem! Eu chamei os

companheiros e disse: “olha, se vocês querem continuar bestando,

ficam aí, que eu de bestar já está bom!” Aquilo que eu fazia de graça,

de primeiro, para os outros rirem, hoje eles já estão rindo da minha

cara! E eu vou largar (entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da

Graça de Deus por Carlos Augusto dos Santos, em Mirinzal, em 3 de

março de 2014, grifo nosso).

Apesar dos esforços de alguns brincantes, as tradições cômicas focadas aqui são

percebidas por seus executores e pelas pessoas mais próximas a eles como estando em

vias de se perder, correspondendo cada vez mais a uma referência do passado que

deixou saudades. “O boi não faz mais matança” – é o que declaram quase todos os

indivíduos contatados menos de quinze anos depois do início das pesquisas que

pautaram os já mencionados documentos relativos ao processo de patrimonialização do

bumba meu boi.

No decorrer desses anos, os bois de zabumba da região de Guimarães perderam

espaço para grupos do sotaque de orquestra – principalmente, vindos da capital, mas

também organizados na própria região –, que têm sido considerados mais bonitos e vêm

atraindo público mais numeroso, além de levarem também os melhores cachês das

administrações municipais. Dos palhaceiros identificados no início dos 2000, que então

já tinham idade avançada, alguns morreram e outros estão perecendo com problemas de

saúde decorrentes do próprio envelhecimento e enfraquecimento biológico. A maioria

deixou de brincar boi, sem que tenha havido a transmissão ou a reprodução dos seus

papeis cômicos. O mesmo se passa em relação aos novos interlocutores encontrados em

2014.

A minha paixão é a gente ainda sentar cabeceira, vaqueiro,

zabumbeiro, palhaço. Tenho, tenho muitas saudades mesmo! A gente

sempre tem que fazer aquilo que a gente gosta, uma coisa importante é

a gente fazer o que sempre gostou de fazer. Acho que a gente cresce,

mas, se a gente está numa idade como essa que eu estou, parece que

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eu pego outra aparência, parece que eu nasço de novo. Tem que ver,

se passar o São Joao aqui. Eu não durmo, eu não largo a brincadeira

(entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da Graça de Deus por

Diomedes Rodrigues dos Santos, em São Luís, em 26 de março de

2014, grifo nosso).

Enquanto isso, na capital, as políticas públicas de cultura privilegiam ações que

insistentemente visam ao “resgate” da versão mais conhecida do “auto do boi”, suposta

tradição originária que precisa ser recuperada, num contexto de desuso crescente. O

plano de salvaguarda da celebração – instrumento elaborado pelo Iphan em conjunto

com representantes dos bois a fim de contribuir para a continuidade do bem registrado

como patrimônio cultural – tem em conta as especificidades dos bois de Guimarães no

que tange às práticas cômicas da brincadeira.

A continuidade do bumba meu boi do Maranhão não está, por assim dizer,

ameaçada. Comprovam-no a capacidade de mobilização de brincantes ao longo de todo

o calendário festivo, a pujança de muitos grupos, o volume de recursos humanos e

econômicos que movimentam, o número de turistas que atraem, muito embora os donos

e organizadores de bois de zabumba ou de Guimarães se queixem de receber menos

atenção e recursos que grupos de outros sotaques como os de matraca e de orquestra. É

nas distinções internas dos modos de celebrar o boi que se afiguram os desafios para a

continuidade das múltiplas expressões que o compõem, na medida em que elas estão

profundamente articuladas a concepções, crenças e costumes que frequentemente se

confrontam.

Prospecções

Quando iniciei a pesquisa sobre as práticas cômicas do bumba meu do

Maranhão, sensivelmente estimulada pela bibliografia existente sobre o tema, busquei

em várias regiões do estado o tão comentado “auto do boi”. Sem sucesso nesse objetivo,

conheci uma brincante na Baixada Maranhense que me recomendou assistir ao auto no

espetáculo teatral “Catirina”, dirigido por Fernando Bicudo e que, na época, estava em

cartaz na capital. Esse momento correspondeu à descoberta antropológica da ilusão do

auto do boi, que, tal como a ilusão totêmica apontada por Lévi-Strauss, mais parecia ser

uma “distorção do campo semântico do qual sobressaem fenômenos do mesmo tipo”

(LÉVI-STRAUSS, 1980, p.109).

