o ato de cuidar - a alma dos serviços de saúde

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O Ato de Cuidar: a Alma dos Servios de SadeEmerson Elias MerhyDepartamento de Medicina Preventiva e Social UNICAMP

Muitas pessoas acreditam que o objeto da igreja a salvao da alma, mas, de fato, o objeto a produo de prticas, como a crena, atravs das quais se atingir a salvao como finalidade, como objetivo ltimo. Assim, no interior da igreja h uma quantidade enorme de processos produtivos articulados para a fabricao da crena religiosa e com eles a f na salvao. Do mesmo modo, no campo da sade, o objeto no a cura, ou a promoo e proteo da sade, mas a produo do cuidado, atravs do qual podero ser atingidas a cura e a sade, que so, de fato, os objetivos que se quer atingir. Nos ltimos sculos, o campo da sade foi se constituindo como um campo de construo de prticas tcnicas cuidadoras, socialmente determinadas, dentro do qual o modo mdico de agir foi se tornando hegemnico. Mas, mesmo dentro desse modo particular de agir tecnicamente na produo do cuidado, nesses anos todos, h uma enorme multiplicidade de maneiras ou modelos de ao. Porm, nos tempos atuais, qualquer pessoa que tiver um mnimo de vivncia com um servio de sade seja um consultrio mdico privado, uma clnica de fisioterapia privada, um hospital pblico ou privado, enfim, qualquer tipo de estabelecimento de sade pode afirmar, com certeza, que as finalidades dos atos de sade, marcadas pelos seus compromissos com a busca da cura das doenas ou da promoo da sade, nem sempre so bem realizadas, para ser otimista. Todos: trabalhadores, usurios e gestores dos servios, tambm sabem que, para atingir aquelas finalidades, o conjunto dos atos produzem um certo formato do cuidar, de distintos modos: como atos de aes individuais e coletivas e como abordagens clnicas e sanitrias da problemtica da sade; conjugam todos os saberes e prticas implicados com a construo dos atos cuidadores e conformam os modelos de ateno sade. Sabemos, por experincias como profissionais e consumidores, que, quanto maior a composio das caixas de ferramentas (aqui entendida como o conjunto de saberes que se dispe para a ao de produo dos atos de sade) utilizadas para a conformao do cuidado pelos trabalhadores de sade, individualmente ou em equipes, maior ser a possibilidade de se compreender o problema de sade enfrentado e maior a capacidade de enfrent-lo de modo adequado, tanto para o usurio do servio quanto para a prpria composio dos processos de trabalho. Entretanto, a vida real dos servios de sade tem mostrado que, conforme os modelos de ateno que so adotados, nem sempre a produo do cuidado em sade est comprometida efetivamente com a cura e a promoo. As duras experincias vividas pelos usurios e trabalhadores de sade mostram isso cotidianamente, em nosso pas. Creio que poder pensar modelagens dos processos de trabalho em sade, em qualquer tipo de servio, que consigam combinar a produo de atos cuidadores de maneira eficaz com conquistas dos

resultados, cura, promoo e proteo, um n crtico fundamental a ser trabalhado pelo conjunto dos gestores e trabalhadores dos estabelecimentos de sade. Poder explorar essa tenso prpria da produo de atos de sade, a de ser atos cuidadores, mas no obrigatoriamente curadores e promotores da sade, uma problemtica da gesto dos processos produtivos em sade. De uma maneira geral, entendo que todos os processos atuais de produo da sade vivem algumas tenses bsicas e prprias dos atos produtivos em sade e que esto presentes no interior de qualquer modelo predominante. Dentre estas, destaco as tenses entre:

a lgica da produo de atos de sade como procedimentos e a da produo dos procedimentos enquanto cuidado, como, por exemplo, a tenso nos modelos mdicos centrados em procedimentos, sem compromissos com a produo da cura; a lgica da produo dos atos de sade como resultado das aes de distintos tipos de trabalhadores para a produo e o gerenciamento do cuidado e as intervenes mais restritas e, exclusivamente, presas s competncias especficas de alguns deles, como, por exemplo, as aes de sade centradas no enfermeiro ou no mdico, sem ao integralizada e unificada em torno do usurio, ou a clnica restrita do mdico e centrada no procedimento em exerccios clnicos de todos os trabalhadores de sade.

Para facilitar a compreenso dessas questes e mesmo o entendimento de que, partindo dessas tenses, possvel pensar alternativas para os modelos ineficientes e ineficazes, que, muitas vezes, operam nos servios, irei colocar adiante trechos de textos j produzidos, que permitem refletir e traduzir os temas destacados acima.

A dimenso cuidadora da produo em sade e a tenso procedimento cuidado na produo dos modelos de ateno1A situao mais comum, hoje em dia, lermos sobre a existncia de uma crise no atual modo de organizao do sistema de sade, porm, quando so catalogadas causas ou solues, vemos como essa constatao e mesmo a discusso em torno dela no to simples. Entretanto, se olharmos do ponto de vista do usurio do sistema, podemos dizer que o conjunto dos servios de sade, pblicos ou privados, com raras excees, no adequado para resolver os seus problemas de sade, tanto no plano individual quanto no coletivo. Uma pequena olhada nas reportagens da grande imprensa mostra que o tema sade muito lembrado pelos brasileiros como uma das questes mais fundamentais da sua vida, ao mesmo tempo que tambm podemos registrar que na rea de prestao de servios que o cidado se sente mais desprotegido. O paradoxal dessa histria toda que no so raros os estudos e reportagens que mostram os avanos cientficos tanto em termos de conhecimentos quanto de solues em torno dos problemas que afetam a sade das pessoas e das comunidades, e a existncia de servios altamente equipados para suas intervenes, o que nos estimula a perguntar, ento, que crise essa que no encontra sua base de

sustentao na falta de conhecimentos tecnolgicos sobre os principais problemas de sade, ou mesmo na possibilidade material de se atuar diante do problema apresentado. Ao ficarmos atentos, do ponto de vista do usurio, para as queixas que estes tm em relao aos servios de sade, podemos entender um pouco essa situao. E, desde j, achamos que esse ponto de vista no necessariamente coincidente com os dos governantes ou dirigentes dos servios, tanto os pblicos quanto os privados, que, como regra, falam da crise do setor, privilegiadamente do ngulo financeiro, tentando mostrar que no possvel se oferecer boa assistncia com o que se tem de recursos alis, argumento mundialmente usado, tanto em pases como o EEUU, que gasta 1 trilho de dlares no setor sade, quanto no Brasil, que deve gastar em torno de 35 bilhes no total. Voltando ao ponto de vista do usurio, podemos dizer que, em geral, este reclama no da falta de conhecimento tecnolgico no seu atendimento, mas sim da falta de interesse e de responsabilizao dos diferentes servios em torno de si e do seu problema. Os usurios, como regra, sentem-se inseguros, desinformados, desamparados, desprotegidos, desrespeitados, desprezados. Ora, que tipo de crise tecnolgica e assistencial essa? Ser que ela atinge s um tipo especfico de abordagem dos problemas de sade, como a expressa pelo trabalho mdico, ou uma caracterstica global do setor? possvel, a partir dessa crise diagnosticada em torno do usurio, propor um modo diferente de se produzir aes de sade? frente, tentaremos mostrar como essa questo est colocada para os processos de trabalho em sade. Imaginemos, em primeiro lugar, que o conjunto dos trabalhos em sade produzem um produto, os atos de sade, e que estes so considerados como capazes de intervir no mundo do que denominado de problema de sade, provocando uma alterao do mesmo em torno da produo de um resultado: a satisfao de uma necessidade/direito do usurio final. Supomos que este processo permita a produo da sade, o que no necessariamente verdadeiro, pois nem sempre esse processo produtivo impacta ganhos dos graus de autonomia no modo do usurio andar na sua vida, que o que entendemos como sade em ltima instncia, pois aquele processo de produo de atos de sade pode simplesmente ser procedimento centrada e no usuria centrada, e a finalidade ltima pela qual ela se realiza se esgota na produo de um paciente operado e ponto final, ou em um paciente diagnosticado organicamente e ponto final, o que no estranho a ningum que usa servios de sade no Brasil. Ns, enquanto usurios, podemos ser operados, examinados, etc., sem que com isso tenhamos necessidades/direitos satisfeitos. Vejamos isto no desenho e textos adiante:

