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1 FACULDADE ALFREDO NASSER INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO CURSO DE HISTÓRIA O MARTELO DAS BRUXAS: UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DO MALLESUS MALEFICARUM NA SOCIEDADE EUROPEIA séc. XV - XVII Hugo Albuquerque de Morais APARECIDA DE GOIÂNIA 2010

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FACULDADE ALFREDO NASSER

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO

CURSO DE HISTÓRIA

O MARTELO DAS BRUXAS: UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DO

MALLESUS MALEFICARUM NA SOCIEDADE EUROPEIA – séc. XV - XVII

Hugo Albuquerque de Morais

APARECIDA DE GOIÂNIA

2010

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HUGO ALBUQUERQUE DE MORAIS

O MARTELO DAS BRUXAS: UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DO

MALLESUS MALEFICARUM NA SOCIEDADE EUROPEIA – séc. XV - XVII

Artigo apresentado ao Instituto Superior de Educação da Faculdade

Alfredo Nasser, sob orientação do prof. Dr. Ademir Luiz da Silva,

como parte dos requisitos para conclusão do curso de licenciatura em

História.

APARECIDA DE GOIÂNIA

2010

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FOLHA DE AVALIAÇÃO DA PRODUÇÃO DO TRABALHO

O MARTELO DAS BRUXAS: UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DO

MALLESUS MALEFICARUM NA SOCIEDADE EUROPEIA – séc. XV - XVII

Aparecida de Goiânia........ de ............................... de 2010

EXAMINADORES

Orientador: Prof. Dr. Ademir Luiz da Silva Nota:___ / ___

Primeiro examinador – Prof. (a)............................................................................Nota:___ /___

Segundo examinador – Prof.(a) .................................................................. Nota:___ /___

_____________________________________________________________________

Média parcial – Avaliação da produção do Trabalho: ____ / ____

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O MARTELO DAS BRUXAS: UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DO

MALLESUS MALEFICARUM NA SOCIEDADE EUROPEIA – séc. XV - XVII

Hugo Albuquerque de Morais 1

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o processo Inquisitório que se estruturou

no contexto medieval e início do período moderno. Por meio dele é possível

entender aspectos significativos da religiosidade que se desenvolveu na Europa.

Essa religiosidade teve grande influência na vida cotidiana e na compreensão de

certos fenômenos sociais. A questão da posição social feminina se insere nesse

panorama. Nesse sentido, as chamadas “bruxas” personificavam certa visão que a

sociedade da época desenvolveu acerca do gênero feminino. Eram vistas com

conotações negativas, e compreendidas como seguidoras do demônio, entregues à

luxúria e à gula, pois em seus rituais acabavam devorando crianças, adoravam o

demônio e cediam aos vícios constantemente. A bruxaria era condenada e

considerada heresia. Um dos manuais mais importantes produzidos pela Inquisição

foi o Malleus Maleficarum, ou O Martelo das Bruxas, escrito em 1484, que ensinava

como lidar com essa questão.

Palavras-chave: Martelo das Bruxas, Bruxaria, Gêzero

1 INTRODUÇÃO

A história da Inquisição sempre despertou o interesse de diversas áreas do

conhecimento acadêmico e variadas vinculações ideológicas ao longo do tempo. O assunto

durante décadas motivou debates e discussões acaloradas nutridas por acusações e

ressentimentos de ambos os lados. O processo Inquisitório que se estruturou no contexto

histórico da Idade Média e perdurou por longos anos, revela aos pesquisadores uma visão de

grande marco que desencadeou dentro de seu próprio contexto histórico e das demais épocas.

Todavia muitos dos arquivos da Inquisição continuam inacessíveis aos investigadores,

dificultando a criação de um quadro completo e de um conhecimento mais aprofundado sobre

a atividade inquisitorial ou o tribunal do Santo Ofício. Através deles poder-se-ia entender

aspectos significativos da religiosidade que se desenvolveram na Europa Medieval e Idade

Moderna.

As bruxas personificavam os medos da sociedade dos séculos XV e XVII e ganham

conotações negativas por serem seguidoras do demônio, entregues à luxúria e à gula, pois nos

seus rituais acabavam devorando crianças, adoravam o demônio e cediam aos vícios

constantemente. A bruxaria era condenada como heresia. Assim, as mulheres foram alvos de

1 Hugo Albuquerque de Morais é acadêmico do curso de licenciatura em História na Faculdade Alfredo Nasser.

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perseguições, tal atividade era vista como algo reprovável, como é ressaltado no Malleus

Maleficarum, escrito em 1484:

É preciso observar especialmente que essa heresia – a da bruxaria – difere de

todas as demais porque nela não se faz apenas um pacto tácito com o diabo,

e sim um pacto perfeitamente definido e explícito que ultraja o Criador e que

tem por meta profaná-lo ao extremo e atingir Suas criaturas... [...] de todas as

superstições, é mais vil, a mais maléfica, e mais hedionda – seu nome latino

maleficium, significa exatamente praticar o mal e blasfemar contra a fé

verdadeira (KRAMER & SPRENGER, 1991: 77).

