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O azulejo articulado de Eduardo Nery
Jorge Rezende (Grupo de Física-Matemática (GFMUL) e Departamento de Matemática (DMFCUL) da
Universidade de Lisboa.)
Neste artigo consideramos apenas azulejos quadrados e daremos especial relevo às propriedades matemáticas do
azulejo de 1966 de Eduardo Nery, que é um caso singular entre todos os existentes em obras públicas (ver Figura 9;
sobre este azulejo e este artista plástico português ver [1]-[4]). No que se segue, a unidade de comprimento é o
comprimento do lado do azulejo.
Azulejos e painéis
A Figura 1 mostra esquemas de diversos tipos de azulejos quadrados muito comuns: a) azulejo sem qualquer
simetria; b) azulejo com um eixo de reflexão numa mediana do quadrado; c) azulejo com um eixo de reflexão numa
diagonal do quadrado; d) azulejo com um centro de rotação de ordem 2 no meio do quadrado; e) azulejo com um
centro de rotação de ordem 4 no meio do quadrado. Como se vê, representamos os eixos de reflexão, que
funcionam como espelhos, por uma linha vermelha. Representamos os centros de rotação de ordem 2 e 4, com
pequenos círculos com os números 2 e 4 respectivamente; o centro de rotação de ordem 4 significa que rodando o
azulejo de 90°, em torno desse centro, ele se mantém invariante; o centro de rotação de ordem 2 significa que, não
sendo de ordem 4, rodando o azulejo de 180°, em torno desse centro, ele se mantém invariante. Todas estas são
simetrias próprias do azulejo, são aquelas que são perceptíveis olhando para um único exemplar. Claro que um
azulejo pode acumular reflexões e centros de rotação próprios; o leitor calcule quantos mais tipos de tais azulejos
existem.
Consideremos agora infinitas cópias de um azulejo quadrado e
pavimentemos o plano encostando os azulejos aresta com aresta.
Daqui podem resultar padrões em número infinito e, alguns, terão
simetrias, ou seja, transformações rígidas do plano que deixam
invariante o desenho produzido pela pavimentação.
As Figuras 2-5 mostram algumas pavimentações deste gênero onde
estão postas em evidência as suas simetrias. Nestas figuras e no que se
segue, os segmentos a amarelo delimitam regiões fundamentais.
Lembremos que as regiões fundamentais são paralelogramos de área
mínima que se repetem segundo as duas direções independentes que
são as dos seus lados, cobrindo completamente o plano, sem
sobreposições. Olhando para as figuras, vê-se que são inteiras as
coordenadas dos vectores que estão segundo os lados das regiões
fundamentais. Como anteriormente, representamos os centros de
rotação de ordem 2 e 4, com pequenos círculos com os números 2 e 4
Figura 1
Figura 2
2
respectivamente. Aqui, quando se roda o painel em torno destes
centros, da maneira referida a propósito de um azulejo, o desenho
mantém-se invariante. Como se vê, este azulejo, sem qualquer
simetria própria, produz painéis com centros de rotação nos vértices
(de ordem 2 ou 4; ver Figuras 4 e 5) e nos pontos médios das arestas
(de ordem 2; ver Figura 2); se o azulejo fosse reflexo (se tivesse, pelo
menos, um eixo de reflexão próprio), então teria painéis com eixos de
reflexão nas arestas; os painéis têm só translações de coordenadas
inteiras. As simetrias deste tipo dizem-se triviais; aqui, a palavra
“trivial” não tem qualquer sentido pejorativo, é usada no sentido
matemático e não no
sentido estético.
Façamos agora as
seguintes observações.
Quando o azulejo tem
um centro de rotação de ordem 4 no meio, como o da Figura 1e, só
pode formar um painel. Quando tem um centro de rotação de ordem 2
no meio, como o da Figura 1d, já se podem formar painéis distintos.
Aqui, trataremos especialmente o caso em que não há qualquer centro
de rotação no meio do azulejo e utilizaremos, para começar, um
azulejo sem quaisquer simetrias próprias como da Figura 1a.
Uma das possibilidades mais evidentes e não triviais, mas elementares,
é a de reunir quatro azulejos em torno de um dos vértices e, em
seguida, obter um painel fazendo translações.
Para maior clareza e para considerar todas as situações de uma forma
exaustiva, numeremos os vértices no sentido direto (o contrário ao dos
ponteiros do relógio): 1, 2, 3 e 4. O vértice 1 é o do canto superior direito na posição em que está o azulejo da Figura
1a. Em torno desse vértice reuniremos mais três azulejos. Para cada um dos três restantes há quatro maneiras de os
colocar o que dá, ao todo, 64 (4×4×4) possibilidades. De fato, notando os três cantos restantes p, q e r, como
mostram as Figuras 6-8, formamos um quadrado com quatro azulejos (1pqr). Ordenando todas as possibilidades por
ordem crescente, obtemos que no conjunto, de quatro azulejos de ordem n, n é dado pela fórmula n=16(p-1)+4(q-
1)+ r. Para p, q, r =1, 2, 3, 4, vem n=1, 2, ..., 64.
