o aristocrata clube

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL “Negros de classe média em São Paulo: estilo de vida e identidade negra” Reinaldo da Silva Soares Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, para obtenção do Título de Doutor, pelo curso de Pós- Graduação em Antropologia Social. São Paulo 2004

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    Negros de classe mdia em So Paulo: estilo de

    vida e identidade negra

    Reinaldo da Silva Soares

    Tese apresentada Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas, para obteno do

    Ttulo de Doutor, pelo curso de Ps-

    Graduao em Antropologia Social.

    So Paulo

    2004

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    Negros de classe mdia em So Paulo: estilo de

    vida e identidade negra

    Reinaldo da Silva Soares

    Tese apresentada Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas, para obteno do

    Ttulo de Doutor, pelo curso de Ps-

    Graduao em Antropologia Social.

    Orientador: Prof. Dr. Joo Baptista

    Borges Pereira

    So Paulo

    2004

  • Data da Defesa:____/_____/________

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. _______________________________________________________

    Julgamento:__________________________Assinatura:_________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________

    Julgamento:__________________________Assinatura:_________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________

    Julgamento:__________________________Assinatura:_________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________

    Julgamento:__________________________Assinatura:_________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________

    Julgamento:__________________________Assinatura:_________________

  • minha famlia Ao Professor Milton Santos (em memria)

    A Itamar Assumpo (em memria)

  • Agradecimentos

    De modo especial, ao Professor Emrito Joo Baptista Borges Pereira,

    pela orientao competente, apoio e confiana depositados em mim desde

    meu ingresso na ps-graduao. As sesses de orientao, que com o passar

    do tempo tornaram-se cada vez mais prolongadas, possibilitaram instigantes

    dilogos intelectuais que, pelo fato de irem alm da temtica das relaes

    raciais, abordando outros aspectos da vida social, foram de grande valia para

    minha formao acadmica.

    dona Dirce e a seu Armando que partiu cedo demais por

    terem me colocado em contato com o universo dos negros de classe mdia

    paulistana.

    Aos integrantes da Afrobras e do Aristocrata, que compartilharam

    comigo alguns momentos das suas vidas, disponibilizando-se a explicar como

    funcionavam as associaes, alm de no se eximirem de abordar, com

    franqueza, temas, por vezes, dolorosos. No esquecerei as palavras de apoio

    e de incentivo daqueles que sabem das dificuldades encontradas pelos

    negros para concluir seus estudos. A todos, minha gratido e meu respeito.

    CAPES, pelo financiamento parcial desta pesquisa.

    Aos professores doutores, Antonio Srgio Guimares e Renato da Silva

    Queiroz, pelas crticas e sugestes realizadas durante meu exame de

    qualificao, que procurei incorporar pesquisa.

  • Aos professores doutores, Fernanda Peixoto, Kabengele Munanga e

    Vagner Gonalves da Silva, por terem me aceito como monitor em seus

    cursos, possibilitando que eu tivesse a dimenso do desafio de lecionar.

    s colegas de monitoria: Carla, Fernanda e Rachel, pela fora,

    amizade e solidariedade.

    Aos amigos: Batista, Mrcio (Kibe), Rubens e Vanilza, pelo apoio

    cotidiano, pelas dicas e sugestes e pelos momentos divertidos que

    compartilhamos durante todos esses anos.

    Ivanete e Rose, funcionrias da secretaria do departamento de ps-

    graduao, pelo auxlio na resoluo dos problemas causados pelas

    complicadas questes burocrticas.

    Ivana e Mrcia, pelo incentivo, solidariedade e amizade sincera,

    desde a poca do mestrado.

    Ao Jos Luiz, por resolver os infindveis problemas com hardware e

    software.

    minha famlia: Geralda e Rubens, meus pais, Cilene, minha irm,

    Mauricy, meu cunhado, e Eric, meu sobrinho, pelo apoio irrestrito, suporte

    material e psicolgico, carinho, alegria e confiana. Enfim, por possibilitar

    que meu sonho se materializasse.

    minha terna companheira Bernadete, pela parceria diuturna, pelo

    amor, pela dedicao, pela compreenso, pela torcida e pela leitura

    carinhosa da verso original deste trabalho. minha filhota, Bia, pelas

    interrupes constantes, brincadeiras, beleza, curiosidade, carinho e pelos

    falatrios interminveis. Agora posso responder aquela sua pergunta,

    repetida diversas vezes: Pai: essa tese no termina nunca?

    E, finalmente, a todos que colaboraram, de alguma forma, para a

    realizao deste trabalho e que apesar de no serem citados aqui estaro

    sempre vivos na minha lembrana.

  • SUMRIO

    Resumo

    Abstract

    Apresentao......................................................................................... 1

    Introduo............................................................................................ 8

    1- Os campos empricos: Aristocrata Clube e Afrobras.............................. 32

    2- Identidade de classe......................................................................... 70

    3- Estilo de vida.................................................................................. 111

    4- Identidade racial.............................................................................. 157

    5- Ethos e viso de mundo: valores e representaes sociais dos negros de

    classe mdia.........................................................................................199

    Consideraes Finais............................................................................ 249

    Bibliografia.......................................................................................... 255

  • RESUMO

    Negros de classe mdia em So Paulo: estilo de vida e identidade negra

    Este estudo versa sobre os negros das camadas mdias paulistanas.

    Analisa a identidade de classe a partir da autoclassificao e do modo como

    o conceito de classes sociais construdo pelos interlocutores. A inteno

    instituir uma analogia com as categorias elaboradas pelos cientistas sociais.

    Examina o estilo de vida, utilizando como referncia o consumo material e

    simblico. Desta forma, busca a especificidade do grupo em relao a gostos

    e preferncias. Problematiza a questo da identidade racial a comear pela

    auto-identificao quanto raa e classe, alm de analisar quais so os

    fatores utilizados como referncia para a construo da idia de

    pertencimento tnico. Investiga as representaes sociais dos negros de

    classe mdia, isto , busca compreender como estes percebem a sociedade,

    a imagem que fazem de si mesmos e como julgam ser avaliados pela

    sociedade global.

    Palavras-Chave:

    Negro - Classe Mdia - Estilo de Vida - Identidade de Classe - Identidade

    Racial

  • ABSTRACT

    Lifestyle and black identity in the city of So Paulo: the black

    middle class

    This study is about So Paulos black middle class population. It seeks to

    analyse class identity from the subjects point of view: focusing, in the one

    hand, on the way in which the subjects classify themselves and, on the

    other, on how the class concept is formulated by them, drawing an analogy

    between this concept and those conceived by social scientists. In order to

    realise this aim, this study examines the blacks lifestyle, using their material

    and symbolic consumption as a reference. Along with this analysis, the study

    also questions the racial identity, as experimented by the subjects,

    considering both the subjects racial and social self classification and the

    factors used as a reference to the idea of being part of an ethnic group. This

    study investigates the black middle class social representation, that is to say,

    it seeks to understand how this population perceive their society, what is the

    image the blacks have of themselves and, according to their opinion, which is

    the opinion the encompassing society have upon them.

    Key-words: Blacks - Middle class - Lifestyle - Class identity - Racial identity

  • Apresentao

    Este estudo trata dos negros de classe mdia na cidade de So Paulo.

    O intuito analisar as representaes e o estilo de vida dos negros

    paulistanos que, nas ltimas dcadas, passaram por um processo de

    mobilidade social ascendente, destacando-se da grande maioria negra, a

    qual sobrevive em condies materiais precrias.

    Nosso interesse pelo tema foi suscitado durante a elaborao da

    dissertao de mestrado1 cujo objetivo era examinar o processo de

    produo do ciclo carnavalesco do Grmio Recreativo e Cultural Escola de

    Samba Vai-Vai, agremiao formada, em sua maior parte por negros, com

    sede no bairro do Bexiga. Na oportunidade constatamos que a agremiao

    passou por uma sensvel mudana na sua composio socioeconmica.

    O Vai-Vai, a poca de sua fundao (1930), era formado por negros

    da classe trabalhadora com baixa qualificao e baixa remunerao.

    Atualmente, a agremiao, principalmente nos quadros de direo,

    composta, em sua maioria, por negros de classe mdia: pequenos

    empresrios ou profissionais de nvel universitrio (engenheiro,

    fisioterapeuta, advogado, contador, administrador de empresas...). Tal fato

    1 Reinaldo da Silva SOARES, O cotidiano de uma escola de samba paulistana: o caso do

    Vai-Vai, 1999, dissertao de mestrado, FFLCH-USP, So Paulo.

  • _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ___________________________________________

    _________________________________________________________________________ Apresentao

    2

    alertou-nos para a necessidade de refletir sobre a importncia destes

    segmentos negros que vivenciam uma situao de mobilidade social

    ascendente, quando comparados s geraes antecedentes.2

    O objetivo central deste trabalho analisar a relao entre mobilidade

    social intergeracional e identidade negra, ou seja, a questo fundamental

    verificar se h ou no, um processo de embranquecimento social dos negros

    de classe mdia, ou falando de uma outra forma, investigar se a mxima: o

    dinheiro embranquece aplica-se ao grupo estudado.