Em 1486 foi publicado o Manual Eclesiástico Malleus Maleficarum, de autoria dos

dominicanos James Sprenger (1436 ou 8 - 1495) e Heinrich Kramer (1430 - 1505). Tendo por

finalidade constituir-se um suporte normativo para todas as ordens religiosas e para os oficiais

seculares no tratamento das heresias, o documento enumerava e caracterizava os males

religiosos que assolavam o reino da cristandade naquele período. A obra explica o horror que

se sentia em relação à bruxa porque ela tinha de renunciar ao cristianismo, blasfemar, fazer

um pacto e se entregar ao demônio, enfim, praticar o mal para poder obter benefícios:

Atentemos, em particular, para o fato de que para a prática desse mal

abominável são necessários, do modo mais profano, renunciar à Fé Católica,

ou negar de qualquer maneira certos dogmas da fé; em segundo lugar, é

preciso dedicar-se de corpo e alma à prática do mal; em terceiro lugar, há de

ofertar-se crianças não-batizadas a Satã; em quarto, é necessário entregar-se

a toda sorte de atos carnais com Íncubos e Súcubos e a toda sorte de prazeres

obscenos. (KRAMER & SPRENGER, 1991: 77).

Acredita-se que esse livro foi escrito pela necessidade de normatizar e homogeneizar a

ação dos Inquisidores que, apesar de estarem sob a jurisdição da Igreja romana não procediam

da mesma maneira. O manual contempla diversas questões desde a jurisdição do inquisidor

até questões práticas do encaminhamento do processo, utilizando como base teórica os

escritos dos doutores eclesiásticos. Nessa obra consta a descrição detalhada dos

procedimentos considerados adequados ao inquisidor desde a investigação até a conclusão do

processo, inclusive são classificados os hereges, as heresias, quais as formas de identificá-los,

as torturas necessárias e permitidas e, em caso de arrependimento do réu qual procedimento

para o perdão.

O martelo das bruxas é um produto e um instrumento do que Jean Delumeau

chamou de “cristianismo do medo”. No interior dessa nova intolerância,

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crença aterrorizada numa alucinante prática de bruxarias, o Sabat, introduziu

uma nota tão mais espetacular porque inspirava facilmente a iconografia.

Uma Europa da perseguição às Bruxas, uma Europa do Sabat tinha

nascido.(LE GOFF10, 2007:235)

Assim, a partir dos elementos estudados pretende-se esclarecer o porquê do maior

número de réus na inquisição serem de mulheres e assim elucidar elementos que demonstram

o estereótipo feminino na Idade Média e do início da Idade Moderna.

2 CONSTRUÇÃO DO ESTEREÓTIPO FEMININO

As questões concernentes à mulher trazem numerosos problemas a serem analisados

durante a história, no entanto, a figura feminina raramente é apresentada e muitas vezes sua

participação é secundária na escrita da história. “A participação e o lugar das mulheres na

história foram negligenciados pelos historiadores por muito tempo. Elas ficaram à sombra de

um mundo dominado pelo gênero masculino” (BURKE, 2002: 75-79). Nesse sentido a

história da mulher na Idade Média até o período moderno traz algumas questões que

demonstram o modelo social patriarcal daqueles períodos.

Figura 1: Ilustração para Malleus Maleficarum. Séc. XV. Bruxas.

Durante a Idade Média, as questões que englobam o padrão comportamental que regia

a postura feminina ideal eram determinadas pelo clero, visto que a Igreja ainda conservava

boa parte do monopólio da palavra. A Igreja baseada na interpretação das escrituras, vigente

no medievo, ditava as normas para o procedimento dos indivíduos no âmbito social.

Lucien Febvre (1978) faz uma abordagem da importância da religiosidade na vida dos

europeus e no cotidiano das pessoas, para ele o homem vivia sua vida baseada na Igreja

Católica.

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No século XVI não havia escolha. Era-se cristão de fato. Podia-se divulgar

em pensamento longe do Cristo: jogo de imaginação, sem suporte vivo de

realidade. Todavia, não se podia sequer dispensar a prática. Mesmo não

querendo, mesmo não entendendo claramente, todos, desde o nascimento, se

encontravam imersos num banho de cristianismo, do qual não se escaparia

nem na hora da morte: já que esta morte era necessariamente, socialmente,

cristã, devido aos ritos a quem ninguém podia subtrair-se, ainda que

estivesse revoltado em face da morte, ainda que tivesse feito gracejo e se

mostrasse brincalhão nos últimos momentos (FEBVRE,1978: 38).