A viso, j muito comum, de que tecnologia uma mquina moderna, tem dificultado bastante a nossa compreenso de que, quando falamos em trabalho em sade no se est se referindo s ao conjunto das mquinas, que so usadas nas aes de interveno realizadas, por exemplo, sobre os pacientes. Ao olharmos com ateno os processos de trabalho realizados no conjunto das intervenes assistenciais, vamos ver que alm das vrias ferramentas-mquinas que usamos, como: raio-x, instrumentos para fazer exames de laboratrios, instrumentos para examinar o paciente, ou mesmo, fichrios para anotar dados do usurio , mobilizamos intensamente conhecimentos sobre a forma de saberes profissionais, bem estruturados, como a clnica do mdico, a clnica do dentista, o saber da enfermagem, do psiclogo, etc. O que nos permite dizer que h uma tecnologia menos dura do que os aparelhos e as ferramentas de trabalho e que est sempre presente nas atividades de sade, que denominamos de levedura. leve ao ser um saber que as pessoas adquiriram e est inscrita na sua forma de pensar os casos de sade e na maneira de organizar uma atuao sobre eles, mas dura na medida em que um saber-fazer bem estruturado, bem organizado, bem protocolado, normalizvel e normalizado. Entretanto, quando reparamos com maior ateno ainda, vamos ver que, alm dessas duas situaes tecnolgicas, h uma terceira, que denominamos de leve. Qualquer abordagem assistencial de um trabalhador de sade junto a um usurio-paciente produzse atravs de um trabalho vivo em ato, em um processo de relaes, isto , h um encontro entre duas pessoas, que atuam uma sobre a outra, no qual opera um jogo de expectativas e produes, criando-se intersubjetivamente alguns momentos interessantes, como os seguintes: momentos de falas, escutas e interpretaes, nos quais h a produo de uma acolhida ou no das intenes que essas pessoas colocam nesse encontro; momentos de cumplicidades, nos quais h a produo de uma responsabilizao em torno do problema que vai ser enfrentado; momentos de confiabilidade e esperana, nos quais se produzem relaes de vnculo e aceitao. Diante dessa complexa configurao tecnolgica do trabalho em sade, advogamos a noo de que s uma conformao adequada da relao entre os trs tipos que pode produzir qualidade no sistema, expressa, em termos de resultados, como: maior defesa possvel da vida do usurio, maior controle dos seus riscos de adoecer ou agravar seu problema e desenvolvimento de aes que permitam a produo de um maior grau de autonomia da relao do usurio no seu modo de estar no mundo.2

A dimenso cuidadora da produo em sade e a tenso dos ncleos de competncia profissional na produo dos modelos de ateno3Consideramos como vital (...) compreender que o conjunto dos trabalhadores de sade apresentam potenciais de intervenes nos processos de produo da sade e da doena, marcados pela relao entre seus ncleos de competncia especficos, associados dimenso de cuidador que qualquer profissional de sade detm, seja mdico, enfermeiro ou um (vigilante) da porta de um estabelecimento de sade. Cremos que uma das implicaes mais srias do atual modelo mdico hegemnico (...) a de diminuir muito essa dimenso (cuidadora) (...) do trabalho em sade, em particular do prprio mdico. H autores, que h muito vm advogando a noo de que a baixa incorporao do saber clnico no ato mdico vem comprometendo seriamente a eficcia dessa interveno, e, parodiando-os, podemos dizer que a

morte da ao cuidadora dos vrios profissionais de sade tem construdo modelos de ateno irresponsveis perante a vida dos cidados. Entendemos que os modelos de ateno comprometidos com a vida devem saber explorar positivamente as relaes entre as diferentes dimenses tecnolgicas que comportam o conjunto das aes de sade. Imaginamos que um profissional de sade, quando vai atuar, mobiliza ao mesmo tempo os seus saberes e modos de agir, definidos em primeiro lugar pela existncia de um saber muito especfico sobre o problema que vai enfrentar, sobre o qual se coloca em jogo um saber territorializado no seu campo profissional de ao, mas ambos cobertos por um territrio que marca a dimenso cuidadora sobre qualquer tipo de ao profissional. Com o esquema abaixo, tentaremos mostrar o que estamos dizendo:

Na produo de um ato de sade, coexistem os vrios ncleos, como o ncleo especfico definido pela interseco entre o problema concreto que se tem diante de si e o recorte profissional do problema. Por exemplo, diante de um indivduo que est desenvolvendo um quadro de tuberculose pulmonar, o recorte passa necessariamente pelo modo como o ncleo profissional mdico, ou da enfermagem, ou da assistncia social, entre outros, recorta esse problema concreto, portado pelo indivduo, e que so ncleos nos quais operam centralmente as tecnologias duras e leveduras. Mas, seja qual for a interseco produzida, haver sempre um outro ncleo operando a produo dos atos de sade, que o cuidador, no qual atuam os processos relacionais do campo das tecnologias leves, e que pertence a todos os trabalhadores em suas relaes interseoras com os usurios. Porm, como a conformao tecnolgica concreta, a ser operada pelos modelos de ateno, sempre um processo que representa aes instituintes de foras reais e socialmente interessadas em certos aspectos da realidade, dentro de uma maneira muito particular de valorizar o mundo para si, entendemos que o territrio tecnolgico, expresso nas trs dimenses apontadas acima, est nos servios concretos antes de tudo, produtos das disputas entre os vrios atores interessados nesse locus de ao social. Ento, podemos dizer que o modelo assistencial que opera hoje nos nossos servios centralmente organizado a partir dos especficos, dentro da tica hegemnica do modelo mdico neoliberal, e que subordina claramente a dimenso cuidadora a um papel irrelevante e complementar. Alm disso, podemos tambm afirmar que, nesse modelo assistencial, a ao dos outros profissionais de uma equipe de sade

so subjugadas a essa lgica dominante, tendo seus ncleos especficos e profissionais subsumidos lgica mdica, com o seu ncleo cuidador tambm empobrecido. Com isso, devemos entender que so foras sociais, que tm interesses e os disputam com as outras foras, que esto definindo as conformaes tecnolgicas. Isto , esses processos de definio do para que se organizam certos modos tecnolgicos de atuar em sade so sempre implicados social e politicamente, por agrupamentos de foras que tm interesses colocados no que se est produzindo no setor sade, impondo suas finalidades nesses processos de produo. Desse modo, o modelo mdico hegemnico (...) expressa um grupo de interesses sociais que desenham um certo modo tecnolgico de operar a produo do ato em sade, que empobrece uma certa dimenso desse ato em prol de outro, que expressaria melhor os interesses impostos para esse setor de produo de servios, na sociedade concreta onde o mesmo est se realizando. Vejamos o esquema abaixo4, desenhado a partir dos recortes que um mdico, uma enfermeira e uma assistente social fazem de um certo usurio de um servio, para, em seguida, analisarmos como sero os distintos recortes em diferentes tipos de estabelecimento e que tenses eles comportam, que nos permitem atuar na direo da mudana dos modelos de ateno sade, o que, a nosso ver, implica em reconstruir: o modo de se fazer a poltica de sade no servio; a maneira como o mesmo opera enquanto uma organizao; (o dia-a-dia) (...) dos processos de trabalho que efetivam um certo modo de produo dos atos de sade, desenhando os reais modelos de ateno.

Vamos entender o diagrama acima, analisando, inicialmente, uma penso protegida, experimentada por alguns servios que ousaram organizar alternativas para os manicmios psiquitricos, para depois usar do esquema explicativo para entender um hospital geral, na busca de possibilidades de intervenes que mudem os modos de produzir atos de sade. Em primeiro lugar, temos que entender qual misso esperada para uma penso protegida. E isso s pode ser resolvido ao perguntarmos sobre o modelo de ateno que se est querendo imprimir e o que se espera desse equipamento assistencial, pois cada tipo de modelo cria misses diferenciadas para estabelecimentos aparentemente semelhantes, que se traduzem em diretrizes operacionais bem definidas. Podemos tanto esperar de uma penso protegida que ela seja organizada de tal modo que os seus moradores no tenham mais crises agudas, quanto que seja organizada como um equipamento que deve viabilizar uma ampliao da socializao, com ganhos nos graus de autonomia para tocar a vida diria, e com um enriquecimento das redes de compromissos de seus moradores com um mundo no-protegido, extramuro das instituies mais fechadas. Do ponto de vista da nossa anlise, podemos dizer que um modelo que espera da penso protegida um papel vital para impedir crises impe, no dia-a-dia do funcionamento do estabelecimento, uma relao entre os ncleos que operam na produo dos atos de sade, uma articulao que possibilita um agir sobre a dimenso especfica do problema, a partir de certos recortes profissionais, efetivamente mais eficazes no manejo das crises, por exemplo, de usurios psicticos, e que favorece um jogo de potncias em direo a certos processos instituintes. Tendencialmente, pelo modo como operam as lgicas de poderes (polticos, tcnicos e administrativos) na sociedade contempornea, esses ncleos, vinculados s tecnologias duras e leveduras, encontram um processo favorvel para acabar se impondo sobre os outros ncleos, favorecendo um processo de dominao psiquitrica diante dos outros recortes profissionais. E o interessante a observar que isso ocorre mesmo que no haja comprovao de que esse processo de conformao tecnolgica ir ou no obter bons resultados, pois essa imposio de misso e de desenhos tecnolgicos dada pelos interesses sociais que, no momento, so mais poderosos e considerados legtimos. Superar essa conformao exige operar com alguns dispositivos que possibilitam redefinir os espaos de relaes entre os vrios atores envolvidos nesses processos, alterando as misses do estabelecimento, ampliando os modos de produzir os atos em sade, sem perder as eficcias de interveno dos distintos ncleos de ao. Deve-se apontar para um modo de articular e contaminar o ncleo mais estruturado, o especfico, pelo ncleo mais em ato, o cuidador, publicizando esse processo no interior de uma equipe de trabalhadores. Entretanto, diante de uma misso j a priori distinta, esse processo se impe como que mais naturalmente. o que ocorre se o que se espera da penso a segunda alternativa, ou seja, viabilizar uma ampliao da socializao, com ganhos nos graus de autonomia para tocar a vida diria, e com um enriquecimento das redes de compromissos de seus moradores com um mundo no-protegido. Nesse caso, vemos que o ncleo cuidador o que dever se impor, o que favorecer, inclusive, a diminuio das relaes de dominao que se estabelecem entre os vrios profissionais, como representantes de certos interesses e modos de oper-los no interior dos modelos de ateno. E, mais ainda, pode-se abrir, a partir desse ncleo em comum, o cuidador, um espao semelhante e equivalente de trabalho na equipe, que explore a cooperao entre os diferentes saberes e o partilhamento decisrio.