Depois, trata-se de fazer as translações. Há três possibilidades para as
translações: paralelamente aos lados (translações de duas unidades na
vertical e translações de duas unidades na horizontal, como mostra a
Figura 6); translações de duas unidades na horizontal e translações
oblíquas (de duas unidades na vertical e de uma unidade na horizontal,
como mostra a Figura 7); translações de duas unidades na vertical e
translações oblíquas (de duas unidades na horizontal e de uma
unidade na vertical, como mostra a Figura 8). Tudo somado, há 192
(64×3) possibilidades, numeradas de 1 a 64, de 1’ a 64’ e de 1’’ a 64’’,
respectivamente.
Note-se que o painel da Figura 2 resulta do conjunto de quatro
azulejos (1234), ou seja é o 28; mas também é o 28’ e o 28’’. O painel
da Figura 3 resulta do conjunto de quatro azulejos (1432), ou seja é o
58. O painel da Figura 4 resulta do conjunto de quatro azulejos (1212),
ou seja é o 18; mas também é o 18’. O painel da Figura 5 resulta do
conjunto de quatro azulejos (1111), ou seja é o 1.
Figura 3
Figura 4
Figura 5
3
Nos 192 painéis possíveis, há repetições e equivalências no sentido em
que um painel pode ser obtido de outro por translações e rotações.
Por exemplo, olhando para o esquema do painel (1112), ou seja o
painel 2, vê-se que há vértices (1121), (1211) e (1242); desta maneira,
o painel 2 é equivalente aos painéis 5, 17 e 30. Obviamente, maior
cuidado é preciso ao observar os painéis com translações oblíquas. O
leitor verifique que há 56 possibilidades diferentes, contadas assim:
1; 2 <=> 5, 17, 30; 3 <=>
9, 33, 43; 4 <=> 13, 49,
56; 6 <=> 21, 31, 46; 7
<=> 25, 32, 44; 8 <=> 29,
29’, 8’’; 10 <=> 37, 59,
62; 11 <=> 41; 12 <=> 24,
27, 45; 14 <=> 53; 15 <=>
42, 54, 57; 16 <=> 40, 55,
61; 18 <=> 18’; 19 <=> 22, 34, 47; 20 <=> 26, 50, 60; 23 <=> 48, 23’,
48’’; 28 <=> 28’, 28’’; 35; 36 <=> 39, 51, 64; 38 <=> 63; 52 <=> 52’’; 58;
1’ <=> 1’’; 2’ <=> 17’, 30’, 5’’; 3’ <=> 33’, 9’’, 31’’; 4’ <=> 49’, 59’, 13’’; 5’
<=> 2’’, 17’’, 42’’; 6’ <=> 46’, 21’’, 43’’; 7’ <=> 25’’, 32’’, 44’’; 8’ <=> 11’,
29’’, 41’’; 9’ <=> 40’, 3’’, 33’’; 10’ <=> 56’, 62’, 37’’; 12’ <=> 24’, 27’,
45’’; 13’ <=> 4’’, 49’’, 56’’; 14’ <=> 53’’; 15’ <=> 30’’, 54’’, 57’’; 16’ <=>
43’, 55’’, 61’’; 19’ <=> 22’, 34’, 47’’; 20’ <=> 26’, 50’, 60’; 21’ <=> 31’,
6’’, 46’’; 25’ <=> 32’, 44’, 7’’; 35’ <=> 63’’; 36’ <=> 51’, 57’, 15’’; 37’ <=> 10’’, 19’’, 34’’; 38’ <=> 35’’; 39’ <=> 36’’, 51’’,
64’’; 41’ <=> 48’, 11’’, 23’’; 42’ <=> 54’, 64’, 39’’; 45’ <=> 12’’, 24’’, 27’’; 47’ <=> 22’’, 59’’, 62’’; 52’ <=> 58’; 53’ <=>
63’, 14’’, 38’’; 55’ <=> 61’, 16’’, 40’’; 18’’ <=> 58’’; 20’’ <=> 26’’, 50’’, 60’’.
Suponhamos agora que o azulejo tem eixo de reflexão numa diagonal.