Dessa forma, o indivíduo, as cerimônias e as práticas do cristianismo amarravam o

homem, e acima de tudo cercava sua vida privada. “Do nascimento até a morte, estabelecia-se

uma imersa cadeia de cerimônias de tradições costumes e práticas que, sendo toadas cristãs ou

cristianizadas [...] mesmo contra sua vontade” (Febvre, 1978:38).

O modelo patriarcal fazia com que o homem estabelecesse um poder maior dentro da

família e da sociedade. Toda a organização institucional na Idade Medieval repousaria sobre a

figura paterna; na célula familiar, a mulher e os filhos estariam sujeitos ao poder e domínio

masculino. A família era o espaço onde a mulher poderia circular, todavia até mesmo neste

espaço sua liberdade era limitada. A mulher, nessa perspectiva, constituía “uma ameaça

contra a ordem estabelecida”, pois o poder patriarcal era estabelecido nos padrões

comportamentais do período.

O padrão patriarcal, por ser menos diferenciado do que o padrão de

alteridade, não confronta diretamente sua sombra e a projeta à sua falta,

como vemos no fenômeno do bode expiatório. [...] a polarização em que

opera o dinamismo patriarcal exigiu um contra pólo para elaborar o símbolo

de Cristo. Surgiu o fenômeno do Demônio como Anticristo (KRAMER &

SPRENGER, apud Byington 1991: 33).

A ideia que a mulher como a porta do diabo ganhava grande reputação no início do

cristianismo, principalmente através dos movimentos monacais, fomentou uma negação da

carne e, por conseguinte uma exacerbação do antifeminismo. Estabeleceu-se uma relação

baseada no ascetismo, que vem por sua vez de uma negação do corpo e, portanto, da rejeição

da mulher, mais frágeis às tentações. Delumeau (1989) descreve o processo da criação do

medo sobre a mulher

Assim, o sermão, meio eficaz de cristianização a partir do século XIII,

difundiu sem descanso e tentou fazer penetrar nas mentalidades o medo da

mulher. O que na Alta Idade Média era discurso monástico tornou-se em

seguida, pela ampliação progressiva das audiências, advertência inquieta

para uso de toda a Igreja discente que foi convidada a confundir vida dos

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Clérigos e vida dos leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã. (DELUMEAU,

1989: 322.).

As mulheres foram alvos de perseguições, pois segundo a Igreja elas mantinham certo

grau de intimidade com as forças do mal. Esse fato pode ser entendido pela relação que as

mulheres tinham com as velhas sábias da aldeia, a confiança era tamanha que o padre era tido

como um ser que possuía poderes e determinava o destino das pessoas, para os assuntos que

as mulheres tratavam a orientação dessas anciãs se tornavam mais cabíveis.

Em linhas gerais, o padrão comportamental que regia a postura feminina ideal na

época medieval era determinado pelos dogmas cristãos, visto que existiam dois paralelos

comportamentais: o pecado original através de Eva, e a imagem de mãe benevolente vista em

Maria. A Igreja ainda conservava atrás do monopólio da palavra, assim baseados nas

interpretações das escrituras, vigente no medievo, as normas para o procedimento de toda a

sociedade.

Delumeau (1989, p. 382.) mostra a mulher como bode expiatório, sobre o qual “uns e

outros exprimiam seu medo de subversão com a ajuda de um estereótipo há muito tempo

constituído” e “Mesmo nas velhas, a presença de todo um clamor desejaste e de inevitáveis

atribuições fálicas faz de todas as bruxas figuras sexualizáveis por excelência. Como fator

chave na diabolização da mulher, a sexualidade feminina” (DELUMEAU, 1989, p. 327.)

Nos séculos XV e XVI, a figura do herege começa a se destacar e com isso, a imagem

da bruxa construída no Período Medieval eclode na perseguição contra a mulher. O objetivo

principal do tribunal da Inquisição era o combate a heresias e aos hereges, tanto homens

quanto mulheres, todavia a caça às bruxas fez vítimas em sua, maioria, mulheres. O feminino

tornou-se o principal alvo, as mulheres tornaram-se as principais vítimas das fogueiras

inquisitórias. Assim, apesar de as bulas papais não fazerem distinção de gênero ao

fomentarem a repressão, a maioria esmagadora dos réus era constituída por mulheres.