Devemos ficar atentos, ento, nesse tipo de processo, a pelo menos duas questes bsicas: a de que todo profissional de sade, independente do papel que desempenha como produtor de atos de sade sempre um operador do cuidado, isto , sempre atua clinicamente, e, como tal, deveria ser capacitado, pelo menos, para atuar no terreno especfico das tecnologias leves, modos de produzir acolhimento, responsabilizaes e vnculos; e, ao ser identificado como o responsvel pelo projeto teraputico, estar sempre sendo um operador do cuidado, ao mesmo tempo que um administrador das relaes com os vrios ncleos de saberes profissionais que atuam nessa interveno, ocupando um papel de mediador na gesto dos processos multiprofissionais e disciplinares que permitem agir em sade diante do caso concreto apresentado, o que nos obriga a pens-lo como um agente institucional que tenha que ter poder burocrtico e administrativo na organizao. Vive, desse modo, a tenso de fazer esse papel sempre em um sentido duo: como um clnico, por travar relaes interseoras com o usurio, produtoras de processos de acolhimento,

responsabilizaes e vnculos, e como um gerente do processo de cuidar atravs da administrao de toda uma rede necessria para a realizao do projeto teraputico, como procuramos expressar no diagrama abaixo:

Cremos, que um modelo em defesa da vida est mais baseado nessas possibilidades, mas isso no deve nos levar a desconhecer a importncia dos modos especficos de se produzir profissionalmente os atos em sade, pois o que temos que almejar essa nova possibilidade de explorar melhor esse territrio comum para ampliar a prpria clnica de cada territrio em particular, o que levar, sem dvida, a ampliar a prpria eficcia do ncleo especfico de ao. De posse dessas reflexes, se estivssemos analisando um outro estabelecimento que no uma penso protegida, mas um hospital geral de clnica, a nossa anlise seria semelhante, mas sofreria certos deslocamentos. Nesses estabelecimentos, espera-se, atualmente, em termos de misses, que os mesmos tenham compromisso com a garantia da eficcia dos ncleos especficos de interveno profissional, particularmente o mdico e o de enfermagem, s que isso feito hoje pelo domnio que o agir mdico impe

hegemonicamente para os outros recortes, e o que pior, dentro de um modelo de ao clnica do mdico empobrecedora ou mesmo anuladora do ncleo cuidador. Um modelo em defesa da vida, para um estabelecimento desse tipo, deveria pensar como ampliar a dimenso do ncleo cuidador e sua relao positiva, tanto para desencadear processos mais conjuntos e partilhados no interior da equipe quanto para melhorar a eficcia e adequabilidade da ao especfica com os processos usurios centrados, assumindo e reconhecendo que certas abordagens profissionais, em certas circunstncias, so, de fato, mais eficazes que outras. Mas, sem fazer disso uma lgica de poder na qual uma profisso se imponha sobre as outras. Esse modelo deve tambm estar atento aos processos organizacionais, que, nessas novas articulaes do ncleo cuidador, possibilitam ampliar os espaos de ao em comum e mesmo a cooperao entre os profissionais, levando a um enriquecimento do conjunto das intervenes em sade, tornando-as mais pblicas e comprometidas com os interesses dos usurios acima de tudo e mais transparentes para processos de avaliaes coletivas. Cremos que s a criao institucional da responsabilizao dos profissionais e das equipes por esses atos cuidadores que poder redesenhar o modo de trabalhar em servios de sade como um todo, atravs, por exemplo, de dispositivos como a amarrao referencial entre equipes e usurios, por processos teraputicos individuais. Creio que a melhor maneira de se aproveitar o que j foi dito sobre a produo do cuidado em sade e as possibilidades de pens-lo na direo de atos comprometidos com as necessidades do usurio procurar analisar experincias que tm ambicionado esse resultado. Antes disso, chamo a ateno para trs questes bsicas que at agora se mostraram vitais neste texto:

uma diz respeito ao fato de que um dos pontos nevrlgicos dos sistemas de sade localiza-se na micropoltica dos processos de trabalho, no terreno da conformao tecnolgica da produo dos atos de sade, nos tipos de profissionais que os praticam, nos saberes que incorporam e no modo como representam o processo sade e doena; a outra faz referncia aos processos gerenciais necessrios para operar o gerenciamento do cuidado e o modo como os interesses do usurio, corporativos e organizacionais atuam no seu interior; e, por ltimo, a composio da caixa de ferramentas necessrias para que os gestores dos servios de sade consigam atuar sobre esse terreno to singular, gerindo estabelecimentos e sistemas de sade com ferramentas governamentais complexas para atuar nos terrenos poltico, organizacional e produtivo (uma coletnea s sobre esse tema est sendo produzida, tendo como pano de fundo a discusso sobre se o conhecimento ou no ferramenta para a gesto).

Alm disso, parece-me que um grande desafio dos que se preocupam com os processos de gerenciamento do cuidado em sade, no interior dos estabelecimentos, procurar a combinao tima entre eficincia das aes e a produo de resultados usurios centrados, isto , procurar a produo do melhor cuidado em sade, aqui considerado como o que resulta em cura, promoo e proteo da sade individual e coletiva. S que, para isso, h que se conseguir uma combinao tima entre a capacidade de se produzir procedimentos com a de produzir o cuidado.

Considero, como desafio, ter que pensar sobre o matriciamento necessrio no dia-a-dia dos servios de sade, entre os processos produtivos transdisciplinares e multireferenciados , tanto os que resultam em procedimentos bem definidos, quanto os que esto implicados com os atos cuidadores, de tal maneira que os gestores dos atos cuidadores sejam os responsveis, perante o usurio e o estabelecimento de sade, pela realizao das finalidades da produo do cuidado. Gerencialmente, possvel matriciar toda a organizao de sade conforme o desenho abaixo, procurando construir a figura do gestor do cuidado, que poder ou no ser um mdico, mas que sempre ser um cuidador. Mesmo quem atua como trabalhador de uma unidade de produo, pelo domnio que tem de uma certa competncia especfica, pode ser um cuidador de certos usurios, passando a responder pela produo do PTI (projeto teraputico individual), usurio centrado, perante o estabelecimento, mas, quando ligado a uma unidade de produo de procedimento bem definida, responde pelo produto que essa unidade tem como sua identidade ao gestor do cuidado. Este aquele que o servio toma como seu referencial para a produo dos resultados principais do estabelecimento. No quadro adiante, esboo um pouco dessa idia para contribuir com a reflexo proposta, at agora.

Adiante, seguem algumas perguntas que iro exigir certas reflexes em torno da discusso em pauta e de suas contribuies para pensar o ensino em sade e, depois, ainda h mais um texto de apoio, como bibliografia auxiliar.

Perguntas para reflexo Como imaginar a formao de um profissional que consiga ter competncia especfica para produzir os procedimentos atinentes ao seu campo de ao e, ao mesmo tempo, se constituir como um cuidador comprometido com a cura, a promoo e a proteo da sade no plano individual e coletivo?

Qual o significado da aposta: formar um mdico que seja, ao mesmo tempo, um cuidador competente (em qualquer situao de interveno em sade) e domine um territrio especfico desse campo de interveno? Qual seria a composio da sua caixa de ferramentas, que saberes tecnolgicos e prticas tcnicas fazem parte dessa caixa? Como os docentes das escolas deveriam atuar? Seria possvel ser um docente desse projeto sendo s um excelente produtor de procedimentos, dominador de um territrio especfico? Mas, ao mesmo tempo, como imaginar que algum que tenha que estar voltado para a produo de um produto bem definido, como um laudo de imagem ou mesmo como uma cirurgia bem realizada, seja um cuidador por excelncia, sabendo atuar em equipe? Como preservar os ganhos em eficcia das aes especializadas com a necessidade de uma rede de servios cuidadora e resolutiva no plano individual e coletivo? Qual profissional mdico a escola mdica se compromete a produzir nos seus seis anos de ensino? E que lugar os docentes ocupam nesse processo? Ser que a escola no deveria ser um lugar de prticas onde haveria o permanente encontro de processos cuidadores, que envolvessem docentes e alunos, com processos produtores de procedimentos especficos? Ensino tutorial teria alguma resposta para isso? Seria suficiente ou o modelo de ateno a sade da escola fundamental? possvel imaginar uma escola mdica comprometida centralmente com um modelo usurio centrado, integral e cuidador, amarrado defesa da vida individual e coletiva?

