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História: debates e tendências-Passo Fundo, V. 6, nº 1, p. 193-218, 1º sem. 2006 O “DOCE INFERNO” AFRICANO NO BRASIL: ética-cristã, escravidão e sevícias senhoriais na “civi- lização” do açúcar Maria do Carmo Brazil * Resumo Com esta análise em torno da obra Economia Cristã dos Se- nhores no Governo dos Escravos pretendemos contribuir pa- ra o avanço dos estudos históricos das sociedades coloniais do Novo Mundo. A obra faz parte da bibliografia colonial tradicional e foi escrita em 1700 por Jorge Benci, jesuíta na- tural de Toscana, na Itália, com o intento de regulamentar a conduta do segmento senhorial em relação ao negro escravi- zado. O livro surgiu num momento em que a sociedade mo- derna já se orientava pela lógica das transações mercantis, do tráfico transatlântico e, sobretudo, numa circunstância em que os princípios morais e religiosos das antigas sociedades não encontravam mais eco entre os movimentos das ondas mercantis impulsionadas pelas sociedades modernas. Os va- lores mercantis-escravistas que emergiam como a razão de ser da colônia esbarrava vigorosamente na consciência cristã do missionário setecentista. Ao contrário de Antonil que, em 1711, já compreendia a ética mercantil como prática gerida pelo homem de cabedal e de governo, Benci, ainda preso ao paradigma do escravismo patriarcal da Antiguidade, partiu do pressuposto da moral e da ética cristã para valorar as relações escravistas. * Professora Titular em História do Brasil da Universidade Federal da Grande Dourados. Pro- fessora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dou- rados (UFGD). Autora, entre outros, de Fronteira Negra: Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Passo Fundo: UPF Editora, 2002. E-mail: [email protected]

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Page 1: O “DOCE INFERNO” AFRICANO NO BRASIL: ética …...ser da colônia esbarrava vigorosamente na consciência cristã do missionário setecentista. Ao contrário de Antonil que, em

História: debates e tendências-Passo Fundo, V. 6, nº 1, p. 193-218, 1º sem. 2006

O “DOCE INFERNO” AFRICANO NO BRASIL: ética-cristã, escravidão e

sevícias senhoriais na “civi-lização” do açúcar

Maria do Carmo Brazil*

Resumo Com esta análise em torno da obra Economia Cristã dos Se-nhores no Governo dos Escravos pretendemos contribuir pa-ra o avanço dos estudos históricos das sociedades coloniais do Novo Mundo. A obra faz parte da bibliografia colonial tradicional e foi escrita em 1700 por Jorge Benci, jesuíta na-tural de Toscana, na Itália, com o intento de regulamentar a conduta do segmento senhorial em relação ao negro escravi-zado. O livro surgiu num momento em que a sociedade mo-derna já se orientava pela lógica das transações mercantis, do tráfico transatlântico e, sobretudo, numa circunstância em que os princípios morais e religiosos das antigas sociedades não encontravam mais eco entre os movimentos das ondas mercantis impulsionadas pelas sociedades modernas. Os va-lores mercantis-escravistas que emergiam como a razão de ser da colônia esbarrava vigorosamente na consciência cristã do missionário setecentista. Ao contrário de Antonil que, em 1711, já compreendia a ética mercantil como prática gerida pelo homem de cabedal e de governo, Benci, ainda preso ao paradigma do escravismo patriarcal da Antiguidade, partiu do pressuposto da moral e da ética cristã para valorar as relações escravistas.

* Professora Titular em História do Brasil da Universidade Federal da Grande Dourados. Pro-

fessora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dou-rados (UFGD). Autora, entre outros, de Fronteira Negra: Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Passo Fundo: UPF Editora, 2002.

E-mail: [email protected]

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1-No paraíso do açúcar: Es-cravidão africana no Brasil

Desde antes da década de 1960, historiadores, cientistas sociais e outros estudiosos brasileiros têm se engajado no sentido de garantir visi-bilidade ao quadro de violência que marcou de forma objetiva e subjetiva a relação entre escravizador e traba-lhador escravizado. Os estudos de Benjamin Péret (1956), Clovis Mou-ra (1959), Emília Viotti da Costa (1966), Décio Freitas (1971), Alípio Goulart (1972) prepararam as bases onde outros pensadores sociais como Ciro Flamarion Cardoso (1973) e Jacob Gorender (1978) assentariam os conceitos do modo escravista colonial. 1 Segundo Mário Maestri, o 1 Cf. PÉRET, Benjamin. O quilombo dos

Palmares. Edição e introd. MAESTRI & PONGE, Robert. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. MOURA, Clóvis. Rebeli-ões da senzala: Quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Zumbi, 1959.COSTA,Emilia Viotti da.. Da Sen-zala a Colônia. 3ª ed. São Paulo, Brasili-ense, 1989. FREITAS, Decio. Insurrei-ções escravas. Porto Alegre, Instituto Cultural Português/Vozes, 1980. Palma-res: a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973. GOULART, José Alí-pio. Da Palmatória ao patíbulo. Castigos de Escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1971. CARDOSO, Ciro Fla-marion. Agricultura, escravidão e capita-lismo. Petrópolis: Vozes, 1979. GOREN-DER, Jacob. O Escravismo Colonial. 2 a. ed. São Paulo: Ática, 1978.

escravismo colonial foi definido como modo de produção “historica-mente novo” e dominante em impor-tantes regiões da América. 2 As di-mensões sociais, políticas e culturais do escravismo tornaram-se objetos de outras abordagens, ensejando enfoques sobre novos temas e espa-ços geográficos não contemplados até então pela historiografia. Apesar desses bons ventos soprarem em favor das reflexões sobre a escravi-dão, os estudos sobre a África não conheceram o mesmo grau de inte-resse no Brasil. O Continente Negro continua, no dizer do historiador brasileiro, sendo o “patinho feio da historiografia brasileira”. 3

A historiografia revela que, desde meados do século XVI, o Bra-sil já empregava o trabalho compul-sório do nativo nas atividades eco-nômicas mercantis. Devido ao esgo-tamento tendencial daquela popula-ção e a pressão dos interesses envol- 2 MAESTRI, MARIO. “Terra e Liberdade:

as comunidades autônomas de trabalhado-res escravizados no Brasil”. In: AMARO, Luiz Carlos e MAESTRI, Mario ( orgs.). Afro-brasileiros: História e Realidade. Porto Alegre: EST Edições, 2005, p. 94. (GT Negros/Anpuh/RS).

3 MAESTRI, Mario. História do Brasil e a África Negra Pré-colonial. Porto Alegre: I Seminário Nacional sobre História da África/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, set. de 1994. p. 1. (Confe-rência)

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vidos com o tráfico triangular, o trabalho do nativo brasileiro foi gra-dativamente substituído pelo dos africanos submetidos ao cativeiro, os quais eram comprados ou trocados na África por produtos baratos trazi-dos da Europa. Entre outras nações americanas, o Brasil foi a que mais importou africanos para escraviza-ção. Ao manter o cativeiro negro até o último fôlego do sistema, foi a última nação do continente a supri-mir a escravidão. Por tudo isso, co-mo nos explica Maestri, o Brasil foi o lugar onde o escravismo desenvol-veu-se de forma mais acabada4, de forma mais plena, em estado mais puro.

Nessa instituição, o trabalha-dor escravizado convertia-se em uma propriedade total e ilimitada do es-cravizador, desprovido de quaisquer direitos e submetido à mais absoluta dependência. A escravidão permeou todos os recantos do país, quer no campo ou na cidade, durante os seus mais de três séculos, alimentada, sobretudo por uma profusão de africanos, vítimas do exílio forçado, da humilhação, do sofrimento e da iniqüidade do tráfico transatlântico5.

4 MAESTRI, Mário. Lo schiavo coloniale:

lavoro e resistenza nel Brasilse schiavista. Palermo: Sellerio, 1989. p. 33.

