capítulo ii o clube das bruxas

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Copyright © 2015 by Antonio Sampaio Dória

Grafia conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Capa

Flavio Pessoa

Projeto gráfico

Verba Editorial

Preparação

Renato Potenza Rodrigues

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Dória, Antonio SampaioAriana e Arion: as bruxas do Rio: (livro i)/ Antonio

Sampaio Dória. — São Paulo: Ed. do Autor, 2015.

isbn 978-85-920147-0-4

1. Ficção juvenil. i. Título.

15-10098 cdd-028.5

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados em nome do autor.

Telefone: (11) 3672-4631

www.arianaearion.com.br

contato: [email protected]

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Ao amigo e mestre Flávio Luiz Porto e Silva,

com minha gratidão por todo aquele trabalho.

Às belas leitoras Stephanie Leone, Vanessa Assumpção Rodrigues e Paloma Batista da Silva, que com seus comentários pertinentes

deram alento a este livro

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Sumário

Prólogo

A FlorestaO Clube das BruxasEntre o Bem e o MalA Deusa Branca de NeveA BaleiaO Poder da MagiaTrês Fios de CabeloArionO Baile da Ilha FiscalO MapaFeitiços que (não) FuncionamDeusas de PedraO Sabá das BruxasA InvisibilidadeA PerseguiçãoMorte à EspreitaMau-olhado, Magia Negra, Pimenta e SalA InquisiçãoO Mundo dos EspíritosAs Deusas na FlorestaO Encontro Trabalho de AmorBatalha FinalFim é Começo

Bibliografia

III

IIIIVV

VIVII

VIIIIXX

XIXII

XIIIXIVXV

XVIXVII

XVIIIXIXXX

XXIXXII

XXIIIXXIVXXV

9

11264356758799

111121140152169185198211226237252272284295317337349367

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PrólogoCaça às Bruxas

Em janeiro de 1993, a polícia do Rio de Janeiro realizou uma série de operações nos morros da cidade, que foi

apelidada de “Caça às Bruxas”. Traficantes de drogas e seus associa-dos foram presos. As prisões tiveram destaque na imprensa, seguidas de processos que tiraram esses nomes de circulação, mas os inscreve-ram na memória do povo.

O preço foi alto: vinte e duas mortes em uma semana. Poucos se incomodaram; era evidente que uma ação tão ambiciosa não poderia acontecer sem um derramamento de sangue. No futuro, qualquer ação policial violenta seria questionada e seus autores jul-gados, se não pela justiça, pela opinião pública. Naquele momento, as prisões foram comemoradas como uma vitória da lei e da ordem.

Passando ao largo das mortes, a imprensa especulou que ha-via um bruxo (também chamado de feiticeiro), que fora capaz de apontar todos os envolvidos para o alto comando da polícia. Afinal, quem poderia reunir tanta informação sobre o crime organizado? No entanto, nunca se soube a identidade do bruxo ou se realmente existiu.

O espaço deixado pelos bandidos presos foi ocupado por ou-tros. Os novos chefes do tráfico aprenderam a lição: deviam não apenas dividir o poder, circunscrito a áreas específicas, como evitar o reconhecimento público, as fotografias, o trânsito de informações. Passaram a apagar as pistas deixadas — o que podia se traduzir em outros banhos de sangue — e lutavam para manter seu ponto.

A realidade dos morros se tornou menos conhecida. A especu-lação em torno de nomes e identidades aumentou. Mesmo assim, os donos do tráfico fizeram o mesmo que os anteriores, gastando

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dinheiro para proteger e agradar as comunidades onde estavam inseridos. Assim, transformavam-se em santos, ou até em persona-gens de cordel. Como o bruxo que desapareceu, tornaram-se uma lenda. Teriam existido? Existem ainda hoje? E, finalmente, se exis-tem e mantêm o milionário comércio de drogas, qual é a relação que têm com a polícia?

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Capítulo I A Floresta

Ariana moveu a cabeça para fora da janela. Viu o Cristo Redentor que, num segundo, se iluminou.

A luz repentina, o brilho contra o céu azul, seria coincidência? No mesmo instante em que se questionava sobre tudo? athame

A natureza: a montanha de rocha escura, o verde rugoso cobrindo o topo, seria até natural acreditar que Deus havia dese-nhado aquele cenário.

De repente, um susto: algo cortou sua visão. O que pareceu um ataque era um pássaro que voava entre os prédios. Desenhava arcos, como se tentasse escrever uma mensagem. Desapareceu na direção da praia.

Ele havia chegado muito próximo.Antes, Ariana interpretava tudo como um sinal. Agora, a expli-

cação de que uma força maior comandava tudo parecia tola. Mesmo que acreditasse, isso não diminuiria a estranheza, a difícil tarefa de viver no próprio corpo. Não podia perguntar a uma colega: “Você também se sente estranha? Seu corpo parece uma onda do mar, se revirando, voltando e desaparecendo?”.

Ariana estava agora no colégio de freiras Imaculada Conceição — transferida pelos pais contra a vontade. Deus era um tema cons-tante: generoso, compreensivo, amigo. Teriam combinado o discurso? “A fé é a base de tudo. O resto é consequência.” Ariana ouvia risos, mas não deixava de pensar na questão.

As freiras andavam sempre com blusas bem fechadas até o pes-coço. Deus era suficiente para levarem aquela vida, aulas, missas e só? Deus, um velhinho de roupa branca, capaz de atender pedidos,

Antonio
Novo carimbo
Antonio
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ou um espírito feito de nuvens? Nenhuma das alternativas a con-vencia.

Com o polegar, apertou o braço até a pele virar um papel bran-co e a dor ficar insuportável. Os músculos, a vermelhidão, essa era uma verdade inegável. O milagre da existência: a vida estava im-pressa em sua pele.

Mas faltava a certeza.Tocou o próprio rosto arredondado diante do espelho, a pele

clara, os cabelos loiros encaracolados caindo pesadamente dos la-dos. Como se a verdade pudesse se revelar. Voltou a olhar o Cristo--farol. O vento vinha do outro lado, da praia. Fechou os olhos.

— Ariana! A mãe entrou no quarto.— Por que você estava debruçada na janela? Não diga que...Ariana não disse.— Parece que você está testando.— O que você quer dizer? — estranhou Ariana.— Para ver se Deus vem te salvar. Daqui a pouco você se joga

pela janela, para ver se ele faz um milagre.— Tenho medo de altura, lembra? Poderia me jogar na frente

de um carro, mas... e se não desse certo? Além de ir para esse mal-dito colégio, teria de ir de muletas.

— Isso não é engraçado, Ariana. Acho que o colégio foi ne-cessário — disse a mãe, balançando a cabeça. — Não respeita mais nada. Antes, você acreditava.

— Isso foi há séculos.— Séculos quer dizer dois anos atrás.Ela tinha razão, pensou Ariana. Dois anos eram mesmo dois

séculos. Maldita hora em que havia se aberto sobre suas dúvidas.— Você está passando por uma fase — continuou a mãe. —

Mas você acreditava. E havia os sinais.Ariana riu.— Você achava que eu tinha algum poder... Alguma ligação

com o além. Isso, sim, é engraçado.— Mas você adivinhava coisas... Via sinais, figuras...Ariana sorriu para si mesma. As fantasias da infância haviam se

desfeito como espuma. Agora, estava só. — E você — perguntou Ariana, em desafio —, nunca duvidou?

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— Nunca!— Nem mesmo com a chegada da Ângela?— Com a chegada... O que quer dizer?— Você não esperava ter uma filha com problemas, esperava?

Além disso, já fez novenas, promessas. Nada adiantou. Deus não ouviu.

Ariana se referia à irmã, que aos oito anos tinha a capacidade mental de uma criança de quatro. A mãe ficou surpresa. Ariana viu o impacto daquelas palavras, o silêncio mudo. Os olhos da mãe se avermelharam.

— Nunca deixei de acreditar...O estrago estava feito. Silêncio pesado, falta de argumentos, só

havia culpa. Ariana se sentiu a pior das filhas.— Desculpe!A mãe entrou na cozinha e começou a dar instruções para Gil-

da, a cozinheira. Ariana só podia remoer o diálogo. Por que estava sendo tão má? Só havia uma resposta: a revolta contra o colégio de freiras.