[...] 85% das pessoas que foram queimadas nas fogueiras foram mulheres. E

foram alguns milhões! É um número monumental. Havia cidades que tinha

800 mulheres e, num dia só, perderam 798, como a cidade de Trier, na

Baviera, por exemplo. Não era brincadeira, a caça às Bruxas! Qualquer

transgressão era pretexto para a fogueira (MURARO, 2000:39)

Segundo MURARO (2000) o conteúdo de Malleus Maleficarum, demonstra o modelo

misógino do período, pois estava baseado no segundo capítulo do livro de Gênesis e na figura

de Eva para justificar o seu ódio contra a mulher. As fraquezas do sexo feminino, são

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constituídas no contexto entre a prelazia medieval, vieram à baila: luxúria, infidelidade,

ambição, fraqueza carnal, lascívia, credulidade, indiscrição, impressionabilidade são essas as

características que levariam as mulheres à bruxaria.

Segundo Hilário Franco Jr. (2006), a Organização da Inquisição se dá entre 1184-

1229. No Período Medieval, ela é incipiente, todavia já no Baixo Medievo este destacamento

eclesiástico irrompe os limites de sua ação e se expande: “o processo misógino efetivado na

Idade Média ganha força de lei por meio dos manuais de caça aos hereges”. A figura do

herege começa a se destacar e com isso, a imagem da bruxa, já formada e composta,

construída no Período Medieval. Segundo Ginzburg (1991) na Europa os processos de lei

sobre a feitiçaria, entre os séculos XV e XVII, revelam um estereótipo criado com base em

conhecimentos do senso comum sobre o Sabat, reconhecido como uma seita de bruxas e

feiticeiras.

[...] Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao Sabat das

bruxas - que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da

feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos

espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa

pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc. (GINZBURG, 1991: 206).

.

As bruxas, depois de Lúcifer, excedem a todos os maiores pecados, visto que além de

pactuarem com o Demônio, mantém relações carnais com este, espalham ódio e injúrias a

todos os seres e negam o Cristo crucificado. O crime cometido pelas bruxas “é o mais

abominável dos três graus de infidelidade” (KRAMER & SPRENGER; 1991:171).

3 PROCESSO DE CRIAÇÃO DA INQUISIÇÃO

A Inquisição foi instituída no século XIII pelo papa Gregório IX, ela vigorou até o

século XIX. Como relata o autor Nachman Falbel na obra Heresias Medievais.

A Gregório IX devemos a organização do tribunal inquisitorial e, em 1229,

no Concilio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo Ofício.

Os dominicanos logo se puseram à disposição da nova instituição, cabendo-

lhes a tarefa de legislar e condenar os heréticos, entregando-os ao braço

secular. (FALBEL, 1977: 17).

O Tribunal da Inquisição foi um método implantado pela Igreja Católica com o

objetivo de combater as práticas de heresia. A Igreja era vista como representante de Deus na

Terra, então a ela cabia as punições. “A palavra herege se origina do grego hairesis e do latim

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haeresis e significa doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé”

(NOVINSKY, 1982, p 10).

O poder da Igreja se fazia, quase que todo, pelo discurso mesmo porque os

mecanismos de manutenção do poder sobre o sagrado precisavam se apoiar numa crença que

oferecesse credibilidade ao cristão. Nesse sentido, a Igreja impunha controle através do

discurso. À maneira de Foucault, “o discurso verdadeiro, pelo qual se tinha respeito e terror,

ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, (...) era o discurso que renunciava a

justiça e atribuía a cada qual a sua parte...”(FOUCAULT, 1998:15). Assim, questionar ou agir

de forma diferente dessa verdade mostrada pela Igreja iria contra as normas de Deus,

considerada heresia. Neste sentido milhares de pessoas contrárias às doutrinas ou práticas

adversas ao que é definido pela Igreja Católica eram considerados hereges.

Figura 2: Ritual de bruxaria. Ilustração para

Malleus Maleficarum. Séc. XV.

O Inquisidor se torna, dentro do contexto do período, o principal agente repressor dos

hereges. Cabia a ele usar técnicas e instrumentos para reprimir as ações dos heréticos. Além

dos instrumentos de tortura, os Inquisidores possuíam um poder muito grande diante dos

acusados a ponto de fazê-los confessarem a heresia cometida. A pressão psicológica exercida

sobre o acusado era tão grande que mesmo quando não havia cometido transgressões

declarava-se culpado.

Através de denúncias ou de levantamentos de suspeitas as pessoas eram convocadas a

se apresentarem diante dos inquisidores. Alguns eram absolvidos, outros torturados, alguns

flagelados, ou até mesmo queimados na fogueira pelos mais diversos crimes como: feitiçaria,

condutas contrárias à moral e aos bons costumes, oposição à Igreja e até “ideias filosóficas”.

