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O MARTELO DAS BRUXAS Copyright © 1978-1995. Sylvio Ourique Fragoso Todos os direitos reservados. Parte I Talvez fosse o caso de iniciarmos estas linhas com um pedido de desculpas ao leitor. É que aquilo que aqui se vai ler não é bonito. As narrativas que faremos abordarão fatos que causam repugnância e espanto, quando menos. Não nos move o desejo de acusar instituições ou pessoas. Não queremos ferir suscetibilidades, melindrar consciências ou atingir brios e por isso penitenciamo-nos apenas por termos vindo recordar o capítulo mais negro da história da humanidade, capítulo que se escreveu, paradoxalmente, a pretexto de manter acesa a fé nos ensinamentos do meigo Jesus. Não teria sentido estarmos aqui para qualquer acusação, até porque os fatos, analisados à luz da reencarnação, podem nos colocar na posição de co- participante, e diga-se que se nos fosse dada a graça de um desejo, melhor nos sentiríamos imaginando-nos como vítima que como executor. Mas como estas coisas todas já aconteceram, não se pode mudar a realidade e nem adianta fazer de conta que nada ocorreu e nem tampouco tentar fazer crer que os fatos não foram exatamente como aconteceram na verdade. Busquemos, pois, tanto quanto possível, o distanciamento emocional necessário para que a rememoração de tantas dores não nos enseje a reativação de velhas mágoas e tentemos alcançar apenas a posição de historiador, ainda que bisonho. Digamos desde logo que "Martelo das Bruxas" é a tradução de Malleus Maleficarum, nome de uma obra que se tornou o código, a cartilha oficial dos inquisidores ao tempo da Santa Inquisição. Malleus, segundo Ovídio, era um instrumento, espécie de marreta, usado para abater criminosos. Mas antes de ferirmos o assunto principal, pedimos vênia para um pequeno retrospecto que nos há de levar de volta à Roma dos Césares.

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O MARTELO DAS BRUXAS

Copyright © 1978-1995. Sylvio Ourique Fragoso

Todos os direitos reservados.

Parte I

Talvez fosse o caso de iniciarmos estas linhas com um pedido de desculpas ao leitor. É que aquilo que aqui se vai ler não é bonito. As narrativas que faremos abordarão fatos que causam repugnância e espanto, quando menos. Não nos move o desejo de acusar instituições ou pessoas. Não queremos ferir suscetibilidades, melindrar consciências ou atingir brios e por isso penitenciamo-nos apenas por termos vindo recordar o capítulo mais negro da história da humanidade, capítulo que se escreveu, paradoxalmente, a pretexto de manter acesa a fé nos ensinamentos do meigo Jesus. Não teria sentido estarmos aqui para qualquer acusação, até porque os fatos, analisados à luz da reencarnação, podem nos colocar na posição de co-participante, e diga-se que se nos fosse dada a graça de um desejo, melhor nos sentiríamos imaginando-nos como vítima que como executor. Mas como estas coisas todas já aconteceram, não se pode mudar a realidade e nem adianta fazer de conta que nada ocorreu e nem tampouco tentar fazer crer que os fatos não foram exatamente como aconteceram na verdade. Busquemos, pois, tanto quanto possível, o distanciamento emocional necessário para que a rememoração de tantas dores não nos enseje a reativação de velhas mágoas e tentemos alcançar apenas a posição de historiador, ainda que bisonho.

Digamos desde logo que "Martelo das Bruxas" é a tradução de Malleus Maleficarum, nome de uma obra que se tornou o código, a cartilha oficial dos inquisidores ao tempo da Santa Inquisição. Malleus, segundo Ovídio, era um instrumento, espécie de marreta, usado para abater criminosos.

Mas antes de ferirmos o assunto principal, pedimos vênia para um pequeno retrospecto que nos há de levar de volta à Roma dos Césares.

Até o ano 313 o Cristianismo esteve revestido de sua singeleza original. Os primitivos cristãos eram pobres em espírito e desprovidos de interesse por bens materiais. Não tinham qualquer preocupação com coisas como a Trindade ou Consubstancialidade e tampouco acreditavam que qualquer pessoa pudesse estar revestida de infalibilidade. Não usavam roupas especiais, não queimavam essências aromáticas e nem tinham anéis a serem beijados, que tudo isso era próprio dos pagãos e do Imperador. É verdade que já havia por aquela época um começo de organização hierárquica, mas quem então se denominava bispo eram os elementos mais antigos das

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comunidades cristãs, e sua única função era presidir às reuniões singelas e fraternais que então eram feitas sempre às escondidas da sanha dos perseguidores. Tanto era assim que Tertuliano, em sua Apologia (200 DC) asseverava aos pagãos que em nossas reuniões não temos, como vós, um ministro que nos dite fórmulas.

Porém, como é sabido, em 313 o Imperador Constantino houve por bem determinar a liberdade de culto, pondo fim à perseguição contra os cristãos. E não apenas. O Imperador passou a expedir convites para que os cristãos o visitassem em seu palácio. Aquela gente simples, que vivia se reunindo às escondidas e que vira tantos dos seus serem atirados às feras nos circos romanos, certamente haveria de estranhar essa mudança de comportamento. Mas ali estavam os oficiais do império, com suas belas roupas ou com suas armaduras reluzentes, a convidá-los a que comparecessem frente à augusta pessoa do Imperador, para um diálogo amigo. E eles foram.

Imaginemos o que se terá passado. Aquelas pessoas humildes, ressabiadas, entravam pela primeira vez num ambiente suntuoso. Longos corredores finamente ornados; colunas de mármore entrelaçadas por roseiras; amplas salas magnificamente adornadas, tudo haveria de lembrar àquela pobre gente algo assim como o Reino dos Céus, de que falara o Mestre. E ao verem o Imperador vestido com finíssimas roupas, enfeitado de ouro e púrpura e coberto de jóias, a lhes trazer uma promessa de liberdade, julgaram ver um emissário celeste. Segundo Eusébio de Cesaréia, o arrebatamento daquelas almas simples foi tão grande que houve quem, ao se defrontar com o Imperador, não hesitasse em proclamá-lo santo, afirmando que ele haveria de reinar no Céu, com o filho de Deus!

Mas Constantino não apenas os recebeu em audiência. Convidou os bispos para sua mesa, pôs-lhes à disposição o Correio Imperial e ainda lhes ofereceu uma "indenização" pelo tempo em que permanecessem longe de sua terra, em missão apostólica. Algo assim como uma ajuda de custos por serviços prestados. E fez mais o Imperador: concedeu aos bispos o direito de julgar os processos, mesmo que a pendência não envolvesse cristãos. Foi-lhes dado ainda o privilégio de redigir testamentos, podendo inclusive fazerem-se herdeiros!

Esse ano marcaria, sem dúvida, o fim do Cristianismo singelo mas grandioso em sua simplicidade, para dar nascimento ao Catolicismo Romano.