Virou-se para a janela e viu a figura da mulher de branco, no céu. Parou. A mesma figura da infância, que julgava ser uma fada. Imaginação? Antes, era compreensível ter essas fantasias, mas aos treze anos...

O ano de 2006 não começava bem. Na noite anterior havia discutido com o pai. Antes, a figura imponente merecia admiração, pois ele era um homem importante e “lutava contra os bandidos”. Mas se tornara obcecado pela disciplina.

— Eu não vou jantar — protestou Ariana.— Fique sentada. Coma alguma coisa, disfarce.— Disfarçar? Devo fingir, é isso? Eu tinha esquecido. Você vive

no meio da política. Fingir faz parte.O pai circulava entre políticos, aparecia às vezes no jornal, mas

no dia a dia cumpria funções longe dos holofotes. A sua posição — chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro — resultava da indicação de um político, mas o pai não queria ser considerado um deles. Separava a vida pessoal da profissional para preservar a autoridade.

Ariana questionava a autoridade. A do pai e a das freiras. O pai não tinha fé, mas parecia satisfeito ao vê-la se debater com o militarismo das religiosas.

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— Até hoje não entendi como você convenceu meu pai a me pôr nessa escola — disse Ariana.

— Seu pai não entende de colégios — disse a mãe. — Sou eu que resolvo.

— Entendo bastante de educação — contrapôs o pai. — Mas não teria tempo para ir atrás disso.

— Se eu não cuidasse da educação das minhas filhas, do que eu cuidaria?

Ariana sorriu: renascia o conflito entre eles.— Então, o objetivo de vocês é que eu me torne religiosa.— Não, o objetivo é que você se torne disciplinada — interpôs

o pai. — No outro colégio, você era rebelde e matava aulas!Ariana se lembrou: um dia em que saíra antes do fim das aulas

com as amigas. Resolveram caminhar na praia, segurando os tênis pelos cadarços. De alguma forma o pai ficou sabendo e as encon-trou. Estavam molhando os pés, quando o pai surgiu de terno, os sapatos pretos no meio da areia, como um totem. O cenho franzido. Não conseguia esquecer aquela imagem, os sapatos pretos na areia, afundando, as meias pretas corrompidas de branco. Não conseguiu olhar as amigas nos olhos. Seguiu-o sem olhar para trás, sabendo que elas estavam surpresas. O sol queimava na pele. Depois teve raiva.

— Não sou rebelde — argumentou Ariana. — Só não consigo ficar presa em um lugar.

— Você matava aulas — repetiu o pai, dando a sentença final.Quando ela era criança, o homem alto e anguloso não deixava

dúvidas sobre quem estava no comando. O paletó engomado e o cheiro de tabaco mereciam reverência.

Mas o tempo havia passado. O pai, sempre rígido. Ela, desco-brindo o mundo. Primeiro chats na internet, depois passeios com amigas. Não podia ser mais a bonequinha frágil.

— Mesmo assim — continuou Ariana—, é estranho que você tenha uma filha num lugar onde só falam em Deus. Deus com café, Deus com pão, Deus com manteiga. Sabendo de tudo, vigiando todos. Como se não tivesse mais nada para fazer.

— Por que você estranha tanto? — perguntou o pai. — Porque você gosta de exclusividade — disse Ariana. — Aqui

em casa você sempre foi o único Deus.

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Falou sem pensar. Mas, assim que disse, percebeu que era ver-dade: o motivo para a implicância do pai era o ciúme. Ele queria ser o único homem, o único poderoso naquela casa: a seu modo, uma espécie de Deus.

Um Deus marrom e dourado. A insígnia sobre o peito brilha-va, capaz de elevá-lo ao ponto mais alto da cidade, de onde veria tudo, substituindo o Cristo em seu pedestal.

Devia ser difícil para ele ter sua autoridade questionada, ver que mulher e filhas depositavam em outro ser — um ser masculino — a fé que ele não merecia. E o pior é que não podia revelar que isso o fazia se sentir traído. No caso do colégio, a mãe vencera.

Quem pagava o preço mais alto, no entanto, era ela. Devia se resignar e continuar no colégio de freiras? Não! Precisava reagir. Se sumisse por um ou dois dias... Mas como? Um policial a levava e buscava de carro no colégio. A mãe controlava tudo pelo celular.

Precisava de um lugar para se esconder. Um ou dois dias. Se eles se assustassem... Seria a única forma de se fazer ouvir. Pode-riam deixar que ela voltasse para o antigo colégio.

Voltou a olhar para o mar. A linha do horizonte. De repente, tirou do armário um agasalho de plush azul e escapuliu. A mãe gri-tou: — Aonde vai?

— Caminhar no calçadão.Entrou no elevador.Caminhou até a praia. O mar de Ipanema se arrepiava. O leve

vento indicava uma mudança climática, talvez chuva.Estar ali era sentir-se dona de tudo. Criara o hábito de ir à

praia ao fim da tarde, como se precisasse tomar conta para que nada escapasse, o mar, os banhistas, as ilhas, o horizonte. As pes-soas reclamavam: está frio, está ventando, está calor demais. Ela, não. Simplesmente aceitava. Cada momento em sua singularidade, a transformação natural de uma coisa viva.

O mar. Se tivesse de oferecer alguma coisa valiosa a alguém, seria o mar.

Não parava de pensar: onde poderia se esconder dos pais? Tal-vez um lugar distante e desconhecido...

Um homem moreno olhou-a nos olhos, com um sorriso de cumprimento. Malicioso? Ariana sorriu, sem se deter.

Talvez suas roupas chamassem a atenção. A calça. De um ma-

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terial líquido, modulava a cintura, mas era larga e caía como uma cortina d’água. Algo que nunca vira ninguém usando. Por algum motivo, pensava que era sua roupa de princesa. Tinha a sensação de estar flutuando.

Teve vontade de entrar na água. Havia muito tempo que não molhava os pés. O mar tornava-se violento. A lembrança de que a roupa não era adequada, a mãe reclamando, o mar enegrecendo, tudo a fez compreender. Deu meia-volta.

Encontrou o homem sorridente, a pele queimada de sol.— Faz favor. Onde é o Recreio dos Bandeirantes?Ariana lembrou-se. O antigo colégio fizera uma excursão para

o Recreio, era perto de um parque de preservação ambiental.— Fica depois da Barra, naquela direção.— Estou indo até mais longe. Melhor pegar um táxi?— Acho que sim.O homem fez sinal para um táxi que passava no mesmo instan-

te. Abriu a porta e gesticulou. — Diz que não conhece. É brincadeira? Ou não é do Rio.Continuou gesticulando. Fez uma mímica, pedindo, “explica

para o motorista”. Ariana se dispôs a ajudar. Viu um homem negro ao volante. Deve ser do Rio, pensou. Mas ao lançar as primeiras pala-vras teve a sensação de que ele nada compreendia.

O homem aproximou-se, entre ela e a porta, fez um sinal. Aria-na tentou interpretar, mas foi jogada para dentro. O motorista lhe agarrou o braço, puxando-a, a porta fechada contra si.

O cabelo encaracolado caiu sobre os olhos. Por trás da cortina de fios, se viu no banco de trás. Espiou os dois homens na frente. Da maneira que foi jogada permaneceu, esperando que algo fizes-se sentido. Só teve certeza da velocidade. O carro era coberto de filme escuro, no exterior as luzes brancas brilhavam. Levantou a cabeça e viu a praia iluminada pelos holofotes. Olhou para o braço. A marca vermelha indicava que não era um mal-entendido.

— Não tenho dinheiro, nem a carteira — informou.Nada responderam. Sequestro relâmpago: haviam escolhido a

pessoa errada, ela não poderia tirar dinheiro do caixa, eles fica-riam com raiva, mas talvez a deixassem ir. Embora dissessem que o melhor era dar o dinheiro.

Reconheceu a Prudente de Moraes. A direção era a da Barra,

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o pequeno diálogo começava a fazer sentido. “É brincadeira!”, ele dissera.