Um ensaio sobre a micropoltica do trabalho vivo: pensando sobre as lgicas do trabalho em sade 5Em sade, antes de tudo, se produz bens relaes, produtos de processos interseores Para realizarmos a nossa reflexo, vamos partir do conceito de interseores que estaremos usando com sentidos semelhantes ao de Deleuze no livro Conversaes, que, com esse termo, pretende figurar a interseco que ele e Guattari constituram na produo do livro Anti-Edipo, procurando passar a idia de que essa juno no foi uma simples somatria de um com o outro e, muito menos, que aquele livro foi um produto de quatro mos, mas sim o resultado de um processo singular, constitudo pelo encontro dos dois em um nico momento. O uso desse termo , portanto, para designar o espao de relao que se produz no encontro de sujeitos, isto , nas suas interseces, e que um produto que existe para os dois em ato, no tendo existncia sem esse momento em processo, e no qual os inter se colocam como instituintes em busca de um processo de instituio muito prprio, desse sujeito coletivo novo que se formou. De posse dessa idia, estamos querendo dizer tambm que, quando um trabalhador de sade encontra-se com um usurio no interior de um processo de trabalho, estabelece-se entre eles um espao interseor que sempre existir nos seus encontros, mas s nos seus encontros e em ato. A imagem desse espao semelhante ao da construo de um espao comum de interseco entre dois conjuntos, ressalvando que esse espao no existe s nessa situao e nem s na sade, pois, tanto a relao entre dois trabalhadores inseridos em um mesmo processo de trabalho interseora, quanto em outros processos de trabalho, que no s o da sade, tambm h os processos interseores.

Desse modo, alm de reconhecer a existncia desse processo singular, fundamental, em uma anlise dos processos de trabalho, se tentar descobrir o tipo de interseco que se constitui e os distintos motivos que operam no seu interior. Vejamos isso de um modo esquemtico, para que depois possamos tirar conseqncias analticas desse entendimento. a) Os esquemas mais comuns em processos de trabalho como o da sade, que realizam atos imediatamente de assistncia com o usurio, apresentam-se como o do diagrama abaixo, que chamamos de uma interseco partilhada:

b) Os que se constituem nos casos mais tpicos de processos de trabalho, como o de um marceneiro que produz uma cadeira, mostram que o usurio externo ao processo, pois o momento interseor se d com a madeira, que plenamente contida pelo espao do trabalhador, como uma interseco objetal:

Essa distino da constituio dos processos interseores mostra como a dinmica entre o produtor e o consumidor e os jogos entre necessidades ocorrem em espaos bem distintos, e, inclusive, como os possveis modelos de configurao dessa dinmica podem ser mais ou menos permeveis a essas caractersticas. Por exemplo, podemos dizer que nos modelos tecno-assistenciais predominantes hoje na sade, no Brasil, as relaes entre usurios de servios de sade e trabalhadores se produzem em espaos interseores preenchidos pela voz do trabalhador e pela mudez do usurio, como se o processo de relao trabalhador-usurio fosse mais do tipo da interseco objetal. Entretanto, como efetivamente a relao em sade a do tipo de interseo partilhada, com certeza esses tipos de modelo de assistncia realizam-se com intensas perdas quanto ao mtuo processo instituinte, contido no momento da produo e consumo de atos de sade. No jogo de necessidades que se coloca para o processo de trabalho, possvel ento pensarmos que:

1. No processo de trabalho em sade, h um encontro do agente produtor, com suas ferramentas (conhecimentos, equipamentos, tecnologias de um modo geral), com o agente consumidor, tornando-o em parte objeto da ao daquele produtor, mas sem que com isso deixe de ser tambm um agente que, em ato, coloca seus conhecimentos e representaes, inclusive expressos como um modo de sentir e elaborar necessidades de sade, para o momento do trabalho. 2. No seu interior, h uma busca de realizao de um produto/finalidade, expresso de distintos modos por esses agentes, que podem at mesmo coincidirem.

O que, de uma certa forma, mostra que a anlise do processo interseor que se efetiva no cotidiano desses encontros pode nos revelar a maneira como esses agentes se colocam enquanto

portadores/elaboradores de necessidades no interior desse processo de interseco partilhada. Os agentes produtores e consumidores so portadores de necessidades macro e

micropoliticamente constitudas, bem como so instituidores de necessidades singulares que atravessam o modelo institudo no jogo do trabalho vivo e morto ao qual esto vinculados. A conformao das necessidades, portanto, d-se em processos sociais e histricos definidos pelos agentes em ato, como positividades, e no exclusivamente como carncias, determinadas de fora para dentro. Aqui, no interessa o julgamento de valor acerca de qual necessidade mais legtima que outra, esse um posicionamento necessrio para a ao, mas no pode ser um a priori para a anlise, porque o importante percebermos que todo o processo de trabalho e de interseco atravessado por distintas lgicas que se apresentam para o processo em ato como necessidades, que disputam como foras instituintes suas instituies. Assim, a presena de uma linha de fora mdico-hegemnica que venha positivamente, atravs de um determinado (e no de qualquer um) trabalho mdico, atua como instituinte pela ao efetiva de um determinado agente que seu constituidor no processo de trabalho, em ato. Do mesmo modo, uma outra linha de fora que venha pelo consumidor, como a busca de um ato que lhe permita restituir sua autonomia no seu modo de andar a vida, atua tambm como instituinte pela ao positiva do usurio no espao interseor partilhvel. O espao interseor assim um lugar que revela essa disputa das distintas foras instituintes como necessidades e o modo como socialmente um dado processo institudo as captura ou invadido pelas mesmas. Isso um tema para ser entendido pela discusso sobre a relao entre modelos de ateno e a construo dos espaos interseores. A caixa-preta do jogo de necessidades, que ocorre entre o produtor e o consumidor, abre-se e pode revelar as possibilidades de interveno dos distintos modelos de gesto do trabalho em sade e seus compromissos. Mas, fica registrado que, se o trabalho em sade, o espao interseor ser sempre partilhado, mesmo que o modelo que se institua seja o de seu abafamento, porm os instituintes em ato estaro sempre gerando rudos no seu interior. Esses so os casos dos desencontros que os usurios relatam quando falam da falta de acolhimento e de responsabilizao que vivenciam atualmente nas suas relaes trabalho em sade/consumo.

Os espaos interseores na sade, as vozes e as escutasDentro dessa compreenso sobre a constituio do espao interseor no processo de trabalho em sade, possvel introduzirmos uma discusso da possibilidade de identificarmos situaes de rudo no cotidiano dos servios de sade, com a finalidade de se analisar a prpria dinmica daquele processo, idealizando possveis intervenes que permitam alterar a direcionalidade das aes em sade, no prprio ato do processo de trabalho. Essa idia de rudo vem da imagem de que, cotidianamente, as relaes entre os agentes institucionais ocorre no interior de processos silenciosos at o momento que a lgica funcional, predominante e instituda seja rompida. Porm, esse rompimento normalmente percebido como uma disfuno, como um desvio do normal, que deveria ocorrer. Com rudo, queremos introduzir a noo, baseado em Fernando Flores , de que a quebra do silncio do cotidiano pode e deve ser percebida como a presena de processos instituintes que no esto sendo contemplados pelo modelo de organizao e gesto do equipamento institucional em foco, mostrando os distintos possveis caminhar dos processos de aes dos agentes envolvidos e, portanto, abrindo possibilidades de interrogaes sobre o modo institudo como se opera o trabalho e o sentido de suas aes naquele equipamento. A possibilidade de escutar os rudos do cotidiano institucional parte de ferramentas analisadoras dos processos institucionais e pode permitir a reconstruo de novos modos de gerir e operar o trabalho em sade. Permite interrogar sobre a captura do trabalho vivo e sobre a constituio do processo interseor. nesse sentido que gostaramos de explorar tal caminho pelo lado da constituio do espao interseor como lugar de vozes e de escutas, isto , como o lugar que revela, no interior do processo de trabalho em sade, o encontro de dois instituintes que querem falar e serem escutados em suas necessidades-demandas. Os construtores de um dado espao interseor atuam instituintemente e, se um dado modelo tecnoassistencial como aquele que procura construir esse processo interseor partilhado como um processo objetal (veja o que foi falado mais atrs) no permite a plena expresso de um de seus partcipes, este no some, no apaga a sua presena desse espao, mas age ocultamente em relao possibilidade de sua no explicitao. Quando, em um dado servio de sade, h o encontro de um usurio com um trabalhador de sade qualquer um deles ou mesmo um usurio coletivo forma-se um jogo de necessidades no qual o usurio coloca, pelo menos, a sua perspectiva de que naquele processo de consumir atos de sade (ou pelo menos o que ele entende por isso) vai haver um ganho seu em termos de controlar problemas que identifica como necessidades de sade e para os quais aquele momento parece construir um caminho de soluo. Mas soluo para o qu? Para vrias coisas. Para aplacar aquilo que considera como um sofrimento, tanto quanto para possibilitar que o seu organismo possa estar bem funcionalmente para continuar caminhando na sua vida. Isto , associa aquele processo como uma possibilidade de retornar a um certo estado de exerccio de sua autonomia no seu modo de andar a sua vida. No muito estranhamente, o trabalhador de sade identifica aquele encontro tambm como o lugar de realizar solues para vrias questes. Mas quais? Depende dos interesses que o modelo de organizao do trabalho em sade explicita. Depende do modo como socialmente as distintas necessidades6