Algumas vozes isoladas ainda se fizeram ouvir, protestando contra aquela mudança de situação. São Jerônimo, por exemplo, bradou contra a crescente prosperidade econômica da Igreja, mas em vão.

As disputas pelos mais altos cargos haviam começado e mereceram do historiador da época, Ammiano Marcelino, a observação de que é

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muito natural que se dispute uma situação como a de bispo da capital, porquanto uma vez chegado a esse ponto, goza-se em paz de uma fartura garantida pela generosidade das matronas, aparece-se em público em soberbas carruagens, trajando vestes suntuosas e dão-se festins cujo luxo ultrapassa o da mesa imperial.

De fato, a "carreira" eclesiástica começara a atrair tanto que já em 321 (só oito anos passados!) Constantino teve que promulgar uma lei disciplinando o acesso à Igreja.

Nos templos que se construíam então, as cerimônias já eram bem diferentes do que haviam sido. Os bispos já não ficavam em pé, como os demais. Sentavam-se em uma cadeira especial e recebiam homenagens. Os papas (papa era o nome dado aos bispos das principais igrejas, como a de Roma, de Antióquia, etc.) multiplicavam as cerimônias de culto e foram assimilando aos poucos a ostentação que havia nos palácios imperiais. Foi criada uma série de servidores que constituíam, com os sacerdotes, o que se denominou clero e que passou a merecer do Imperador privilégios cada vez maiores.

E a grande transformação foi aos poucos e cada vez mais se acentuando. Se até 313 os cristãos eram perseguidos de forma cruel, pouco depois dessa data vê-los-emos conseguindo do Imperador uma autorização para que se destruíssem os templos pagãos. E questiúnculas religiosas já começavam a dividir a Igreja, tanto que Constantino declarou que só concederia seus favores à Grande Igreja, cuja sede era em Roma. Pelo Concílio de Nicéia Constantino estabeleceu que haveria de reconduzir à unificação os núcleos dissidentes, custasse o que custasse. Foi assim que Ario e os bispos que lhe eram fiéis foram banidos, inclusive o próprio bispo de Nicéia, que teve seus escritos lançados ao fogo.

Todas as igrejas façam unidade em torno da Igreja Romana, se quiserem que cessem as discussões. Esta foi a ordem que se deu. Já que a Igreja de Roma estava no centro político do Império ela deveria ser, pensou-se, o centro eclesiástico.

O título de papa, que era então conferido aos principais bispos, pois que eram todos considerados sucessores de São Pedro, não era reclamado por ninguém individualmente. Quando Eusébio pretendeu intitular-se, sozinho, "sucessor de São Pedro", mereceu de Firmiliano da Capadócia o qualificativo de stultus, isto é, tolo, estulto. Somente no século VIII o título de papa e a condição de "sucessor de São Pedro" passaram a ser atributos de uma única pessoa.

Se já no Concílio de Nicéia queimaram-se escritos considerados heréticos, não andava muito longe agora o tempo das fogueiras serem acesas também para a queima de seres humanos. E tudo em nome de Cristo e em defesa da Fé, da Moral e dos Costumes.

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Em 1184 o Papa Lúcio III criou uma comissão episcopal com a finalidade de inquirir suspeitos de heresia. E ai das autoridades se não cooperassem com essa comissão, pois seriam excomungadas.

Em março de 1199 Inocêncio III determinou que "duvidar da fé cristã é crime passível de morte". Em 1208 esse mesmo Papa autorizou uma Cruzada contra os Albigenses, ao sul da França, para que fossem extintos a ferro e fogo. Na verdade Inocêncio III, que é considerado o "árbitro da cristandade", criou o clima para o surgimento da Inquisição até que em 1229, pelo Concílio de Toulusse, criou-se oficialmente o Tribunal do Santo Ofício ou a Santa Inquisição, sob a inspiração de Gregório IX. Este Papa entendeu que em cada paróquia dever-se-ia instalar um tribunal eclesiástico constituído por um sacerdote e dois leigos, supervisionados por um bispo. Logo em seguida, porém, os tribunais da Inquisição seriam entregues aos dominicanos, embora permanecessem sob a orientação dos bispos diocesanos. Em 1257, pela Bula Ad Extirpanda, Inocêncio IV instituiria a tortura como meio de se obter as confissões de heresia.

Estava tendo início o capítulo mais triste da história da humanidade, que haveria de durar cinco séculos e cuja memória em vão se tenta apagar.

Com efeito, se formos ler o que diz o Dicionário Prático constante da Bíblia editada pela Enciclopédia Barsa, toparemos com uma tentativa de amenizar a atuação perversa dos tribunais da Inquisição. Ali se diz que: "(...) A justiça dispensada pela Inquisição, em comparação com a dos tribunais civis do tempo era suave, mas em comparação com os padrões modernos parece bárbara" (grifamos).

Embora a justiça da Inquisição apenas pareça bárbara, mais adiante reconhece aquele Dicionário que: "(...) usavam muitas vezes torturas cruéis para arrancar confissões". Mas logo adiante o redator volta a endulçurar suas palavras dizendo que: "(...) A pena de morte (...) não era desconhecida mas não era de nenhum modo tão freqüente como alguns historiadores cheios de preconceitos têm afirmado".

Ora, na verdade ainda que uma única pessoa fosse morta no pressuposto de não ser cristã, isto já seria uma monstruosidade. No entanto, só no reinado de Henrique II, foram executadas 30.000 criaturas e isto apenas na França. Na Escócia, ao tempo de Jaime IV, foram mais de duzentas pessoas mortas. E lá mesmo, entre a morte de Maria Stuart e a subida ao trono da Inglaterra de seu filho, ou seja, em apenas 32 anos, 17.000 bruxas foram queimadas! Em Genebra, num período de três meses morreram 500 feiticeiras. Em Tréveris em poucos anos foram mortas 7.000 e na Alemanha atingiu-se um total de 100.000 pessoas mortas pela Inquisição! No entanto, no citado Dicionário lemos que: "(...) A idéia da Inquisição pode se compreender pelo fato de que a Igreja estava procurando defender os fiéis, isto é, a sociedade toda contra o que julgava um perigo mortal".

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Note o leitor que estas palavras foram escritas já neste agonizar do século XX. No entanto, a linha de raciocínio difere muito pouco da que norteava o que se dizia em plena Idade Média. Em sua Bula de 1484, por exemplo, o Papa Inocêncio VIII diria:

"Desejando, com a mais profunda angústia, como a que exige nosso Apostolado, que principalmente em nossa época a Fé Católica floresça e aumente por toda parte, e que toda depravação herética seja afastada. (...) Nós alegremente proclamamos e até reafirmamos os meios especiais pelos quais Nosso piedoso desejo pode obter o efeito desejado".