— Então essa é a brincadeira — disse Ariana.O homem moreno, que não dirigia, olhou para trás.— Sim, é a nossa brincadeira. Vai ser divertido, fique calma.— Estou calma.A frase surpreendeu a si mesma. Verdade, não estava nervosa,

mas devia estar. Como agiria alguém normal nessa situação? Com um desmaio? Talvez o propósito de tudo isso fosse mostrar que ela não estava do lado dos normais.

Olhou-se no vidro que de tão escuro se transformava em espe-lho. Os cabelos loiros. Do outro lado, carros passando. Tentou dar ao rosto uma expressão de pânico, quem sabe alguém avisasse a polícia. Pessoas normais e medrosas podiam ser salvas.

— Faça-me chorar, Deus, se é que você existe — disse em voz alta.

— Que foi?— Não quero participar dessa brincadeira — arriscou.— Então deita, mocinha.— Não quero deitar.— Deita! — o homem empurrou-a com a mão esquerda e

apontou uma arma com a outra. Ariana entendeu o espírito da brincadeira. Deixou-se cair, até

tocar com o rosto o estofamento malcheiroso. Ao entrarem no tú-nel teve uma pontada de medo. Estavam indo para um bairro dis-tante. Ele não havia mentido, era um bandido sincero.

Um sonho que não podia ser controlado, como todos os so-nhos. Ariana tinha mais medo deles do que da realidade, às vezes acordava angustiada no meio da noite. Agora, vivia uma espécie de fusão. O pesadelo real.

O celular: por sorte tinha saído com ele, tão discreto no bolso do agasalho que não haviam notado. Poderia mandar uma men-sagem. A mãe avisaria o pai, que mandaria os melhores agentes resgatarem-na. Não, ele mesmo viria.

Pressionando o telefone contra o peito, percebeu que seria impossível naquele momento. Bastaria navegar pelo menu, soaria um toque agudo: os desnecessários plins. Um único aviso, e eles lhe arrancariam o telefone.

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Por outro lado, logo receberia uma ligação. Apertou a tecla vermelha para desligar o aparelho. Estava conseguindo pensar, pe-sar seus atos, isso era o mais importante. O descontrole das pessoas normais não seria tão útil. Mas o que sentia?

Sem resposta, acreditou que o raciocínio seria o melhor alia-do. Não deveria ter dito que estava calma, poderia se safar melhor se pensassem que tinha medo. Encolheu-se como um feto.

O carro avançava no meio da Barra, eles pareciam longe do destino. A velocidade tornava impossível um gesto. Para onde a levavam? Refez os fatos. O homem moreno, tipo comum, havia cru-zado com ela no calçadão e sorrido. Em seguida, uma pergunta inocente: “Onde é o Recreio dos Bandeirantes?”. Percebia agora que a sentença era absurda, aquele homem sem saber aonde ir, com sotaque carioca. Um lugar de preservação, florestas. O que po-deria fazer em uma floresta? Passear alegremente, com uma cesta cheia de doces?

O táxi chegando em seguida. Ele se mostrou irritado porque o motorista não sabia o caminho. É brincadeira? Sim, era uma brinca-deira, mas com que propósito? Pediriam um resgate — e isso seria um problema. Seu pai não aceitaria pagar, optaria pelo confronto. Se pudesse usar seu dinheiro depositado no banco...

Entraram em uma área de floresta. Podia ver as árvores, gran-des e escuras, fechando-se sobre a estrada.

De vez em quando sonhava com lugares escuros, fogueiras e gritos. Tudo estava se concretizando agora.

Ao perceber que subiam uma estrada ainda mais distante, re-solveu esconder o celular. Onde? Não na calça justa. Os seios que tinham se desenvolvido poderiam servir. Dentro do sutiã, estava com uma camiseta fechada, podia disfarçar. A ideia de que colocariam a mão ali, para examiná-la, era insuportável, mas qual a opção?

Sentiu o frio do metal contra o peito.A estrada tinha curvas acentuadas. Subiram uma estrada de

terra. Por fim, pararam. Pôde adivinhar o cenário, o mato, o fres-cor verde invadindo. Quando ele abriu a porta e mandou que sa-ísse, mostrando o revólver, não sabia onde estavam. Árvores não tinham uma marca registrada.

— Segue! — O outro já tinha ido para dentro da casa branca, uma espécie de depósito, com uma janela pequena.

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Ariana obedeceu. Andando encolhida de medo, na verdade para não deixar que o celular aparecesse. A porta aberta era um abismo. Talvez nunca mais saísse.

— Vamos! — ordenou o homem.Empurrada, pôs o pé no piso de madeira. Era uma estação

de controle de eletricidade, havia visto uma grande torre metálica. Fusíveis, fios grossos. No meio do espaço havia uma divisória de madeira. Ariana foi mais uma vez empurrada, dessa vez para um canto com um colchão e uma garrafa d’água. Fecharam a madeira que servia de porta. Ficou sozinha.

Sozinha. Ouviu passos, uma conversa. O homem negro tinha um sotaque estranho. Esperou que a conversa amainasse. Sentou--se no colchão de espuma que, apesar de disforme, não estava sujo. Tirou o celular, apertou o botão.

Seria arriscado se entrassem agora. Outros riscos, porém, eram maiores. Estava disposta a morrer se tentassem algo mais.

Nenhum ruído ao ligá-lo. Digitou, errando muito: “Fui presa p 2 sequestradrs tou presa 1 casinha dpois da barra na floresta”. Enviou-a. E percebeu que o telefone indicava Somente emergência.

Ouvia a própria respiração. Tudo estava silencioso, apesar do zumbido onipresente. De repente, o telefone soltou o som carac-terístico de Mensagem enviada. Antes de apertar o botão, o moreno entrou, dando um tapa em sua mão. Ele pegou o celular do chão e o jogou contra a parede, estilhaçando-o.

— Também gosto de celular. Olha aqui.Mostrou um celular como se fosse uma arma. Tirou fotos. Ariana deixou-se cair. A brincadeira não havia chegado ao fim.

Tirar fotos. E depois... pedir o resgate. Nesse jogo precisava estar viva.

O coringa do jogo. A carta valiosa. O que podia fazer? Deu-se conta da passividade em que vivia. Manipulada, transferida de co-légio. Confiara no celular, ele estava em pedaços. Gritar? Não havia ninguém por perto. Fez um esforço. A mensagem fora enviada. Relembrando as palavras, ficou confusa. Tinha escrito que era uma casa com fusíveis e cabos? Queria acreditar que sim. Mas o nervosis-mo. Ou pressa. Estava nervosa? Não, embora estivesse preocupada. Minúcias. Se perdia em divagações. Imaginava que devia ter uma reação diferente, ou que outros agiriam diferente. Escapar. Não

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era do tipo que ficaria esperando, mas talvez até pessoas medrosas pensassem da mesma forma: escapar.

Examinou cada possibilidade, a janela, o vitrô de ferro. Ela-borou estratégias, até ouvir o som de trovão. E depois a chuva. A chuva forte a fez perceber que os pensamentos de fuga eram fantasiosos. Mas ao mesmo tempo a acalmou. A chuva que pa-recia um convite para deitar e contar histórias, como fazia com Ângela.

Acordou com um sobressalto, encolhida no colchão. Pensou que era sua própria cama. A realidade doeu. Se estivesse em seu quarto... De repente lembrou: queria sumir por um ou dois dias. Exatamente o que havia imaginado! A prova de que Deus existia: realizando seus desejos da forma mais cruel. Talvez por ter sido injusta com os pais. Sim, tinha sido injusta. Queria procurar os mo-tivos que a levavam a ser tão estranha, até para si mesma.

Sentiu pena.Levantou-se. Olhou pela fresta da porta improvisada, o ho-

mem negro dormia em um colchão. A seu lado, uma pistola. Podia arriscar e pegar a arma. E correr, mas para onde? Se esconderia no mato. Cobras e ratos seriam seus companheiros.

Onde estava o outro? A ausência era mais significativa do que qualquer suposição. Estaria de guarda, lá fora. Já tinha ouvido que, para os sequestradores, a melhor maneira de corrigir qualquer fa-lha era eliminando a vítima.