    A seguir, relacionamos os objetivos especficos do trabalho:

    1 Verificar como os pesquisados se autoclassificam em relao raa/cor,

    de que modo constroem sua identidade racial e como percebem as relaes

    raciais na cidade de So Paulo;

    2 Investigar de que forma se autodefinem em termos de classe social;

    quais critrios que utilizam para tal definio (nvel de consumo, prestgio

    social etc) e de que modo se relacionam com integrantes de outras classes

    sociais.

    3 - Constatar se o Aristocrata Clube constitui, ou no, um mundo paralelo

    para uma determinada parcela dos negros paulistanos. Adotamos, aqui, a

    noo de mundo institucional paralelo, definido por Borges Pereira, como

    espaos fabricados pelos negros, em contextos urbanos, em resposta ao

    preconceito e discriminao, onde puderam cultivar sua sociabilidade e

    seus valores culturais.3

    4 Analisar a especificidade do estilo de vida da classe mdia negra, ou seja,

    inquirir sobre como utilizam seu tempo livre; qual seu gosto musical; tipo

    2 Ao longo do trabalho utilizaremos o conceito de mobilidade social intergeracional, ou seja,

    o deslocamento de um indivduo do grupo social dos seus pais, para outro grupo. 3 Joo Baptista BORGES PEREIRA, Negro e cultura negra no Brasil, Revista de

    Antropologia, So Paulo, 1983.

  • _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ___________________________________________

    _________________________________________________________________________ Apresentao

    3

    de vestimenta; opo religiosa; consumo de produtos fabricados

    exclusivamente para negros; emissoras de rdio e TV prediletas; opes

    estticas; enfim, quais os gostos e preferncias que diferenciam o grupo.

    H poucos trabalhos sobre negros em ascenso social no Brasil. Como

    afirma Figueiredo4, este segmento parece ser considerado pelos

    pesquisadores como um objeto de estudo pouco simptico. A figura do

    negro em ascenso social, via de regra, aparece como categoria acusatria:

    o traidor que, conseguindo superar os obstculos, melhorou de vida e

    afastou-se dos outros negros; ou o metido a branco que, para ascender,

    incorporou os valores e estilo de vida dos brancos de classe mdia, na

    tentativa de embranquecer socialmente.

    Um dos primeiros trabalhos sobre mobilidade social dos negros, no

    Brasil, foi publicado em 1955, por Thales de Azevedo.5 Em As elites de cor,

    o autor apresenta os resultados da pesquisa realizada na Bahia, cujo objetivo

    central era analisar a dinmica da ascenso social dos negros.6

    Azevedo constatou que, na Bahia, havia um alto grau de mestiagem

    e que o preconceito racial se manifestava de forma muito amena. No sistema

    hierrquico, o status era mais relevante do que a cor. O autor concluiu que a

    Bahia representava uma sociedade multirracial de classes, sem a ocorrncia

    de castas: todos tinham a possibilidade de ascender socialmente dependendo

    apenas dos seus prprios mritos. Portanto, os obstculos que os negros

    encontravam eram resultado de um preconceito de classe, em razo dos

    mesmos serem provenientes das classes baixas. A ascenso dos negros

    4 Angela FIGUEIREDO, Novas elites de cor, So Paulo, Annablume, 2002.

    5 O primeiro a abordar essa temtica foi Pierson, em 1937, que analisou a mobilidade social

    ascendente dos negros na Bahia. Ver: Donald PIERSON, Brancos e pretos na Bahia, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942. 6 Thales de AZEVEDO, As elites de cr, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1955.

  • _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ___________________________________________

    _________________________________________________________________________ Apresentao

    4

    passava necessariamente pelo seu embranquecimento social, isto , pela

    incorporao de comportamentos e valores aceitos pelos brancos.

    Em relao ao caso especfico de So Paulo, Fernandes ao fazer a

    anlise do processo de incorporao do negro sociedade de classes

    exps os mecanismos que propiciaram a formao da elite negra, nas

    dcadas de 1920 e 1930.7

    Na dcada de 1960, Borges Pereira investiga a insero do negro na

    empresa radiofnica paulistana. O rdio constitui-se em um novo e promissor

    mercado de trabalho para o negro, justamente pelas mudanas de valores

    estticos ligados ao estilo de vida urbano, que proporcionaram a

    popularizao da msica negra. O rdio (assim como o futebol)

    proporcionou aos negros ingressar em ocupaes incomuns, espaos que

    ainda eram reconhecidos como privilgios exclusivos de brancos.8

    Apesar de no termos conhecimento de trabalhos sobre os negros de

    classe mdia na cidade de So Paulo, os negros em ascenso tm obtido um

    certo destaque nas pesquisas acadmicas, nas duas ltimas dcadas.

    No inicio da dcada de 1980, Barbosa analisou o padro de

    sociabilidade das famlias negras de classe mdia, na cidade de Campinas. O

    propsito era constatar se existiam mecanismos especiais, na socializao

    das crianas, no que diz respeito questo racial.9

    Na mesma poca, no Rio de Janeiro, Souza analisou a emocionalidade

    do negro em ascenso social, discutindo as dificuldades de identidade desse

    segmento em uma sociedade branca. A proposta do trabalho era revelar

    7 Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, So Paulo,

    Dominus, 1965. 8 Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,

    1967. 9 Irene Maria F. BARBOSA, Socializao e relaes raciais, So Paulo, FFLCH/USP, 1983.

  • _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ___________________________________________

    _________________________________________________________________________ Apresentao

    5

    como o negro construa um discurso sobre si mesmo, em relao aos seus

    aspectos emocionais.10

    Barcellos, em meados da dcada de 1990, em Porto Alegre, examina a

    influncia da famlia no projeto de ascenso dos negros de camadas mdias.

    A autora analisa como os integrantes deste segmento, construram seu

    espao social, suas expectativas profissionais, os laos sociais e emocionais

    que estabeleciam entre si e como se relacionavam com os brancos. Enfim, a

    autora procurou detectar como a identidade do grupo estruturada.11

    A educao um dos principais instrumentos utilizados pelos negros,

    em se tratando de mobilidade social ascendente. Partindo deste pressuposto,

    em 1988, Teixeira estuda a trajetria escolar de alunos e professores negros

    da Universidade Federal Fluminense, com o escopo de averiguar a relao

    entre a escolha da carreira e a identidade racial.12

    O trabalho mais recente sobre o tema foi publicado em 2002.

    Figueiredo pesquisou a relao entre ascenso social e identidade tnica,

    dentre os profissionais liberais negros de Salvador. A proposta era relativizar

    as teorias sobre o negro em ascenso, as quais enfatizam a importncia do

    branqueamento como estratgia de mobilidade social, ou enquanto uma

    imposio da sociedade global.13

    Como os negros de classe mdia no esto concentrados em

    determinados espaos da cidade, decidimos escolher como objeto de estudo

    associaes representativas deste segmento, em So Paulo. Desta forma,

    10

    Neusa Santos SOUZA, Tornar-se negro, Rio de Janeiro, Graal, 1983. 11

    Daisy Macedo de BARCELLOS, Famlia e ascenso social de negros em Porto Alegre,

    1996, Tese de doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro. 12

    Moema de Poli TEIXEIRA, Negros em ascenso social, 1998, tese de doutorado, UFRJ

    Rio de Janeiro. 13

    Angela FIGUEIREDO, Novas elites de cor, So Paulo, Annablume, 2002.

  • _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ___________________________________________

    _________________________________________________________________________ Apresentao

    6

    elegemos dois campos empricos: O Aristocrata Clube e a Afrobras. O

    Aristocrata, fundado na dcada de 1960, funcionou como cone dos negros

    em ascenso social na cidade, representando um estilo de vida diferenciado

    de um segmento que se distinguia pela situao econmica e pertencimento

    racial. A Afrobras, constituda no final do sculo passado, uma organizao

    que luta por uma poltica de aes afirmativas e a sua atuao marcada

    pela busca de visibilidade do negro nos mais diversos setores da sociedade.

    No que concerne metodologia, a pesquisa de campo foi realizada

    entre maro de 2001 e maio de 2003. Participamos de festas, reunies,

    almoos e outros eventos promovidos pelas duas associaes.

    Elaboramos um roteiro inicial de entrevistas, com questes abertas.

    Quatro tpicos foram abordados: dados pessoais, identidade negra,

    identidade de classe e estilo de vida. Aplicamos um pr-teste e reelaboramos

    o roteiro, acrescentando algumas questes e reformulando outras.