Reservemos os números ímpares (1 e 3) para os vértices que contêm
essa diagonal. Colocando o azulejo ao espelho, vê-se precisamente a
mesma imagem só que os vértices 2 e 4 trocam. Colocando os quatro
azulejos ao espelho, os azulejos contados no sentido direto, aparecem
na imagem no sentido retrógrado. Assim, a imagem do painel (1123),
ou seja o 7, é o painel (1134), ou seja o 12. Aqui, mais uma vez, maior
cuidado é preciso ao observar os painéis com translações oblíquas. O
leitor verifique que há: com reflexão, 16; sem reflexão: 40 (20×2). Se,
de cada par de painéis reflexos um do outro, escolhermos apenas um,
há 36 possibilidades:
1; 2 <-> 4; 6 <-> 16; 7 <-> 12; 8; 10 <-> 15; 11; 14; 18 <-> 52; 19 <-> 36;
20; 23; 28; 35; 38; 58; 1’; 2’ <-> 13’; 3’ <-> 9’; 4’ <-> 5’; 6’ <-> 16’; 7’ <->
12’; 8’; 10’ <-> 15’; 14’; 19’ <-> 39’; 20’ <-> 20’’; 21’ <-> 55’; 25’ <-> 45’;
35’ <-> 38’; 36’ <-> 37’; 41’; 42’ <-> 47’; 52’ <-> 18’’; 53’.
O leitor verifique também que se o azulejo tiver apenas um eixo de reflexão numa mediana, as 56 possibilidades
diferentes, repartem-se assim: com reflexão, 18; sem reflexão: 38 (19×2). Se, de cada par de painéis reflexos um do
outro, escolhermos apenas um, há 37 possibilidades.
O leitor verifique ainda que se o azulejo tiver apenas um centro de rotação de ordem 2, há 7 possibilidades
diferentes. Se além disso tiver apenas um eixo de reflexão numa diagonal, as possibilidades repartem-se assim: com
reflexão, 5; sem reflexão: 2; se, de cada par de painéis reflexos um do outro, escolhermos apenas um, há 6
possibilidades. Se, em vez de ser na diagonal o eixo de reflexão for numa mediana, as possibilidades repartem-se
assim: com reflexão, 7; sem reflexão: 0.
Figura 6
Figura 7
Figura 8
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O azulejo de 1966 de Eduardo Nery
O azulejo de 1966 de Eduardo Nery, representado nas Figura 9 e 15, não tem qualquer centro de rotação no meio
(nem de ordem 2, nem de ordem 4) mas tem um eixo de reflexão próprio segundo uma diagonal. Aparentemente,
nada o distingue, do ponto de vista matemático, de outros azulejos relativamente comuns. Mas não é assim, como
veremos.
Juntando dois destes azulejos, aresta com aresta, de qualquer maneira, as
cores têm continuidade de azulejo para azulejo. Quem junta muitos
destes azulejos, formando um painel, depara-se com a possibilidade de
formar múltiplos padrões e com uma dinâmica que não imaginava
observando apenas um exemplar.
Conseqüentemente, é natural utilizar o estudo da secção precedente para
desenhar os 36 painéis com quatro destes azulejos que se transladam.
Como anteriormente, reservamos os números ímpares (1 e 3) para os
vértices que contêm a diagonal que é um eixo de reflexão próprio do
azulejo. O vértice 1 é o que tem no canto o triângulo colorido (no caso das
Figura 9 e 15 é um triângulo amarelo).
Desenhados os painéis, o que surpreende é que, um exame atento,
mostra o aparecimento inesperado de eixos de reflexão, de centros de
rotação de ordem 2 e de ordem 4, e de translações, que não eram
perceptíveis observando o azulejo isolado; mostra, ainda, regiões fundamentais de alguns padrões com formas
diferentes e áreas mais pequenas do que seriam de prever.
Estes fatos ficam bem ilustrados nas Figuras 10-14 em que estão cinco desses 36 painéis: o 23, o 28, o 38, o 58 e o
42’.
Convencionemos que se há, pelo menos, um painel com um centro de rotação de ordem 4, esse é um centro de
rotação de ordem 4 do azulejo; se há, pelo menos, um painel com um centro de rotação de ordem 2 e que não é de
ordem 4, esse é um centro de rotação de ordem 2 do azulejo; se há um painel com um eixo de reflexão que traça um
segmento num azulejo, esse é um eixo de reflexão do azulejo; etc. Excluem-se destas convenções as trivialidades.
Feitas estas convenções, nas Figuras 11-13, como anteriormente, as linhas vermelhas representam eixos de reflexão;
nas Figuras 10-12, as linhas verdes representam eixos de reflexão deslizante (colocando um espelho sobre essa linha,
Figura 9. O azulejo de Eduardo Nery
Figura 10. Painel 23
Figura 11. Painel 28
5
perpendicularmente ao desenho, a imagem que se vê é a transladada da que está do outro lado do espelho); os
pontos com um 2, representam centros de rotação de ordem 2; os pontos com um 4, representam centros de
rotação de ordem 4; a fronteira das regiões fundamentais é assinalada com linhas amarelas.