Nas contribuições prestadas ao INRC do boi, argumentando que o

inventariamento em si constitui um ato político, na medida em que classifica,

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hierarquiza, seleciona, inclui e exclui, enfatizei justamente as expressões que

comumente são silenciadas ou invisibilizadas nos discursos oficiais e nas políticas

públicas envolvendo o boi, em regra sob o pretexto de que deturpam a tradição. Em

contraponto a uma visão da tradição como rotina imutável, explorei possibilidades

plurais de atualização de memórias e referências culturais, principalmente no que tange

à criação e à dramatização das matanças, comédias ou palhaçadas que desafiam a

monoglossia do “auto do boi”.

O registro do “Complexo” pelo Iphan, enfim, visou justamente a reforçar a

indissociabilidade das práticas e expressões que compõem o conjunto de referências

culturais do boi maranhense, de modo integrado e inseparável, tentando evitar a

reificação de supostas tradições mais autênticas que outras no plano da brincadeira.

Nesse sentido, a patrimonialização procurou contemplar a diversidade e dar visibilidade

a formas menos conhecidas da celebração.

Por outro lado, a própria documentação do registro revela que a existência de

variadas formas de expressão, saberes, ofícios e visões de mundo, muitas vezes

conflitantes, cria desafios particulares para os indivíduos e grupos responsáveis pela

continuidade e atualização da brincadeira. Então, no que tange à implantação e à

efetivação de uma política de salvaguarda do bem registrado, anunciam-se problemas

tão importantes quanto aqueles decorrentes dos processos de folclorização e

turistificação da cultura popular maranhense.

No que diz respeito às práticas cômicas do bumba meu boi – quer se reconheçam

como autos, matanças, comédias ou palhaçadas –, são os representantes dos grupos do

sotaque de zabumba ou de Guimarães (principalmente os sediados em São Luís, onde

está a superintendência do Iphan) que mais demandam e discutem ações de apoio para

as dramatizações. Esse apoio, no entanto, é confusamente concebido, não estando claro

– provavelmente para todas as partes envolvidas – qual papel exatamente o Estado,

representado pelo Iphan, pode ou deve cumprir nesse caso. Também não há consenso

em relação ao papel a ser assumido pelos bois, principalmente no que tange à atuação

dos mesmos como receptores, captadores e gestores de recursos que supram a própria

brincadeira.

Em meio às discussões sobre a salvaguarda das expressões cômicas,

propriamente, surgem propostas de realização de festivais de matanças, encontros de

palhaços, publicações, gravações de performances em vídeo, gravações de narrativas

(tramas de matanças) em áudio, exposições de máscaras, bichos e bonecos, e até

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oficinas para ensinar jovens a fazerem comédias e confeccionarem apetrechos para usar

nelas. Destacam-se nesse rol de sugestões duas preocupações centrais: a fixação das

matanças em suportes que permitam a sua reprodutibilidade e a transmissão dirigida dos

saberes nelas implicados. Há, sem dúvida, intenção de evitar a sua “perda”, seja essa

uma ameaça constatada pelo Estado, pelos grupos ou por ambos. Ademais, observa-se

nas propostas de salvaguarda uma tendência a reproduzir ideias e estratégias

características do modus operandi do campo do folclore e da cultura popular desde suas

raízes no romantismo europeu (BURKE, 1989; VILHENA, 1997), já aplicadas ao

próprio bumba-boi no Brasil (CAVALCANTI, 2004).

Com relação à fixação de matanças em suporte impresso, colocam-se os desafios

usuais da transposição de enunciados próprios do domínio da oralidade para a escrita,

entre os quais os riscos de descontextualização e alteração de sentidos. Riscos esses que

se reapresentam nas propostas de fixação das tramas em meio audiovisual, sempre a

partir de necessárias intervenções de edição, que operam também em qualquer

empreendimento expositivo. A esses tipos de problema a antropologia tem dedicado

atenção em diversos estudos sobre arte, linguagem, cultura material, museus e outros.