    Realizamos 24 entrevistas (11 homens e 13 mulheres) com 17

    associados do Aristocrata e 7 integrantes da Afrobras14

    . A escolha dos

    entrevistados deu-se da seguinte forma: procuramos entrevistar,

    primeiramente, o presidente de cada organizao que nos indicava outros

    associados. Depois desse contato inicial, selecionamos, para entrevista, as

    pessoas que compareciam com maior freqncia aos eventos e cuja atuao

    era mais efetiva. A maior parte das entrevistas foi realizada na sede de cada

    organizao, excetuando quatro interlocutores que optaram por conversar

    em suas residncias ou em seus locais de trabalho. A fim de evitar possveis

    constrangimentos, os nomes dos entrevistados foram omitidos.

    14

    Todas as entrevistas foram gravadas em fita cassete.

  • _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ___________________________________________

    _________________________________________________________________________ Apresentao

    7

    Em relao reviso bibliografia, os principais temas contemplados

    foram: a histria do negro na cidade de So Paulo, identidade tnica, classes

    sociais, estilo de vida e ascenso social dos negros.

    O trabalho foi estruturado da seguinte forma: no captulo introdutrio,

    realizamos um breve histrico sobre o negro na cidade de So Paulo,

    enfatizando a formao da elite negra nas primeiras dcadas do sculo

    passado. O primeiro captulo dedicado anlise do Aristocrata Clube e da

    Afrobras. No segundo captulo, apresentamos uma caracterizao

    socioeconmica dos entrevistados e analisamos como elaboram seu conceito

    de classe social e como se autodefinem em termos de posio de classe. No

    terceiro captulo, realizamos uma discusso sobre estilo de vida, examinando

    as predilees de consumo dos pesquisados. No quarto captulo,

    examinamos como construda a identidade racial dos negros de classe

    mdia. No ltimo captulo, analisamos as representaes sociais dos

    entrevistados, ou seja, como pensam a sociedade, de que modo percebem a

    si mesmos e como acham que so avaliados pela sociedade global.

  • Introduo

    Os primeiros negros chegaram a So Paulo, provavelmente, por volta

    de 1526. Em meados do sculo XVI, ocorreria o trfico mais regular com os

    escravos trazidos do Reino.1

    No final do sculo XVI, o trfico de escravos acontecia diretamente

    com Angola, apesar disso, a quantidade de negros no sistema escravocrata

    no era significativa, uma vez que os indgenas representavam a maior parte

    dos cativos.

    No sculo XVII, com a descoberta, em So Paulo, das minas de ouro,

    aumenta o fluxo de escravos negros. A partir de 1693, com a descoberta de

    ouro em Minas Gerais, Mato Grosso e Gois ocorre uma grande procura por

    escravos negros. Nesse momento, tem incio, em So Paulo, o trfico de

    escravos diretamente com Angola e Cabo Verde. A descoberta das minas de

    ouro causou a decadncia das bandeiras, ocasionando o declnio do trabalho

    1 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e negros em So Paulo, So Paulo,

    Companhia Editora Nacional, 1971.

  • 9 _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    indgena que seria substitudo, paulatinamente, pela importao de

    escravos.2

    No trajeto percorrido entre os fins do sculo XVII e o terceiro quartel do sculo XVIII, o negro no s adquiria uma posio no sistema econmico de So Paulo. Ele se tornar a prpria fonte regular e exclusiva do trabalho escravo e da

    produo.3

    Com a decadncia da minerao, os negros migraram em maior

    nmero para So Paulo com o propsito de trabalhar na "grande lavoura".4 A

    produo agrcola, no sculo XIX, s pde se desenvolver em razo do papel

    fundamental exercido pelo trabalho escravo.5

    A partir da crise na produo aucareira da economia nordestina,

    houve a redistribuio da populao negra para as provncias de So Paulo,

    Rio de Janeiro e Minas Gerais.

    O desenvolvimento da grande lavoura proporcionou o crescimento

    do comrcio. A produo, que era escoada pelo porto de Santos,

    transformava So Paulo em relevante centro comercial, um ponto de

    exportao e importao. Esse novo contexto criou alternativas de

    aproveitamento do trabalho escravo no artesanato urbano, nos servios

    domsticos e no aluguel de negros.

    A partir do sculo XIX, o caf tornar-se-ia o carro-chefe da economia

    paulista. Com a escassez de mo-de-obra, houve a necessidade de

    2 Samuel LOWRIE, O elemento negro na populao de So Paulo, Revista do Arquivo

    Municipal, So Paulo, 1938. 3 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e negros em So Paulo, So Paulo,

    Companhia Editora Nacional, 1971. 4

    Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,

    1967. 5 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, op. cit.

  • 10 _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    mobilizao de grandes contingentes negros6; mas, com a proibio do

    trfico, em 1850, alm da dificuldade na obteno de escravos, os mesmos

    tornavam-se demasiadamente onerosos aos senhores.

    Nos anos de 1880, a regio da provncia de So Paulo vivia uma

    profunda agitao social. Os escravos no obedeciam mais s ordens dos

    feitores e exigiam liberdade; uma sucesso de rebelies, crimes sangrentos

    e denncias de feitiaria estampavam os jornais. Em razo da gravidade da

    situao, os senhores acionaram a polcia que, justamente por no ter uma

    estrutura material adequada, no conseguia atender a todos os chamados.7

    Os negros uniram-se aos abolicionistas e promoveram manifestaes

    populares, tumultos e desordens. Munidos de paus e armas de fogo

    invadiram delegacias e quartis para libertar escravos apreendidos. Existia

    entre os fazendeiros, um pnico generalizado de que a onda negra

    promovesse uma mudana estrutural na sociedade. A seqncia de

    sublevaes fazia com que escravos fugitivos ficassem na periferia das

    cidades, sem trabalho e alimentao, aumentando o clima de violncia

    processo que ocasionava uma crise nas fazendas por falta de mo-de-obra,

    o que inviabilizava a estrutura do sistema escravocrata.8

    Alm das fugas e rebelies, os negros utilizaram outras estratgias

    para resistir escravido: trabalhar menos para obter uma melhoria na

    6 Samuel LOWRIE, O elemento negro na populao de So Paulo, Revista do Arquivo

    Municipal, So Paulo, 1938. 7 Maria Helena MACHADO, O plano e o pnico, So Paulo, EDUSP, 1994. Segundo

    Schwarcz, as tenses entre senhores e escravos existiram desde o incio do processo de colonizao, mas eram protestos isolados dirigidos ao senhor ou ao capataz. A partir de 1870, com a decadncia do regime escravocrata, tais protestos ganham um novo significado. Articuladas com a atuao dos abolicionistas, a contestao e as fugas de cativos ganham uma nova importncia, visto que vrios proprietrios de terras do oeste paulista libertaram seus escravos, garantindo a estabilidade da mo-de-obra por intermdio de contratos de trabalho. Llia Moritz SCHWARCZ, Retrato em branco e negro, So Paulo, Companhia das Letras, 1987. 8 Maria Helena MACHADO, O plano e o pnico, So Paulo, EDUSP, 1994. Sobre o pavor

    provocado pelos levantes negros nas elites do sculo XIX, ver tambm: Clia Maria Marinho de AZEVEDO, Onda negra, medo branco, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    expectativa de vida; trabalhar muito e ganhar a simpatia do senhor para

    obter algum tipo de privilgio; comprar a liberdade, trabalhando no tempo

    livre; conquistar a boa vontade do fazendeiro; cometer suicdio ou matar o

    senhor.9

    Em fevereiro de 1888, a escravido foi extinta em So Paulo. Apesar

    dos fazendeiros tentarem reivindicar para si os mritos da abolio, a

    participao dos escravos foi decisiva para o desfecho do regime

    escravocrata:

    No fugissem os escravos em massa das fazendas, rebellando-se contra os senhores No fossem eles, em nmero superior a vinte mil, para o famoso quilombo de Jabaquara (fora da cidade porturia de Santos, um centro de agitao abolicionista), e talvez ainda hoje seriam escravos... A escravizao acabou-se porque o escravo no quiz mais ser escravo, porque o escravo rebelou-se contra seu senhor e contra a lei que o escravizara... A lei de 13 de maio no di mais do que a sano legal para que a autoridade pblica no fosse desacreditada de um acto que j estava consummado pela revolta em massa

    dos escravos ...(p. 74)10

    O declnio da escravido implicaria em um srio problema aos

    fazendeiros paulistas: como resolver a questo da mo-de-obra? A soluo

    adotada foi a importao de mo-de-obra europia. O trabalho livre

    substituiu o trabalho escravo, utilizando trabalhadores brancos.11

    9 George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru,SP,

    EDUSC, 1998. Chaloub, analisando o significado social da liberdade para os cativos da corte, nas ultimas dcadas da escravido, constatou que os escravos utilizaram as vrias alternativas possveis dentro do prprio regime para arrefecer os efeitos do cativeiro. Alforria por indenizao, autorizao para viver sobre si, negar-se a cumprir as ordens do senhor e cometer delitos para cumprir pena na priso, foram alguns dos artifcios utilizados pelos cativos. Sidney CHALHOUB, Vises de liberdade, So Paulo, Companhia das Letras, 1990. 10