5 Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850:1888. Rio

Apesar da importância que desem-penhou para a história brasileira, o historiador Jacob Gorender sustenta em seu clássico O escravismo colo-nial que apenas depois da década de 1970, a historiografia brasileira que-brou realmente o silêncio sobre o trabalhador escravizado enquanto categoria social importante nas in-terpretações do passado do Brasil. 6

Na Colônia e no Império, o trabalhador escravizado produziu os mais variados tipos de produtos co-loniais, como açúcar, ouro, diaman-tes, café, charque, cacau, entre ou-tros. Mas a produção açucareira e extrativismo mineral formavam os principais núcleos sistemáticos de produção da colônia portuguesa, até sua emancipação. Alguns fatores determinaram que os portugueses estivessem melhor preparados para a abertura de um caminho marítimo para as Índias: a experiência de na-vegação marítima, relacionada à pesca da baleia; o fato de ser escala, na rota ligando o Mediterrâneo e o norte Europa; a proximidade com o Continente Negro, etc. 7

de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasí-lia: INL, 1975.

6 GORENDER, Jacob. O escravismo co-lonial. 5 ed. revista e ampliada. São Pau-lo: Ática, 1988. p. 1.

7 MAESTRI, Mário. A Servidão Negra. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1988, p.40.

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Gorender aponta outros fatores para o êxito dos portugueses na pro-dução açucareira no Brasil: “Ao ini-ciar-se o século XV, Portugal conta-va com algumas vantagens suma-mente preciosas em comparação com os demais países europeus. En-quanto estes continuavam empenha-dos em exaustivas guerras internas e externas, como a Espanha, ainda estavam longe de completar sua uni-ficação, Portugal já dispunha de fronteiras definitivamente estabele-cidas, não enfrentava questões inter-nas graves e contava com um poder estatal em processo de vigorosa cen-tralização8. Assim, quando a Coroa lusa estabeleceu contato com as po-pulações africanas, já representavam setores sociais mais dinâmico do mercantilismo europeu9.

A abundância dos solos férteis americanos permitiu a plantagem açucareira escravista. Mas foi a ex-periência açucareira dos portugueses nas ilhas de Madeira, nos Açores, no Cabo Verde e na ilha de São Tomé, e a associação com mercadores fla-mengos, que deram a Portugal as condições de transformar o açúcar

8 GORENDER, Ática, Escravismo Coloni-

al. 4 ed. São Paulo: Ática, 1985. p.109-10.

9 MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Mer-cado Aberto, 1988. p 41.

num dos principais produtos de sus-tentação do Antigo Sistema Coloni-al: “... Esta experiência anterior [...] familiarizou os portugueses com os problemas técnicos ligados à lavoura da cana e a manufatura do açúcar e fomentou Portugal a produção de aparelhamentos para os engenhos10. Os flamengos, em virtude da experi-ência, da importância no comércio, da excelente frota mercante e da capacidade de organização comerci-al, geraram um mercado de grande escala para o açúcar, possibilitando a absorção da grande produção brasi-leira do século XVII.

Mas à faculdade técnica e à abundância de terras era preciso adi-cionar um fator importante: a disponibilidade de mão de obra, resolvida inicialmente com a escravização do americano nativo. Açúcar e escravidão assumiram, à época, uma relação unívoca para os interesses metropolitanos e coloniais: “A proximidade do continente africano das terras ameri-canas teve gravíssimas conseqüências para as civilizações negras. As comunidades de agricul-tores e pastores africanos apresenta-ram-se, para o mercantilismo euro- 10 CANABRAVA, Alice. A grande propri-

edade rural. In: HOLANDA, Sérgio Bu-arque de (dir.). História Geral da Civili-zação brasileira. 2ª. Ed., São Paulo: Difu-são Européia do Livro, 1963, t. 1, v. 2, p. 204.

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peu, com ótimas e inesgotáveis se-menteiras de cativos. E, para a lógica mercantilista, não podia ser distinto. Historicamente, o cativeiro era a organização econômica que melhor se adaptava à valorização das terras americanas. [...] O próprio desen-volvimento capitalista europeu foi portanto favorecido pela feitorização do homem africano”11.

2-Jesus Cristo era o feitor: os presbíteros católicos e a es-cravidão

Instalada num grande latifún-dio, a unidade produtora de açúcar constituía-se em casa-grande, senza-la, capela e casa de engenho. A pre-sença da capela numa unidade pro-dutora exercia um papel social de suma importância para o segmento senhorial, sobretudo, porque era as cerimônias religiosas, como casa-mento, batizados, rezas e missas, que ensejavam o momento se estabe-lecer relações inter-senhoriais, de se ostentar o luxo, a riqueza e o grau de poder. O poder senhorial envolvia terras, cativos, agregados e homens livres de poucas posses. Para o histo-riador Sérgio Buarque de Holanda, os traços de fidalguia, a posição so-

11 MAESTRI, Mario. História da África

Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Mer-cado Aberto, 1988, p.42-3.

cial privilegiada e a posse de muitos bens superavam o sentimento religi-oso: “Nos domínios rurais, a autori-dade do proprietário não sofria répli-ca. Tudo se fazia consoante sua von-tade, muitas vezes caprichosa e des-pótica [alimentada por] pretensões aristocráticas, que foram tradicio-nalmente o apanágio do nosso patri-ciado rural”12. Na maioria dos enge-nhos a presença física de uma capela do Brasil traduzia o nível de poder de um senhor de engenho.

Não há dúvida de que o senhor de engenho, figura fulcral da unida-de colonial, não era apenas um mero proprietário. Cabia-lhe submeter o cativo à produção de mercadorias, visando uma rentabilidade corres-pondente ao seu investimento. Para o eficaz funcionamento do sistema, impunha-se uma dura estrutura de dominação na organização do pro-cesso produtivo. Para o padre André João Antonil – tenaz defensor da escravidão –, cabedal e governo de-finiam o perfeito perfil daquele que comandava os núcleos escravistas da empresa colonial. “O senhor de en-genho é vislumbrado, antes de tudo em sua opulência, em seu prestígio,

12 HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes

do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969, p.49-50.

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em sua dignidade”13. Antonil via o escravo como via cavalos, éguas e bois. Consoante com as Ordenações Filipinas, coligidas por ordem de Felipe I, quando da anexação de Portugal e Espanha, em 1580, Anto-nil, o reitor do Colégio da Bahia no início do século XVIII, entendia que só havia duas formas de o escravo se tornar livre. Ou pela morte ou pela alforria. Saliente-se que as Ordena-ções Filipinas regulavam a compra e venda do trabalhador escravizado no mesmo item destinado aos animais14.

O caráter ostentatório dos se-nhores foi também descrito pelo jesuíta italiano, no fim do século XVII: "Que razão pode haver para que os senhores do Brasil, sustentem de portas a dentro tão grande número de ociosos e ociosas? Porque não lhes dão de meter nas mãos de uma enxada, para que plantem mantimen-tos e tenham com que se sustentem os mesmos senhores a si e a quem lhes trabalha?...Se os escravos não hão de servir ao menos para a seus senhores sustentar a vida, não só para que se comprem tão grande gasto? Só para sustentar o fausto e a

13 ANTONIL, André João. Cultura e opu-

lência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte:

Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1982, p. 43.

14 FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973, p. 26-7.

vaidade, e para que haja muitos a quem mandar."15

A presença física da Igreja no engenho não significava a sua auto-nomia enquanto instituição religiosa. Instalado na fazenda, em lugar quase sempre contíguo à casa grande e ornamentado com insígnias de no-breza e ostentação, a capela cumpria função social primordial no enge-nho. Nela, congregavam-se senhores de outras unidades produtivas por ocasião das festas, rezas e missas. O símbolo da fé nas dependências do engenho estava longe de ter como principal função a doutrinação da população escravizada. O historiador Sergio Buarque de Holanda lembra que longe da intenção de professar os preceitos básicos do cristianismo havia de fato “uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão da verdadeira espiritualidade”16.