do processo de trabalho em sade so capturadas pelo modelo tecno-assistencial. Depende do universo ideolgico do prprio trabalhador. Assim, se for uma captura comprometida com um modelo mdico hegemnico vinculado medicina tecnolgica, que coloca a produo de procedimentos como o principal produto a realizar a finalidade do trabalho em sade pelo lado do trabalhador de sade, a linha de fora representada pelos usurios ser anulada por um processo de no escuta de sua atuao e pela imposio, no espao interseor, da voz nica desse modelo no qual o usurio ser s um objeto a viabilizar a ao de produo de procedimentos. Ora, mesmo que isso ocorra, o usurio no deixar de estar ali e de continuar desejando o que ele queria daquele momento. E se isso no for viabilizado na produo dos atos pelo trabalhador de sade, ele sai dali e vai atrs de outro processo de consumo que lhe possa trazer a idia de satisfao e de produto/resultado realizado. Em parte, o usurio ser conformado pelo processo de produo, mas, na testagem que a vida lhe coloca no seu caminhar, em parte esse processo no consegue cont-lo plenamente (veja a imagem do interseor partilhado e a do objetal). Essa situao se apresenta como um processo gerador de rudos que podem ser gerencialmente escutados pelos trabalhadores de sade, ou mesmo pelos usurios. Para tanto, podemos fazer perguntas para o modo como no espao interseor se concretiza a produo de processos tpicos desse espao enquanto um lugar de efetivao de aes suportadas por um universo de tecnologias leves, de tecnologias de relaes que se concretizam com a produo de produtos simblicos, bsicos para operar esse tipo de processo de trabalho. Destacamos como produtos desse tipo, semelhana do jogo transferencial nos processos psicanalticos, o acolhimento e o vnculo que so construdos nesse espao em ato, permanentemente. E estamos indicando que a pergunta sobre os mesmos pode mostrar como se d a construo de um dado modelo tecno-assistencial do ponto de vista do jogo instituinte das necessidades entre o trabalhador e o usurio. Revelando a situao vital ocupada pelo trabalho vivo em ato no interior do processo de trabalho em sade e evidenciando como no interior dos processos cotidianos dos servios se produzem as vozes, as escutas e os silncios entre os trabalhadores e os usurios, expressos em formas definidas nos modelos de ateno construdos no interior dos equipamentos de sade. Desse modo, a busca a de colocar sob interrogao o encontro trabalhador-usurio como um poderoso processo revelador das distintas lgicas que operam no interior dos modos como se trabalha em sade, o que permite perceber distintas linhas de fuga que podem abrir esse processo a novos significados tico-polticos e operativos. Com essas interrogaes, pode-se procurar colocar em cheque a natureza pblica e privada desse encontro, os processos de captura a que o trabalho vivo est subordinado e os tipos de interesses que predominam nesse espao, os ocultamentos e abafamentos. Criar ferramentas para um olhar analisador, nesse sentido, ento, conseguir operar no interior dessas prprias lgicas e torn-las ruidosas, e assim temas pblicos para o coletivo/equipe de sade, inclusive nas suas relaes com os usurios. Nesse sentido, entendemos que h dispositivos naturais desse processo descolados da prpria tecnologia leve que opera nesses espaos interseores, como, por exemplo, o acolhimento, que tem um grande poder de gerar rudos por expor mais claramente a razo tico-poltica, e no s instrumental, que opera no seu interior. Entretanto, podemos tambm criar dispositivos artificiais que possam interrogar

esses processos instituintes e institudos; alguns experimentos dos quais temos participado tm mostrado uma certa eficcia interessante no repensar o trabalho em sade. Nesse particular, temos trabalhado com a construo de ferramentas, como, por exemplo, fluxogramas e redes de peties e compromissos, analisadoras desses encontros singulares.

Dos rudos do cotidiano a novos modos de gerir e trabalhar em sade algumas ferramentas que armam os olhares analisadoresCom a compreenso dessas questes, no fica difcil entender a possibilidade de se criar analisadores institucionais sobre o espao interseor em sade, que permitam interrogar o modo como o trabalho vivo opera com essa tecnologia leve das relaes e como produz esses produtos da interseco, que consideramos como bens relaes fundamentais em sade; e que tambm permitem analisar o modo como o processo de gesto do trabalho se realiza apropriando-se do espao institucional da gesto organizacional, inclusive expondo a dinmica da relao de apropriao pblica ou privada desse processo. Atravs da interrogao que podemos realizar sobre o processo de trabalho do ponto de vista, por exemplo, do acolhimento, podemos demonstrar a potencialidade desse caminho para repensar o processo de trabalho em sade e da abertura que permite para se olhar o modo como os modelos de ateno capturam o trabalho vivo em ato; potencialidade que se expe nas distintas possibilidades de linhas de fuga que podem se constituir no interior do processo produtivo e gerencial. Vale a pena, antes, falar um pouco sobre o que pode significar a perspectiva de operar em um terreno que pretende criar ferramentas para intervir em processos institucionais. Parece-nos que isso no deva ser muito prximo ao modo como se atua em processos produtivos, mais diretamente vinculados realizao de um produto material explcito e bem definido; alm de ter algumas implicaes distintas sobre a compreenso do que deva ser entendimento sob a tica de saber tecnolgico. Como j dissemos em vrios outros momentos, tecnologia no confundida aqui com instrumento (equipamento) tecnolgico e nem valorizada como algo necessariamente positivo, pois damos a esse termo uma imagem dos saberes que permitem, em um processo de trabalho especfico, operar sobre recursos na realizao de finalidades perseguidas e postas para esse processo produtivo. Desse modo, uma mquina como um computador no seria em si uma tecnologia, mas um equipamento tecnolgico, expresso de uma tecnologia, que se apresenta para ns como saberes que buscam na mquina-computador uma ferramenta que possibilita operar com processamentos rpidos e massivos de dados, por exemplo. A tecnologia seria ento o saber ou saberes que permitiram constru-la e que esto comprometidos com a realizao de determinadas finalidades previamente colocadas para os processos de trabalhos que lhe so pertinentes. Por isso, tratamos a clnica e a epidemiologia como saberes tecnolgicos, por serem saberes que so produzidos de modo compromissado, com a realizao de intervenes produtivas do trabalho humano sobre os processos da vida, como a sade e a doena. E que esto, desse modo, imediatamente implicados com processos de interveno. So distintos, nessa dimenso, em relao a outros saberes que no tenham essa implicao imediata. Entretanto, isso no lhes retira a possibilidade de estarem tambm produzindo conhecimento sobre a realidade, de modo no imediatamente comprometido com a ao operatria. Um saber tecnolgico opera