Armas: objetos enigmáticos, negros ou prateados. Muitas vezes vira uma de perto, deixada pelo pai sobre um móvel. Era só se apro-ximar para levar uma bronca: “Não mexe, não mexe!”.

Aquela pistola não era das mais modernas. Tinham uma ou duas? O pai guardava uma arma com cabo de madeira brilhante. A preocupação em ser obedecido, mostrar comando, não mexe! Ela questionava a autoridade exercida daquela forma.

Mas se ele conseguisse salvar pessoas como ela, nessa situação, haveria o perdão. O reconhecimento. Provavelmente era o que ele fazia na maior parte do tempo. Salvava pessoas.

Sentiu pena, mais uma vez.Voltou a acordar de madrugada, um princípio de luz entrava

pelas frestas. Escapar!, pensou com um susto. O homem dormia. Que horário seria melhor do que aquele, em que o sono é mais

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pesado? Tinham passado uma corrente na porta, mas havia uma fresta imensa.

Espremeu-se, sem barulho. Passou ao lado do corpo inerte, esticou a mão. Sentiu o frio do metal. Segurou a arma, como os policiais faziam. Chegou à porta. Estava presa ao chão, não por iniciativa deles, mas por ser de madeira grossa. Conseguiu abri-la. Árvores grandes ao longe, de perto só o mato cinzento. O moreno estava no táxi, dormindo no banco reclinado. Desceu os degraus, chegou à quina da casinha.

— Ei!Correu, o cascalho a denunciara. Entrou no mato, chegou à

porção mais adensada. Viu árvores ao longe. Uma elevação. Uma descida. E se desse um tiro?

Sentiu ásperos tocos no rosto. Trocou de direção. Tentou pisar leve. Tirou gravetos. Folhas cortantes. O sangue correu no rosto.

Pisou numa poça. Espirrou e roçou num tronco cortado. Sentiu os fios, espinhos, arbustos, as folhas como sedas em sua

calça, som de velocidade. Espatifou-se em uma poça em que caiu plantada, batendo a

perna.Ouviu passos. Tinha lama nas mãos. Segurava a arma.— Ei! — o moreno surgiu no meio do mato. Veio em sua dire-

ção. Ariana ergueu a arma. Ele parou, surpreso.— Eu atiro! — gritou Ariana, nervosa.O homem correu e sumiu. Por uma eternidade, ela esperou.

Ouviu um ruído. Onde?Ele se aproximou. De lado. Ariana ergueu a arma, o dedo no

gatilho.O moreno, com jogo de corpo, o olhar fixo, chegou mais perto.Ariana apertou o ferro fino e duro. Não atirou. — Espertinha.Ele a segurou pelos pulsos, tirando-lhe a arma. Passou uma

corda. Puxou.— Ai! — Ariana protestou, jogando o peso para baixo. O cano

da arma foi enfiado em seu pescoço.— Vai pagar caro! — empurrou-a.Ariana reconheceu os obstáculos, a vegetação folhada que ti-

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nha atravessado. Resto de um desmatamento. Resíduos traiçoei-ros de árvores ceifadas. O sol despontava. Ao ver a casinha, gelou, como se fosse o seu fim.

O homem negro os esperava de olhos arregalados. Ariana passou por ele com desprezo, na hierarquia dos bandidos não mandava nada. O homem a empurrou ao quartinho. Ariana caiu no chão.

Ela a encarou, na pior posição em que podia estar: deitada, os seios caindo, a camiseta erguida deixando pele à mostra, as mãos amarradas. Pela primeira vez, entendeu. Estava nos olhos dele. Ele se aproximou. Ariana contraiu-se, fechando as pernas, ele a segu-rou pelos pulsos. Então era isso: o pior que podia acontecer a uma mulher.

— Me solta!Ele segurou suas mãos. Não tinha nem metade de sua força,

mas resistiu. Ele usava o peso para dominá-la, pela corda empurra-va suas mãos para trás. Olhou-a com ar de vingança. Ariana mante-ve os olhos abertos. Ele tocou sua cintura, Ariana estremeceu. De repente, ele ergueu os olhos na direção da janela: como se pensas-se em outra coisa, ou sentisse uma dor.

Levantou-se. Ao ver que se afastava, Ariana não resistiu:— Meu pai vai te achar! — Teu pai? — ele estava surpreso.— Você não sabe quem é ele.— Sei mais do que tu pensa. Teu pai tá longe.— Mas pode chegar!— Tu não conhece teu pai, menina.Ariana olhou-o procurando decifrar essas palavras, ele se satis-

fazia com seu conhecimento. Deu uma risadinha irônica. Será que esse sequestro era uma... vingança?

Ele saiu e Ariana teve a sensação de chorar. Mas era sangue.Havia chorado poucas vezes em sua vida. Por que, não sabia.

Estava presa por seus pensamentos. Agora pensava nas consequên-cias das suas palavras. Dera uma informação que eles podiam usar contra si. Limpou o sangue do rosto.

Ainda de manhã empurram-lhe um macarrão. A fome a conven-ceu de que o prato de plástico e a massa amarela estavam limpos. Algumas pessoas ficavam semanas presas. Ao tentar comer, porém, sentiu agulhadas na boca do estômago.

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— Quero ir ao banheiro — disse, depois de ter aguentado muito.

— Tem uma bacia para tu, menina.Só aí entendeu que a caixa de papelão guardava uma bacia de

metal para esse fim. Rejeitou a ideia. A sensação de que ouviriam era insuportável. Preferia molhar a calça.

Começou a ter nojo do corpo que aumentava para todos os la-dos. Sem contar as regras da menstruação, a baixa estatura, os seios grandes demais. Tudo, um castigo. O próprio colégio, castigo, cor-retivo para a rebeldia. Em que momento tinha se desviado? Apenas por ter matado algumas aulas?

Havia algo maior, anterior a seu nascimento. A voz provocativa do homem, “Sei mais do que você pensa”. Mas o que ele sabia? Sim-plesmente que ela merecia tudo aquilo? Um castigo impregnado nos genes. Vindo de longe, se manifestando agora. Algo que ela havia desencadeado com as discussões familiares.

Teve saudades de Ângela. A prova de que na família pode ha-ver o máximo de beleza, o máximo de dor, na mesma existência. Era natural que também tivesse de pagar um preço.

Lá fora o sol ardia. Mas até o sol, aos poucos, perdia sua força.A corda havia afrouxado entre os pulsos. Saltou em direção

à alavanca da janela basculante. Errou. Escolheu um novo alvo. Agarrou a parte móvel do vitrô, que cedeu. A corda não a impe-diu de segurar firme, raspar o braço para se erguer e enxergar lá fora. A beleza de um pico coberto de árvores imensas. Verde e negro.

A surpresa de estar no meio de tanta beleza a emocionou. Ao correr pelo mato não havia percebido. Exatamente como acabara de pensar, era o máximo de beleza, o máximo de dor. Fora preciso ser sequestrada para conhecer aquele lugar.

Os pensamentos se atropelavam. Distraidamente, tocou a cor-rente no pescoço. Finíssima, com um crucifixo. De ouro. Dado pela avó, por isso o usava sempre. Nem pensava no seu significado, mas agora estava claro. Se Deus pudesse intervir... Como? Fazendo com que o pai cedesse.

Ou fazendo com que ela tivesse uma compreensão maior.Para isso precisava viver.Lembrou-se da fada de branco contra o céu. Deixou-se condu-

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zir em oração, da mesma forma que fazia quando era criança. Lá no fundo do céu havia alguém. Por que criaria uma forma de vida tão cheia de curiosidade, de sensações, ideias, se nada disso podia se cumprir? A certeza de que a vida era sagrada. Essa, sim, a base de tudo, o resto, a consequência. Não estava testando, como a mãe dissera, suas dúvidas eram naturais. Nesse momento não tinha mais dúvida: era o que as freiras chamavam de fé.

Ouviu um carro se aproximando. Em seguida, uma conversa entre os homens.

O homem moreno entrou. Abriu a porta, jogando a corrente no chão.