As reflexões do historiador cubano Manuel Moreno Fraginals17

15 BENCI. Ob.cit. p. 174.

16 HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. p. 111.

17 FRAGINALS, Manoel Moreno. O Enge-nho – complexo econômico-social cubano do açúcar. Trad. S. Rangel e R. C. Abílio.

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sobre o engenho nas Antilhas tam-bém registram os limites dos princí-pios doutrinários da Igreja na conde-nação da escravidão. Fraginals admi-te que, na fase inicial da montagem do sistema açucareiro em Cuba, houve em parte a influência dos fun-damentos da Igreja Católica entre os cativos. Reconheceu também que havia certo interesse das pequenas unidades produtoras de açúcar na doutrinação dos trabalhadores cati-vos. Isso porque, até meados do sé-culo XVIII, fase inicial de desenvol-vimento do sistema produtivo colo-nial cubano, não fazia falta o tempo destinado ao culto ou à catequese. Os senhores apostavam na segurança ou na submissão dos trabalhadores feitorizados através do paciente en-sinamento dos princípios cristãos e da utilização de mecanismo discipli-nares.

Segundo o autor de O enge-nho, com a grande expansão produ-tiva do açúcar para o mercado mun-dial, que criou a grande manufatura de trezentos escravos por unidade produtiva, tornou-se cada vez mais difícil a manutenção dos ensinamen-tos religiosos nos engenhos cubanos. O boom açucareiro provocou o rom-pimento com esquema semi-patriarcal e submeteu a escravaria à

São Paulo: Edunesp/Hucitec, 1988. v. I e II.

barbárie esgotante do trabalho exten-sivo. 18 Esse ponto fica claro na refe-rência feita por Fraginals sobre um livro religioso publicado em 1797 pelo presbiteriano Antonio Nicolás Duque de Estrada, sob o título Ex-plicación de la doctrina cristina acomodada a la capacidade de los negros bozales. 19 Fraginals informa que o livro veio a lume em pleno boom açucareiro, mas, à época de sua publicação, já estava ultrapassa-do, por razões prosaicas, ainda que trágicas: “[...] era difícil ensinar reli-gião a um homem depois de termi-nada sua jornada de trabalho de de-zesseis horas.”20

Essa obra resultou da convi-vência direta que Duque Estrada tinha com o Engenho. O presbítero era consciente de que, naquele mo-mento histórico, a religião estava em crise, dada a barreira do idioma e, sobretudo, as rígidas normas de tra-balho. Portanto, não sobrava tempo

18 Ib.id. v.I., p. 141.

19 ESTRADA, Nicolas Duque de. Explica-ción de la Doctrina Cristiana acomodada a la capacidade de los negros bozales. Havana, Boloña, 1823. Segundo Fraginals o original manuscrito se conserva na se-ção de Manuscritos da Biblioteca Nacio-nal. O historiador cubano informa ainda que existem referências a uma primeira edição de 1797 e 1818.

20 FRAGINALS, Manoel Moreno. O Enge-nho. Ob.cit. v. I, p. 144.

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para qualquer ato religioso e o pró-prio avanço da consciência mercanti-lista negligenciava as exigências cristãs. Duque Estrada tentou pregar a caridade, base da doutrina cristã à escravaria, mas diante dos atos de sublevações por falta de entendimen-to dos trabalhadores, convenceu-se de que era preciso conciliar discipli-na e ensinamento cristão.

No novo contexto, Duque Es-trada fez inusitada recomendação aos capelães do Engenho: “ [...] nun-ca se oporem ao castigo dos negros, mesmo que fosse injusto [....] jamais discutir com o feitor, que tinha todo o poder em suas mãos. Não recorrer aos amos, pois, para estes, tomar atitude era moralmente impossível. Não envolver-se nas querelas com os escravos ao feitor. Não possuir ter-ras, lavouras, cria, ceva, nem sequer cavalo próprio [...] nunca dar razão aos negros [...] mas dizer-lhes vocês mesmos são os culpados, porque nem todos cumprem sua obrigação; vocês são muitos e o feitor apenas um; hoje um comete uma falta, ama-nhã outro. Um dia um faz uma pi-cardia, outro dia o outro a faz. Todos os dias o feitor tem que agüentar: isso todos os dias, todos os dias e, mesmo que não queira, ele fica bra-vo. Por mais que um boi seja manso, se sempre o junge, junge, ele dá pa-tada. O mesmo acontece com o fei-tor; um dia ele pode agüentar muito,

outro dia não pode agüentar sequer um pouco, porque já está cheio.”21.

Como Benci, o presbítero não fazia oposição aos castigos e propu-nha a conciliação entre a disciplina e o ensinamento cristão aos trabalha-dores escravizados. Além disso, o religioso compreendia que a própria labuta diária lhes serviriam de lição. Esse ponto é comum nos discurso de Benci e de Duque Estrada. Para am-bos, o trabalho contínuo significava sujeição e obediência. A partir das considerações do presbítero, Fragi-nals traduz o entendimento religioso de que "o açúcar podia explicar o paraíso celestial”: "A vida é uma labuta constante, um trabalho contí-nuo, como o dos negros lenhadores que iam à mata cortar lenha. A lenha cortada é medida em tarefas, cuida-dosamente contadas pelo feitor; Je-sus Cristo é como feitor: tudo vai acabar e será como no dia da semana em que acaba o corte da lenha: assim como o feitor nos castiga se não ob-tivermos as tarefas de lenha necessá-rias, Jesus Cristo nos condena, se não cumprimos nosso dever espiri-tual. [...] Porém, mais expressivas que o Jesus-Feitor eram as almas-açúcar. A alma limpa, pura, do ho-mem bom, do bom escravo, é como o açúcar branco, com seus grãos

21 Id.ib. p., p. 145.

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reluzentes, sem vestígios de impure-za.” 22

O jesuíta Jorge Benci expres-sou, de forma similar, o que sugere Duque Estrada. Ou seja, o interesse em manter, sem rebuço, o cativo sob controle, a partir da labuta constante: "E esta é razão, porque é tão neces-sário que o senhor ocupe e faça tra-balhar os escravos: para os trazer sujeitos, sossegados e mansos. Já disse que os servos não devem ser tratados como jumentos; contudo não se pode negar que os escravos, regularmente falando, participam de uma má qualidade destes animais. O jumento, quando está ocioso e sem trabalhar, faz-se manhoso e rebelão; e se depois o querem sujeitar à car-ga, tira coices e não quer admiti-la. O mesmo sucede nos servos, se an-dam mui folgados; fazem-se contu-mazes e rebeldes, e querendo o se-nhor apertar com eles, não fazem caso do que se lhes manda[...]”23.

Nesse sentido, no Brasil o es-cravo desde o início da colonização era encarado como mero animal de carga, verdadeiro “fôlego vivo” de uma unidade produtora - bastando-lhe simplesmente a coerção física para submetê-lo ao trabalho. Em Cuba, no fim do século XVIII, “o

22 Id.ib. p. p. 146.

23 Id.ib. p. 176.

produtores de açúcar abandonaram em seus engenhos, toda a prática religiosa, exceto as cerimônias anu-ais, que serviam de disfarce moral mínimo. Mas acabariam compreen-dendo seu erro. A religião roubava algumas horas semanais à produção, mas também podia ser um freio à rebelião negra”. 24.

3-O “doce” inferno

As páginas das crônicas escri-tas no período da escravidão brasi-leira estão repletas de referências à organização do Antigo Sistema Co-lonial e às relações escravistas de produção. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas (1711), de João André Antonil25, por exemplo, refere-se às realidades das áreas pastoris, da mineração e da grande lavoura de cana-de-açúcar e tabaco. Apesar de ser uma obra des-critiva e relacionada à produção es-cravista do açúcar, abre espaço para a reflexão sobre as relações sociais em outras áreas produtivas do Brasil, como parte das determinações eco-nômicas nascidas da natureza mer-

24 Ibid., v.I, p. 146.

25 ANDREONI, João André (Antonil). Cultura e opulência do Brasil: Por suas Drogas e Minas(1711). 3 ed. Belo Hori-zonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. p.43

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cantil do escravismo moderno. Nes-se rico repositório informativo do funcionamento da produção naquela época histórica, o toscano Antonil descreve o processo produtivo em suas principais ramificações, como as características do açúcar, o cultivo do fumo e a extração do ouro, os dados estatísticos, os padrões mone-tários, as exportações e as receitas régias. Mas sua crônica alcança os homens, não em sua dimensão hu-mana, mas como agentes do proces-so produtivo. Emerge de seus escri-tos a figura do purgador e o perfil do feitor-mor, do soto-mestre, do caixeiro do açúcar, do ajuda-banqueiro, entre outros.