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Jean Delumeau aponta os métodos que a Inquisição utilizava para obter as confissões

dos réus, assim „fome privação de sono às quais eram submetidos os acusados de feitiçaria

também rompiam “qualquer resistência”, a ponto de admitirem todas as atrocidades que lhes

eram atribuídas.” (DELUMEAU, 1989, p. 381). A prática da tortura para se obter confissão

contra os hereges era comum no Medievo, “no entanto, a bruxaria se torna um dos alvos

privilegiados [...] a bruxaria passou para o primeiro lugar na representação inquisitorial” (LE

GOFF, 2007, p. 235).

Outro aspecto que deve ser destacado foi a transformação da Inquisição medieval para

a Inquisição moderna. “A inquisição medieval foi um produto de uma longa evolução durante

o a qual a Igreja e o Papado sentiam-se ameaçados em seu poder” (NOVINSKY, 1982, pg15).

Ela foi criada inicialmente para combater o sincretismo entre alguns grupos religiosos, que

praticavam a adoração de plantas e animais e utilizavam mandingas. Na modernidade a

Inquisição está ligada à "crise da fé", pestes, terremotos, doenças e miséria social, assim nesse

período a inquisição alcançou seu apogeu.

Desde a Idade Média existia um controle religioso socialmente incorporado às

diversas esferas sociais, havia um manual de “normas e condutas” utilizado em vários países.

O Manual dos Inquisidores foi escrito em pleno século XIV, sendo mais exato o ano de 1376,

pelo dominicano Nicolau Eymerich e revisado em 1578, sendo largamente utilizado até o

século XVIII (BETHENCOURT, 2000). O autor ainda destaca que o tribunal da Inquisição

foi um movimento único por causa da legitimação do Papa, mas teve suas peculiaridades de

acordo com o local de ação.

As inquisições são referidas, geralmente, no singular. Essa tradição exprime

uma realidade: os diferentes tribunais de fé têm como fonte comum de

legitimidade a delegação de poderes, feitas pelo papa, em matéria de

perseguição das heresias. A designação única pode ser cômoda, mas esconde

realidades diversas. (BETHENCOURT, 2000: 10)

A Igreja, que durante todo o Período Medieval desempenhou importante função na

hierarquia social, possuía hegemonia tanto econômica quanto política. Já nos séculos XV-

XVI, existia uma necessidade de recorrer ao apoio das incipientes monarquias nacionais para

tentar conter o avanço das transformações sociais, políticas e principalmente religiosas que

ocorriam. Com o fortalecimento do absolutismo a partir da centralização do poder real, do

ressurgimento do direito romano e do incremento na burocracia todo o aparato de combate e

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de repressão à heresia se sofisticou e promoveu a transformação dos procedimentos criminais.

A esse respeito Delumeau (1989) acrescenta que:

O poder civil mais do que apoiou a Igreja na luta contra a seita satânica. A

obsessão demoníaca, sob todas as suas formas, permitiu ao absolutismo

reforçar-se. Inversamente, a consolidação do Estado na época da Renascença

deu uma dimensão nova à caça aos feiticeiros e feiticeiras. Os governos

marcaram uma tendência crescente a anexar-se ou ao menos controlar os

processos religiosos e a punir as infrações contra a religião. Mais do que

nunca a Igreja se confundiu com Estado, aliás, em beneficio deste. Mas a

urgência do perigo fez com que ela não pudesse ou não quisesse opor-se a

essa anexação. (DELUMEAU, 1989: 356.)

Dessa forma a caça aos hereges e aos feiticeiros e feiticeiras adquiriu uma dimensão

capital dentro da sociedade moderna e qualquer um poderia ser considerado um inimigo. De

um modo geral, o apoio do Estado se manifestava de duas formas, por meio de leis que

proibissem a atividade de indivíduos criminosos da fé, e fornecendo homens que auxiliassem

no cumprimento das leis. Assim, os crimes canônicos poderiam ser julgados tanto pelo

governador quanto pelo bispo metropolitano.

É perceptível na Idade Média, como se dá de forma bem organizada a Inquisição, e

para melhorar o serviço dos Inquisidores e de certo modo legalizá-los, foram sendo criados

Manuais de Inquisição, com informações sobre os tipos de heresias, mostrando

detalhadamente como descobri-las e como saná-las. A respeito disso Falbel (1977) explana

que:

Com o tempo, foram sendo elaborados manuais escritos por inquisidores

experientes que procuravam orientar os perseguidores das heresias sobre os

seus fundamentos doutrinários e também sobre a técnica ou modo de

conseguir a confissão do acusado. Nesses manuais cada heresia é

caracterizada, permitindo muitas vezes aos estudiosos um melhor

conhecimento de suas concepções. (FALBEL, 1977: 18).