— Vamos! — Puxou Ariana pela corda, mas a garota resistiu.— Não vou com você.— Vai.— Meu pai está chegando, não é?Ele a olhou com superioridade.— Teu pai tá longe. Não vai te ajudar, belezinha.Teve de obedecê-lo.Fora, o outro manobrava o carro.Ouviu-se um barulho de motor. Ariana sentiu o puxão, o homem

enforcou-a com o braço e ergueu a arma. Foi para trás da casinha, usando-a como escudo. Um tiro ecoou, próximo, ele entrou no mato. Segurando-a com o braço suado, soprando em seu ouvido. Teve asco daquela respiração.

— Ninguém ia te matar, menina.— Então me deixa!— Preciso de ti, garota.— Você vai correr mais sozinho.— Espertinha.Avançou nas folhagens sem soltá-la, se posicionou atrás de um

arbusto. Um motor ressoou ao longe. Ele ergueu a cabeça, enten-deu que era um helicóptero. Outros tiros ecoaram.

— Eu mato a menina! Eu mato a menina!Não houve resposta. Ele correu, puxando-a. Mas ela caiu, ar-

rastando-o para o chão. Tentou puxá-la, Ariana agarrou-se a raízes de uma árvore cortada. Mais um tiro. Ele olhou para cima. O ruído se aproximou e o helicóptero ficou visível. Ele armou-se sobre ela como se fosse uma presa.

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Dois soldados chegaram com roupas camufladas do exército. Ele atirou e fugiu. Um dos homens pegou-a no colo e correu. Ela voltou a sentir o mato áspero, viu as copas, as árvores. O policial devia ter escolhido a trilha mais bonita. E desmaiou.

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Capítulo II O Clube das Bruxas

Três dias depois, o carro dirigido por um oficial, seguido por outro com dois agentes, parou diante do Colégio

Imaculada Conceição. Ariana hesitou.Havia acordado do desmaio no colo do pai, no carro. Recostou

a cabeça, enquanto ele passava a mão nos seus cabelos.Ao chegar em casa, havia uma confusão na rua. Repórteres,

equipes de televisão. Ariana subiu entre homens de preto que nun-ca vira antes. Em casa, a mãe quebrou o clima com abraços e lá-grimas. Ângela tentava abraçá-la também. Haviam rezado o tempo todo.

— Nunca me arrependi tanto por coisas que eu disse — falou Ariana, embalada pela emoção. Valia como desculpas por tudo. Desculpas pela vida inteira.

— Vamos agradecer, você está salva, é o que importa.Dormir em sua própria cama, enfim. Mas o esgotamento não

passaria logo. Teve um sonho com homens negros em meio a uma revolução sangrenta. Acordou, teve a impressão de ouvir o pai dan-do ordens aos agentes, eles deviam “ir atrás de Branca de Neve!”. Sim, era difícil separar o sonho da realidade.

Por que hesitar agora? pensou, diante do colégio.Entrou. No pátio, a caminho da sala de aula, reconheceram-

na. Os meninos reagiram como se fosse uma celebridade.— A filha do chefe da Polícia!Uma massa de adolescentes cheia de fermento, formando um

bolo, Ariana estava no centro. Chegou a ser empurrada, queriam se aproximar, ver o curativo no rosto, a única prova palpável, mas para eles suficiente.

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— E o negão?Manteve-se em silêncio, o que só os deixou mais excitados. Re-

cuou na direção do canto, teve a sensação de ser esmagada, as vozes zumbiam, o volume crescia, sentiu vontade de correr.

Magicamente, uma porta se abriu atrás de si. Ariana atraves-sou-a, quase caindo, e em seguida a porta foi fechada. À frente, um menino da sua altura, o rosto redondo como de um anjo, os cabelos enroladinhos, apontou o caminho.

Ágil como o vento, ele subiu um caminho improvável, esca-lando o abrigo dos bujões de gás. Ariana teve dificuldade, mas o seguiu.

As pernas rápidas saltaram pela janela. Ariana o imitou, e en-tão percebeu que estava no corredor do primeiro andar.

— Obrigado, eu...— Entra — ele apontou a sala, correndo escada abaixo. Ariana entrou, sem entender. Não fixou na memória o rosto

angelical do menino, que parecia familiar. Aos poucos, os alunos entraram na sala. Ninguém disfarçava os olhares curiosos na sua direção.

— Você está bem? — perguntou Anabela, uma das poucas me-ninas com quem conversava.

— Mais ou menos. Virei um bicho no zoológico!— Vai passar.Ariana ficou pensando no menino com rosto de anjo: como

ele podia estar ali, atrás da porta, na hora exata? Ele sabia qual era sua sala — pelo visto, era mais conhecida do que supunha.

O professor de Ciências entrou, pediu silêncio e começou a aula. Depois de minutos de cópia da lousa, chegou um bilhete: Você pode contar para a gente o que aconteceu? Guardaremos segredo!

Seu isolamento estava sendo quebrado da forma mais radical possível. Até então não quisera se integrar ao ambiente — uma vingança surda contra os pais. Ali as meninas eram mais fúteis, os meninos mais briguentos. Não se identificava.

O que fazer quando chegasse o intervalo?Antes do intervalo, no entanto, foi chamada por uma freira.

Irmã Irene, a diretora, a esperava em sua sala. Ao entrar, recebeu um inesperado abraço da irmã.

— Está bem, filha?

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— Sim — afastou-se, antes que ela continuasse com o drama.— Graças a Deus. Sente-se.Ariana encarou-a do outro lado da mesa.— Todos ficaram alvoroçados com a sua presença. Imagina-

mos que você só voltaria depois de uma semana.— A psicóloga disse que o melhor era voltar à normalidade.— Vejo que é corajosa. Mas eles... — abaixou a voz — fizeram

alguma coisa?— A senhora quer dizer...? Não! Nada.— Graças a Deus!— Por que me chamou, irmã?— Considerando a expectativa geral, e o fato de que está mui-

to bem... por que não conversamos sobre isso, em sala? Serviria como alerta a todos! Se você se sentir à vontade, claro.

— Onde? — estranhou Ariana.— Na sua sala. Seriam apenas duas classes, as oitavas.— Não sei, irmã. Os outros continuariam me perseguindo.— Fomos pegas de surpresa. Não tivemos tempo de preparar

os alunos. Daremos orientação para ninguém incomodá-la.Ariana imaginou as perguntas. E a possibilidade de dar respos-

tas chocantes, que fizessem cair os queixos. Escondeu um sorriso, deixou que a freira se justificasse. Por trás do rosto magro, adivi-nhava uma curiosidade tão grande quanto a dos outros.

Meia hora depois, estava sentada à mesa do professor, ao lado da irmã. Cerca de oitenta alunos lotavam a sala.

A freira conduziu as perguntas: como eles a haviam abordado, onde, para concluir que certos lugares deveriam ser evitados. Aria-na contrapôs: a praia era um lugar a ser evitado? Irmã Irene disse que tudo dependia do horário. Conversas com estranhos, assim, voltavam à categoria de comportamentos indesejáveis, como se eles tivessem seis anos de idade.

— Não cheguei a ficar com medo, sinceramente. Acho que, no fundo, eles não eram agressivos. Tanto que consegui fugir.

— Fugir?— Para o mato, de manhãzinha. Não escapei por pouco!— Será que isso é recomendável? Não poderiam ter atirado?— Eu roubei a arma deles.Um murmúrio subiu entre os alunos.

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Irmã Irene já estava arrependida da ideia. Mas todos vibraram com a descrição da fuga no mato, o bandido perseguindo-a.

— E estar longe da família, sem saber o que ia acontecer?— Na verdade, consegui mandar uma mensagem pelo celu-

lar. — Então detalhou sua estratégia para ocultá-lo. À menção da palavra “sutiã”, ecoaram gritos excitados dos meninos. A religiosa estava a ponto de desistir. Ariana se transformava em uma heroína com apelo erótico.