em uma dobra na qual, de um lado, expressa seu compromisso com a razo instrumental, e, de outro, com a razo terica. Devendo, como tal, estar aberto s leituras de seus pressupostos de construo, de suas intencionalidades e finalidades, em ambas as dimenses. De um lado reverso, um saber que se proponha a ser conhecimento cientfico mais do que tecnolgico tambm nos apresenta essa dobra de revelar o mundo e de permitir uma ao sobre o mesmo. Mas, aqui estamos operando com saberes que tm uma distino importante a considerar, desde que, como um saber tecnolgico, est imediatamente referido e concretizado em processos de trabalhos bem definidos, que expem diretamente suas intencionalidades. Entretanto, tudo indica que, quando estamos diante de uma tecnologia do tipo leve (como o acolhimento), a situao um pouco distinta de quando estamos perante uma tecnologia do tipo dura (como o realizar uma conduta totalmente normalizada ou mesmo o processo incorporador de mquinasferramentas), e isso nos coloca que, no operar das leves, como a prpria clnica ou os processos das tecnologias das relaes (como o caso do acolhimento ou do vnculo), o processo operatrio bem mais aberto ao fazer do trabalho vivo em ato. O que tambm permite-nos redefinir o conceito que temos de recursos escassos, pois tecnologia leve nunca escassa, ela sempre em processo, em produo (aqui h que rever a noo cara s polticas de sade pblica, que operam com o conceito de escassez permanente e prioridade focal excludente). Por isso, procurar ferramentas para operar sobre relaes institucionais uma tarefa um pouco mais rdua do que estar tratando de um processo bem definido e normatizado, pois vem impregnada de uma quase igual importncia, tanto do seu lado de instrumentalizar a ao humana de intervir na realidade como em um processo de trabalho, quanto do seu lado de estar revelando o mundo e seus sentidos e significados para os operadores/interventores. Pois estamos diante de uma situao muito parecida com a dinmica do trabalho vivo na sade, que nos coloca perante uma realidade operatria que sempre um em processo, um dando, no qual os homens so, ao mesmo tempo, operadores, sujeitos e objetos dos trabalhos-intervenes. A perspectiva de construir analisadores ruidosos para compreender processos de trabalho em sade marcada pela idia, pouco positiva, de criar dispositivos que tenham o compromisso com a abertura de linhas de fuga em processos institudos, mais do que com a produo de receitas sobre como construir o trabalho de sade correto e certo. A criao desses dispositivos no obedece a um processo aleatrio qualquer, pois, como j dissemos, os mesmos esto marcados pelas distintas lgicas instituintes que operam no interior dos processos de trabalho em sade. Assim, tomar os processos instituintes que operam no interior dos espaos interseores e tentar operar com ferramentas-dispositivos que abrem essas presenas lgicas uma perspectiva vital para criar olhares analisadores ruidosos sobre o modo como se constituem as prticas de sade, suas tecnologias e direcionalidade e seus modelos de gesto. Em algumas experincias em servios que vivenciamos, estivemos diante de uma situao problema que mostrava que um determinado grupo populacional crianas desnutridas s tinham acesso aos servios da rede bsica de sade quando estavam sem problema imediato, pois, sempre que apresentavam uma intercorrncia, eram recusadas (nunca tinha vaga, filas enormes para chegarem recepo, etc.) e acabavam sendo atendidas em um pronto-atendimento qualquer, sem o mnimo compromisso mdico-sanitrio e sem capacidade resolutiva.

Diante de uma situao desse tipo, consideramos como fundamental colocar o conjunto dos trabalhadores das unidades de sade em situao e produzindo um certo conhecimento sobre o seu cotidiano, sobre o seu modo de trabalhar, para que, a partir de ento, interrogassem o seu cotidiano e pensassem sobre a situao problema. Trabalhamos intensamente uma ferramenta analisadora, o fluxograma analisador7, e fizemos coletivamente uma anlise dos processos de acolhimento que permeavam o modelo de ateno em pauta. Acolhimento que, inclusive, adquiriu nas discusses uma dupla dimenso, pois, se de um lado era uma etapa do conjunto do processo de trabalho realizado em servios concretos, em particular no momento da recepo desses servios, que estabelecia o modo como o servio fazia o seu primeiro contato com a sua clientela, em um processo mtuo de reconhecimento em que o usurio se reconhecia como cliente daquele servio e o servio o reconhecia como um usurio com direitos em relao aos servios realizados criando suas barreiras e mecanismos de acesso; por outro lado, era tambm uma tecnologia leve do processo interseor do trabalho em sade, que ocorria em todos os lugares em que se constituam os encontros trabalhadores-usurios. Nessas experincias, vivenciamos um processo coletivo diretamente comprometido com a busca de ferramentas tecnolgicas que procuravam mostrar, com mais clareza, o nosso papel de construtor e/ou fazedor de processos analisadores, que permitissem colocar em questo o espao da gesto do processo de trabalho, lugar privilegiado de realizao do trabalho vivo em ato, junto ao conjunto do processo de trabalho em si. Com isso, conseguimos criar modos de operar no interior do processo de trabalho, nas unidades de sade, no espao dos autogovernos, situaes interrogadoras da forma como opera o espao da gesto (onde se decide a partir de pressupostos tico-polticos, que se refletem em lemas e misses, onde se intervm de modo pblico e/ou privado, com compromissos de responsabilizaes mais ou menos aderidas aos usurios, etc.). Alm disso, colocou-se em cheque tanto o modo como se desdobravam as realizaes de um trabalho em ato com um outro trabalho em ato, cristalizados nos processos interseores desses trabalhos como construo conjunta trabalhador-trabalhador; quanto aqueles cristalizados pela relao trabalhadorusurio, expressos nas prticas produtoras do acolhimento e do vnculo/responsabilizao. Permitindo, assim, analisar o quanto os trabalhadores esto efetivamente compromissados, ou no, com os processos de autonomizao do usurio no seu modo de andar a vida e com as aes de defesa da vida individual e coletiva. Essa busca de ferramentas disparadoras desses processos de interrogao sobre o trabalho vivo em ato, que podem abri-lo para novos modos instituintes, e a possibilidade de seu compartilhamento pblico no interior dos coletivos de trabalhadores foi o grande desafio desses trabalhos experimentados em servios. No que toca em particular relao de interseco de um trabalho em ato com outro em ato (trabalhador-trabalhador), operamos com uma ferramenta analisadora distinta do fluxograma e que a rede de petio e compromisso, o que permitiu abrir a caixa-preta das relaes micropolticas institucionais, reveladora dos tipos efetivos de contratos de relaes que os vrios agentes institucionais em cena realizam entre si, em um processo silencioso, muitos dos quais obedecendo a um padro do tipo pacto da mediocridade, no qual o usurio sai sempre como o grande prejudicado.

Essa rede pode ser organizada em qualquer situao na qual se identifique um certo jogo entre foras institucionais bem territorializadas, que realizam e cristalizam interesses de distintos tipos e que se organizam com linhas de foras que disputam as vrias lgicas que a instituio est expressando, explcita ou implicitamente. De um modo genrico, uma rede de petio e compromisso para a anlise do modelo de gesto do processo de trabalho e do equipamento institucional deve ordenar, para interrogar, uma rede de expectativas entre as unidades produtoras que atuam no interior de um equipamento institucional, governando recursos e fins. Esses processos expem, privilegiadamente, a dinmica de prestador consumidor intraequipamento, porm podemos tambm, com o mesmo, abrir o jogo de expectativas envolvido na relao entre o servio e o usurio final das prticas de sade, procurando problematizar as prprias disputas entre o que so necessidades do ponto de vista do modelo de ateno e do ponto de vista do usurio, abrindo uma reflexo sobre representaes sociais do sofrimento, como doena, e dos agravos, como problemas de sade, e o seu modo de incorporao pelos servios, para, em ltima instncia, perguntar: desse jeito que vale a pena trabalhar? isso mesmo que queremos produzir como resultados? Nesse sentido e para se ter a possibilidade de viabilizar as respostas s questes acima, o conjunto das ferramentas analisadoras deve ter a capacidade de instrumentalizar o conjunto dos trabalhadores, como gestores efetivos do processo de trabalho, em pelo menos trs campos de interrogaes sobre os modelos de ateno e os processos gerenciais:

a. Devem ter a capacidade e sensibilidade, como qualquer instrumento, para abrir a caixa-preta sobre o como se trabalha e, nesse sentido, revelar qualitativamente o modo de operar cotidianamente a construo de um certo modelo de ateno em servios concretos. b. Devem ter a capacidade e sensibilidade para revelar o que esse modo de trabalhar est produzindo e assim mostrar em que tipo de produtos e resultados se desemboca com esse modo de operar o cotidiano do trabalho em um dado servio. c. Devem tambm, pelo menos, ter a capacidade e sensibilidade de permitir a interrogao sobre o para que se est trabalhando, tentando revelar os interesses efetivos que se impem sobre a organizao e realizao cotidiana dos modelos de ateno nos diferentes servios; esse momento , privilegiadamente, uma interrogao sobre os princpios tico-polticos que comandam a existncia de um servio de sade.

ConclusoCom toda essa anlise e exemplificaes, estamos querendo demonstrar que as distintas experincias, que buscam a mudana efetiva do processo de trabalho em sade, tm necessidade de incorporar novas questes ao nvel dos processos micropolticos do trabalho em sade. Destacamos que as relaes macro e micropolticas na sade encontram-se nos espaos de gesto do processo de trabalho e das organizaes de sade e que as configuraes que adquirem passam necessariamente pela presena do trabalho vivo em ato. Destacamos, tambm, que mais do que questionar o que ocorre nos servios a partir de um modelo a priori de organizao do processo de trabalho em sade, que dispute com o j dado, o j institudo, devemos desenvolver a capacidade de criar interrogaes sobre o que est ocorrendo, abrindo

possibilidades do trabalhador coletivo inventar modos novos e singulares de realizar o trabalho em sade em situaes concretas. Procurando criar nos trabalhadores, atravs do uso de dispositivos interrogadores, a possibilidade de eles refletirem sobre duas questes-chave para a configurao de qualquer modelo de ateno preocupado centralmente com o usurio. Uma, que diz respeito ao modo como se usa privadamente com um compromisso com o coletivo de forma restritiva e com uma maneira de se responsabilizar e prestar contas do que se faz dentro de limites do tipo corporativo a capacidade e autonomia que todo trabalhador de sade tem de autogovernar o seu trabalho, por ser, como trabalhador em ao, o prprio trabalho vivo em ato. E, nesse sentido, podendo-se interrogar a essncia do modo como vem se instituindo a gesto do processo de trabalho, e a que interesses e intencionalidades ele obedece. E, outra, que coloca em dvida o sentido dos modelos institudos capturadores, seus contedos tecnolgicos e possibilidades, abrindo a chance de pensar sobre seus pressupostos tico-polticos e sobre os procedimentos eficazes na produo dos resultados pretendidos, com a captura que fazem do trabalho vivo em ato, abrindo dvidas quanto aos paradigmas perseguidos, permitindo interrogar mais sistematicamente os modelos que tm servido como predominantes e seus possveis limites no modo como o trabalho vivo vem se conformando no seu interior. Com essas descries, o que temos interrogado e levado a campo a relao entre o trabalho vivo em ato, que capturado por esses modelos, e a possibilidade de que o mesmo seja desterritorializado e (re)capturado para gerar o oposto, isto , um melhor equacionamento do uso dos meios e dos benefcios produzidos e uma diminuio da dependncia, gerando maior autonomia dos usurios nos seus modos de andar as suas vidas.