    Rebate (3 de junho de 1898), p. 1, apud George Reid ANDREWS, Negros e brancos em

    So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP, EDUSC, 1998. 11

    Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e negros em So Paulo, So Paulo,

    Companhia Editora Nacional, 1971.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    Com a abolio do trabalho escravo, em 1888, a situao do negro no

    Brasil tornar-se-ia ainda mais grave, com restritas possibilidades de competir

    no mercado de trabalho, em funo da predileo dos fazendeiros pelos

    imigrantes. Muitas vezes, a alternativa era somar-se aos grupos de

    desocupados.12

    No houve nenhuma poltica de readaptao, assimilao e

    integrao do ex-escravo ao novo sistema. Com o surgimento do trabalho

    assalariado, o negro, que at ento encontrava-se no centro do sistema de

    produo deslocado para a periferia, posio marginal que foi decorrncia

    da competio desigual com o imigrante europeu.13

    Em 1884, o governo da provncia de So Paulo comea a subsidiar a

    imigrao europia, desta forma, o Estado alm de resolver o problema do

    suprimento de mo-de-obra, criando um grande contingente de

    trabalhadores procurando por emprego, optava por uma soluo que, em

    longo prazo, implicaria no branqueamento da populao e o conseqente

    desaparecimento da raa negra, atravs da mestiagem.14

    Apesar do negro no ter sido legalmente discriminado, foi natural e

    informalmente segregado, permanecendo em uma posio subalterna e com

    restritas possibilidades de mobilidade social, sendo preterido na competio

    com o branco.15

    A proximidade da abolio e o aumento do nmero de fuga

    de escravos ocasionaram um aumento significativo do nmero de imigrantes

    12

    Mesmo antes da Abolio, os negros j constituam uma parte relevante do contingente

    dos sem ocupao, como apontam os dados populacionais, das cinco principais provncias do pas, em 1882: 1.433.170 eram trabalhadores livres, os escravos totalizavam 656.540, enquanto os desocupados correspondiam a 2.822.583. Clvis MOURA, O Negro, de bom escravo a mau cidado? Rio de Janeiro, Conquista, 1977. 13

    Ibidem. 14

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo,(1988-1998), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998. 15

    Emilia Viotti da COSTA, Da monarquia repblica: momentos decisivos, So Paulo,

    Brasiliense, 1985.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    na cidade. Alm disso, o iderio republicano, centrado no ideal do cultivo e

    expanso do processo urbano civilizatrio, colidia com a representao

    simblica do negro e seu estilo de vida.

    No final do sculo XIX, a cidade de So Paulo era composta, em sua

    maioria, por estrangeiros. Os negros eram discriminados no mercado de

    trabalho, os imigrantes ocupavam as melhores posies, aos negros

    restavam s funes nas quais era necessria uma maior fora bruta.

    ...No que concerne a estrutura operacional da cidade, parece claro que a competio econmica com o estrangeiro engendrou, prematuramente, um processo bem definido de pura sucesso ecolgica. O negro e o mulato foram eliminados das posies que ocupavam no artesanato urbano pr-capitalista ou no comrcio de miudezas e servios, fortalecendo-se de modo severo a tendncia

    a confin-lo a tarefas ou ocupaes brutas, mal retribudas e degradantes ...16

    Para Fernandes, a impossibilidade de o negro concorrer com o

    imigrante no mercado de trabalho resultava da falta de um esprito do

    capitalismo, domnio de tcnicas de trabalho e adaptao a um estilo de vida

    citadino.17

    Proposio refutada por Andrews, pois os imigrantes, raramente,

    traziam, na virada do sculo XIX, alguma experincia anterior na indstria ou

    no estilo de vida urbano, os trabalhadores fabris adquiriam suas habilidades

    no prprio emprego.18

    Logo, a opo pelos imigrantes, mais do que uma

    alternativa tcnica para a questo da mo-de-obra, seria uma escolha

    poltica para atravs de um processo eugnico da mestiagem viabilizar

    o embranquecimento do pas.

    Os estrangeiros foram protegidos por uma poltica integrativa,

    enquanto o negro era excludo dos setores mais dinmicos da economia.

    16

    Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus, 1965, p. 10. 17

    Ibidem. 18

    George Reid ANDREWS, Negros e Brancos em So Paulo (1988-1998), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    Fato que no se restringiu indstria. Na agricultura, em seu setor mais

    expressivo, (lavoura cafeeira) houve um processo de fixao do imigrante,

    enquanto o negro foi transformado em excedente de mo-de-obra.19

    No interior do Estado de So Paulo havia um padro histrico de

    distribuio ecolgico da populao, estruturado a partir dos ciclos

    econmicos. Sendo assim, os negros concentraram-se nas reas de

    povoamento antigo, Vale do Paraba (Nordeste do Estado), regio das

    fazendas de caf, na qual os salrios eram mais baixos. Na regio centro-

    oeste, que prosperou aps o perodo da abolio, a mo-de-obra era

    predominantemente formada por imigrantes italianos, e por sua vez, pagava

    melhores salrios. Com a chegada dos imigrantes, os ex-escravos e caipiras

    foram relegados a uma posio marginal na economia regional, visto que os

    primeiros eram contratados como colonos e dispunham de melhores

    condies de trabalho.

    Nas reas urbanas, o mercado de trabalho estava estruturado da

    mesma forma: no comrcio, nas fbricas, no setor de transportes e no

    artesanato, a presena do estrangeiro era majoritria. Aos negros restaram

    as oportunidades no servio domstico, sem maiores possibilidades de

    acesso ao trabalho formal. Eles, por sua vez, inventaram novos servios:

    carregador, limpador de quintal, carpidor de rua, lavador de automveis e

    engraxate. Mas, a excluso do negro no era absoluta, alguns conseguiam

    furar o bloqueio racial. Para aqueles empregados no servio domestico, as

    condies de trabalho lembravam a escravido: uma excessiva carga de

    trabalho, sem descanso semanal.

    Essa situao gerou uma grande insatisfao na populao negra,

    resultando, no incio do sculo passado, em movimentos sociais que

    pretendiam a integrao do negro a sociedade de classes. Movimentos que

    19

    Clvis MOURA, O Negro, de bom escravo a mau cidado? Rio de Janeiro, Conquista,

    1977.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    incentivaram a luta dos negros por justia social, iniciando uma verdadeira

    "transformao cultural" no meio negro.

    Nesse contexto, em 191520

    , surge a imprensa negra, que teve um

    papel relevante para a mobilizao e elaborao de uma ideologia que visava

    a estimular o negro na busca pela mobilidade social ascendente.21

    Inicialmente, os jornais tinham um carter mais associativo mas, a

    partir de 1923, transformaram-se em instrumentos de luta contra o

    preconceito. Abordavam, preferencialmente, os assuntos relativos s

    questes raciais e sociais, sem dar prioridade aos temas nacionais ou

    internacionais. Noticiavam o protesto negro, que no conseguia espao na

    imprensa, superestimando os valores negros e divulgando as reivindicaes

    do grupo.

    Os jornais exerciam a funo de controle social, pois pretendiam

    reeducar o negro para que este obtivesse os atributos necessrios para sua

    integrao sociedade. Desta forma, alguns artigos condenavam o vcio, a

    vadiagem e a prostituio, desconsiderando as condies sociais das quais

    resultavam.22

    Em 1931, surgiu a mais representativa organizao do meio negro: a

    FNB (Frente Negra Brasileira) que almejava a unio e integrao do negro:

    20

    Segundo Bastide, O Menelick foi o primeiro jornal da imprensa negra paulistana. Mas, h

    divergncias entre aqueles que pesquisaram a imprensa negra, quanto aos ttulos dos peridicos e datas das primeiras publicaes. Por exemplo, Pinto analisou uma edio do peridico intitulado Propugnador, publicada em 1907. A autora destaca que no foi possvel saber a data provvel da primeira edio. Tais divergncias talvez sejam conseqncia da impossibilidade de ter acesso a tais jornais e pelo fato de ter que recorrer a memria dos informantes. Roger BASTIDE, A imprensa negra no Estado de So Paulo, Boletim da FFLCH-USP, So Paulo, n. 2, p. 50-78, 1951, apud Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986 e Regina Paim PINTO, O movimento negro em So Paulo: luta e identidade, 1993, Tese de doutorado, FFLCH-USP, So Paulo. 21

    Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986. 22

    Ibidem.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    ... A Frente Negra Brasileira tinha objetivos e metas a serem atingidos; seu objetivo primordial era a ascenso social do negro e para tanto as metas seriam: estmulo para estudar, trabalhar, ter casa prpria, e progredir. Com este intuito, sempre presente, eram feitas as domingueiras reunies doutrinrias, tendo por finalidade educar e conscientizar os negros. Nesta ocasio, eram ministradas aulas de higiene e puericultura, aulas de religio e catecismo, conferncias sobre filatelia; as poesias de Luiz Gama eram comentadas, bem como as datas nacionais. Tambm, foram feitas campanhas para que os negros depositassem seus salrios na Caixa Econmica a fim de possibilitar a aquisio da casa

    prpria...23

    A Frente Negra Brasileira teve um clere crescimento, conseguindo

    ampliar surpreendentemente seu quadro de associados, expandindo-se pelo

    interior do estado de So Paulo, alm de outros estados, como Minas Gerais

    e Esprito Santo. Influenciada pelo clima nacionalista vigente na poca, a FNB

    acabou incorporando alguns aspectos da ideologia do movimento

    integralista. Ou seja, pouco apreo pela democracia liberal e simpatia

    explcita pelo fascismo. A organizao interna da Frente j denunciava seu

    carter autoritrio. O quadro dirigente era escolhido por eleio, mas por

    alguns funcionrios que tinham essa incumbncia.24

    Por mais restries que

    se possa fazer a adoo dos ideais fascistas, e ao seu carter desptico, a

    Frente exerceu um importante papel na denncia do preconceito e no

    estimulo a uma reao no meio negro. A seu modo, e com as armas que

    dispunha, a FNB lutou para mudar a situao do negro na sociedade,

    tentando resgatar sua dignidade e auto-estima.