— Como você encontrou forças? Em que se apoiou?— A senhora quer dizer...— Não pensou em Deus?Ariana hesitou. Não havia dito nenhuma inverdade.— Eu não costumo rezar — disse Ariana. — É um hábito que

ficou para trás. Mas dessa vez cheguei a rezar, pedi proteção.— E se sentiu melhor?— Sim... Fiquei calma. Como vocês dizem, tive fé.Irmã Irene não conseguia se conter, inchada de satisfação. Por

pouco não estourou.Ao perguntarem sobre os bandidos, Ariana respondeu:— Não posso falar a respeito. É uma orientação da polícia.O mistério deixou todos fascinados. Ao final, a freira consta-

tou em voz baixa:— Você é mesmo corajosa. Mas diga uma coisa... Ariana esperou.— É verdade o que estão dizendo? Que fizeram isso para atin-

gir a polícia do Rio? — Meu pai disse que é segredo, irmã.Ariana sorriu ao pensar no segredo — tão secreto que nem ela

sabia. As aulas chegaram ao fim. Ariana preferiu continuar na sala,

até esvaziar. Ao sair, encontrou Anabela no corredor.— Olá — disse ela —, está melhor?Ariana assentiu, mas não entendeu.— Vou ser direta — admitiu Anabela. — Tenho um convite a

fazer.— Convite?— Eu gostaria... nós gostaríamos que você entrasse no clube.— Nós? Quem está convidando?

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— Uma delas é Amanda, conhece?— Conheço.Amanda era uma das meninas mais altas e bonitas da sala, im-

possível não saber.— Mas... que clube é esse?Anabela fez um ar misterioso.— É o Clube das Bruxas.Ariana entendeu o jeito travesso e ao mesmo tempo sério.— Clube das Bruxas... o que significa isso?Anabela, de repente, ficou branca. Como um fantasma.— E então? — insistiu Ariana. Anabela não respondeu.— Meninas? — a voz de irmã Irene ecoou no fundo do corre-

dor. — Estão saindo?— Claro, irmã...E saíram para a área externa. Anabela estava lívida.— Não entendi — repetiu Ariana. — Clube das Bruxas?— Bem... — a menina havia perdido o ímpeto. — Nós... forma-

mos esse clube... Mas é segredo, ninguém pode saber.— Por que eu?— Você é corajosa, enfrentou os bandidos. Nós também temos

de enfrentar muita coisa.— E como funciona?— Antes, faremos algumas perguntas. Se você não quiser, o

assunto morre aqui.Ariana ficou olhando para Anabela.— Posso imaginar. Os feitiços... Caldeirões, sapos e vassouras.

Onde escondem tudo isso?— Você não acredita?Ariana percebeu que seguia o mesmo rumo: não conseguia

mais ter fé em nada, e isso a afastava das pessoas.— Por que vocês fizeram esse clube?— Para nos defender.— Defender?! De quê?— Ariana, sei que você enfrentou bandidos, mas este colégio é

um dos lugares mais perigosos que existem!Ariana olhou-a, atônita.— Hoje é sexta-feira. Você tem o fim de semana para pensar.

Me procure na segunda — disse a menina e saiu apressada.

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Ariana ficou imóvel. O fim de semana para pensar! De alguma forma tinham conseguido. Um milhão de perguntas não poderiam ser respondidas em dois dias.

Foi para o pátio, chegou à rua. O motorista a esperava do ou-tro lado. Antes de atravessar, viu aquele menino, de cabelinho en-rolado e ar angelical. Ele a encarou.

— Posso te perguntar uma coisa?Ariana ficou surpresa. — Pode...— Quem foi que te sequestrou?— Dois homens, você não ouviu quando eu disse?— Alguém estava por trás deles. O mandante, quero dizer.Ariana ficou confusa.— Não sei.— E não vai querer saber?— Bem... não havia pensado nisso. Será que é importante?— Claro que é. Por isso esses polícias estão aí — disse ele,

apontando os dois carros. — Eles podem tentar de novo.— Obrigado, isso me deixa mais calma.— Se quiser, eu te ajudo a descobrir quem foi.— Você? Impossível!— Impossível por quê?— Você é muito criança.Ele ficou ofendidíssimo. Ariana não podia ter escolhido pala-

vra pior.— O que eu quis dizer... você é pequeno, é isso.— Acha que não existem vantagens em ser pequeno?Ariana encarou-o sem entender.— E... como surgiu atrás daquela porta?— Tenho meus truques — ele sorriu.Ariana entrou no carro: nunca ouvira tantas perguntas em sua

vida. Ser o centro das atenções não era nada agradável, menos ainda estar cercada de policiais. Olhou para trás: o menino não havia desistido, seguia os carros de skate!

E o convite para entrar no “Clube das Bruxas”? Se dissesse não, ficaria marcada como inacessível. E se dissesse “sim”? Podia ima-ginar as conversas, bobinhas, conduzidas como se fossem as mais adultas do mundo. E as perguntas? Começariam com “Você já bei-

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jou?”. Perguntariam seu signo. A sua cor preferida. E acenderiam uma vela.

Ao chegar em casa, correu à televisão. Zapeou por todos os canais, até encontrar o que queria: Crise na Secretaria de Segurança Pública, dizia a legenda.

Depois que a filha do Chefe da Polícia Civil, Vladimir Leme da Cos-ta, foi sequestrada, surgiram críticas sobre a capacidade da polícia de enfrentar a criminalidade. O resgate foi efetuado com sucesso, mas as críticas continuam.

Finalmente viu sua própria imagem, dentro da grande suv pre-ta: seu rosto com a marca de sangue, o cabelo despenteado, estava horrível. A cena incluía um close nítido. Com expressão assustada, ficou constrangida ao se ver. Por isso todos sabiam!

Mostraram o “cativeiro que havia sido desmontado”, o que soava inadequado, já que ninguém havia desmontado nada. Um homem importante afirmava que tudo podia ser coincidência. O apresentador concluía:

Nem mesmo o alto comando da polícia pode evitar ações como essa. A falta de segurança está generalizada. É triste, mas simbólico.

Ariana podia imaginar discussões, até a interferência do gover-nador. Esperou pelo pai. Mas ele não chegou.

— Está sob pressão — explicou a mãe.— Por causa do sequestro?— Não sei...— E o que aconteceu com os sequestradores?— Foram mortos.— Mortos? Mas aquele homem estava fugindo. O policial ti-

nha me salvado. Por que matá-lo?A mãe fez uma expressão contrariada.— Não entendo dessas questões.— Eu entendo. Estava lá e sei como aconteceu.— Você é muito ingênua, filha! Nesses confrontos, alguém

precisa ser mais forte. Felizmente, foi a polícia.— Podiam dar informações... O que queriam, muito dinheiro?

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— Não chegaram a entrar em contato.— E quem foi o mandante do crime?A mãe se surpreendeu com a astúcia da filha.— Não sabemos se houve um mandante, Ariana. Pode ter sido

engano.— Estão dizendo que foi contra a polícia do Rio.— As pessoas falam. Nem o seu pai sabe o que aconteceu ainda.Ariana esperou que o pai chegasse, mas a noite avançou e caiu

no sono. No dia seguinte, ao acordar, o pai já havia saído. Em situ-ações de crise, ele ficava fora o tempo todo.

O que ela diria às meninas no colégio, que esperavam uma resposta?

Suas amigas de verdade estavam em outro lugar. Havia se dis-tanciado, mas resolveu ligar para uma delas.

Ariana inteirou-a dos fatos recentes, o sequestro. Ela ficou sur-presa, queria saber detalhes, mas não agora, pois fariam uma reunião na casa de outra amiga. Ariana notou que o nome dessa “amiga” não foi mencionado: novos desenhos de relações estavam sendo traçados.

O mundo em transformação. Ela havia parado, como uma es-tátua orgulhosa, esperando que o mundo parasse também. E ainda estavam em março! Seria possível permanecer alheia, isolada na-quele colégio, até o fim do ano?

*

Na segunda-feira, aproximou-se de Anabela.— Preciso saber mais a respeito. Do clube, quero dizer.— No intervalo conversamos.Ariana mais uma vez notou olhares. Estava imaginando coisas?

Uma ansiedade a dominava. Que perguntas poderiam fazer?No intervalo, Amanda, a bonita morena, apresentou Ariana às

integrantes do clube: — Conhece nossas amigas?Ariana não as conhecia, eram da outra classe.— Angélica.Loira e nem um pouco alta, ela a fez se sentir menos baixinha.