Não se compreende bem como o Papa, na expressão de seu piedoso desejo, pôde ao mesmo tempo em que sentia uma profunda angústia, ficar alegre. Mas ainda teremos a chance de ver em que consistiam os meios especiais a que se referiu. Prossigamos com a Bula:

"Por isso Nós (...) decretamos e ordenamos que os já mencionados inquisidores tenham o poder para processar à justa correção, ao encarceramento e ao castigo de quaisquer pessoas, sem embaraço e impedimento, e de todas as maneiras, como se as províncias, as cidades, as dioceses, os distritos, os territórios e até as pessoas e seus crimes desse tipo tivessem sido nomeados e especificamente indicados em Nossas palavras(...)".

Mas o Dicionário Prático ainda haveria de prosseguir em sua tentativa de empalidecer a realidade das tristes ocorrências daquela época. Leiamo-lo mais um pouco, lembrando que os destaques serão nossos:

"As crueldades e injustiças que algumas vezes resultavam na prática (...) em nada prejudicam o ensinamento dogmático da Igreja, antes pelo contrário (...) a influência da Igreja foi sempre no sentido de humanizar e suavizar as penas".

Teremos ainda oportunidade de ver como se processavam os julgamentos e como se distribuía a "justiça" dentro da suavidade com que a Inquisição tratava os suspeitos de heresia. Antes porém teremos de verificar as causas prováveis da fobia que se criou pelas bruxas, e tentar descobrir porque a perseguição movida pela Igreja recaiu principalmente sobre as mulheres, e para isso será preciso analisarmos o papel social das bruxas, que elas o tiveram, justiça se lhes faça.

Parte II

Bem se pode avaliar a condição da medicina na Idade Média. Quem era muito rico podia contratar médicos árabes ou judeus, mas a grande massa da população só podia contar com a aspersão de água benta nas igrejas e com palavras de consolo. As mulheres, então, jamais poderiam consultar um médico, deixar-se examinar por um

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homem, contar-lhe os seus males. Assim, para o povo em geral e principalmente para as mulheres, o único recurso era valer-se das feiticeiras, isto é, de mulheres que conheciam empiricamente o valor de certas ervas medicinais ou que eram capazes de realizar um parto. A importância dessas bruxas para a sociedade estava no fato de serem elas conhecidas e aceitas e de serem chamadas em caso de doença. As feiticeiras eram portanto um misto de terapeuta, de confidente, de sacerdote, enfim, de boa vizinha. Por isso eram chamadas de Boas Senhoras ou de Bella Donna, nome que passou depois a um de seus remédios, o qual ainda hoje é usado por alguns bruxos modernos, de formação acadêmica.

Havia também, é claro, a feiticeira má, que era temida e procurada apenas quando se queria prejudicar alguém. Mas as Boas Senhoras não eram consideradas pelo povo como tendo qualquer ligação com o demônio. Esta idéia foi difundida e defendida pela Igreja.

Assim, enquanto os reis, o clero e os homens de fortuna contavam com recursos médicos (muitos dos quais pouco diferiam das artes das feiticeiras), o povo só podia valer-se das curandeiras. Como estas eram também pessoas pobres, sua existência não ameaçava o poder social das classes dominantes.

A tal nível chegou o conhecimento farmacológico das bruxas que em 1527 Paracelso, tido como um grande médico da época, teve a coragem de declarar que havia aprendido com as feiticeiras tudo o que sabia.

Mas pelos seus métodos e por sua crescente popularidade a feiticeira começou a se constituir em uma ameaça para a Igreja. Segundo Michelet (Satanism and Witchcraft) o empirismo da feitiçaria foi visto como uma revolta contra a autoridade da Igreja e isto porque a bruxaria, tal qual a medicina (também não bem vista pelo clero) era uma rebelião contra a doença, ou seja, contra uma determinação de Deus. A magia era uma tentativa de se obter por meios humanos o que só poderia ser atingido por desígnio divino. Se as feiticeiras obtinham sucesso, ele teria que ser decorrente de uma vontade outra que não a de Deus, e essa vontade só poderia provir de Satanás! Ora, claro que quem recorresse ao demônio, ainda que a pretexto de fazer o bem, seria inimigo de Deus e da Igreja.

E depois, ao socorrer os fracos, a feiticeira começou a ameaçar as hierarquias de domínio: do padre em relação ao penitente, do senhor para com o camponês, do homem em respeito à mulher. Essa a razão pela qual a Igreja se voltou contra a feiticeira boa, muito mais que contra a feiticeira má: a cura dos corpos e das almas era da competência de Deus e de seus representantes na Terra.

Na verdade, como foi dito, também os médicos eram mal vistos pela Igreja, mas estes ainda podiam contar com a proteção dos poderosos

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e então o clero (cujos representantes também deles se valiam quando enfermos) decidiram que os médicos poderiam exercer seu ofício desde que "com o competente conselho eclesiástico". Foi o que ficou estabelecido pelo Concílio de Latrão, no século XIII, numa tentativa de se harmonizar os próprios interesses de domínio com a eventual necessidade de socorro.

O caçador de bruxas

A idéia de que a feiticeira boa era mais perigosa que a má pode ser entendida pelas palavras de Willian Perkins, famoso caçador de bruxas da Inglaterra, que assim escreveu:

"(...) seria mil vezes melhor para o país se todas as feiticeiras, principalmente a feiticeira terapeuta, morressem. Usualmente os homens odeiam a feiticeira maléfica (...) ao mesmo tempo correm para a outra quando estão necessitados (...) Portanto a morte é a parte justa e merecida da boa feiticeira".

Mas essa distinção entre feiticeiras boas e más não deveria perdurar. Para que todos colaborassem na caça às bruxas era preciso que as pessoas acreditassem que todas eram más e, portanto, perigosas. Não obstante a divulgação desse critério já no século XIII, em 1563 promulgou-se uma lei que reafirmava a inexistência daquela separação e prescrevia a morte para todas as feiticeiras e também para aqueles que a consultassem.

Em 1572 Augusto, o Pio, confirmou que também a feiticeira boa deveria ser queimada por ter feito pacto com o demônio, mesmo que não tenha prejudicado quem quer que seja com sua feitiçaria.

Seguindo essa linha de raciocínio Jean Bodim escreveria em 1580 que para punir os crimes mais horríveis que a mente humana pode imaginar, deve-se punir as feiticeiras com o máximo de rigor.

Mas além dos fatores sociais e religiosos que motivaram a caça às bruxas outros deveriam existir, determinando que a perseguição impiedosa fosse dirigida especialmente contra as mulheres. O principal compêndio que norteava a ação dos inquisidores, escrito por dois dominicanos, demonstrava isto ao declarar que toda feitiçaria decorre da luxúria carnal, e nas mulheres esta é insaciável. Por isso quando se fala em bruxas ou feiticeiras perseguidas, é engano imaginar que a Inquisição só deitasse suas garras em velhas encarquilhadas, como aquela da Branca de Neve. A mulher bonita representava um perigo muito maior para os castos inquisidores.