À luz de sua obra, que revela nitidamente a expressão pura da vi-são mercantil da exploração coloni-al, é possível compreender que os procedimentos de senhores que as-sumiam o governo das unidades produtoras, localizadas nas mais diversas e mais internas áreas do país, se baseavam na busca de exce-dente de trabalho, levando em conta as singularidades e os custos de pro-dução. Nesse sentido, o proprietário de uma empresa agrícola, ao organi-zar a produção, se tornava o agente gerador da opulência apontada por Antonil e, ao mesmo tempo, o res-ponsável pela existência de ativida-des produtivas capazes de promover a acumulação escravista de capitais.

Patriarca, dotado de sólida ba-se material e de substancial preparo gerencial, ele trazia “consigo o ser servido, obedecido e respeitado por muitos”. Riqueza, prestígio e poder sintetizavam as condições daquele que se propunha a organizar o pro-cesso de trabalho nas grandes con-centrações escravistas. Esta regra estendia-se desde as áreas litorâneas às mais distantes regiões do sertão brasileiro.

A organização do trabalho es-cravo no Brasil pode ser entendida como o resultado da ação da coloni-zação, como montagem de uma es-trutura de produção, bem como os processos adaptativos dos seus agen-tes às mais diversas regiões da colô-nia e, sobretudo, os interesses me-tropolitanos. Para isso, recorria-se à redução dos gastos de subsistência do cativo que envolvia alimentação, vestuários, remédios; a severas re-gras de dominação e exploração, manifestadas nos castigos, e ao pro-cesso de intensificação do trabalho na produção, como o prolongamento e intensificação da jornada de traba-lho e utilização coercitiva da mão-de-obra escravizada nos dias reser-vados ao descanso.

Independente das necessidades de caráter produtivo, eliminar o tem-po livre significava maior eficácia no controle e na segurança do núcleo de produção escravista. Assim, pela

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lógica da produção escravista, o tra-balhador escravizado, ocupado até a exaustão, dificilmente tinha disposi-ção para conspirar contra seus escra-vizadores ou para organizar esque-mas de fugas ou insurreições. O tra-balho exaustivo era, também, meio de pacificação social.

Por outro lado, o fato de o trabalho exigido ao cativo, não raro, ultrapassasse os limites da sua resis-tência sócio-biológica, resultava em tensões e conflitos agudos, que po-diam ensejar atentados à estrutura senhorial, como respostas aos méto-dos de dominação. Dentre as mais ostensivas e constantes reações, sali-entava-se a destruição dos instru-mentos de trabalho, os justiçamen-tos, as fugas individuais ou em mas-sa, a formação de quilombos no inte-rior das matas, as revoltas coletivas ou isoladas contra os representantes da empresa colonial, etc.. Os escra-vos revoltosos de Mato Grosso, por exemplo, perseguidos ou em busca da liberdade, procuravam asilo em espaço além-fronteira, cujos territó-rios se constituem hoje em países como Peru, Bolívia e Paraguai.

As severas regras de domina-ção e de exploração, materializadas nos castigos, tiveram atribuições básicas para o bom funcionamento da escravidão. Nessa perspectiva, as condições de vida dos trabalhadores escravizados e o tratamento dispen-

sado a eles atendiam às necessidades inerentes à própria ordem escravista, cuja missão era ampliar, ao máximo, o excedente de trabalho. O caráter compulsório da produção escravista exigia um rígido programa de trei-namento e aclimatação do escravo para que se ajustasse às condições de trabalho forçado e aos padrões de sujeição da empresa colonial. Adap-tar o escravo à eficiência, à rapidez e à disciplina, foi o principal desafio dos organizadores de uma empresa colonial.

Compulsão e feitorização con-corriam para moldar os comporta-mentos dos trabalhadores escraviza-dos. Eles deviam exteriorizar obedi-ência, destreza e humildade, como sinais de ajustamento à estrutura de dominação. A disciplina do trabalho dependia de um bom desempenho administrativo das unidades escra-vistas, conforme explica o historia-dor Décio Freitas: “A função com-pleta habitualmente aos feitores, que nos grandes engenhos eram em nú-mero de três: feitor-mor, feitor da moenda e feitor de partido ou fazen-da. Para começar, se o escravo re-cém-chegado dava mostra de exces-siva rebeldia, era submetido àquilo que padre Vieira denominou de ‘do-ce inferno’ agrilhoado pelos pés no trabalho das caldeiras acesas sete ou oito meses ao ano, vinte e quatro

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horas ao dia” 26. Para Décio Freitas, o africano escravizado via-se inespe-radamente submetido a um tratamen-to de choque como forma de refrear seus impulsos recalcitrantes de resis-tência. Depois do impacto inicial, o africano-recém chegado ia sendo vencido, reprimido e alienado da própria identidade e destruído fisi-camente pela produção. Em seu es-tudo sobre o complexo açucareiro cubano, Fraginals assinalou o mes-mo rigor disciplinar utilizado para submeter, coercitivamente, o cativo apenas-chegado ao esquema de tra-balho produtivo: “Os anos mais du-ros nos engenhos eram os primeiros, de domesticação e formação de pes-soal escravo ao qual era preciso submeter com sangue e com sangue ensinar-lhes as técnicas mínimas e as exigências do trabalho açucareiro”27.

4-A trombeta de Deus

Muitas autoridades religiosas descreveram os horrores vividos pelos trabalhadores escravizados no Brasil a partir de uma visão utilita- 26 FREITAS, Décio. Palmares: a guerra

dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973, p. 31. Cf. VIEIRA, Antonio. Ser-mões. Obras Completas. Lisboa: Lello & Irmão Ed., 1951.

27 FRAGINALS, Manoel Moreno. O Enge-

nho. Ob.cit. p. 9.

rista e pragmática da escravidão du-rante a fase de acumulação primiti-va. Segundo esses discursos, entre eles o de Antonil, por exemplo, a escravidão era vista como uma ne-cessidade, como uma relação de tra-balho natural. Outros, como Benci, descreviam a escravidão como uma relação natural, no entanto, conde-navam os excessos no tratamento dos cativos invocando os preceitos morais e cristãos. Coerente com a postura religiosa, Benci entendia a escravidão como o mal eterno, ne-cessário e com raízes cravadas no pecado original. Dessa premissa religiosa, o jesuíta imprimiu em E-conomia cristã dos senhores no go-verno dos escravos a proposta de uma relação harmônica entre os segmentos sociais fundamentais da colônia – escravizadores e escravi-zados. O quadro idealizado por Ben-ci convertia senhores em agentes compassivos, benevolentes, e justos, e desenhava os escravos como figu-ras obedientes, passivas e leais.

Alguns estudiosos propõem que a maioria dos missionários cris-tãos pouco ajudou os cativos nos esquemas de resistência à escravi-dão, pelo simples fato de que muitos deles eram escravocratas, proprietá-rios de trabalhadores escravizados ou dependentes destes últimos. Hou-ve, porém, exceções. Embora domi-nasse na América religiosos proprietários de cativos, alguns

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tários de cativos, alguns sacerdotes tentaram levar a sério a missão reli-giosa, sobretudo diante dos africanos recém-chegados ao continente ame-ricano. Os estudos sobre a história dos africanos na América Latina, coordenado por Eduardo Hoornaert, revelam que o padre jesuíta Alonso de Sandoval (1576-1651) exerceu seu ofício durante quarenta anos no porto negreiro de Cartagena, de Las Índias, na Colômbia, organizando um extenso e egrégio tratado pasto-ral em latim intitulado Sobre a sal-vação dos etíopes, onde destacou os princípios cristãos que deviam ser seguidos na evangelização dos ne-gros boçais. Os autores da obra His-tória dos africanos na América Lati-na, consideram o tratado elaborado pelo jesuíta Sandoval como o mais expressivo trabalho que se tem co-nhecimento no campo religioso de-dicado aos africanos na América Latina. O trabalho do Pedro Claver não deixa de ser igualmente valioso no campo pastoral, na medida em que ele também dedicou sua vida aos africanos escravizados que che-gavam em Cartagena. O jesuíta teria sido declarado santo no final do sé-culo dezenove, quando já havia ces-sado o tráfico transatlântico para a América Latina.