    As associaes estimularam o negro a buscar a ascenso social

    (muitos comearam a comprar terrenos, na periferia da cidade, para

    23

    Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986.

    p. 67. 24

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998 e Teresa MALATIAN, Os cruzados do imprio, So Paulo, Contexto,1988.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    construir suas casas) auxiliando concomitantemente na formao de

    profissionais de nvel universitrio.25

    Como os movimentos sociais no meio negro objetivavam a sua

    integrao sociedade de classes, trabalharam no sentido de conseguir uma

    transformao nos valores e normas, ou seja, uma mudana na forma de

    pensar e atuar: o negro passa a exigir um tratamento igualitrio e a

    denunciar o preconceito racial.26

    Os negros comeam a se organizar para

    lutar por seus interesses, denunciando o racismo e propondo transformaes

    nas relaes raciais.27

    Por outro lado, crescia a insatisfao dos fazendeiros com os

    imigrantes que cada vez mais impunham resistncia s condies de trabalho

    a que estavam submetidos: seja voltando para seu pas de origem; mudando

    de fazenda em busca de melhores condies de trabalho; promovendo

    greves ou juntando economias para comprar sua prpria terra. Em 1927, o

    governo paulista encerrou os subsdios imigrao, fato que iria

    proporcionar novas oportunidades de trabalho aos negros. Portanto, os

    negros ficaram praticamente excludos do mercado de trabalho formal

    durante um longo perodo (1889 a 1920), resultando em vigorosos bices

    para sua integrao sociedade de classes, alm de reforar o imaginrio

    branco sobre o esteretipo da vadiagem negra.28

    25

    Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986. 26

    Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus, 1965. 27

    Regina Paim PINTO, O movimento negro em So Paulo: luta e identidade, 1993, Tese de

    doutorado, FFLCH-USP, So Paulo. 28

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    A gnese dos negros de classe mdia

    Os negros de classe mdia aparecem pela primeira vez, na literatura

    sociolgica, em A Integrao do negro na sociedade de classes, de Florestan

    Fernandes. O autor se refere a esse grupo como negros de elite ou classe

    mdia de cor. A dcada de 1920, marca o advento desse estrato, formado

    por aqueles que conseguiram empregos estveis, muitas vezes, atravs de

    apadrinhamento, que apesar de modestos (moos de recado, contnuos,

    porteiros)29

    , representavam bons salrios e prestgio, quando comparados

    grande massa negra.30

    O servio pblico era a alternativa mais vivel para o negro que

    buscava ascenso social, o que garantia uma distncia do estigma do

    trabalho braal e suscitava a possibilidade dele ocupar postos

    administrativos. Apesar dos cargos ocupados pelos negros no serem de

    grande prestgio na sociedade global (escriturrios, professores de escola

    pblica, contnuos, bedis), ter um emprego fixo representava um

    29

    Florestan FERNANDES, A Integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus, 1965. Algo similar ocorreu com os negros norte-americanos. Nas primeiras dcadas do sculo passado, havia grupos, que mesmo sem ter uma eminncia econmica, possuam um estilo de vida baseado na cor da pele, tradio familiar e padres morais que lhes davam a condio de elite negra, apesar de suas ocupaes modestas: porteiros, barbeiros e metre. Cf. Bart LANDRY, The new black middle class, California, University of California Press, 1987. 30

    A formao da classe mdia negra norte-americana ocorreu de uma forma bem diversa:

    aps a emancipao, os negros foram preteridos pelos imigrantes, nas indstrias do norte. Somente depois do final da Primeira Guerra Mundial e com as restries a imigrao em 1924, os negros tiveram oportunidades de colocao nas empresas. A constituio da classe mdia negra ocorre dentro de um regime segregado; como os brancos se negavam a prestar servios aos negros, dentro da prpria comunidade, foram surgindo profissionais para atender demanda (professores, mdicos, dentistas, pequenos empresrios). Os negros ganharam dinheiro e formaram associaes assistenciais (para auxiliar os doentes, pagar funerais...). A base de sustentao da classe mdia negra era as empresas negras

    (black business), que apesar de serem negcios de pequeno vulto pequenos bancos,

    jornais, lojas varejistas, restaurantes, que serviam comunidade negra representavam um diferencial no meio negro, proporcionando um status diferenciado aos empreendedores. Bart LANDRY, The new black middle class, California, University of California Press, 1987 e Franklin FRAZIER, Black bourgeoisie, New York, Free Press Paperbacks, 1997.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    diferencial, em relao precariedade em que vivia a maior parte dos

    negros.31

    Para Fernandes, os negros em ascenso tomados por sentimentos

    exclusivistas e egosticos, acabavam por afastar-se do meio negro

    segregando-se em espaos de convivncia fechados elite negra. Tal

    comportamento resultava em conseqncias sociopticas no meio negro. A

    mobilidade social de alguns no resultava em benefcio para a maioria, j

    que no proporcionava uma solidariedade entre os negros.32

    Tal falta de

    solidariedade funcionava como um empecilho para o projeto de melhorar de

    vida. O negro que se esforava procura de ascenso social sofria o

    preconceito dos seus parentes e amigos pela crena de que assim que

    aquele negro conseguisse subir na vida deixaria de se-lo, ou seja, seria

    rotulado como um metido a branco. Aquele que visava a uma melhora em

    sua posio social no recebia apoio moral ou material para concluir seu

    projeto.

    O surgimento das elites de cor no fez com que houvesse mudanas

    no imaginrio branco, uma vez que o negro em ascenso achava-se sob

    constante viglia: caso fizesse algo notvel, isso no beneficiaria o grupo,

    mas, se incorresse em algum desvio, seria a prova irrefutvel da sua

    inferioridade. Portanto, a ascenso social do negro no implicou em uma

    redefinio do seu status social nas relaes cotidianas com o branco. O

    negro que sobe era considerado uma exceo que confirmava a regra.

    As anlises das relaes entre negros e brancos no Brasil,

    invariavelmente, contemplam o binmio raa/classe, explcita ou

    implicitamente. No cotidiano, a situao do negro ambgua, pois o

    31

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998. 32

    Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    problema dele ora percebido como uma questo de raa, ora

    compreendido como uma questo de classe. O mito da democracia racial faz

    com que a ambigidade entre raa e classe passe a justificar o modelo racial

    brasileiro, de convivncia democrtica, j que a pobreza no exclusividade

    do negro, pois afeta a maioria de populao. Tal ambivalncia resulta no

    seguinte crculo vicioso: o negro no ascende socialmente porque no tem

    formao (tcnica ou acadmica) para atender as exigncias do mercado e

    no consegue melhorar sua formao, justamente por ser pobre.33

    No Brasil, raa e classe no se excluem mutuamente, so categorias

    complementares utilizadas para estabelecer o lugar do indivduo na

    hierarquia social:

    ...Na verdade, o negro e o mulato so expostos, normalmente, a uma perda real de prestgio social, como se os nveis de classificao da sociedade global no tivessem eficcia para eles. A cor aparece, a um tempo, como marca racial e como smbolo de status. Por isso, ela serve, inextricavelmente, para identificar o negro e o mulato como categoria racial (como preto) e como categoria social (como classe mais baixa). (...) Todavia, como os diferentes nveis sociais no esto saturados nas mesmas propores por negros e mulatos, o branco pode ignorar o fato e agir segundo prticas convencionais, que lhe facultam uma arbitrariedade elstica no tratamento do preto. Ele tanto pode deixar de tratar como preto um indivduo de cor pertencente a uma categoria social inferior sua, quanto pode tratar como preto um indivduo de cor do mesmo nvel social ou de nvel

    social superior ao seu...34

    O negro de elite isolou-se para defender o status que ocupava

    participando de organizaes exclusivistas da classe mdia de cor e

    rejeitando o estilo de vida do negro massa. Portanto, a ascenso social no

    meio negro acaba sendo compreendida como uma forma de traio que

    33

    Joo Baptista BORGES PEREIRA, Raa e classe social no Brasil, In: D INCAO, M. A..