Na verdade, uma análise minuciosa da força propulsora da Inquisição haveria de nos fazer navegar por águas mais profundas, com implicações freudianas a tremeluzir nos porões das subconsciências dos perseguidores. Deixemos porém tais aspectos de lado para não

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enodoarmos ainda mais estas páginas com outras implicações que mais evidenciam a fragilidade imensa desse grão de poeira que se chama Homem e vamos dar uma olhada na cartilha dos inquisidores, no livro que haveria de desencadear o pânico e a loucura naqueles tempos de insânia e de medo.

Confissão pela tortura

Evidentemente os dominicanos precisavam de algo que norteasse e uniformizasse a sua ação contra as feiticeiras, estipulando critérios e normas. Quem era e quem não era bruxa, como obter confissões e quais os castigos que deveriam ser impostos às feiticeiras, eram coisas que estavam até então em obediência ao critério de cada um. O dominicano Bernardus Guidonis (1261-1331) havia escrito o Liber Sententiarum Inquisitionis, onde vinham enumerados alguns critérios, inclusive o enfraquecimento gradativo do acusado, e onde a tortura era recomendada como meio de se obter a confissão, de modo a que se pudesse dizer que ela vinha mesmo do coração. Mas em 1484 o Papa Inocente VIII nomeou outros dois dominicanos, Jacob Sprenger e Heinrich Kramer, para julgar feiticeiras na Alemanha. Baseados em obras precedentes, entre as quais o Formicarius de Johannes Nider, de 1435, ambos escreveram aquilo que haveria de ser o manual de todos os inquisidores, o Malleus Maleficarum, o Martelo das Bruxas. Essa obra pavorosa atingiu 19 edições e foi aprovada pelo corpo docente da Universidade de Colônia. Ela tinha como princípio o preceito bíblico que diz: à feiticeira não deixarás viver. (Ex. 22,18).

Para se ter uma idéia do teor desse livro basta ler-se o seu início, onde vem declarado isto:

"(...) a crença na existência de alguns seres chamados bruxas é uma parte tão essencial da fé católica que sustentar teimosamente a opinião contrária tem um claro odor de heresia".

Em apoio a isso um doutor da Sorbonne escreveria, já agora em 1609, que o sabbat das bruxas era um "fato objetivo, descrito apenas pelos que não eram bons da cabeça".

Com o surgimento do Malleus estabeleceu-se de vez o clima de loucura e pânico. Ninguém mais se sentia seguro, de tal forma que uma maneira de se defender, ao menos temporariamente, era acusar alguém de bruxaria. Como os acusados sofriam torturas até que confessassem seus próprios "crimes", eram também torturados para que denunciassem outras pessoas e assim, para livrarem-se rapidamente das sevícias, (mesmo sabendo que depois viria a condenação à morte) os prisioneiros denunciavam vizinhos, parentes, amigos e conhecidos. Nenhum acusado tinha o direito de saber quem o acusara e assim até mesmo alguns religiosos viram-se envolvidos com os tribunais do Santo Ofício. Em 1498 o bispo de Calahorra foi surpreendido com a acusação de heresia. Inácio de Loyola, fundador

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da Companhia de Jesus, foi preso por duas vezes e Santa Tereza de Jesus também foi considerada suspeita.

Na verdade acusar alguém, principalmente parentes, equivalia a gozar de certas regalias, ainda que o acusador também fosse suspeito. Qualquer pessoas podia depor contra o acusado, mesmo mulheres, escravos ou crianças. Até mesmo um herético. Segundo as normas da época, as provas de um herético não deveriam ser recebidas em um tribunal, mas fazia-se, no caso, uma exceção a favor da fé e as provas eram aceitas desde que fossem contra outro herético.

Contrariando o princípio de que todo acusado é inocente até prova em contrário, para os tribunais da Inquisição todo acusado era tido como culpado, "pois do contrário não seria acusado". E cada um que tratasse da própria defesa, que a ninguém era lícito constituir advogado. E depois, quem se atrevesse a defender um suspeito estaria se opondo à justiça dos inquisidores, o que seria igualmente uma prova de heresia. Os acusados podiam ficar meses num calabouço infecto, totalmente às escuras, sem notícias de seus familiares e nem estes deles. Não podiam conversar nem com outros prisioneiros, pois além de proibido isso era perigoso. É que os inquisidores às vezes mandavam espiões para calabouços, na esperança de que alguém fosse surpreendido a falar mal de seus juizes. E se isso ocorresse, seria levado na devida conta na hora do julgamento.

A fogueira como fim

A única saída para um acusado era reconhecer logo tudo aquilo de que o acusavam e aceitar qualquer castigo que lhe fosse imposto como penitência. Os protestos de inocência caracterizariam o acusado como um herético impenitente e teimoso, cujo fim era a fogueira. Mas o problema era que assim como o prisioneiro não podia saber quem o acusara, também não podia saber de que o acusavam. Por isso, quando após muito tempo de prisão o acusado era trazido à presença do tribunal e lhe perguntavam o que tinha a declarar, geralmente não fazia idéia do que responder. Então, em alguns tribunais, costumava-se apresentar ao réu uma lista onde, entre as acusações de que era alvo, vinham outras, gravíssimas, que os inquisidores inventavam. Se a pessoa protestava defendendo-se destas mais graves, partia-se do princípio de que eram verdadeiras as acusações sobre as quais silenciara. Um inferno!

As maneiras de se identificar uma bruxa eram muitas. Fora as denúncias espontâneas e as obtidas sob tortura, qualquer coisa servia como pretexto. Um ataque histérico ou epiléptico era a prova de possessão demoníaca. Ser canhoto equivalia a ter feito pacto com o demônio. Não comer carne de cabra, também. E ainda não ir às missas, mostrar-se inquieto, apresentar tiques nervosos, adoecer

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subitamente. Manchas no corpo, principalmente quando insensíveis à dor, eram prova das mais válidas de ser, quem as tivesse, um servidor de Satanás.

Matthew Hopkins e sua auxiliar Goody Phillips, famosos caçadores de bruxas, tinham por princípio que as feiticeiras nunca andavam sós. Elas estariam sempre acompanhadas por gatos ou cães, e até por ratos ou moscas. Dessa forma, quem tivesse em casa um animal de estimação, estaria perdido. E quem não tivesse, também. É que o bom Hopkins vislumbrava o que ninguém mais via. Uma pobre mulher presa por ele foi acusada de estar dando de mamar a uma toupeira!

Se sobreviesse uma seca ou uma tempestade, se o gado adoecesse ou se a colheita não fosse boa, tudo era devido à ação das bruxas, e assim toca a procurá-las. Em caso de dúvida, a figura formada pelo chumbo derretido despejado na água podia fornecer a indicação necessária. Essa prática seria bruxaria se exercida por alguém comum, mas os representantes do Santo Ofício eram defensores da fé...