Dessa maneira os manuais da inquisição contemplam diversas questões inerentes a

jurisdição do inquisidor até questões práticas do encaminhamento do processo, utilizando

como base teórica os escritos dos doutores eclesiásticos. A necessidade de normatizar e

homogeneizar a ação dos Inquisidores que, apesar de estarem sob a jurisdição da Igreja

romana não procediam da mesma maneira. Um dos manuais mais conhecido, foi criado por

volta do ano de 1486, um livro, chamado de Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas),

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como o próprio nome nos mostra, esse livro era usado como um manual para identificar,

combater e condenar legalmente as bruxas e as práticas hereges, escrito por dois monges

alemães dominicanos: Heinrich Kramer e James Sprenger.

4 MALLEUS MALEFÍCARUM E A PERSEGUIÇÃO ÀS MULHERES

Figura 3: Página de Malleus Malefícarum

O documento Malleus Malefícarum tem um papel importante para explanar os

motivos para a perseguição às mulheres, pois é a obra que representa a legitimação da caça às

bruxas, assim citada nos autos de todos os julgamentos do Santo Ofício por quase trezentos

anos. O documento foi escrito em 1484 por James Sprenger e Heinrich Kramer, contém as

normas e questão burocrática a qual a Inquisição deveria utilizar em seus autos.

O Malleus Malefícarum foi escrito em um contexto caótico, em que se acreditava no

fim do mundo graças às pestes e epidemias vividas no mundo moderno. Existia uma

preocupação no crescimento das heresias como um fator primordial para o enfraquecimento

da fé católica; o aumento da influência diabólica favorecendo a desordem e o caos apoiado em

três condições fundamentais: o diabo, a bruxa e a permissão de Deus. O combate às heresias

se fazia necessário e urgente. Carlos Amadeu B. Byington (1991) descreve o Malleus

Malefícarum como uma da obras mais terríveis do cristianismo.

O martelo das feiticeiras- Malleus Malefícarum é uma das páginas mais

terríveis do cristianismo. É difícil imaginar que, durante três séculos, ele foi

a Bíblia do inquisidor. Tentando demonstrar que não foi por acaso ele foi

escrito no esplendor do Renascimento e se transformou no apogeu

ideológico e pragmático da Inquisição contra a bruxaria, atingindo

intensamente as mulheres. [...] ele é um manual de ódio de tortura e de

morte, no qual o maior crime é o cometido pelo próprio legislador ao redigir

a lei. Suas vitimas não nos levou a expor orgulhosamente seus crimes para a

posteridade, que nos faz imaginar o terrível sofrimento passado pelos

milhares de pessoas, em sua maioria mulheres, muitas das quais histéricas,

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que foram por eles torturadas e condenadas à prisão perpétua ou à morte.

(KRAMER & SPRENGER, apud BYINGTON 1991: 20)

A obra é dividida em três partes: Primeira parte traz as três condições necessárias para

a bruxaria; o Diabo, a Bruxa e a permissão do Deus Todo Poderoso. Segunda parte contém os

métodos pelos quais se infligem os malefícios e de que modo podem ser curados. Terceira

parte trata das medidas judiciais no tribunal eclesiástico e no civil a serem tomadas contra as

bruxas e também contra todos os hereges. Contém as questões as quais definiam as normas

para a instauração dos processos e explicava os modos pelos quais devem ser conduzidos, e os

métodos para lavrar as sentenças. Neste sentido o Malleus foi durante três séculos o livro mais

utilizado pelos autos da igreja.

Segundo Kramer e Sprenger (1991) o Papa Inocêncio VIII legitimou o documento

demonstrando assim a preocupação da igreja com a depravação herética. Segundo a bula os

dois inquisidores têm o poder para a chamada “justa correção”, aprisionamento e punição de

quaisquer pessoas, sem qualquer impedimento, e de todas as formas.

Todos os que se lhes opuserem, a todos os rebeldes, de qualquer categoria,

estado, posição, proeminência, dignidade ou de qualquer condição que seja -

não importando privilegio de que disponha-haverá de ameaçá-los com a

excomunhão, a suspensão, a interdição, e inclusive com as mais terríveis

penas, as piores censuras e os piores castigos, como bem lhe aprouverem, e

sem qualquer direito de apelação, e se assim o desejar poderá, pela

autoridade que lhe concedemos, agravar e renovar tais penas quantas vezes

necessário, recorrendo, se assim convier, ao auxílio do braço secular

(KRAMER & SPRENGER, apud Inocêncio VIII 1991: 45).