No painel 23, o que é interessante não é a área da região fundamental, que é dois, visto que é gerado pela
translação de dois azulejos. A novidade é que se vêem quatro centros de rotação de ordem 2 no interior.
No painel 28, o que surpreende não é a área da região fundamental, que é um, visto que é gerado pela translação de
um azulejo. As novidades é que se vêem quatro centros de rotação de ordem 2 no interior e vêem-se ainda dois
eixos de reflexão perpendiculares ao eixo de reflexão
próprio do azulejo.
No painel 38, aparecem agora dois centros de rotação de
ordem 4 nos pontos médios das duas arestas
concorrentes no vértice 3. Existem ainda quatro eixos de
reflexão (dois deles já os conhecíamos do painel 28) que
unem pontos médios das arestas e são perpendiculares
ou paralelos ao eixo de reflexão próprio do azulejo. A
área da região fundamental é quatro.
No painel 58 aparecem centros de rotação de ordem 2 e
eixos de reflexão já nossos conhecidos e o que
verdadeiramente surpreende é que a região fundamental
é um rectângulo de área um, alongado, que intersecta,
pelo menos, três azulejos. As translações que
transportam uma região fundamental noutra vizinha, que
tenha uma aresta comum, não são triviais (não têm
coordenadas inteiras).
O painel 42’ não tem reflexões. A área da sua região
fundamental é quatro e ele e o seu reflexo possuem os
quatro centros de rotação de ordem 2 do interior do
azulejo.
Figura 12. Painel 38
Figura 13. Painel 58
Figura 14. Painel 42’
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Constatamos assim que o azulejo de 1966 de Eduardo Nery possui (ver Figura 15): um eixo de reflexão próprio que
une dois vértices opostos, os vértices 1 e 3; quatro eixos de reflexão que unem os pontos médios das arestas e são
paralelos ou perpendiculares ao eixo próprio; quatro centros de rotação de ordem 2, que estão situados nos centros
dos quatro quadrados iguais que se obtêm dividindo o azulejo com os dois segmentos que unem os pontos médios
de arestas opostas; e, finalmente, dois centros de rotação de ordem 4 localizados nos pontos médios das arestas
concorrentes no vértice 3.
De todos estes elementos que definem a estrutura geométrica
do azulejo de Eduardo Nery, os que despertam mais curiosidade
são, sem dúvida, os dois centros de rotação de ordem 4. Por
esse motivo, o painel 38 é, de todos, o mais relevante. A sua
existência leva-nos a colocar imediatamente a seguinte questão:
se um painel, constituído por cópias de um único azulejo, possui
um centro de rotação de ordem 4 não localizado num vértice,
como é esse azulejo nas suas propriedades geométricas? A
resposta pormenorizada a esta pergunta não cabe,
naturalmente, no âmbito deste artigo (ver [4]).
Eduardo Nery desenhou o azulejo de que trata este artigo para
o "concurso ESTACO destinado a premiar os melhores desenhos
de azulejo decorativo", promovido em 1966 pela fábrica de
cerâmica ESTACO, Estatuária Artística de Coimbra, em
colaboração com a revista Arquitectura e o Sindicato Nacional
dos Arquitectos [3]. O artista não ganhou este concurso apesar
das propriedades matemáticas (e plásticas) notáveis do azulejo,
que fazem dele, entre todos os azulejos existentes em obras públicas, um caso único.
Agradecimentos:
Fico reconhecido à Sociedade Brasileira de Matemática e ao seu parecerista pelos incentivos e reparos que
contribuíram para melhorar este meu trabalho. Entretanto, entre a primeira versão e esta, faleceu, em 2 de março
de 2013, o artista plástico Eduardo Nery à memória de quem dedico este artigo.
Referências:
[1] Sítio de Eduardo Nery: http://www.eduardonery.pt/
[2] P. Henriques, Rocha de Sousa, S. Vieira: Eduardo Nery. Exposição Retrospectiva: Tapeçaria, Azulejo, Mosaico,
Vitral (1961–2003). Museu Nacional do Azulejo, Lisboa, IPM, 2003.
[3] No blogue http://polyedros.blogspot.pt/
Azulejos
http://polyedros.blogspot.pt/search/label/azulejos
Estudos para um azulejo de Eduardo Nery
http://polyedros.blogspot.pt/search/label/Estudos%20para%20um%20azulejo%20de%20Eduardo%20Nery
História de um azulejo de Eduardo Nery
http://polyedros.blogspot.pt/search/label/Hist%C3%B3ria%20de%20um%20azulejo%20de%20Eduardo%20Nery
[4] Jorge Rezende: A contribution for a mathematical classification of square tiles, 2012.
http://arxiv.org/abs/1206.3661
Figura 15. Simetrias do
azulejo de Eduardo Nery