Mais comumente, os padres infundiam medos aos africanos e afro-descendentes. Em História dos

africanos na América Latina, há referência a dois padres da Compa-nhia de Jesus, atuantes em Lima, que diariamente pregavam nos núcleos de trabalho dos cativos sobre a ne-cessidade da obediência e da labuta constante. Consta que os padres in-timidavam os trabalhadores escravi-zados considerados indolentes e re-beldes: “[...] cada domingo ia um jesuíta sentar-se a praça central de Lima pregar em voz forte os horro-res do inferno para os negros que não obedeciam.”28. Autodenomina-dos “a trombeta de Deus”, os jesuí-tas ameaçavam os cativos com peri-gos imaginários, causando-lhes for-tes inquietações e auto-sugestões psicológicas. Com essa ação era in-fundido o pavor aos cativos os quais se viam acuados pelos padres: “[...] bastava referir-se a eles para acalmar os escravos”! 29.

5-Ética-cristã e escravidão em Jorge Benci

Em 1700, o jesuíta e pensador italiano Jorge Benci, ao estender quatro sermões proferidos na cidade de Salvador (Brasil), escreveu Eco- 28 HOORNAERT, Eduardo (Coord. Equipe

Cehila–Popular). A história dos africanos na América Latina. Petrópolis, RJ, Brasil: Editora Vozes Ltda. 1987, p. 20.

29. Id.ib. p. 21.

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nomia cristã dos senhores no gover-no dos escravos30, com a intenção de instituir normas de procedimentos teológicos-morais aos escravizadores na relação com os escravizados. Pensava criar uma relação mais hu-mana e harmônica entre o senhor e seu cativo, onde o último pudesse “suportar” o esgotante trabalho rea-lizado nas atividades coloniais.

Na historiografia brasileira, o jesuíta Jorge Benci encontra-se situ-ado na qualidade de cronista erudito, cujo discurso constitui-se de apelos inflamados aos proprietários da co-lônia, no sentido de sugerir a “mode-ração” dos atos de crueldades usados contra os trabalhadores escravizados. Propunha a instituição de regula-mentos “ideais” a serem cumpridos na relação escravizador/escravizado com base na compassividade dos escravizadores e na obediência dos escravizados. Ao tratar a violência e a coerção à luz dos preceitos teoló-gicos e morais do cristianismo, deli-neou os traços básicos do escravis-mo colonial no Brasil sem, contudo, condenar a escravidão, enquanto instituição necessária à exploração mercantil da América portuguesa.

Em seus pronunciamentos ini-ciais, Benci recomendava que, para abreviar culpas e ofensas que come-tiam contra Deus, os senhores devi- 30 BENCI. Ob.cit.

am usar do domínio e do senhorio sobre os cativos, mas com modera-ção, segundo a razão e a piedade Cristã. Essa recomendação teria le-vado o jesuíta a trazer a lume a obra a que chamou “Economia Cristã”. Seus escritos constituíam-se num conjunto de regras, normas, modelo ou guia por onde os senhores cris-tãos deviam se orientar para gover-nar e, ou mesmo tempo, satisfazer as obrigações de verdadeiros senhores cristãos.31 Para persuadir os proprie-tários a seguir as normas idealizadas, Benci valeu-se dos fundamentos teológicos e filosóficos, contidos na doutrina cristã, muito embora a pró-pria lógica do seu pensamento en-caminhe o leitor a uma interpretação que alcança, sobretudo, as relações sociais existentes na Colônia.

No principio do século XVIII, fase mais intensa da extração minei-ra do Brasil, a escravidão tornou-se instituição indispensável aos proprietários, sinônimo de riqueza. Nesse contexto, os princípios ético-cristãos de caridade, compaixão, bondade, etc., submeteram-se aos preceitos básicos da economia es-cravista mercantil, quais sejam, or-ganização, desenvolvimento técnico, obtenção de excedente crescente. Daí o discurso de Benci, propondo uma reforma conciliatória da socie-

31 Id.ib. p.. 49.

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dade colonial: “[...] pretendo instruir aos senhores, especialmente aos do Brasil, no modo com devem tratar aos escravos, para que façam distin-ção entre eles e os jumentos; a qual certamente não fazem os que só pro-curam tirar deles o lucro, que inte-ressam no seu trabalho.”32

6-Economia Cristã dos Senho-res no Governo dos Escravos

Como de praxe, os originais da obra foram submetidos a uma co-missão especial, representada pelo padre Francisco de Matos, da Com-panhia de Jesus, a 5 de agosto de 1700, onde a mesma foi revisada, examinada e aprovada por religio-sos, para ser impressa sob título ori-ginal de Economia cristã dos senho-res no governo dos escravos. A obra foi licenciada para publicação, em 1700, na Bahia, e foi impressa em Roma, no Convento de Santa Maria, em 03 de janeiro de 1704.

A Economia cristã dos senho-res no governo dos escravos, reedi-tada pela Editorial Grijalbo, em 1977, abre-se com a apresentação “O Estudo Preliminar: O escravismo colonial” de Pedro de Alcântara Fi-gueira e Claudinei M.M. Mendes. Eleito como objeto de reflexões por

32 Loc.cit.

estes historiadores Economia cristã, de Jorge Benci, recebeu notações, analogias e observações de passa-gens penetrantes sobre a escravidão colonial.

Na primeira parte do livro, en-contram-se os seguintes tópicos: 1. “Estudo Preliminar: O Escravismo Colonial”; 2. Frontispício da 1º Edi-ção (gravura), referente ao exemplar impresso em Roma em 1705; 3. Frontispício manuscrito primitivo (gravura), correspondente ao original aprovado na Bahia, em 1700, pela comissão especial da Companhia de Jesus; 4. Preliminares da 1º edição, em que o jesuíta Antônio Maria Bo-nucci apresenta da obra ao leitor; 5. Licença da Religião relacionado ao processo de aprovação da obra para ser impressa; 6. Introdução (do au-tor), subdividida em 11 itens que resumem todo o conteúdo do livro.

De forma geral, a obra consti-tui-se de quatro “Discursos”, todos se referindo à obrigação dos senho-res em relação aos escravos. Em termos teóricos, vale lembrar que Benci, ao compor seus “Discursos”, acabou revelando a essência do mo-do de produção escravista colonial e a brutal exploração da força de trabalho homem escravizado para a obtenção de lucro, através da extra-ção do trabalho excedente.