Picadores de bruxas

As marcas no corpo era o que os inquisidores primeiro procuravam. Como elas podiam estar em qualquer parte, as bruxas tinham de comparecer aos tribunais despidas e por vezes até depiladas. Achada a marca (stigmata diaboli) o local era picado com um estilete. Se não doesse ou não sangrasse, estava comprovada a bruxaria. Mas como poderia haver algumas privilegiadas cujo corpo fosse isento de quaisquer mínimos sinais ou manchas, os argutos inquisidores não tardaram a imaginar que o diabo podia deixar marcas invisíveis, que não doíam nem sangravam. Então o jeito era picar todo o corpo da acusada, à procura do tal ponto.

Na verdade a Inquisição deu azo ao nascimento de duas novas profissões: a dos caçadores e a dos picadores de bruxas, esta última quase sempre exercida por médicos.

Não obstante porém a pertinácia em achar o tal ponto insensível e que não sangrasse, o mais comum era que as bruxas continuassem sangrando e gritando a cada nova espetalada. Por isso foi inventado um tipo especial de estilete, em tudo igual aos outros, mas de lâmina retrátil, que dava a ilusão perfeita de penetrar as carnes. Aí, é claro, não haveria dor nem sangue, e o processo estava encerrado com a condenação à morte de mais uma pessoa.

Havia, então, três métodos para se provar a culpa de alguém: a confissão, que podia ser obtida sob tortura, o exame das marcas e a prova da água, também chamada de banho das bruxas. A confissão era o ideal dos inquisidores. Segundo o Malleus Maleficarum, "a justiça comum exige que uma feiticeira não seja condenada à morte a

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não ser que seja declarada culpada por sua confissão". Por isso os perseguidores usavam de tanto empenho em obter o reconhecimento da culpa, aprimorando para tal os métodos de tortura. Com Michelle Chaudron, por exemplo, que protestava inocência, usaram o sistema das picadas, mas doeu e sangrou. Então ela foi torturada até que confessasse. Após as torturas ainda acharam uma pequena marca em sua perna. Foi para a fogueira.

Segundo Spee (Cautio Criminalis) o resultado era o mesmo quando a acusada confessava ou não. Se confessasse, era executada. Caso contrário a tortura era repetida, até que se declarasse culpada, e então morreria igualmente. Mas se num caso extremo a acusada permanecesse em silêncio não obstante todas as torturas, o Malleus recomendava que ela fosse levada para outro local, onde deveria ser bem tratada e bem alimentada. Lá ela deveria conversar com pessoas sobre outros assuntos e depois de conquistada a sua confiança, deveria ser aconselhada a confessar a verdade, pois que o juiz seria bondoso. Então o juiz reapareceria e, perante a acusada, faria a promessa de que seria clemente, mas com a restrição mental de que seria clemente para consigo mesmo e para com o Estado. É que, segundo aquela obra, tudo o que é feito pela segurança do Estado é clemência.

Parte III

O grande cuidado dos inquisidores era para que o acusado não morresse durante as torturas, e para isso um médico deveria estar sempre presente, examinando a vítima de quando em quando. Porque a morte teria que se dar por um ato público de muita pompa, chamado Auto de Fé. Mas se acaso alguém morresse por causa das torturas, estaria igualmente confirmada sua culpa: o demônio quebrara-lhe o pescoço. Ainda assim não se escapava à fogueira, pois mesmo o cadáver era queimado em praça pública. Houve um herético que morreu durante o julgamento e teve seu corpo preservado por quinze dias, para depois ser queimado juntamente com uma mulher ainda viva.

Mas além da confissão, que se procurava obter custasse o que custasse, e do exame das marcas do corpo, havia o recurso extremo: a prova da água. Julgava-se que era um sinal sobrenatural da monstruosa impiedade das feiticeiras que a água se recuse a recebê-las em seu seio, pois afastaram de si a água sagrada do batismo. Então, como prova extrema, como último recurso, quando nem as torturas brutais e nem as promessas de clemência levavam à confissão, faziam isto: a feiticeira era amarrada, o polegar direito no pé esquerdo e o polegar esquerdo no pé direito e nessa posição era lançada em um rio profundo. Se flutuasse, era culpada e iria para a fogueira. Se afundasse, era inocente. Claro que afundando a infeliz morria afogada, se não fosse salva a tempo, mas isso não preocupava os inquisidores, pois achavam que aquela alma iria direto para o Céu,

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livrando-se assim dos aborrecimentos deste mundo. E todos voltavam para casa na maior tranqüilidade.

O fato é que as torturas sofridas nos tribunais eram tão pavorosas que muitas acusadas pediam logo a prova da água para demonstrarem sua inocência. Era, talvez, um meio indireto de praticarem o suicídio, fugindo assim às torturas, mas quem, humanamente, pode censurar as bruxas por isso? Porque os métodos para obterem confissões usados pelos inquisidores superam a tudo que um escritos de imaginação fecunda e mórbida pode conceber.

Depois de ter ficado encerrada no calabouço por muitos dias, a feiticeira era levada à presença do tribunal e convidada a confessar, conforme já vimos. Se protestasse inocência, era despida e levada à sala das torturas. Despiam-na sob o pretexto de procurar as stigmata diaboli (marcas do diabo) e também para que ela não pudesse usar nenhum amuleto que a defendesse. Então, à vista dos instrumentos de tortura, era novamente convidada com caridade a confessar. Mas confessar o quê, se a pessoa não tinha o direito de saber do que era acusada? Considera-se hoje que muitas dessas narrativas sobre o sabbat, o vôo em vassouras e coisas assim, mais não sejam que invenções de quem, no desespero da situação, precisava contar qualquer coisa.

Mas se a simples visão dos instrumentos de tortura não era suficiente para fazer com que a pobre moça apavorada, exausta, faminta e exposta aos olhares dos representantes do clero ali presentes confessasse logo qualquer coisa, tinha início o interrogatório.

Faziam-se perguntas de todo tipo, as mais capciosas, entre acusações diretas e ameaças. No julgamento de Joana D’Arc, por exemplo, segundo Isambard de la Pierre, testemunha ocular do interrogatório, as perguntas que os inquisidores a ela faziam eram de tal ordem que "os mais notáveis clérigos da assistência não teriam podido a elas responder, sem grande embaraço".

E quando o interrogatório não bastasse, tinham início as torturas. Aí as variações iam ao infinito, dependendo da imaginação dos inquisidores. As mais usadas eram estas:

Aplicação de parafusos nos polegares. Arrancamento das unhas. Prendiam as mãos dos acusados para trás e por uma corda amarrada nos pulsos içavam-no até uma trave no teto. Geralmente ainda lhe punham pesos nas pernas. Essa tortura era chamada strappado. Estando o prisioneiro amarrado pelas mãos, com os braços torcidos para as costas e içado ao teto, soltavam subitamente a corda que o sustinha, deixando-o cair mas sem atingir o chão, pois a corda era travada bruscamente em meio à queda, provocando deslocamento dos ossos. Esse suplício chegava a ser repetido até três vezes. Mais que isso podia matar o acusado.

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Uma variante do strappado consistia em dependurar a pessoa, agora horizontalmente, à altura do teto, estando ela amarrada pelos pés e pelas mãos, com pesos presos aos rins. Outra variante ainda era levantar igualmente a vítima horizontalmente, mas em vez de amarrada ia ela presa a ganchos que lhe penetravam as carnes.