O período de atuação do manual é referido como período de “caça às bruxas”, datado

entre século XIV a meados do XVIII. No início da obra os inquisidores fazem definições de

heresia “quem quer que pense de outra forma a respeito de assuntos pertinentes a fé que não

do modo defendido pela santa Igreja Romana é herege. Eis a verdadeira Fé” (KRAMER &

SPRENGER, 1991: 53). Nesse sentido quem contrariasse os dogmas estabelecidos pela Igreja

poderia ser considerado herege.

Outro ponto é que qualquer suspeita de heresia, não necessariamente bem

fundamentada, bastava para prender o suspeito por um bom tempo e, às vezes, mantê-lo no

cárcere durante vários anos. Uma acusação não provada baseada em conjecturas, suposições,

ou em provas indiretas era considerada razão suficiente para a detenção, além disso, todos os

tipos de pessoas eram aceitos como testemunhas em causas relacionadas à fé: sócios e

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cúmplices de um mesmo crime, notórios malfeitores e criminosos, servos que prestavam

depoimentos contra seus amos.

E as leis permitem que se admita qualquer testemunha como prova. Pois isso

é os Cânones que tratam de defesa da fé explicitamente recomendam. E o

mesmo procedimento é permissível como punição por heresia. Quando se

faz acusação dessa espécie, qualquer pessoa pode ser trazida como

testemunha do crime, tal como em caso de lesa-majestade. (KRAMER &

SPRENGER, 1991: 54).

A tortura era um mecanismo previsto pelo manual para se obter a confissão dos

acusados, pois “qualquer pessoa, de qualquer classe, posição ou condição social, sob acusação

dessa natureza, pode ser submetida à tortura (KRAMER & SPRENGER, 1991: 54). Mesmo

com a confissão o acusado deveria ser torturado, pois deveria ser punido na dimensão de seus

feitos.

Segundo análise de Rose Marie Muraro (2000) em sua obra “Texto da fogueira” o

Malleus Malefícarum é a continuação do livro Gênesis da Bíblia, assim evidenciando a

perseguição às mulheres. No livro de Gênesis, Eva é eleita como a representante do sexo

feminino que origina o discurso fundador sobre o mal. Nos três primeiros capítulos

de Gênesis, Eva é acusada de burlar as leis patriarcais do que se convencionou nomear de

mal, a quem foi inteiramente incorporada pelo lugar da bruxa. Ambas, portanto, reforçam um

dado importante para esta análise: a exaltação da sexualidade não-dita organizada em torno da

formação ideológica feminina, que exerce a função de desviar as contradições do todo

complexo dominante das formações discursivas. Para a autora são sete as teses centrais do

documento.

1) o demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de

mal aos homes, a fim de apropriar-se do maior número possível de almas;

2) e este mal é feito prioritariamente por meio do corpo, único

“lugar” onde o demônio pode entrar, pois “ o espírito [do homem] é

governado por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas” (parte

I, Questão VI). E porque as estrelas são inferiores aos espíritos e o demônio

é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar;

3)e este domínio lhe vem por meio do controle e da manipulação dos

atos sexuais. Pela sexualidade, o demônio pode se apropriar do corpo e da

alma dos homens;

4) e como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade,

elas se tornam as agentes por excelência do demônio (as feiticeiras);

5) a primeira e maior característica, aquela que dá todo o poder às

feiticeiras, é copular com o demônio. Satã é, portanto, o senhor do prazer;

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6) uma vez obtida a intimidade com o demônio, as feiticeiras são

capazes de desencadear todos os males, especialmente a impotência

masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, abortos,

oferendas de criança a Satanás, estragos de colheitas, doença nos animais,

etc.

7) e esses pecados eram mais hediondos do que os próprios pecados

de Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros país por ocasião da

queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Redentor (Cristo), e

portanto esse crime é imperdoável e por isso só pode ser resgatado com a

tortura e a morte. (MURARO, 2000:72).

A autora ainda acrescenta que mesmo na época do Renascimento que precede a Idade

da Luz, “processa-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer. Tudo aquilo que já

estava em embrião no Segundo Capítulo do Gênesis torna-se agora sinistramente concreto.”

(MURARO, 2000:72).