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7-Panis, et disciplina, e opus servo

“Panis, et disciplina, e opus servo” – o primeiro Discurso do jesuíta – trata da obrigação primor-dial que deve o escravizador ao ho-mem escravizado. Seu arrazoado inicial subdivide-se em três parágra-fos, em torno dos quais gravitaram os fatores de ordem material, como alimentação, vestuário e cuidados nas enfermidades: “[...] a primeira palavra, sobre que havemos de de-correr, é o pão: panis. Deve o senhor ao servo o pão, para que não desfa-leça: pains, ne succumbat. E debaixo deste nome de pão, conforme a frase hebréia, se compreende primeira-mente tudo aquilo que conduz para a conservação da vida humana, ou seja, o sustento, ou o vestido, ou os medicamentos no tempo da enfermi-dade”.33

Emergem da prelação de Benci os traços da economia colonial es-cravista, em que a monocultura mi-nava a cultura de subsistência, tra-zendo como conseqüência a escassez de alimento e a estrema miséria do trabalhador escravizado. Este pro-blema vem à tona no seguinte tre-cho: “E isto é o dizem com as obras (quando o não digam com as pala-vras) os senhores, que não dão o

33 Id.ib. p.520

sustento a seus servos, ou lhes não dão tempo suficiente, o que o pos-sam buscar (...) como é possível que o escravo ou escrava, estando em contínua lida ou trabalho, sustente a vida com a ração escassa de farinha de pau, sem outra cousa que o ajude a levar?”34

De fato, no sistema escravista, o braço forte do homem escravizado devia ater-se apenas ao trabalho na grande lavoura monocultora. A cul-tura de subsistência era uma ativida-de pouco significante na lógica do escravismo mercantil. O tempo des-tinado à produção para uso tolhia a produção em grande escala. Segundo Gorender, pela lógica do escravismo colonial, não cabia ao fazendeiro preocupar-se com as condições de sustento do cativo. Investir nas plan-tações de subsistência demandava tempo fora dos núcleos produtivos. A perda do cativo determinava ape-nas a reposição por novos braços, já que o cativo era uma peça barata e de oferta abundante no mercado. Desenhava-se aí um quadro parado-xal, onde o cativo, gerador de toda a riqueza colonial, sucumbia à míngua em meio à extrema escassez de víve-res. Décio Freitas propõe, talvez extremando, que a vida útil dos “es-cravos proletários”, ou seja, assenza- 34 Id.ib. p.. 58

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lados, labutando nos canaviais e en-genhos, não excedia provavelmente cinco anos.35

Esse aspecto foi narrado em diversas crônicas do período coloni-al. Conta o padre Antonil que muitos cativos consumia raízes e, não raro, rondavam a casa do escravizador suplicando-lhe comida. Décio Frei-tas expõe caso narrado pelo frei Vi-cente de Salvador: “[...] no trabalho noturno das moendas [os cativos] sorviam às ocultas o azeite doce que iluminava as lamparinas. Descoberto o ardil, passaram os amos a adicio-nar ao azeite um óleo nauseabundo e amargo ‘para que os negros não lambessem os candeeiros’ [...] a rou-pa que recebiam de tempos em tempos consistia em calções de fa-zenda grosseira. Tinham por mora-dia a senzala infecta, acanhada, pro-míscua.”36

A penúria do cativo só era contida porque, segundo Benci, al-guns senhores do Brasil “achando grande dificuldade em dar sustento aos escravos, que os servem das por-tas a fora nas lavouras dos Enge-nhos, lhes dão em cada semana, um dia, em que possam plantar e fazer seus mantimentos, com os quais os

35 FREITAS, Décio. Palmares. Ob.cit.

p.28.

36 Id.ib. p. 28.

que se não dão à preguiça têm com que passar a vida”37. Entretanto, constata-se pela própria exposição do jesuíta, que os cativos possuíam uma alimentação de pobre teor nutri-tivo, à base de farinha de mandioca acompanhada, às vezes, de feijão ou carne seca. Mais ainda, os cativos que dedicavam seus domingos aos cuidados de uma pequena horta, e-ram obrigados a trabalhar, sem inter-rupção, também nos seis dias restan-tes.

Esse triste painel exposto so-bre a penúria sofrida pelos cativos na produção açucareira, a partir da ótica moralizadora de Benci, esbarrava na gradativa organização da sociedade moderna que se pautava por valores de troca e obtenção de lucros. Esse é o ponto crucial da lógica da coloni-zação moderna, em que a aquisição do excedente era feita a partir do super aproveitamento da mão de obra escravizada. Benci defrontava-se com paradoxo difícil de ser per-cebido à época: apreender os precei-tos da lógica escravista mercantil a partir da ética cristã. Só lhe restava prescrever aos senhores o abranda-mento no tratamento com os cativos adotando relações mais flexíveis: “Logo se querem pôr embargos às execuções da ira divina, suavizem e moderem o trabalho de maneira que

37 BENCI. Ob.cit. p. 58.

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possam com ele os servos; e assim conseguirão o fim, pelo qual se deve dar aos escravos o trabalho, que é, não para os maltratar e lhes acabar a vida, mas para lhes redimir e refrear a insolência, opus, ne insolescat.”38

De certa forma, a exposição metódica de Benci sugeria aos se-nhores montar dispositivos discipli-nadores suportáveis e necessários ao desenvolvimento da empresa escra-vista colonial e inspirava o estabele-cimento de diferentes estratégias econômicas para prolongar a vida do trabalhador escravizado produtivo. Benci insinuava que a diminuição dos castigos e os cuidados com o vestuário, a alimentação e as enfer-midades podiam prevenir o senhor contra mortes, suicídios, fugas, rebe-liões e outros possíveis danos que pudessem ameaçar a produção: “Ha-ja açoites, haja correntes e grilhões, tudo a seu tempo e com regra e mo-deração devida; e vereis como em breve tempo fica domada a rebeldia dos servos; porque as prisões e açoi-tes, mais do que qualquer outro gê-nero de castigos, lhes abatem o orgu-lho e quebram os brios. E tanto que basta só que os veja o servo, para que se reduza a meta a caminho o venha à obediência e sujeição de seu senhor.” 39

38 Id.ib. p. 213.

39 Id.ib. p. 165.

Nesse primeiro “Discurso”, Benci lembra, à luz da ética cristã, que o trabalhador escravizado, ao ser submetido à rígida disciplina produ-tiva, expressa na equação extensão máxima do ritmo e prolongamento da jornada de trabalho, sob miserá-veis condições de existência, podia manifestar variadas formas de rea-ções: “Antes afirma Filo, que pela demasia deste trabalho e excesso dos calores, muitos deles morreriam fe-ridos da peste. E não é isto mesmo, o que sucede a cada passo nos escra-vos dos que querem deles em uma hora o serviço que era para duas, e em um dia o trabalho que era para duas, e em um dia o trabalho que era para duas, e em um dia o trabalho que era para dois? Ficam os miserá-veis tão debilitados e cansados, que a mesma vida se lhes faz penosa e molesta: e vivendo desgostosos e aborrecidos da vida, contraem ma-lignas e outras doenças mortais com que em breve tempo se livram do cativeiro com a morte.”40

8-Verbi divini proedicatione pascere.

O segundo “Discurso”, desti-nado à questão da doutrinação espi-ritual dos trabalhadores escraviza-

40 Ibid. p. 209.

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dos, constituiu-se de cinco parágra-fos: 1.Da Doutrina Cristã, que os senhores são obrigados a ensinar a seus servos; 2. Da Digressão exorta-tória aos Párocos para que ensinem a Doutrina Cristão aos escravos, como têm obrigações; 3. Da obrigação dos senhores de procurar que os servos recebam a seu tempo os Santos Sa-cramentos; 4. Do bom exemplo que devem dar os senhores aos servos; 5. De inferir e mostrar a gravidade dos senhores que escandalizam a seus servos, induzindo-os por qualquer modo ao pecado.

Nesse discurso, Benci prescre-via aos escravizadores regras de grande alcance para a doutrinação espiritual dos cativos. Acreditava o jesuíta que os escravistas deviam moderar a cobiça e destinar aos tra-balhadores escravizados parcelas de tempo distribuídas entre a labuta no engenho, o descanso e a formação religiosa: “Mas porque os párocos, curas a senhores [...] não ensinam a doutrina cristã aos servos, ou se lhe ensinam quando muito e uma vez ao ano e isso mui àss pressas e de cor-rida [...] Pois se assim o manda Jesus Cristo, porque não hão de pôr em execução os senhores com os escra-vos, ainda que estes pareçam na ru-deza com os brutos.” 41

41 Id.ib. p. 87-96.

A economia Cristã de Benci sugere que não havia preocupação por parte dos senhores em justificar a escravidão pelos princípios doutri-nários da Igreja. Raramente os traba-lhadores recebiam as normas básicas da doutrinação católica. No entanto, sabe-se que havia uma forte repres-são às manifestações espirituais tra-zidas da África pelos africanos exi-lados à força no Brasil: “Nem se desculpam bem senhores que se es-cusam deste santo ministério, dando por causa a rudeza dos escravos, e dizendo que são brutos, que são bo-çais, e que são incapazes de perceber o que nos ensina e manda crer a Fé... para tudo isto se requer tempo... porque não é possível que um escra-vo boçal, que há pouco saiu da gentilidade de Guiné, se possa catequizar e instruir nos mistérios da Fé em tão pouco tempo, como muitos senhores querem... Tempo, para se desbastar o mais grosso de seus erros e superstições à força de grandes marteladas. Tempo, para lhe abrir com o cinzel da doutrina os ouvidos, para que penetre a palavra de Deus, os olhos para que conheça os mistérios da Fé, e a boca para que saiba orar... Verbi divini proedicati-one pascere.”42