O chicoteamento era uma das torturas mais suaves. Bem pior era o dilaceramento das carnes com pinças de metal aquecidas ao rubro. Às vezes queimavam os olhos da feiticeira com essas pinças, ou lhes rasgavam a língua ao meio. Já a roda era um instrumento de madeira, com cerca de 2,00 m de diâmetro, onde a pessoa era amarrada pelos pulsos ou pelos polegares. À medida em que a roda ia girando, os ossos iam sendo deslocados pela enorme tração exercida. Na escada o efeito era quase o mesmo. Tratava-se de uma escada comum, posta horizontalmente em plano elevado, ficando a acusada sobre ela, deitada de costas, com os pés presos a um degrau e com os braços levantados para trás da cabeça. Então um peso era amarrado em seus pulsos, ficando dependurado ao fim do último degrau. Poderia ser um bom exercício para a coluna se o peso não fosse tamanho a ponto de deslocar os ossos.

O potro era uma tortura em que a vítima, deitada, tinha vários pontos do corpo amarrados por cordas finas e fortes. Girando-se uma manivela, as cordas iam sendo apertadas até penetrarem nas carnes. E havia prescrições meticulosas de como ir apertando os cordéis enquanto o interrogatório prosseguia: meia volta, uma volta, uma volta e meia, etc. Também era comum amarrar a pessoa a um estrado, com as pernas para fora e acender um fogareiro sob seus pés. E ainda iam derramando gordura ou manteiga no local.

A virgem era um sarcófago muito estreito e cheio de pontas onde o acusado era preso. Curioso é que o inventor desse instrumento acabou sendo vítima de sua própria criação.

Alguns inquisidores preferiam enterrar a pessoa de pé, deixando-lhe apenas a cabeça para fora. Também costumavam deitar a bruxa e iam amontoando pedras sobre seu corpo. Ou então, estando a feiticeira amarrada de costas, iam despejando água em sua boca. Ou a pessoa bebia ou sufocava.

O borzeguim era uma traquitana de ferro e madeira que ia apertando os pés da feiticeira até moer-lhe os ossos.

Na França uma mulher foi torturada porque uma menina de nove anos disse tê-la visto conversando com o diabo. Essa infeliz teve os dois seios arrancados aos pedaços com tenazes em brasa, os olhos furados com estiletes também aquecidos e ácido corrosivo despejado em seu corpo. Um médico, atento, cuidava para que não morresse, de modo a não frustrar a execução posterior na fogueira.

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Paremos por aqui. Os métodos de tortura variavam muito, mas o exposto já dá, cremos, para uma idéia de como as coisas se passavam.

Obtida a confissão, a feiticeira deveria abjurar o demônio e mostrar-se arrependida. Se isto ocorresse, ela era enforcada primeiro e depois queimada. Caso contrário, era queimada viva. Em alguns casos a pena era a prisão, que podia ser perpétua. Quando a condenação prescrevia a morte na fogueira, ela se dava num ato público muito concorrido, geralmente em frente a uma igreja ou catedral. Aí, estando a vítima já sobre o monte de lenha, presa a um poste, um sacerdote passava-lhe uma tocha em frente ao rosto para mostrar-lhe o que a esperava e pela última vez convidava a acusada a que se arrependesse. Se ela o fizesse, os sacerdotes a abraçavam, davam graças a Deus, entoavam loas, havia regozijo. Então enforcavam a feiticeira antes de queimá-la. Mas se a acusada persistisse em negar seu conúbio com o demônio ou se não desse mostras de arrependimento, a pira era acesa.

Durante esses atos públicos, feitos com toda a pompa, tomava-se muito cuidado para que o herético que ia morrer não se dirigisse ao povo amontoado na praça, a fim de que suas afirmações não provocassem simpatia. Mesmo assim uma feiticeira inglesa disse, na hora em que iam acender a fogueira:

- "Eu desejava morrer. Minha família me desprezou, meu marido me repudiou. Se eu vivesse seria uma infelicidade para meus amigos".

Pobre alma atormentada! Possam os bons Espíritos tê-la socorrido nesse instante em que se sentia tão só, no momento mesmo de morrer.

Não devemos pensar que todo o movimento de caça às bruxas tenha sido feito sob orientação da Igreja Católica. Após a Reforma os protestantes também instituíram seus próprios tribunais, nos mesmos moldes que os outros. A diferença principal era o meio de execução das vítimas, pois os protestantes preferiam a forca em vez das fogueiras. Em 1692, na comunidade anglicana de Salem, dezenas de pessoas foram presas e 18 mulheres morreram sob acusação de feitiçaria. Este caso, que ficou conhecido como o das Feiticeiras de Salem, começou com uma inocente brincadeira de algumas adolescentes que deixaram que uma empregada doméstica "lesse" as suas mãos. Por fim, até uma menina de cinco anos de idade foi presa para interrogatório. A condenação das vítimas foi "honrosamente" assinada por Suas Majestades Sereníssimas, a Rainha Mary e o Rei William, da Inglaterra.

Na Espanha a Inquisição preocupou-se muito mais com os judeus que com as bruxas. O mais famoso inquisidor de lá foi o beneditino Tomaz Torquemada, que fizera a Rainha Izabel, cognominada "A Católica",

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jurar que perseguiria todos os hereges e que os mataria, para salvação de sua alma (de Izabel) e para a grandeza de Castela. Pois esse monge foi, em 1483, nomeado Grande Inquisidor da Espanha. A ele se devem as chamadas Leis de Ferro, que logo foram seguidas pelos demais inquisidores da Europa. Para se ter uma idéia do que essas leis preconizavam vejamo-lhes alguns artigos, pescados ao acaso:

- É expressamente proibida a absolvição secreta. O culpado deverá sempre arrepender-se em um Auto de Fé Público.

- Ao penitente absolvido será somente aplicada a pena de não poder usar ouro, prata, seda ou tecidos finos. (Este artigo implicava no confisco de bens, mesmo em caso de absolvição!).

- Os penitentes que espontaneamente tenham confessado suas faltas, pagarão suas multas ao Santo Ofício, bem como as penas que o inquisidor determinar.

- (O acusado deve) declarar na confissão qual o crime contra a Fé, para que os juizes do Santo Ofício possam determinar a parte de seus bens que deverão ser confiscados.

- No caso do arrependimento ser fingido será recusada a absolvição e o herege condenado à fogueira.

- Se o acusado continuar a negar depois das declarações assinadas pelas testemunhas, será considerado como impenitente.

- Quando exista uma desconfiança de que o acusado nega o crime, será submetido à tortura. Se durante a tortura confessar o crime e depois voltar a negar, será novamente submetido à tortura mais rigorosa ou condenado a uma pena extra.

- O acusado não poderá saber quem o acusou nem tampouco de que espécies são essas acusações.