Notas1 O trecho destacado parte do A perda da dimenso cuidadora na produo da sade, de Emerson Elias Merhy, publicado no livro O SUS em Belo Horizonte pela editora Xam, em So Paulo, no ano de 1998. 2 Sobre tecnologias em sade, consultar o livro Agir em Sade, Hucitec, 1997, particularmente captulos 2 e 3. 3 O trecho destacado , tambm, parte do captulo A perda da dimenso cuidadora na produo da sade, de Emerson Elias Merhy, publicado no livro O SUS em Belo Horizonte pela editora Xam, em So Paulo, no ano de 1998. 4 Destacamos, como pontos de apoio para esse exerccio, as contribuies particulares das reflexes sugeridas pelo texto Notas sobre residncia e especialidade mdicas, de G.W.S. Campos, M. Chakkour e R. Santos, publicado nos Cadernos de Sade Pblica, Rio de Janeiro, dezembro de 1997; bem como algumas experincias vividas na rede de Belo Horizonte e no Servio Cndido Ferreira. 5 O texto parte de um captulo escrito por Emerson Elias Merhy, do livro Democracia e Sade, organizado por Sonia Maria Fleury Teixeira, publicado pela Editora Lemos, em 1996. 6 Flores, F. Inventando la empresa del siglo XXI. Chile: Hachete, 1989. 7 Veja com mais preciso no texto Agir em Sade, j citado.

Novos Desafios Educacionais para a Formao de Recursos Humanos em Sade

Jos Incio Jardim MottaEscola Nacional de Sade Pblica/Fundao Oswaldo Cruz

Paulo BussFundao Oswaldo Cruz

Tnia Celeste Matos NunesFundao Oswaldo Cruz

Desde as origens do Sistema nico de Sade (SUS) j se vislumbravam dificuldades para a construo de um novo modelo de ateno sade. Dentre elas, j se destacavam as questes de recursos humanos e, em particular, o seu componente de desenvolvimento com demandas claras de qualificao e requalificao da fora de trabalho. Os avanos nos processos de gesto do sistema de sade nos ltimos anos vm redefinindo, de forma dinmica, as necessidades de requalificao, impondo exerccios de reviso dos modelos de formao at ento adotados, tendo os princpios e pressupostos do SUS como foco alimentador das definies metodolgicas e de contedos dos programas de formao. Esses esforos esto tambm articulados a elementos do campo da educao e do trabalho, em que a Lei de Diretrizes e Bases da Educao assume papel fundamental quando reconhece a necessidade de construo de novos modelos de ensino e adota a noo de competncia como estruturadora da base curricular. Dentro desse marco, reconhece-se que o momento atual requer ajustes e releituras dos profissionais e das instituies para eleger estratgias e modelos de renovao coerentes com o contexto. Nesse sentido, a leitura de autores como Haddad facilita a compreenso de que necessrio redefinir o objeto de trabalho e o espao de ao do trabalhador de sade no marco da sociedade em que vive, frente aos paradigmas de sade e de bem-estar que esta sociedade adota e dentro dos parmetros sociais, econmicos e polticos da realidade atual (HADDAD et al, 1997, p. 6), propondo aes no campo educacional que possibilitem um avano no conhecimento do trabalho em sade, reconhecendo e valorizando o potencial formativo do trabalho. Tomando essas referncias como fundamentais, desenvolvemos nossas idias a partir de dois eixos: a relao educao, formao e trabalho, problematizando a noo de novas competncias para o trabalho; a institucionalizao de sistemas de educao permanente, cuja referncia principal a estreita relao do processo formativo com o processo de trabalho em sade. Ambas tomam a reconstruo do modelo de ateno sade como base principal de interveno e fonte alimentadora dos processos pedaggicos.

Trabalho, Competncias, FormaoSegundo Ianni (apud Motta, 1998) o que caracteriza o mundo do trabalho no fim do sculo XX que este se tornou realmente global. Tais palavras refletem algumas grandes transformaes que vm ocorrendo no espao da cultura e do trabalho. Com relao a este ltimo, a transio de um modelo fordista de organizao do trabalho, para um novo modelo denominado de flexibilizao produtiva, acoplado dinamizao do mercado mundial amplamente favorecida pelas tecnologias eletrnicas, coloca novas formas e novos significados ao trabalho. Ao analisar as mudanas que vm ocorrendo no mundo do trabalho, principalmente a partir das duas ltimas dcadas, Deluiz (1996) adverte que a emergncia dos processos de acumulao flexvel tem gerado fenmenos tais como, ampliao do trabalho precarizado e informal e da emergncia de um trabalho revalorizado, no qual o trabalhador multiqualificado, polivalente, deve exercer, na automao, funes muito mais abstratas e intelectuais, implicando cada vez menos trabalho manual e cada vez mais manipulao simblica, e complementa que tambm exigido deste trabalhador, capacidade de diagnstico, de soluo de problemas, capacidade de tomar decises, de intervir no processo de trabalho, de trabalhar em equipe, se auto-organizar e enfrentar situaes em constantes mudanas. Essas novas exigncias ao trabalhador situam o debate no campo educacional dentro do que vem sendo denominado de novas competncias para o trabalho, vis a vis o conceito de qualificao. Esse debate tem gerado perspectivas diferentes sobre o conceito e a utilizao do termo competncia. NUNES et al (2000, apud VALLE, 1997) citando Valle (1997) situam a discusso na perspectiva da incorporao de novos requisitos necessrios ao trabalhador nessa nova conjuntura, apontando para ampliao do conjunto de capacidades exigidas como sendo de natureza cognitiva capacidade de ler e interpretar a lgica funcional, capacidade de abstrao, deduo estatstica e expresso oral, escrita e visual; e de natureza comportamental responsabilidade, capacidade de argumentao, de realizar trabalho em equipe, de iniciativa e exerccio da autonomia e habilidade para negociao. Para Deluiz (1996; 2001), a noo de competncias surge na Europa a partir dos anos 80 e vem substituir a qualificao, um conceito-chave na sociologia do trabalho. Para a autora, o conceito de qualificao est vinculado escolarizao e sua correspondncia no trabalho assalariado, portanto relacionado aos componentes organizados e explcitos da qualificao do trabalhador. No modelo de competncias, a aprendizagem seria orientada para a ao e a sua avaliao seria pautada nos resultados observveis. Essa idia reforada pela autora, quando cita Tanguy (1991, apud DELUIZ): Competncia a capacidade de resolver um problema em uma situao dada. A competncia baseia-se nos resultados. A referida autora nos mostra que, na literatura corrente, a noo de competncia vista, em termos gerais, como a capacidade de articular e mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes, colocando-os em ao para resolver problemas e enfrentar situaes de imprevisibilidade em uma dada situao concreta de trabalho e em um determinado contexto cultural. Deluiz (1996) amplia o leque de novas competncias requeridas ao trabalhador para alm da dimenso cognitiva, intelectual e tcnica, incorporando aquelas de natureza organizacional ou metdica, comunicativas, comportamentais, sociais e polticas.