Seu discurso apresentava cla-ramente uma justificativa para es-

42 Id.ib. p. 90.

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cravidão. Tirado “da gentilidade da Guiné” ou “barbárie” pelos euro-peus, o africano tinha a “graça” de ser introduzido na “civilização”. A preocupação do jesuíta italiano era mostrar a extrema dificuldade dos africanos em receber os padrões civilizatórios europeus porque de-mandava tempo para se “desbastar o mais grosso de seus erros e supersti-ções à força de grandes marteladas”. No seio de uma apologia “civiliza-dora”, usada para justificar a escra-vidão, alojava-se uma evidente con-tradição. O trabalhador escravizado era identificado a uma coisa, ao gado ou à mercadoria. Entretanto, ele era, transformado na categoria social escravo, a objetivação da feroz avi-dez senhorial por produção de mais-trabalho. Uma análise mais apurada do significado da violência, como componente essencial e constante da escravidão, conduz ao seu principal foco de difusão. Ou seja, à dinâmica de funcionamento da economia mer-cantil escravista, onde era necessário submeter o trabalhador ao cativeiro, pelo mecanismo do terror.

Os tormentos físicos constitu-íam parte intrínseca da escravidão. Era preciso aniquilar os elementos sócio-culturais do africano e impor o padrão europeu. Entretanto, a manei-ra radical dessa “dominação cultu-ral” inspirava fortes reações dos cativos, expressas sob a forma de

fuga, insurreições, assassinatos, suicídios, etc. O ideal de exploração da empresa agrícola escravista alme-java o esgotamento total da capaci-dade produtiva do trabalhador escra-vizado, restringindo, portanto, as possibilidades de relações suaves e benevolentes entre escravizadores e escravizados.

Ainda dentro do segundo Dis-curso, nos dois últimos parágrafos, Benci elegeu o “bom exemplo de virtudes e santos costumes” como regra para o senhor alcançar eficácia na doutrinação dos escravos: “[...] Que importa que lhes ensine com palavras o modo com que hão-de viver cristãmente; se a má vida de seus senhores desmente com costu-me viciosos a doutrina, que se lhes dá. [...] Fique logo assentado, que toda a mais doutrina, que os senho-res derem aos servos, se não for a-companhada de seu exemplo e con-firmada com suas obras, não serve de alimento espiritual.” 43

Ao longo “Discurso” do jesuí-ta sobre “bom exemplo” que os pro-prietários deviam dar aos negros escravizados, somava-se a enérgica crítica moral dirigida ao relaciona-mento sexual entre senhores ou ou-tros segmentos da estrutura domi-nante e os cativos: “Mas que suce-dem na Cristandade e a Cristãos tão 43 Id.ib. p. 110-111.

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Cristãos como os Portugueses! Que havemos de dizer senão que, além da eterna pena, com que merecem ser castigados na outra vida os senhores que assim violentam o obrigam a suas escravas a pecarem, ainda esta merecem a morte temporal, imposta pelo Direito Comum, a lei particular de Portugal a todos aqueles que vio-lentamente, ou de outra maneira for-çam e obrigam a mulher de qualquer qualidade que sejam, ainda aquelas, a que vulgarmente chamamos mun-danas?”44

Benci insistiu em proferir sen-tenças condenatórias contra relações sexuais entre os escravizadores e escravizados. Pelo rígido moralismo lusitano, em relação à mulher bran-ca, o senhor compensava ou transfe-ria suas práticas mais ousadas para as relações ocultas com as cativas, forçando-as a atendê-los sexualmen-te ou as submetendo, em troca de privilégios, de presentes como rou-pas, doces ou comida. Tais hábitos foram descritos por Benci: “Não é escândalo, e o mais abominável nos olhos de Deus, amigar-se o senhor com a sua escrava? E não é ainda muito maior e mais abominável, obrigá-la a força e consentir neste pecado de seu senhor, e castigá-la desta ofensa de Deus?”45.

44Id.ib. p.121.

45Id.ib p.123.

9-Castigo: a medicina da cul-pa:

Benci reservou cinco pará-grafos para a terceira obrigação dos senhores para com os servos: 1.Que os senhores devem castigar os ser-vos, merecendo eles o castigo; 2. Que os senhores não hão de castigar tudo, mas relevar algumas falhas a seus escravos; 3. Que as pragas e nomes injuriosos não servem para castigo dos escravos; 4.Que no cas-tigo dos servos não devem usar os senhores de sevícias; 5. Mostra-se que o castigo dos escravos não deve passar de açoites e prisões modera-das.

Como já nos referimos, Benci via a escravidão como uma institui-ção natural e considerava o castigo como a “medicina da culpa”. Ao defender as punições e as repreen-sões como uma espécie de regimento disciplinar e pedagógico, os “Dis-cursos” do jesuíta constituíam-se em uma das fontes onde foram beber os edificadores do mito da democracia racial, da resignação do negro ao cativeiro e da benevolência dos se-nhores no tratamento de seus escra-vos. Tais visões foram difundidas, a partir dos anos 1930, sendo, por mais de três décadas, responsáveis pela generalização e romantização das características singulares e limi-tadas da escravidão doméstica, ense-

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jando, ainda hoje, a negação do cará-ter mercantil e necessariamente vio-lento das relações escravistas de produção.

Em Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1930), Gilberto Freire interpretou o passado escravista como uma socie-dade patriarcal benevolente, suavi-zada pelas tradições portuguesas, religiosas, sexuais e raciais, que es-tabeleciam uma relação harmônica entre a casa grande e a senzala, entre o sobrado e o mocambo. Gilberto Freire difundiu visão mitológica das relações entre escravizadores e es-cravizados, sobretudo por sustentar a brandura do cativeiro e das relações raciais no Brasil: “O castigo ao es-cravo como o castigo ao filho da família fazia parte de sistema de educação, de assimilação e de disci-plina - o patriarcal - que não podia desmanchar-se em ternuras para com os necessitados de educação, assimi-lação e disciplina [...]. Pelo que não nos devem horrorizar demasiada-mente: nos escravos fugidos, marcas nas nádegas de castigo ou sinais de punições, lambadas nos pés, corren-tes nos pés [...]” 46

46FREYRE, Gilberto. Casa Grande &

Senzala. Brasília, 13 a. Editora Universi-dade de Brasília, 1963:63.

Entretanto, essa abordagem apologética permitiu um significati-vo avanço no enfoque sócio-politico e despertou vasto interesse para as raízes afro-brasileiras e as questões raciais como problema relevante na construção do Estado Nacional. O mito da suavidade do escravismo no Brasil desmonta-se ao se compreen-der que a violência senhorial era parte integrante e fundamental do sistema escravista, que se sustentava no terror constante, com o duplo objetivo de sufocar rebeldias e ga-rantir o pleno funcionamento da or-ganização econômica. A violência era parte constitutiva de uma ordem econômica que controlava os traba-lhadores nas unidades produtivas e submetia povos inteiros à escravi-dão, impondo-lhes produção intensi-va e níveis aviltantes de subsistên-cia. As forças que concorriam para a radicalização da violência nas rela-ções escravistas eram essencialmen-te econômicas. Os castigos não po-diam ter a função patriarcal de “edu-cação, assimilação e disciplina”, no sentido aduzido por Gilberto Freire. O sistema impunha a desumanização das relações entre senhores e escra-vos.