- Se um morto for condenado por heresia, por seus escritos ou por qualquer testemunha, seu cadáver será exumado e queimado e seus bens confiscados.

- Se o condenado deixar filhos menores, será concedido a estes uma pequena parte dos bens confiscados, a título de esmola.

E por aí a fora. A explicação pelo empenho em confiscar os bens do acusado pode ser encontrada neste trecho com que os inquisidores se justificam:

- Afora as penitências, pode o inquisidor impor penas pecuniárias (...) Estas multas devem ser empregadas em obras pias, como a

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conservação e sustentação do Santo Ofício. Com efeito, é justo que a Inquisição faça pagar suas despesas às custas daqueles que são levados perante o seu tribunal (...) De todas as obras pias, sendo mais útil o estabelecimento e manutenção da Inquisição, sem dificuldade podem ser aplicadas as multas à sustentação dos inquisidores e seus familiares (...) pois é muito útil e muito vantajoso à fé cristã que os inquisidores tenham muito dinheiro, a fim de poderem manter e pagar bem aos seus familiares para procurarem e prenderem os hereges.

Mas Torquemada, além de pessoas, queimava livros. Em 1490 mandou queimar vários manuscritos hebreus da Bíblia. Queimou toda a biblioteca de Henrique de Aragão e 6.000 manuscritos que tratavam de ciências ocultas. Também a biblioteca da Universidade de Salamanca virou cinzas. Nos 14 anos em que ocupou o cargo de Grande Inquisidor esse monge mandou para a fogueira 10.222 pessoas. E antes de morrer, Torquemada ainda redigiu uma nova série de instruções para os inquisidores que o sucedessem.

Em Portugal a Inquisição também se fez presente. A exemplo da Espanha, a perseguição ali não era dirigida principalmente contra as bruxas, mas sim contra outros "hereges", como os maçons, que sofreram também enormes sevícias. Na Torre do Tombo há 36.000 processos arquivados.

E nem o nosso Brasil ficou livre desse flagelo. Vez por outra aportavam por aqui os visitadores do tribunal, como agentes secretos do Santo Ofício. Principalmente após 1708 a perseguição se fez mais intensa em nossa terra, sendo os acusados quase sempre levados para os cárceres de Lisboa. Os brasileiros mortos pela Inquisição chegaram a 339. A Loja Maçônica Branca Dias, na Paraíba, tem esse nome em justa homenagem a uma valorosa mulher vitimada pela Inquisição naquele Estado.

Embora no Brasil o flagelo do Santo Ofício não tenha atingido as proporções que assumiu na Europa, não deixou de se constituir em um perigo, rondando os lares onde houvesse uma consciência liberal a serviço da liberdade e da virtude.

Parte IV

Como não podia deixar de ser, essa época de trevas foi aos poucos se acabando, com o passar dos anos. Os ciclos reencarnatórios foram trazendo de volta antigos inquisidores e antigas bruxas, para um reajuste de contas. As populações, um pouco mais evoluídas espiritualmente, foram se tomando de horror pela caça impiedosa. Já em 1611 o inquisidor espanhol Salazar concluiu que cerca de 1600 pessoas haviam sido mortas injustamente. Na França, em 1682, Luiz XIV mandava atenuar a caça às feiticeiras. Em 1717 dá-se a última execução por feitiçaria na Inglaterra e em 1736 foi revogada naquele

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país a lei penal contra as bruxas, passando a vigorar um decreto que condenava qualquer espécie de feitiçaria, magia, encantamento ou conjuração a um ano de prisão e pelourinho. Em 1745 a última feiticeira foi morta na França e em 1774 o Marquês de Pombal acabou com a forma dos processos da Inquisição em Portugal. Em 1775 morre a última bruxa na Baviera e em 1793 é feita a última execução de uma acusada de feitiçaria na Polônia. Em 1813 a Corte de Cadiz, na Espanha, declarou que a Inquisição era incompatível com a Constituição, mas em 1814 Fernando VII restaurou o poder dos tribunais do Santo Ofício. Napoleão já havia tentado extinguir a Inquisição espanhola por um decreto de 1808, mas sem grandes resultados.

Em 1816 o Papa Pio VII teve o bom senso de revogar a Bula Ad Extirpanda, de 1257, que instituía a tortura como meio de se obter uma confissão. A 15 de setembro de 1820 o povo de Lisboa invadiu o Palácio da Inquisição daquela cidade, destruindo tudo o que encontrava. Em 1826 morrem na Espanha as três últimas vítimas do Santo Ofício e em 1834 a Rainha Cristina decreta o fim da Inquisição espanhola.

Em 1951 é revogado na Inglaterra o decreto de 1736 que condenava as feiticeiras à prisão e pelourinho. Em 5 de março de 1954 a Câmara de Deputados do Estado de Massachusetts aprovou uma lei inocentando seis das dezoito mulheres executadas em Salem no ano de 1692. Isto equivale a um julgamento de bruxas em pleno século XX, pois se apenas seis mulheres foram absolvidas, implicitamente doze tiveram sua condenação confirmada! Embora em 1957 a Comunidade de Massachusetts tenha revogado a extinção dos direitos civis das condenadas como bruxas em Salem, a que saibamos nada se fez para inocentar aquelas outras doze criaturas vítimas da intolerância.

Finalmente, na Espanha, em 1968, é declarada nula a ordem de 1492 que expulsava de lá os judeus.

Como vimos, em 1808 Napoleão decretara o fim da Inquisição espanhola. Mas os meses se passavam e o decreto não era posto em vigor. Em 1809 um oficial de Napoleão, o coronel Lehmanowski, do exército imperial, encontrava-se a serviço na Espanha. Esse militar, sem papas na língua, falava abertamente contra a Inquisição e a Igreja. Uma noite, quando passeava pelas ruas, foi atacado por dois homens armados, os quais, pelas roupas, reconheceu serem guardas da Inquisição. Para sorte do coronel surgiu uma patrulha francesa e os agressores fugiram.

O militar contou o fato ao governador o obteve uma escolta com a qual marchou contra o edifício da Inquisição, distante cinco quilômetros de Madri.

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Lá chegando o oficial gritou de longe para que a sentinela intimasse os padres a se renderem. Após conferenciar com alguém que não foi visto, a sentinela abriu fogo contra a tropa que, contudo, conseguiu levar a melhor e invadiu o edifício.

Aí os sacerdotes apareceram e serenamente explicaram ao coronel ser tudo mentira o que diziam sobre a Inquisição. Como ele podia ver, ali não havia prisioneiros e nem instrumentos de tortura. E de fato. Todas as salas eram muito limpas, bem decoradas, e por toda parte só havia crucifixos, belos quadros e velas.

A sala das torturas

Decepcionados, os soldados já iam sair pedindo desculpas aos clérigos quando outro coronel, chamado De Lile, resolveu averiguar melhor. Derramando água sobre os ladrilhos, notou que ela se escoava rapidamente pelas juntas de um deles e então, sob os protestos dos sacerdotes, ordenou às praças que levantassem aquela peça com a ponta das baionetas ou que a quebrassem com a coronha dos fuzis. Mas em vão.