Mas os olhos delineados de preto, a roupa muito apertada lhe da-vam aflição.

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— Andrea.Felina, linda, ronronou ao cumprimentá-la, sorrindo. Em ter-

mos de altura, estava entre Amanda, a mais alta, e Anabela.Para onde iriam? Subiram escadas. Imaginou a biblioteca, mas

continuaram subindo. Chegaram a uma espécie de sótão.— Que lugar é esse?— Era um depósito. Aqui temos privacidade. Diziam que havia

um fantasma — divertiu-se Amanda. — Viemos verificar e acaba-mos ficando. Pusemos essas banquetas.

— Elas deixaram? As freiras?Amanda não conseguiu evitar um sorriso.— Não pedimos permissão.— Ninguém percebe?— Aqui é o quarto andar! — disse Amanda. — Se alguém per-

guntar, estamos indo à biblioteca. O único cuidado é não falar alto. Fazemos rituais do coven aqui.

— Coven? O que significa isso? — perguntou Ariana.— Coven é o nome de um grupo de bruxas. Sentem-se.Ariana sentou-se em uma banqueta. Podia sentir os olhares

caindo sobre si. — Gostaria de perguntar alguma coisa? — disse Amanda.— Sim, não entendi o que significa Clube das Bruxas. Parece

coisa de livro.— Você pode supor que fazemos bruxarias... Dizemos feitiços.

Para quê? Depende do momento. Livros, sim, nós lemos muitos. Mas o que importa é a união. Se uma de nós quer alguma coisa, as outras apoiam. E tudo isso é sigiloso.

— Entendo... E o que vocês queriam perguntar?— Podemos começar?Um calafrio passou por Ariana.— Sim.— Vamos lá: você acredita em Deus?Se acreditava em Deus? Inacreditável. Não havia outro assunto?

A sensação de que os fatos se enredavam de forma absurda e ao mesmo tempo lógica era insuportável.

— Bem — começou Ariana. — Não sei por que perguntam, mas não tenho certeza. Sim-

plesmente não tenho!

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— Calma — sorriu Amanda. — Essa resposta está boa para nós. Mas lembre-se, você disse a todos que rezou durante o sequestro.

— É verdade, mas esse fato, eu mesma desprezo isso.Olhos se arregalaram.— Explique.— Sim, apelei para Deus. Foi uma fraqueza. Antes, eu despre-

zava essa postura. De só pensar em Deus no momento de dificul-dade.

— Interessante — disse Amanda. — Interessante…— As freiras não me ajudaram a mudar essa opinião. — Elas deixam a gente com alergia de religião! — riu Angéli-

ca, a loirinha insinuante. — Você menstrua? — continuou Amanda.Ariana sentiu o sangue afluir no rosto.— Sim.— Desde quando?— Desde o ano passado.Angélica aproveitou a deixa:— É virgem?— Sim... Por quê?— Tudo isso é importante por uma questão de energia — ex-

plicou Amanda. — Por falar nisso, quantos anos você tem?— Treze. Fiz no começo do ano, em janeiro...— Você é a mais jovem de nós! Eu tenho catorze, vou fazer

quinze — disse Amanda. — Angélica também. As outras logo vão fazer catorze. Tem interesse por algum menino da escola?

— Não!— Prefere mulheres? — cortou Angélica, afiada.— Não! Por que essa pergunta?— O que Angélica quis dizer... é se você se interessa pelo que-

ridinho de uma de nós. Isso seria um problema.— Esse problema vocês nunca terão. Nunca! — Ariana foi ca-

tegórica. — E os nomes? Todos os nomes aqui começam com A.— É uma coincidência. Mas será que existem coincidências?

— pontuou Amanda. — Quando vimos seu depoimento...— Foi por causa da letra?— Uma soma de fatores. Você é corajosa. É nova na escola. E

pensamos que seria bom para você sair da sua nuvem particular.

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Ariana enrubesceu.— Chegou a hora de revelar algo — disse Amanda.— Revelar? — espantou-se Ariana.— Talvez você não saiba, mas a bruxaria é uma religião. Quem

a salvou do perigo não foi Deus, mas a Deusa.— Como vocês podem saber?— A Deusa cria a vida e protege a vida. É ela quem se manifes-

tou para a sua vida ser preservada, Ariana.Ariana ficou sem resposta.— Bem... Não sei...— Você acabou de receber a informação, é normal ter dúvidas.

Mas para participar do clube, é preciso considerar a possibilidade... de acreditar na Deusa. Porque ela é quem nos dá poder. Você acha que poderia, Ariana?

Ariana percebeu que essa resposta era a mais importante. Acre-ditaria na Deusa? Todas as dúvidas pareciam retornar.

— Mas o que vocês conseguem com os feitiços?— É possível conseguir qualquer coisa.— Por exemplo?— O amor — disse Amanda —, Angélica conseguiu atrair o

seu amado assim.A loirinha ficou orgulhosa. Ariana não se empolgou.— Anabela disse que vocês criaram o clube para enfrentar pe-

rigos. Que perigos terríveis são esses?Amanda refletiu. Subiu na banqueta, olhou pela janelinha. — Venha ver você mesma! Elas estão lá no pátio, sentadas.Ariana subiu na banqueta. Viu três meninas de cabelos lisos.— São muito bonitas — constatou. — Justamente. São as belas. Muito bonitas e arrumadas, moram

na Barra, mas nós também somos bonitas — e inteligentes. Elas se dizem contra as freiras, mas o que fazem a respeito? Nada! Nós fundamos o Clube das Bruxas. Percebe a diferença?

— Quem são elas?— Fabi, Dani e Sheila. Capazes das piores coisas.— Então elas representam o perigo — murmurou Ariana, cética.— Você não acredita? — Amanda olhou-a.Ariana empalideceu. Mais uma vez, a descrença se impunha

como um fosso.

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— Você devia conversar com elas — decretou Amanda, com um brilho de maldade. — Por que você não desce para o pátio?

— Mas eu... não as conheço.— Desça! — ordenou Amanda. — Elas vão falar com você.Ariana desceu, incrédula. Havia duvidado, esse era o preço. O

que podia acontecer? As bruxas acompanhavam o som dos passos.— Será que ela percebeu alguma coisa? — perguntou Anabe-

la, receosa.— Como poderia? Ela não sabe nada de bruxaria — concluiu

Amanda.Ariana chegou ao pátio ensolarado. As belas conversavam,

cabelos claros esvoaçando como véus brilhantes. Uma alta, outra mediana e a outra menor. Bonitas, de fato. De repente, olharam em sua direção. A loira mais alta tomou a dianteira. Era tão alta quanto Amanda, porém mais corpulenta. Ariana teve uma sensa-ção ruim.

— Você não é Ariana, a do sequestro?— Sim, sou...As outras duas também vinham na sua direção.— Que situação complicada a sua! O que estão falando a res-

peito do seu pai é verdade? — a voz suave e fina como um estilete.— O quê?— Que ele tinha um acordo pessoal com os bandidos. Aí as

coisas não deram certo, como geralmente não dão, e eles fizeram o sequestro por vingança?

— Acordo com os bandidos? Meu pai?!— Sheila! — gritou uma das amigas.Ariana encarou o belo rosto com ódio. Os olhos claros, trans-

parentes, eram um poço sem fundo. A loira se curvou, caindo. — Ai! — gemeu. O rosto já não era tão belo.— Sheila, o que aconteceu? — perguntou a outra.— Me senti mal... Acho que foi o sol. Meus olhos são muito

claros!Claros e gelados, pensou Ariana.— Sheila, o que você falou?— Apenas repeti o que ouvi por aí. Não fui eu que inventei,

ora. Não tenho culpa!Ariana se afastou; ela realmente parecia estar mal. De alguma

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forma, havia pagado por suas palavras. Amanda, Anabela e compa-nhia chegaram ao pátio.

— O que aconteceu?— A loira, Sheila, falou do meu pai... Ela não tinha esse direi-

to! — protestou Ariana. — Dizer que ele tinha um acordo com os bandidos, isso é absurdo!