Para Ramos (2001), esse debate situa o termo competncias como um deslocamento conceitual do conceito de qualificao. A autora toma a qualificao como um conceito central na relao trabalhoeducao e assume a natureza ampla desse conceito, que pode albergar desde a idia de qualificao para o trabalho at o de se estar socialmente qualificado para o mesmo. De qualquer forma, o conceito de qualificao conteria uma dimenso conceitual, expresso pela existncia de uma certificao; uma dimenso social, expressa pelo conjunto de direitos advindos do processo de certificao; e uma dimenso instrumental, que se processa no ato do trabalho em que a subjetividade do trabalhador referida. Assim, o termo competncias inscreve-se como uma sobrevalorizao da dimenso instrumental da qualificao, a partir da revalorizao da subjetividade do trabalhador no processo de trabalho. O debate sobre competncias profissionais vem alcanando o setor sade, principalmente no que se refere ao campo da formao profissional. No plano legal, esse debate se insere no contexto definido pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao. Todavia, ainda que legalmente sustentado, h um extenso caminho a ser percorrido na definio de modelos de formao profissional pertinentes. Apenas para exemplificar um dos desafios ainda no totalmente equacionado, Ramos (2001, p. 80) afirma que um sistema de competncia profissional integrado por trs subsistemas: a) normalizao das competncias; b) formao por competncias; c) avaliao e certificao por competncias. Dessa forma, para estruturar, no campo da formao profissional em sade, um sistema de competncias profissionais, em tese preciso estruturar os trs subsistemas que o compem. No entanto, o que se tem observado, segundo a autora, que, na maioria das vezes, os chamados currculos por competncias nada mais so do que currculos pautados em normas de competncia. Para Ramos (2001, p. 82), um currculo por competncias corresponderia a um conjunto de experincias de aprendizagens concretas e prticas, focadas em atividades que se realizam nos contextos ou situaes reais do trabalho (...) a formao por competncias privilegiaria a aprendizagem em ritmo individual, gradual e o desenvolvimento da capacidade de auto-avaliao. Assim, ainda que possamos reconhecer a necessidade de se (re)conformar os modelos de formao profissional no campo da sade, pautados numa lgica de novas competncias profissionais, sero necessrios muitos exerccios de aplicao que possibilitem configurar novas metodologias de ensino-aprendizagem. Ainda que absorvida de modo incipiente pelo setor sade, essa noo tem sido fundamental para a definio de perfis profissionais para um novo modelo de ateno sade.

Trabalho, Educao, Requalificao e Educao PermanenteA idia de que os processos educacionais so contnuos ou permanentes to antiga quanto a prpria histria do homem. No entanto, s no incio do sculo XX que formalmente se organizaram programas de educao continuada. A partir de ento, cresce no mundo o reconhecimento da necessidade de se institurem programas de educao continuada ou permanente. Apesar desse crescente consenso, as

dificuldades de se implantar/implementar programas que, de fato, respondam as necessidades de qualificao apontadas pela dinmica do trabalho tornam-se cada vez mais evidentes. Parte dessas dificuldades podem ser analisadas a partir de nveis diferenciados, que podemos denominar de conceitual, metodolgico e contextual, como veremos a seguir. De natureza conceitual: preciso compreender os conceitos que permeiam as idias e as possveis distines entre os termos educao continuada e educao permanente. De natureza metodolgica: preciso estabelecer dilogos ao processo de trabalho em sade, de forma que possa, de fato, informar sobre os problemas do trabalho e suas possveis estratgias educacionais de enfrentamento. De natureza contextual: preciso aprofundar a compreenso dos novos contextos em que se d a organizao do trabalho, assim como o papel das novas competncias profissionais na dinmica do trabalho. Para alguns autores, as distines entre os termos continuada e permanente tm origem no que se poderia chamar de matrizes de origem diversa, ou seja, na compreenso de que esses processos possuem uma matriz histrica comum, mas originadas a partir de diferentes motivaes. Poderamos citar desde o acelerado desenvolvimento cientfico e tecnolgico que o mundo experimentou a partir dos anos 50, at a crise dos sistemas educacionais to bem expressa pelos acontecimentos de maio de 68 na Frana. No setor sade, segundo Ricas (1994), os termos continuada e permanente, embora no opostos, conferem especificidade ao processo ensino/aprendizagem. Segundo Motta (1998), o termo permanente, largamente difundido pela OPS, teria como referncia uma estratgia de reestruturao e desenvolvimento dos servios, a partir de uma anlise dos determinantes sociais e econmicos, mas sobretudo de transformao de valores e conceitos dos profissionais. Prope transformar o profissional em sujeito, colocando-o no centro do processo de ensino/aprendizagem. J o termo continuada, segundo Ricas (1994), englobaria as atividades de ensino aps o curso de graduao, com finalidades mais restritas de atualizao, aquisio de novas informaes e/ou atividades de durao definida e atravs de metodologias tradicionais. Alm das distines de natureza conceitual e metodolgica, falamos de uma modalidade educacional que se relaciona diretamente com o processo de trabalho. Referimo-nos, portanto, a trabalho enquanto processo, o que significa compreender como os elementos que constituem esse processo so representados pelos diferentes atores. Implica imaginar que os profissionais de sade tm diferentes vises sobre o mundo e o trabalho e que as prticas que desenvolvem so coerentes com essas vises (Ribeiro & Motta, 1996, p. 7). Assim, no basta ter uma opo terico-conceitual para o desenvolvimento desses programas, preciso reconhecer que esses processos operam sobre relaes de trabalho enquanto relaes sociais, que envolvem diferentes atores, com diferentes intencionalidades, concretizando-se, portanto, em um trabalho imerso em conflitos.

Assim, ao se falar de processos de educao permanente ou continuada, preciso ter clareza que alguns caminhos precisam ser percorridos: distines conceituais; relao num mesmo sistema das demandas originadas a partir dos mecanismos de educao continuada e de educao permanente; a organizao do trabalho em sade e os hbitos institucionais enquanto culturas que impregnam as dinmicas das instituies; os conflitos gerados no interior das relaes de trabalho, etc. No perdendo de vista que a implantao e implementao desses sistemas se do num mundo onde a organizao do trabalho se transforma, onde a necessidade por novos conhecimentos se torna uma exigncia para todos os trabalhadores, num sistema de sade que formula estratgias de reconstruo de modelos de ateno, reconhecendo um vcuo na formao das profisses de sade, o que impem a urgncia na reformulao dos modelos e contedos da formao e a necessidade de mecanismos de requalificao profissional.

Novos DesafiosAs reflexes aqui colocadas nos remetem a pensar num emaranhado de relaes, conceitos e legislaes que passam a integrar o espao privilegiado de formao para o trabalho em sade. Suas ferramentas agregam valores ao processo de planejamento das aes de ensino, mas desafiam os educadores da sua rea a buscarem uma nova arquitetura para a construo de oportunidades afinadas com a nova conjuntura. H que se considerar que essas novas referncias favorecem o deslocamento de aes pedaggicas para o espao de realizao do trabalho, onde a rubrica de educao permanente aparece como mediadora importante. Essa opo, no entanto, requer aes de carter estratgico para a obteno de impacto no sistema como um todo. A convivncia das dimenses local e nacional precisa ser permeada por estratgias pertinentes, onde as REDES tm operado de forma decisiva num processo dinmico de mobilizao e organizao, sendo um caminho a ser adotado pelos gestores do sistema de sade e pelas unidades de ensino que se relacionam com essa temtica. Esse movimento permite a otimizao de recursos e a potencializao de resultados, a eleio e o estmulo de porta-vozes mais habilitados para cada programa, com a identificao e a superao dos ns crticos que conformam a teia de desafios para o SUS, favorecendo a renovao da estratgia de integrao entre ensino e servio, com os crditos necessrios ao capital de mobilizao construdo pelo setor sade, na conformao da infra-estrutura educacional que o pas e o Sistema Educacional e de Sade hoje dispem.

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MOTTA, J.I.J. Educao permanente em sade: da poltica do consenso construo do dissenso. Rio de Janeiro:Ncleo de Tecnologias Educacionais em Sade/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998. [Dissertao de Mestrado]. NUNES, T.C.M.; MARTINS, M.I.C.; SRIO, R.E.R. Proposies e estratgias de transformao dos recursos humanos em profissionais de sade comprometidos com um sistema de sade acessvel, qualificado, sensvel e humanizado. Cadernos da XI Conferncia Nacional de Sade, Braslia, 2000. RAMOS, Marise, N. A pedagogia das competncias: autonomia ou adaptao? So Paulo: Cortez, 2001. RAMOS, Marise. Qualificao, Competncias e Certificao: viso educacional. Formao, Braslia, v. 1, n. 2, maio 2001, p.17-26. RIBEIRO, E.C.O.; MOTTA, J.I.J. Educao permanente como estratgia na reorganizao dos servios de sade. Divulgao em Sade Para Debate, n.12, jul. 1996, p. 39-44. RICAS, J. A deficincia e a necessidade: um estudo sobre a formao continuada de pediatras em Minas Gerais. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto/Universidade de So Paulo, 1994. [Tese de Doutorado]. VALLE, R. Mudanas Tecnolgicas na Indstria e seus efeitos sobre o Trabalho. In: Seminrio a Formao Tcnica em Biotecnologia: Perspectivas de Tendncias no Mundo do Trabalho. Rio de Janeiro: EPSJV/FIOCRUZ, 1997.

Referncia Bibliogrfica destes artigos:MERHY, Emerson Elias. O Ato de Cuidar: a Alma dos Servios de Sade. In: Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade. Departamento de Gesto da Educao na Sade. Ver SUS Brasil: cadernos de textos. Braslia: Ministrio da Sade, 2004, p.108-137. (Srie B. Textos Bsicos de Sade). MOTTA, Jos Incio J.; BUSS, Paulo; NUNES, Tnia C. Matos. Novos Desafios Educacionais para a Formao de Recursos Humanos em Sade. In: Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade. Departamento de Gesto da Educao na Sade. Ver SUS Brasil: cadernos de textos. Braslia: Ministrio da Sade, 2004, p.174-181. (Srie B. Textos Bsicos de Sade)