Por fim, acidentalmente, encontraram um dispositivo que fez a laje afastar-se, mostrando os primeiros degraus de uma escada que descia para um subterrâneo escuro. Lehmanowski pegou um candelabro e já ia descer quando um dos padres tentou impedi-lo, dizendo:

- Não faça isso, meu filho. Não toque com suas mãos impuras nessas velas, porque são santas.

Mas o coronel não lhe deu ouvidos e todos desceram. Os sacerdotes, agora muito aflitos, foram levados junto. Lá em baixo encontraram uma ampla sala, denominada Sala dos Julgamentos. Em seu centro havia um bloco de mármore, muito grande, com uma corrente chumbada. A um lado, em plano mais elevado, uma poltrona a que chamavam "Trono da Justiça". Ao lado direito dessa sala depararam com uma série de cubículos com várias pessoas aprisionadas, inclusive adolescentes. Algumas já estavam mortas.

Outra sala ainda foi encontrada, e era a Sala de Torturas. Ali estavam a "roda", o "potro", o "strappado", a "virgem", os fogareiros, as pinças, as cordas, os estiletes e toda uma série de instrumentos pavorosos. E então aconteceu.

Irados, os soldados avançaram contra os sacerdotes, prenderam-nos e passaram a seviciá-los e a matá-los naqueles mesmos instrumentos que eles tantas vezes haviam usado.

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Pela última vez aquelas paredes de um subterrâneo escuro ouviriam os gritos de dor, o estalar de ossos, os berros de desespero. Depois, um silêncio gotejado de sangue.

Quando em 1861 vários livros e publicações espíritas que Kardec remetera, cumpridas todas as formalidades legais, para a Espanha, foram arbitrariamente apreendidos e queimados em praça pública por ordem do bispo local, naquilo que ficaria conhecido como Auto de Fé de Barcelona, esse evidente abuso de poder fez com que o Codificador comentasse dizendo que "a cauda da Inquisição ainda se arrastava pela Espanha"...

E esse arrastar de cauda levantaria uma poeira que não está de todo assentada.

Hoje, nos Estados Unidos, existem faculdades que ensinam feitiçaria. Durante a Segunda Grande Guerra, feiticeiras reuniam-se em um parque de Washington para espetarem alfinetes em bonequinhos que representavam Hitler. Mas quando Rhine, o pai da parapsicologia, quis dar prosseguimento aos seus estudos investigando a possibilidade da sobrevivência do Espírito, simplesmente foi-lhe negado todo o apoio oficial que tivera até então.

A existência do demônio!

Na Inglaterra os médiuns de cura agrupam-se em classe para o exercício de seu ministério, mas há poucos anos o deputado trabalhista Whilym Roberts submeteu à Câmara dos Comuns um novo projeto de lei contra a bruxaria, depois de ter visto pela televisão uma reportagem sobre a caça de um vampiro no cemitério Highgate. No Essex, até os anos 30, o "banho das bruxas" não era difícil de ocorrer. Em Norfolk uma nova caçada às feiticeiras teve início em 1940 e na França, de vez em quando, uma bruxa é mergulhada no Loire. Há bem poucos anos o Papa Paulo VI reafirmou oficialmente a existência do demônio. Em 1948 o Rev. Summers fez uma tradução para o inglês do Malleus Maleficarum, com comentários elogiosos sobre essa obra e seus preceitos. E quem não se lembra daquela triste foto de alguns anos atrás, em que o médium Zé Arigó aparecia atrás das grades da prisão? Não obstante sua atuação mediúnica ter devolvido a saúde a tanta gente, conforme as próprias autoridades médicas o atestaram, ele foi preso, fazendo-nos lembrar daquela declaração de 1572, de que mesmo as feiticeiras boas deveriam morrer, embora sem que a ninguém tenham prejudicado com sua feitiçaria.

Em 1970 o Pe. Quevedo apareceu exultante frente às câmaras de televisão, porque o Decreto 52497 da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, em seu artigo 497, proibia nos estabelecimentos destinados à assistência aos psicopatas ou fora deles (!) a prática de quaisquer atos litúrgicos de religião, culto ou seita, com finalidade terapêutica, ainda que exercidos gratuitamente e a título filantrópico.

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Dizia na ocasião o bom Pe. Quevedo que os espíritas não mais poderiam aplicar passes! Com certeza ele confundia o passe com ato litúrgico.

E a perseguição contra o Espiritismo ainda prossegue, seja através dos sermões grandiloqüentes, seja por meio da ironia, da blague, dos sofismas, da distorção dos fatos. O manual que se usa agora não é mais o Malleus, são os compêndios de uma parapsicologia tendenciosa e sectarista, made in Spain, a mesma terra que já nos deu as Leis de Ferro, de tão triste memória.

Mas essa poeira que o arrastar da cauda da Inquisição levantou quando em Barcelona ela se encaminhava para sucumbir no mar da iniqüidade, também haverá de se assentar um dia, e esse dia não está longe. Aí então a luz do sol de uma nova era brilhará num céu azul de esperança. O amor e a compreensão irão reinar soberanos e haverá plena liberdade de consciência, dentro do respeito e da amizade. Nesse dia a Verdade estará conhecida e ela terá restabelecido todas as coisas. E então as bruxas nunca mais serão perseguidas, porque bruxas e bruxos seremos todos. Bruxos a serviço de Deus, em complemento da harmonia universal, porque está prometido que será semeado o espírito pitônico. Aí o Cristianismo terá voltado à sua simplicidade original e existirá apenas a religião científica, universal, onde a fé é atributo da razão. E a época das trevas irá se perder nas brumas do passado, ficando-nos às costas, pois que a Lei nos impele a todos continuamente em direção à Luz, cujo clarão já dealba no horizonte radioso de uma madrugada de paz.

 

Obras consultadas

Alta - O Cristianismo do Cristo e o dos Seus Vigários - F.E.B.

Denis, Léon - Joana D’Arc - F.E.B.

Gueiros, J.A. - O Diabo sem Preconceitos - Edit. Monterrey Ltda.

Haining, Peter - Magia Negra e Feitiçaria - Edit. Melhoramentos.

Hays, H.R. - O Sexo Perigoso - Biblioteca Universal Popular.

Lima, Adelino Figueiredo - Nos Bastidores do Mistério - Spiker.

Lino, J. Teixeira - Históricos Maçônicos - Edit. Jornal O Malhete.

Lira, Jorge Buarque - As Vigas Mestras da Maçonaria - Rio de Janeiro.

Quevedo, O. Gonzales - A Face Oculta da Mente - Edições Loyola.

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Szasz, Thomas S. - A Fabricação da Loucura - Zahar Edit.

Vários Autores - Enciclopédia Barsa - Encyclopaedia Britannica Edit.

Vários Autores - Homem, Mito e Magia - Edit. Três.