Ao expor o cruel tratamento a que eram submetidos os trabalhado-res escravizados no Brasil, Benci demonstrou o tom constante da vio-

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lência e da exploração do trabalho escravizado:

[...] Suposto, pois que o castigo deve ser moderado pela razão e não go-vernado pela paixão: pergunto eu a-gora aos senhores do Brasil, se é cas-tigo racionável, queimar ou atanazar (que tão ímpio e cruel e este gênero de castigo) com lacre aos servos; cortar-lhes as orelhas ou os narizes; marcá-los nos peitos e ainda na cara; abrasar-lhes os beiços e a boca com tições ardentes? Deixo outros casti-gos ainda mais inumanos, que os ci-úmes do senhor ou da senhora fazem executar nos escravos ou nas escra-vas, porque são indignas de virem à pena, que não permite a modéstia re-latá-los neste lugar. Que vos são se-vicias estas as mais bárbaras e inu-manas e que só caberiam bem nos ânimos cruéis e feros dos Mezêncios, dos Falares, e dos Diomedes? 47

Uma questão incompreensível e que atormentava constantemente o espírito do jesuíta era saber como podia ser “racional” um castigo exe-cutado, com extrema crueldade, a ponto de causar a morte do cativo, que era o sustentáculo da economia colonial e a base da prosperidade senhorial. Nesse ponto, o presbítero católico imprimia nas palavras um tom profundo e convicto de que a tortura devia ser racionalizada atra-vés da “dosagem” gradual do “re-médio da culpa”: “[...] Já o declarou o Espírito Santo no Eclesiástico di-

47 BENCI. Ob.cit. p. 156.

zendo: [...] Tendes algum servo mau, malicioso e inclinado ao vício? Cas-tigai-o; mas seja o castigo ou de a-çoites ou de ferros – (...) Primeira-mente, obrando o servo contra o que deve, deveis usar dos açoites: Tortu-ra flagellorum. Não seja p orém es-tes tais e tantos que cheguem a ras-gá-lo e feri-lo de sorte que corra em fio o sangue, como barbaramente costumam alguns senhores. (...) Os açoites são medicina de culpa; e se os merecem os escravos em maior número de que de ordinário se lhes devem dar, dêem-se-lhes por partes [...].”48

A descrição feita pelo cronista em 1700, sobre os mais variados mecanismos de coerção física sofri-da pelos cativos, leva à compreensão de que a violência, além de ser a base do escravismo moderno, era também um fator essencial e indis-pensável para assegurar a racionali-dade do sistema. Esta foi questão inquietante para o sentimento religi-oso de Benci. A relação escraviza-dor/escravizado, ao configurar-se na lógica da economia escravista colo-nial, objetivava a obtenção máxima de trabalho excedente, fugindo aos princípios da ética cristã. Encerrado nesta contradição, Benci alcançou a vislumbrar o caráter opressor da produção escravista colonial.

48Id.ib. p. 184.

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Assim sendo, lança um inusi-tado apelo aos senhores por um a-frouxamento da exploração de traba-lho nas atividades escravistas: “Na verdade não sei como possa haver senhores tão inumanos, que se não compadeçam dos miseráveis escra-vos, trazendo-os como a Ixião em uma perpétua roda de serviço, sem parar nem de dia, nem de noite! Que trabalho de dia bem está; mas que hajam de trabalhar também de noite, e toda a noite, quem o poderá sofrer? Porque haveis de ser tão importuno aos servos, que os não deixei tomar de noite algum alivio com sossego por algumas horas? Porque lhes ha-veis a cada passo de interromper ou (o que é muito pior) tirar o sono, tendo-os toda a noite ao pé da mo-enda ou da fornalha, sem que pos-sam dar á natureza algum repou-so?”49

10-“Noctes laboriosas enume-ravi mihi”

A ultima parte da “Economia Crista” foi destinada à questão do prolongamento da jornada de traba-lho aos escravos. Ao discutir a quar-ta obrigação dos senhores, o autor dispôs de 7 parágrafos, incluindo a conclusão de toda obra. Dessa for-

49Id.ib. p 201.

ma, para abrir o “Discurso”, Benci fez uma apologia reverenciando o trabalho e condenando a ociosidade. Segundo seu pensamento, os traba-lhadores escravizados, para fazerem jus ao pão que recebiam do escravi-zador e para não se tornarem inso-lentes, deviam oferecer-lhes em tro-ca a labuta diária. Mantê-los ocupa-dos era ao mesmo tempo, a obriga-ção e o descanso do senhor: “O tra-balho pois é o melhor remédio para trazer os servos sujeitos e bem do-mados. Só trabalhando eles, pode viver descansado o senhor [...] por-que enquanto o servo fatigado do serviço anela e aspira a algum re-pouso, não cuida nem trata de rebe-lar contra seu senhor.”50

Observe-se que o jesuíta suge-ria a perpetuação da escravidão e delineava as estratégias de domina-ção que se opunham a sua ética cris-tã: “Enquanto o senhor traz o servo ocupado, não cuida esse em outra coisa (diz o Espírito Santo) mais que no descanso. Porém, se lhe larga a mão, logo aspira à liberdade e busca traças para se livrar da sujeição... Porém se lhes deres larga para que ande ociosos e folgado, logo há de maquinar traças para sair do cativei-ro [...] E esta é a razão, porque é tão necessário que o senhor ocupe e faça

50Id.ib. p. 175.

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trabalhar os escravos para os trazer sujeitos, sossegados e mansos”51

Para manter o escravo conti-nuamente ocupado, o escravizador havia de organizar mecanismos co-ercitivos e de controle capazes de impedir a insolência, a ociosidade e a indolência do negro: “E, para que não cheguem a estes pontos, qual é o remédio?... O jugo e as rédeas aman-sam a ferocidade dos brutos; e o serviço contínuo a contumácia dos servos. (...) assim como o cavalo, ainda que indômito, se deixa reger e governar pelo freio à vontade do cavaleiro; assim o servo exercitado do senhor com o trabalho continuo a lhe sujeitar e obedecer.”52

A própria essência do sistema escravista transformava o africano em mercadoria-força de trabalho a ser explorada em forma tendencial-mente absoluta. Como conseguir arrancar o máximo de sobretrabalho de escravo sem valer-se do repressi-vo esquema de expropriação? Como sobrepor-se às formas de rebeldia individuais (fuga, suicídio, assassi-nato) ou associadas (fuga coletiva, formação de quilombo, sublevações) ou à resistência ao processo de des-culturação. As variadas formas de oposição eram punidas com extrema

51BENCI, Jorge S. I., op. cit., p. 175-6.

52 BENCI, Jorge S. I., op. cit., p. 176.

violência, a ponto de cronistas como Benci proporem a racionalização da escravidão através de medidas que pudessem aumentar a produção e, ao mesmo tempo, conter as manifesta-ções de rebeldias.

O cronista abordou, igualmen-te, o ponto que sempre separou es-cravizadores e escravizados: o pre-conceito – a concepção de inferiori-dade racial do negro. Seu discurso cumpria também justificar o escra-vismo pela lógica do preconceito, atribuindo variados adjetivos que depreciavam o trabalhador escravi-zado, visto como “teimoso e rebelão como – jumento”, “único mestre de suas maldades”, “mestres em artes e doutores em malicia”, “habilidades para os vícios”. “É que os Brancos para serem bons mestres da arte de pecar, necessitam de lições da mui repetidas, e por isso é necessário que freqüentem por largo tempo as clas-ses do ócio; e outro dias de lição ficam mestre em artes e doutores em malícia... E como os Pretos são maus Branco, por isso, eles com menos tempo de estudos saem grandes li-cenciados do vício na classe do ócio aos escravos, é querê-los mestres em todo o gênero de vícios e singular-mente no vício da desonestidade”53.

Ao censurar severa e energi-camente os excessos e as sevícias 53BENCI, Jorge S. I., op. cit., p.178.

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dos escravizadores, Benci despiu a essência da colonização escravista colonial. Ao articular Filosofia e a Ética Cristã, registrou muitas das mais profundas contradições e con-flitos da sociedade escravista. Para a ótica de um sistema de produção organizado para a produção crescen-te de bens, para o mercado mundial, a partir da mão de obra escravizada, não havia lugar para o afrouxamento das relações de trabalho.