Na questão 7 faz-se uma análise do porquê de as mulheres serem mais entregues as

superstições diabólicas. A primeira análise é que, para o manual, a credulidade feminina em

relação à masculina faz com que elas sofram uma pressão do diabo que tem como maior

objetivo corromper a Fé. Utiliza-se até Eclesiástico19 para justificar essa posição “Aquele que

é crédulo demais tem um coração leviano e sofrerá prejuízo” (KRAMER & SPRENGER,

apud Eclesiástico 19 1991: 115). A segunda razão é a natureza impressionável das mulheres

propensas a influência dos “espíritos descorporificados”, tornando-as absolutamente malignas

quando a utilizam para o mal. Segundo o documento a outra razão é que a mulher demonstra

maior carnalidade do que homem, isso vem a partir de sua criação desde o Éden.

Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o

que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar

que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada

a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura

e, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa

falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (KRAMER

& SPRENGER, 1991: 116).

Ainda nessa perspectiva, os autores concluem que as mulheres deveriam ser as mais

visadas, pois são mais propensas às heresias. O Manual mostrava a mulher como mais

propícia aos desejos carnais do que o homem.

Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres [...] Pelo

que, para saciarem a sua lascívia, copulam até mesmo com demônios.

Poderíamos ainda aditar outras razões, mas já nos parece suficientemente

claro que não admira ser maior o número de mulheres contaminadas pela

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heresia da bruxaria. E por esse motivo contém referir-se a tal heresia culposa

como a heresia das bruxas e não a dos magos, dado ser maior o contingente

de mulheres que se entregam a essa prática. E abençoado seja o Altíssimo,

que até agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como

Ele veio ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós, homens, esse privilégio.

(KRAMER & SPRENGER, 1991: 121).

A caça às bruxas conduzida pelo tribunal da inquisição demonstra a mentalidade

misógina da Igreja Católica. Assim, o Malleus Maleficarum aponta a mulher como maior

pecadora, a origem de todas as ações nocivas ao homem.

Durante três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores e esteve na

banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caça às bruxas, no século

XVIII, houve grande transformação na condição feminina. A sexualidade se

normatiza e as mulheres se tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do diabo

e, portanto, passível de punição. Reduzem-se exclusivamente ao âmbito

doméstico, pois sua ambição também era passível de castigo. O saber

feminino popular cai na clandestinidade, quando não é assimilado como

próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm

mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir

voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente

introjetados por elas. (KRAMER & SPRENGER, apud Muraro 1991: 16)

Segundo imaginação dos inquisidores, isto decorreria do seguinte método:

De posse da pomada voadora, que (...) tem sua fórmula definida pelas

instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas

mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de

vassoura; depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de

noite, na visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade; (...) E não obstante

o diabo realize tal prodígio em grande parte através da pomada - para que as

crianças se vejam privadas da graça do batismo e da salvação -, parece que

também consegue o mesmo resultado sem o seu emprego. Já que, vez ou

outra, transporta as bruxas em animais, que não são de fato animais, mas

demônios naquela forma, e noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio.

(KRAMER & SPRENGER, 1991: 228)

O Malleus Malleficarum foi o manual, oficializado pelo Papa, para a perseguição às

bruxas pela Inquisição, levando à tortura e à morte milhares de mulheres.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou entender o processo Inquisitório que se estruturou no

contexto histórico da Idade Média. Esse processo culminou com perseguição às bruxas na

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Idade moderna. Nesse período histórico, o sentimento e o controle religioso estavam

incorporados às diversas esferas sociais.

Dessa forma, existia uma visão opressora ao feminino, em que, existia norma de

conduta a ser seguida pelas mulheres. O padrão patriarcal era estabelecido pela igreja que

demonstrava uma mentalidade misógina.

Nesse sentido o Malleus Maleficarum foi desenvolvido a partir de uma realidade

complexa. Suas preocupações eram: o crescimento das heresias como um fator primordial

para o enfraquecimento da fé católica; o aumento da influência diabólica favorecendo a

desordem e o caos apoiado em três condições fundamentais: o diabo, a bruxa e a permissão de

Deus. O combate às heresias se fazia necessário e urgente.

Abstract: The aim of this paper is to analyze the process that was structured in

inquisitorial context medieval and early modern period. Through it is possible to

understand significant aspects of religion that developed in Europe. This religion

had a major influence on daily life and understanding of certain social phenomena.

The issue of women's social position is part of this panorama. In this sense, the so-

called "witches" embody a certain vision that the company has developed about the

time females. Were viewed with negative connotations, were understood as

followers of the devil, given over to lust and gluttony, because we ended up eating

rituals children, worshiped the devil and were indulging in vices constantly.

Witchcraft was condemned as heresy. One of the most important manuals produced

by the Inquisition was the Malleus Maleficarum, or The Hammer of Witches,

written in 1484, where he was taught how to deal with this issue.

Keywords: Hammer of Witches, Witchcraft, Gender

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Fonte das ilustrações:

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Acesso: dia 10 de novembro de 2010