As propostas de realização de oficinas para introduzir ou treinar jovens no ofício

das comédias colocam outros desafios para reflexão e ação no campo em questão.

Concebidas como eventos planejados e estruturados para a transmissão de determinadas

habilidades – muitas vezes consideradas dons ou obrigações – a indivíduos que não são

necessariamente socializados no universo do bumba meu boi, as oficinas aventadas pelo

grupo que discute a salvaguarda das práticas cômicas pressupõem a existência de

mestres – palhaços que não só saibam fazer boas matanças, mas também ensinar a fazê-

las, se é que isso é possível.13

Lamenta-se, no entanto, que os bons palhaços morreram

ou deixaram de brincar boi por motivos de doença, velhice ou conversão religiosa. Pelo

mesmo motivo os encontros ou festivais de palhaços são tão desejados quanto

postergados.

Nesse cenário, os palhaços de bois de zabumba do interior, especificamente da

região de Guimarães, aparecem como pilares de uma tradição em vias de

desaparecimento. Estes, por sua vez, também envelhecidos e enfraquecidos, enfrentam a

seu modo a perda de espaço nas representações de bumba meu boi no lugar de origem

do sotaque mais apegado às comédias. Como personagens moribundos, lamentam a

13

Ver, a esse respeito, trabalhos de SCHNEIDER (2003) e TEIXEIRA; GARCIA; GUSMÃO (2004).

16

iminência da morte das matanças ao mesmo tempo que criam e, insistentemente,

persistentemente e apaixonadamente, teimam em narrá-las e representa-las para a

assistência que se disponha a assistir às mesmas.

As histórias que tem são porque nós, que somos do interior,

cultivamos no nosso grupo. É uma comédia, como uma quadrilha.

Quadrilha é uma dança normal, mas, quando chega o momento da

representação, tem o casamento. Aquele casamento tem várias

histórias; tem graça, o povo ri. Assim, nós continuamos com a

comédia no bumba meu boi. Mas o nosso não é casamento, porque é

bumba-boi. Nós temos a Catirina, que está grávida e fala que está

desejando a língua do boi. Aquele boi lindo que está no cordão,

brincando! Eu não vou chegar lá e cortar a língua de um boi lindo

daquele só para matar o desejo dela. Então, dentro daquela história, o

tempo vai se passando e a gente termina a comédia e ela nunca

termina o desejo. Esse desejo fica e todo ano nós cultivamos esse

desejo dela (entrevista concedida ao projeto Palhaceiros da Graça de

Deus por Eleutério Silva, em São Luís, em 19 de março de 2014).

Diante do contexto da Guimarães revisitada em 2014, pergunto-me se a

patrimonialização pode ter outro fim que não o das políticas de folclorização e

turistificação do boi maranhense, que contribuíram para a cristalização de uma narrativa

destituída da luz tênue e da mecha de fogo que são a narração e a vida do próprio

palhaço (BENJAMIN, 1993). Afinal, as matanças, comédias ou palhaçadas não são

apenas representações tradicionais que se possa manter ou preservar por meio da

repetição – recurso estratégico dos processos de produção em massa de tradições,

conforme demonstrou Hobsbawn (1997). Elas, antes, correspondem a formas de pensar,

narrar, rir, festejar e, enfim, de “brincar boi”, que são próprias dos moradores de zonas

rurais e que vêm, a cada ano, perdendo espaço não só para formas mais modernas de

realizar a celebração, mas também para novas formas de vida e experiência do tempo,

do riso e da graça, em todas as suas dimensões.

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Figura 1: Lourenço Pinto, Santa Helena, 2014.

Foto: Gavin Andrews/Palhaceiros da Graça de

Deus.

Figura 2: Arlindo Trindade, Cururupu, 2014. Foto:

Gavin Andrews/Palhaceiros da Graça de Deus.

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