    (org), O saber militante, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 34

    Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus, p. 230.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    compromete a coeso do grupo, em funo do processo de afastamento e

    embranquecimento social, conforme j destacado.

    A associao direta entre raa negra e pobreza restringia as

    possibilidades dos negros em ascenso de usufruir os direitos e garantias

    sociais das elites brancas. Tais direitos, na prtica, funcionavam como

    privilgio dos brancos. Portanto, quando o negro atingia a mesma situao

    econmica do branco e continuava a ser discriminado, ocorria o

    desmascaramento do mito da democracia racial. Para Fernandes, um dos

    fatores que impedia que a contra-ideologia racial dos movimentos sociais, no

    meio negro, fosse mais eficaz, seria a tendncia da classe mdia de cor em

    obter afirmao social atravs de smbolos de riqueza e de prestgio social

    prprios, isolando-se da grande massa negra. 35

    No imaginrio da classe mdia negra de cor havia uma imagem

    ambivalente do negro pobre: em razo de no corresponder s expectativas

    dos brancos, era visto como o nico culpado pela precariedade de sua

    situao, alm disso, era extremamente revoltado ou lamentava-se demais.

    Simultaneamente, os negros de elite admitiam que a cor funcionava como

    uma barreira na luta para melhorar de vida.

    Outro fator que caracterizava a classe mdia negra de cor era seu

    carter precrio, como no dispunha de uma situao real de classe mdia,

    nem sempre possua os recursos necessrios para transmitir o status

    adquirido para seus descendentes. Portanto, um pai que exercesse uma

    ocupao no manual, teria uma grande possibilidade de ver seu filho

    exercendo um trabalho braal.

    35

    Fernandes enfatiza que a classe mdia de cor no composta apenas por indivduos

    em situao de classe mdia, mas, por pessoas que se destacavam da populao negra, por estarem em processo de ascenso social, ou seja, eram aquelas que possuam maior possibilidade de integrao ordem social. Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So Paulo, Dominus, 1965, p. 92, nota 127.

  • 22 _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    Com o crescimento econmico, a partir de 1939, aumentam as

    oportunidades para negros e brancos no mercado de trabalho. O avano

    industrial gerava novos postos de trabalho, as empresas comeavam a

    incorporar o negro, ainda que em funes pouco qualificadas.36

    Alm disso,

    o fim da imigrao estrangeira e a reserva de mercado para o trabalhador

    brasileiro, implicaram no aproveitamento de um grande contingente negro e

    mestio, proveniente do interior de So Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e

    Nordeste.37

    Segundo Fernandes, esse novo estrato social no se distinguia, no

    meio negro, apenas por ter um emprego estvel, mas pela sua estrutura

    familiar. As famlias negras, nas primeiras dcadas do sculo passado, em

    sua grande parte, eram incompletas, constitudas pela me solteira ou

    alguma substituta eventual, normalmente a av.

    Nas elites negras era possvel encontrar famlias completas,

    integradas, preocupadas em manter as aparncias de um bom nvel de

    vida, inquietadas com a manuteno de padres morais, controlando as

    relaes sexuais dos jovens e condenando a promiscuidade dos cortios.

    Comportamentos que viabilizavam, em certo nvel, a oportunidade de

    integrao ao contexto urbano da nova ordem social constituda.

    Ainda de acordo com Fernandes, a desestrutura familiar seria um dos

    principais fatores impeditivos da integrao do negro nova ordem

    competitiva. Mas, acreditamos que essa desestrutura ou incompletude

    familiar aparentava ser mais uma das conseqncias da precariedade das

    condies materiais de existncia, do que uma caracterstica exclusiva dos

    negros. Se as crianas negras perambulavam pelas ruas quando deveriam

    36

    Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus, 1965. 37

    Antonio Srgio Alfredo GUIMARAES, A questo racial na poltica brasileira (os ltimos

    quinze anos), So Paulo, Mimeo, 2001.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    estar na escola, porque a me precisava trabalhar como domstica, para

    garantir a sobrevivncia da famlia, no podendo acompanhar, com maior

    proximidade, o processo de socializao dos filhos. Muitas vezes, para ajudar

    no sustento da casa, os adolescentes necessitavam trabalhar, o que os

    impeliam a abandonar os estudos. Sendo assim, podemos inferir que a

    desestruturao familiar era resultante da pobreza, da posio marginal que

    o negro ocupava na sociedade. Os jornais operrios denunciavam a

    promiscuidade dos imigrantes, que habitavam os cortios, nos quais muitos

    viviam como porcos. Tais peridicos retratavam a preocupao com a falta

    de homens provedores e a quantidade de filhos ilegtimos naqueles locais.38

    Portanto, o padro de famlia desejvel no se relacionava apenas a valores

    morais de determinada raa, mas em boa parte, s condies materiais de

    existncia.

    A classe mdia de cor possua uma atitude diferenciada e no

    admitia a subservincia do negro perante o branco. Do ponto de vista

    sociolgico, rompia-se relao direta entre raa e pobreza, resultando na

    reao discriminatria dos brancos contra a tentativa do negro em

    considerar-se, socialmente, em p de igualdade.

    A principal tcnica de ascenso social adotada pelos negros foi a

    valorizao da instruo. A educao seria um instrumento privilegiado que

    abriria as portas da sociedade, pois a precariedade material e moral no meio

    negro resultaria de um baixo nvel de instruo. Desta forma, as famlias

    negras em ascenso no mediam esforos, fazendo, muitas vezes, com que

    a famlia inteira se sacrificasse para que um determinado filho pudesse

    estudar. Estratgia, alis, que no era exclusividade dos negros. Tal recurso

    foi utilizado por muitas famlias de baixa renda para tentar melhorar de

    vida. Em pesquisa realizada em uma escola secundria localizada na

    38

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    periferia de So Paulo (Vila Diva Zona Leste), no final dos anos 1950,

    Borges Pereira constatou o processo de seleo existente no interior das

    famlias no sentido de que todos os membros conjugassem esforos para

    que, pelo menos um deles, conseguisse cursar o ginsio. Em razo dos

    limitados recursos econmicos das famlias, o que impossibilitava que todos

    estudassem, havia uma mobilizao conjunta para que, ao menos um

    conseguisse obter diploma de nvel secundrio. Como pode ser verificado no

    enunciado do pai de um aluno: Um pelo menos tem que salvar a famlia,

    para mostrar que pobre tambm tem inteligncia e no precisa andar sujo

    como operrio.39

    O estilo de vida puritano seria outra estratgia para romper com os

    atributos negativos impostos ao negro pela sociedade: desordeiro,

    malandro, vagabundo, bbado, desonesto, ladro etc. Segundo

    Fernandes, o puritanismo funcionava como uma estratgia de autodefesa e

    auto-afirmao sociais e tinha o papel de impor um controle sobre o modo

    de vestir, falar e conversar, na correo dos hbitos e aes. O puritanismo

    refletia a nsia do negro em se igualar, ou superar o branco, estabelecendo

    parmetros de comportamento, normas e valores da sociedade global que

    foram fundamentais na efetivao do projeto de ascenso social.

    Como foi dito anteriormente, at a dcada de 1930 as elites negras

    eram compostas por membros da classe baixa que exerciam funes

    estveis, destacando-se da massa negra. Uma das caractersticas desses

    grupos era sua composio heterognea abrangendo desde a cozinheira, o

    39

    Dentre as motivaes que levariam as famlias a tal mobilizao, o autor destaca a

    obteno de status pelo simples fato de um dos membros estar no ensino secundrio. Outra motivao seria o fato das famlias pensarem a educao como um investimento econmico. Ou seja, havia a expectativa de que o membro da famlia que conseguisse formar-se auxiliaria a melhorar as condies de vida do grupo familiar. Muitas vezes, tal esforo resultava em um investimento a fundo perdido, pois quando os alunos foram questionados sobre o que esperavam do estudo, apenas 1% das respostas associava o anseio de estudar a ajuda famlia. Joo Baptista BORGES PEREIRA, A escola secundria numa sociedade em mudana, So Paulo, Pioneira, 1969, p. 71 e 72.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    mecnico, at o desenhista, o contador, o mdico e o advogado, passando