As bruxas se entreolharam.— O que foi? — perguntou Ariana — Já tinham ouvido isso?— É o que estão falando — disse Amanda. — O que não quer

dizer que nós concordamos, Ariana.Ariana olhou-as sem saber o que pensar. De onde havia surgido

esse rumor?— Vamos! A aula vai começar — ordenou Amanda.— Vocês sabiam o que as belas iam dizer? Como?— Nós não sabíamos. Nós mentalizamos.— Mas...— Começou a acreditar agora, Ariana?A aula já começava, elas mereceram um olhar zangado do pro-

fessor. Precisava perguntar, esclarecer. Ao fim da aula, porém, as bruxas estavam com pressa, e Amanda entregou a Ariana um papel dobrado com o horário do próximo encontro. Ao descer a esca-da, esta cruzou com uma menina ruiva, que parecia assustada. Os olhos negros furavam a pele branca, fazendo-a parecer albina.

— Olá! — disse Ariana.Seria impressão, ou ela estava mesmo encarando? Não, devia

estar imaginando, era muita coisa de uma vez só!

*

A tarde demorava a passar. Ariana tinha um sentimento ao qual não sabia dar um nome. Seria possível que a bruxaria desse às colegas algum tipo de poder? Nesse caso, qual?

Voltou a sentir necessidade do mar. Sua mãe não deixaria, mas cinco minutos não fariam mal a ninguém.

Ao chegar ao mar e ver resquícios de água, ouviu um grito.— Ariana!Ao longe, na areia, havia um policial.— Sua mãe está chamando. Volte!

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Em casa, a mãe reagiu:— Foi praticamente ontem! Você perdeu a cabeça?— Acha que vão me sequestrar de novo?— Vou fazer como teu pai e te mandar para o quarto. De cas-

tigo!— Isso não vai resolver a questão. As coisas estão mal explica-

das. As pessoas estão perguntando, até a freira. Digo que é segredo, mas eu mesma não sei!

— Perguntando o quê? — assustou-se a mãe.— Por que fui sequestrada? Foi algo contra a polícia? Está es-

quisito, vocês se recusam a dizer. O bandido disse que... eu não conhecia o meu pai.

— Ariana, o que você quer dizer?— Não sei, era o tom de quem estava acusando.Ariana havia conseguido, a mãe foi tomada de aflição.— Mas Ariana... — a voz morreu. A expressão falava.— Tem mais: as pessoas estão fazendo insinuações. Dizem que

a polícia tinha um acordo com os bandidos. A polícia quer dizer: meu pai.

— Impossível!— O sequestro foi uma vingança, estão dizendo.— Seu pai é honestíssimo, Ariana. Ele não faria acordo com

bandidos!Inútil continuar. Ariana foi para o quarto. Havia, sem planejar,

verbalizado sua angústia.Depois de um tempo, a mãe apareceu. A expressão mudara. — Ariana, você tem razão.— Eu tenho razão? Que milagre é esse?!— Há coisas que você não sabe, mas eu também não.— Você quer dizer...— A polícia. Eles têm segredos. Seu pai sempre disse que não

podia contar tudo. Que eu não podia saber informações sigilosas.— E você concordou?— Sim.— Lamento. Eu não conseguiria viver na ignorância.— É para a nossa segurança, Ariana! Ou você gostaria de saber

o que fazem os ladrões, os assassinos, os traficantes? Para depois ser sequestrada, torturada?

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— Mas eu fui sequestrada!— Por engano, aparentemente, e você voltou inteira. Mas se

tivesse informações, eles iam fazer de tudo para arrancá-las. Tudo!O ímpeto daquelas palavras criou um vácuo. A respiração alte-

rada da mãe, a emoção interrompida. — Eu não sou medrosa, mãe.— Seu pai está investigando. Se descobrir o que aconteceu, vai

dizer.— Ele já se acostumou a não dizer.— Então, pergunte. Mas espere a tensão passar. Ele está ner-

voso.O assunto estava encerrado. Mas Ariana não se resignaria. O

pai chegou à noite. Entrou em silêncio, sem acender as luzes.— Pai?Podia sentir que ele não estava em seus melhores dias. Parou

no escuro.— Pai, estão me perguntando... por que fui sequestrada.— Agora não, Ariana! Vou ter uma reunião.— Reunião?O pai saiu à luz e Ariana viu seus olhos pálidos.— Não é a primeira vez.Havia alguma coisa implícita na voz. Ele estava muito pensati-

vo. Ariana engoliu suas perguntas.A reunião começou às nove horas. A mãe ajudou a servir os

delegados na sala. Ariana deixou a porta do quarto entreaberta. Ouvia frases soltas, mas nenhuma referência ao sequestro.

Mais tarde, falaram de Branca de Neve e Rapunzel. Devia ser engano, mas os nomes foram repetidos, o que a fez pensar em uma piada — haviam bebido. No entanto, eram delegados, até as piadas tinham de fazer algum sentido. Chegou a ouvir também uma men-ção à Bruxa, seguida de risadas.

Estaria sonhando? Não, estava acordada, e aquela conversa era mais um motivo para não pegar no sono. Quando saíram, foi à sala.

— Pai...Ariana calou-se ao ver um homem ao lado da porta. Jovem, ele

segurava um envelope de papel pardo. Cumprimentou e saiu. — Desculpe, não sabia que havia alguém... Por que ele estava

com um envelope?

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ariana e arion

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— Por quê? — o pai estranhou. — Por que quer saber?— Pai, ouvi falar de Branca de Neve, Rapunzel... Ouvi bem?— Estava ouvindo escondida, Ariana?— Saí para o banheiro... O que isso quer dizer?— São nomes de bandidos, ou melhor, apelidos. Você pode

imaginar que não querem ser conhecidos pelos nomes verdadeiros.— Por que justamente esses apelidos? Também falaram de

uma bruxa...— Bruxa? Não existe nenhuma bruxa.— Mas... eles disseram! Não estou louca. Ouvi, sim.— Só se foi quando saí da sala.Bruxa... Justo esse nome não podia ser real. E se o pai desco-

brisse que estava entrando na bruxaria?— Pai, tem uma coisa... — Ariana tateava. — Durante o se-

questro, o bandido fez insinuações e chegou a dizer... que eu não conhecia você. Por que ele disse isso?

— Por que não perguntou a ele? — a voz dura como pedra ricocheteou nas paredes.

— Mas pai...— Está me acusando de alguma coisa, Ariana? Estou atrás de

todas as informações para você me acusar?A indignação paterna a gelou.— Claro que não, pai! Mas... estão falando que o sequestro foi

contra a polícia... — Não teria coragem de verbalizar suas dúvidas mais cruéis.

— Você não sabe o que é uma investigação, Ariana. Bandidos contratam outros bandidos para certas ações. Chegar ao verdadei-ro responsável leva tempo. Quero ir ao fim da investigação. Isso se você não atrapalhar.

— E como eu poderia atrapalhar uma investigação? — O es-panto na sua voz não podia ser mais autêntico.

— Fazendo perguntas, por exemplo, aos oficiais que dirigem nossos carros.

Ariana estava abismada. Nem sequer imaginara a possibilida-de. Mas se o próprio pai dizia... Ele a olhava com severidade. O azul de seus olhos, quando ela era criança, parecia de uma perfeição inatingível. Ela nascera com olhos cinzentos.

— Eu nunca faria perguntas... aos policiais. — Mas a vontade

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as bruxas do rio

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de saber continuava imensa. — E tenho de sair sempre com eles, ser vigiada o tempo todo?

O pai expirou. — Pai, eu não posso ser uma prisioneira.— Espere dez dias. As investigações serão concluídas. Se foi

um engano, como tudo indica, você poderá andar sozinha.Ariana teve a sensação de que não seria exatamente uma in-

vestigação. Aquela reunião indicava que fariam algo mais radical, aquelas ações que apareciam na tv. E o pai acompanhava as opera-ções de perto, deixando a mãe em pânico. E aquele homem com o envelope? Não parecia delegado, era jovem demais. De alguma forma, teria de saber. Mesmo que fosse preciso... perguntar aos po-liciais.