    pelo chofer, pelo escriturrio, pelo corretor, pelo pequeno comerciante e,

    eventualmente, o pequeno industrial.40

    Com o desenvolvimento industrial, nas dcadas de 1950 e 1960, a

    elite negra foi alterando-se, quantitativa e qualitativamente. Estes negros

    passaram a ter um estilo de vida diferenciado e criaram novos espaos de

    sociabilidade que funcionavam como alternativas discriminao, j que os

    clubes de lazer, principalmente os de imigrantes europeus e da alta

    burguesia, exerciam uma poltica segregacionista que impedia o acesso aos

    negros.41

    O primeiro estudo especfico sobre ascenso social dos negros, em

    So Paulo, foi realizado por Borges Pereira no incio da dcada de 1960.42

    O

    autor analisou a integrao do negro no rdio, possibilitada pelo novo padro

    esttico musical, relacionado a um estilo de vida urbano que refletia os

    traos negros da cultura nacional: o samba. Na poca, o rdio e o futebol

    constituam os meios privilegiados para a mobilidade social dos negros. Na

    estrutura radiofnica, os negros concentravam-se, em maior nmero, nos

    setores e posies de menor status, logo, o rdio reproduzia a hierarquia da

    sociedade global que aproveitava os negros nas atividades situadas na base

    da pirmide ocupacional. Apesar disso, o rdio representava, para o negro, a

    possibilidade de um emprego estvel que lhe conferia reconhecimento social

    e oferta de oportunidades inditas de trabalho, tanto no meio radiofnico

    quanto no meio artstico mais amplo. Os ganhos econmicos permitiram aos

    negros radialistas optar por um novo estilo de vida, comprando automveis,

    40

    Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So

    Paulo, Dominus, 1965, p. 266. 41

    Maria Aparecida PINTO SILVA, Visibilidade e respeitabilidade, 1997, Dissertao de

    mestrado, PUC/SP, So Paulo. 42

    Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,

    1967.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    roupas sofisticadas, mudando para uma casa melhor, investindo na instruo

    dos filhos e aproveitando seu tempo livre em viagens tursticas. Apesar da

    aquisio de prestgio social, as relaes do radialista negro com seus

    colegas brancos, restringiam-se ao ambiente de trabalho, raramente, sendo

    convidado para eventos familiares.43

    No perodo que compreende os anos de 1968 e 1974, o pas

    atravessou uma fase de grande crescimento econmico, conhecida como o

    milagre brasileiro. Nessa poca a classe mdia foi beneficiada. Apesar de ter

    havido uma relativa melhora no padro de vida da classe trabalhadora, os

    seus salrios no acompanharam os ndices de inflao. Apesar dos negros

    de classe mdia no terem obtido os mesmos benefcios dos brancos, houve

    algumas possibilidades de ingresso em cargos de nvel universitrio.44

    Em meados de 1970, os negros de classe mdia tinham, cada vez

    mais, noo das barreiras impostas a sua mobilidade social. Crescia a

    conscincia de que o Brasil estava longe de ser uma democracia racial ou

    poltica, logo, a alternativa seria uma nova mobilizao.

    A morte de um trabalhador negro, em uma ao policial, e a expulso

    de quatro negros da ala social do Clube de Regatas Tiet resultaram em uma

    expressiva manifestao dos negros contra a discriminao e a violncia.

    Tais fatos, aliados progressiva insatisfao com a situao social, na qual

    estavam imersos fizeram com que os negros em ascenso fundassem, em

    1978, o MNU (Movimento Negro Unificado). Organizao que objetivava

    43

    Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,

    1967. 44

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    combater o racismo e as desigualdades sociais, lutando por uma autntica

    democracia racial.45

    Em termos de posicionamento poltico, o MNU adotou uma

    classificao racial bipolar, onde os mestios foram includos na categoria

    negro. Desta forma, os negros representariam a maioria da populao. A

    proposta ideolgica era fundamentada na linha terica do marxismo. Sendo

    assim, o problema do negro resultava das formaes sociais capitalistas,

    logo, a resoluo estaria nas transformaes das estruturas socioeconmicas,

    mas, concomitantemente, havia um reconhecimento de que a questo racial

    no podia ser camuflada pela explorao capitalista.46

    O MNU no conseguiu ascendncia sobre a maioria da populao

    negra que, apesar de ter conscincia da discriminao racial, talvez estivesse

    preocupada com questes mais prementes, como a garantia de emprego,

    moradia e alimentao. Apesar disso, a atuao do MNU contribuiu para que

    a questo racial fosse includa na pauta da grande imprensa e nos programas

    dos partidos polticos.47

    Portanto, nas dcadas de 1970 e 1980, o movimento

    negro concorreu para que a sociedade repensasse sua atuao pblica e

    privada sobre as relaes raciais.48

    Nas duas dcadas passadas, houve um aumento, quantitativo e

    qualitativo, dos negros de classe mdia. Em 1997, a agncia publicitria

    45

    Joo Baptista BORGES PEREIRA, Parmetros Ideolgicos de projeto poltico de negros

    em So Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, vol. 24, p. 53-62, 1982 e George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP, EDUSC, 1998. 46

    Joo Baptista BORGES PEREIRA, Parmetros ideolgicos do projeto poltico de negros

    em So Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, vol. 24, p. 53-62, 1982. 47

    Joo Batista de Jesus FLIX, Pequeno histrico do movimento negro contemporneo, in:

    Lilia M. SCHWARCZ e Letcia V. S. REIS (orgs), Negras imagens, So Paulo, EDUSP, 1996. 48

    George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP,

    EDUSC, 1998.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    ______________________________________________________________________ Introduo

    Grottera realiza pesquisa intitulada: Qual o pente que te penteia?. O

    trabalho revelou que havia, no Brasil, cinco milhes de negros com renda

    familiar acima de vinte salrios mnimos,49

    e que, pelos padres nacionais de

    consumo, poderiam ser classificados como classe mdia.50

    A descoberta do potencial de consumo deste segmento da

    populao negra, pelo mercado, fez com que o negro comeasse a ganhar

    uma visibilidade relativa nos meios de comunicao. Em 1995, o jornal Folha

    de So Paulo, em razo do tricentenrio da morte de Zumbi dos Palmares,

    organiza a maior pesquisa sobre a questo racial realizada no pas, um

    investimento de aproximadamente setenta e sete mil dlares. Segundo

    Conceio, um dos principais motivos para tal empreitada seria justamente o

    crescimento da classe mdia negra. Apesar do referido jornal no ter

    obtido um grande retorno financeiro com a publicao dos resultados, obteve

    dividendos em termos de prestgio, principalmente junto aos negros, por sua

    postura de vanguarda em relao ao tema.51

    O diretor de redao, Otavio

    Frias Filho, relata os motivos que levaram o jornal a investir em tal projeto:

    ...A gente no pode ter iluses com relao base social do leitorado dos jornais. Do ponto de vista social um grupo relativamente, um leitorado urbano, basicamente de classe mdia. O que nos motivou a fazer um investimento sistemtico, consistente nessas problemticas ao longo de 95 foi simplesmente o gancho da efemride dos 300 anos de Zumbi, toda a importncia histrica, historiogrfica que o tricentenrio de Zumbi teve, e continua tendo, e

    49

    Segundo a pesquisa da Grottera, a classe mdia branca seria composta por sete milhes

    e meio de indivduos. Em trabalho recente, Figueiredo revela, a partir de dados da Pesquisa nacional por Amostragem de Domiclios (PNAD), que a classe mdia brasileira composta de 30,3% de negros em termos absolutos, 6.697.440 de indivduos e 68,6% de brancos, o que corresponde a 15.146.649 indivduos na populao ocupada nas atividades no-agrcola. Angela FIGUEIREDO, A classe mdia negra no vai ao paraso, 2003, Tese de doutorado, IUPERJ, Rio de Janeiro, p. 74. 50

    Iara Soubihe de PINHO, A mulher negra brasileira na busca de seus espaos scio-

    culturais e a sua imagem na revista Raa, 2002, Dissertao de mestrado, Faculdade de Comunicao Social Casper Lbero, So Paulo. 51

    Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de

    doutorado, ECA-USP, So Paulo.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    secundariamente, do ponto de vista prtico essa talvez seja a razo principal

    -, a gente tem esse diagnstico de que no processo de evoluo da sociedade brasileira, do capitalismo no Brasil, uma quantidade crescente de pessoas negras est sendo incorporada ao que se chama classe mdia. E a Folha tem essa preocupao de estar se antecipando s tendncias e a gente decidiu em 95, a gente procuraria fixar a imagem da Folha no conjunto da imprensa brasileira como aquele veculo mais preocupado com essa questo tnica. Em resumo, a

    motivao foi esta...52

    Em 1996, lanada, pela Smbolo Editorial, a revista Raa Brasil, com

    uma tiragem inicial de 300.000 exemplares53

    . A Raa tinha como pblico alvo

    os negros de classe mdia com poder aquisitivo para consumir produtos

    considerados suprfluos.54

    Inicialmente, a revista foi direcionada para a

    famlia negra; nos ltimos anos, houve uma mudana de foco, atualmente

    dirigida mulher negra. A revista enfoca "comportamento, moda, beleza,

    culinria e atualidade. Em termos publicitrios, h um nmero significativo

    de anncios de cosmticos produzidos especificamente para negros. Mas,

    alm da moda, a revista procura divulgar os negros que conseguiram obter

    sucesso na vida profissional (artistas, jogadores de futebol e empresrios)

    oferecendo uma viso alternativa quela, comumente, veiculada pela

    imprensa sobre os negros.

    Outro exemplo de sinal de visibilidade na mdia, foi a publicao, em

    1999, de uma edio da Revista Veja que trazia como matria de capa, a

    classe mdia negra. A matria composta por oito pginas, destacava o

    crescimento deste segmento nas capitais brasileiras e que seria formado,

    atualmente, por oito milhes de pessoas, representando um tero da classe

    52

    Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de

    doutorado, ECA-USP, So Paulo, 76. 53

    Iara Soubihe de PINHO, A mulher negra brasileira na busca de seus espaos scio-

    culturais e a sua imagem na revista Raa, 2002, Dissertao de mestrado, Faculdade de Comunicao Social Casper Lbero, So Paulo. 54

    Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de

    doutorado, ECA-USP, So Paulo.

  • 30 _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    mdia brasileira. A reportagem trazia o depoimento de alguns negros bem

    sucedidos (empresrios, executivos etc) que narravam situaes

    constrangedoras, vivenciadas em funo do preconceito. Mas, tambm,

    apresentava dados que refletiam as desigualdades raciais no pas.55

    Na histria da telenovela brasileira, o negro, majoritariamente,

    apareceu como subserviente, estereotipado nas fguras de empregadas,

    capangas, malandros, escravos dceis, mulata sensual etc. Somente em

    1985, surgiria a primeira famlia de negros de classe mdia, na telenovela

    Corpo a Corpo, exibida pela TV Globo, na qual a personagem da atriz Zez

    Motta era discriminada pelo pai de seu namorado branco, pelo fato de ser

    negra. Pela primeira vez, o racismo foi colocado como o principal drama dos

    protagonistas. Mas, a famlia de negros de classe mdia que adquiriu maior

    visibilidade, viria em 1995, em A Prxima Vtima. Os Noronha formavam

    uma famlia de camada mdia conservadora, que almejava a ascenso social,

    mas mantinham a preocupao de no romper com os princpios ticos.56

    Apesar da maior visibilidade dos negros em papis no

    estereotipados, nas novelas, (exercendo funes de mdicos, advogados,

    modelos), e de uma presena maior nas propagandas, este segmento ainda

    no est quantitativamente, representado na mdia e, na maioria das vezes,

    sua imagem ainda est vinculada subalternidade.57

    Nesse histrico sumrio do negro em So Paulo, preciso ressaltar

    que desde seu processo de proletarizao, no incio do sculo passado

    55

    Revista Veja, n 33, ano 32, Agosto, 1999. 56

    Joelzito Almeida de ARAJO, A negao do Brasil, 1999, Tese de doutorado, ECA-USP,

    So Paulo. 57

    O esteretipo do negro na televiso brasileira foi analisado por Solange M. COUCEIRO,

    O negro na televiso de So Paulo, So Paulo, FFLCH-USP, 1983. Sobre a representao do negro nas telenovelas, ver: Joelzito, op. cit. A respeito da imagem do negro na mdia impressa, ver: Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de doutorado, Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, So Paulo.

  • 31 _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________ Introduo

    (1920) at os dias atuais, o racismo brasileira proporcionou a ascenso

    social a alguns negros que conseguiram ultrapassar as barreiras de cor,

    portanto, no tivemos a ascenso social de grupos de negros. A mobilidade

    sempre teve um carter individual, a maior parte da populao negra ainda

    est confinada nos estratos mais baixos da estrutura social.58

    Conseqentemente, a mobilidade individual dificulta a consolidao de uma

    classe mdia negra, pois alm da situao de classe no ser instvel (como

    foi exposto anteriormente), no h aes coletivas dos negros que ocupam a

    mesma posio de classe, visando a defesa dos interesses do grupo, com

    fundamento na identidade negra. O termo negros de classe mdia talvez

    seja mais adequado para tratar desses indivduos que conseguiram uma

    mobilidade social ascendente, sem que haja, necessariamente, uma ligao

    orgnica entre eles.59

    Apesar de representar uma pequena frao da populao negra na

    cidade, os negros em ascenso social lutaram para conseguir espaos de

    convvio social atravs de seus clubes e associaes, inaugurando uma nova

    ideologia e um estilo de vida especfico.

    Os dois campos empricos, objetos desta pesquisa, enquadram-se

    nesse contexto: o Aristocrata Clube, fundado em 1961 e a Afrobras, criada

    em 1988, pois em ambos h um projeto de valorizao da ascenso social.

    No prximo captulo realizaremos uma anlise destas duas organizaes.

    58

    Maria Isaura PEREIRA DE QUEIROZ, A ascenso econmica dos negros no Brasil e em

    So Paulo, Cincia e Cultura (SBPC), So Paulo, 1977. 59

    Angela FIGUEIREDO, Novas elites de cor, So Paulo, Annablume, 2002.

  • Captulo 1

    Os campos empricos: Aristocrata Clube e Afrobras

    1.1 - O Aristocrata Clube

    Segundo Moura, o negro sempre foi um organizador. Desde o

    perodo colonial atravs dos quilombos e irmandades religiosas,

    posteriormente, com os grupos religiosos (candombl), escolas de samba,

    organizaes polticas (Frente Negra Brasileira) e clubes de lazer o negro

    construiu espaos de sociabilidade que funcionavam como instrumentos de

    autodefesa em relao sociedade global. Tais associaes exerceram um

    importante papel na histria do negro brasileiro, seja na luta pela abolio da

    escravido, ou na integrao do negro na sociedade de classes,

    proporcionando espaos de entretenimento ou denunciando a discriminao

  • 33 _______________________________________________________________________________

    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

    ______________________________________________________________________

    ______________________________________________________________________

    Campos Empricos

    racial.1 Organizar-se parece ter sido uma das poucas alternativas para a

    sobrevivncia do negro, enquanto grupo, em sua especificidade.2

    Na dcada de 1960, os clubes de lazer adquiriram um carter

    muito peculiar. Nesse perodo, houve uma grande agitao no meio negro.

    Despontaram associaes como o Clube Coimbra e o Clube 220. O Coimbra,

    freqentado por trabalhadores empregadas domsticas, em sua maior

    parte , tornou-se conhecido por promover jogos de futebol e basquete.

    1 Clvis MOURA, Organizaes negras, o povo em movimento, So Paulo,

    Vozes/CEBRAP, 2002. Analisando a decadncia do patriarcado rural (sculo XVIII e incio do XIX), Freyre adverte que o patriarcalismo estimulou o individualismo dos proprietrios e privatismo das famlias. Afora a confraria catlica, foi no escravo negro que mais ostensivamente desabrochou no Brasil o sentido de solidariedade mais largo que o da famlia sob a forma de sentimento de raa e, ao mesmo tempo, de classe: a capacidade de associao sobre base francamente cooperativista e com um sentido fraternalmente tnico e militantemente defensivo dos direitos do trabalhador. Para no falar na forma quase socialista de vida e de trabalho que tomou a organizao dos negros concentrados nos mucambos de Palmares. () Os negros reunidos nos Palmares sob uma ditadura parassocialista, que, segundo os cronistas, fazia recolher ao celeiro comum as colheitas, o produto do trabalho nas roas, nos currais, nos moinhos, para realizar-se ento, em plena rua, na praa, a distribuio de vveres entre os vrios moradores dos mucambos, puderam resistir durante meio sculo de ataques do patriarcalismo dos senhores de engenhos, aliados aos capites-mores. O sistema socialista de vida, organizado pelos ex-escravos em Palmares, pde resistir economia patriarcal e escravocrtica, ento em toda a sua glria. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1981, p. 41 e 42. 2 Mas essa mobilizao dos negros nem sempre ocorreu de forma coerente e linear. Borges

    Pereira, em estudo sobre a atuao e os discursos dos polticos e militantes negros, em So Paulo, na dcada de 1980, destacou a falta de unio e o desacordo perceptveis nas reunies dos movimentos negros, expressos por troca de palavras rspidas entre os participantes. Para o autor, o principal desafio para as associaes negras era criar um nexo de lealdade que unisse os negros de diferentes matizes em torno de um mesmo projeto poltico. A conscincia dos negros de que sua desunio inviabilizava os planos polticos era manifestada de diversas formas: ... no nvel da nominao institucional, quando historicamente escolas de samba ou grupos de folia vm incorporando, quase que obrigatoriamente, em seus nomes as palavras unidos, unio etc., ou, quando, hoje, o movimento poltico mais expressivo e ambicioso, formado em So Paulo, se intitula Movimento Negro Unificado. Encontram-se nas assemblias e reunies, quando a palavra-de-ordem a unio, ou, quando, em acaloradas discusses, repudiam-se sistematicamente

    quaisquer aluses a pluraridade de um e de apenas um movimento negro que

    admite-se possa expressar-se de vrias maneiras e em diversas correntes, sem contudo quebrar sua unidade.... Joo Baptista BORGES PEREIRA, Parmetros ideolgicos do projeto poltico de negros em So Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, vol. 24, p. 53-62, 1982, p. 57.

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    Negros de classe mdia em So Paulo:

    estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares

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    Campos Empricos

    Alm disso, realizava cursos de