o amor nos tempos do ai-5

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A década de 1970 foi assinalada por turbulências internacionais e nacionais. Lá fora, os ecos da Guerra do Vietnã e o recrudescimento da Guerra Fria. Aqui, a repressão política, cujo paradigma maior foi o Ato Institucional no 5, o AI-5. Nesse cenário, inscreve-se a ficção. Uma trágica e emocionante história amorosa, possível, talvez, por demonstrar que a liberdade na cama era o corolário da falta de liberdade política. Os destinos de um professor universitário e de sua esposa, de uma aluna e de um colega de trabalho se unem, se cruzam, em momentos altamente eróticos, baseados, porém, no diálogo, no respeito, na liberdade. Tudo acontece ao som da música de compositores clássicos e daqueles da MPB que eram cantados e tocados pela juventude. As personagens são ficcionais, porém, nelas se percebe algo familiar, pois traduzem muito da experiência de vida do autor e de muitos que presenciaram aquela tumultuada fase de nossa História.

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TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

o amor nos tempos do ai-5ri c a rd o d e m o u ra Fa ri a

são paulo, 2015

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O amor nos tempos do AI-5Copyright © 2015 by Ricardo de Moura FariaCopyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda.

gerente editorialLindsay Gois

aquisiçõesCleber Vasconcelos

editorialJoão Paulo PutiniNair FerrazRebeca LacerdaVitor Donofrio

auxiliar de produçãoEmilly Reis

preparaçãoVânia Valente

diagramaçãoNair Ferraz

revisãoAna Lúcia NeivaAna Cláudia Vargas

capaDimitry Uziel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Faria, Ricardo de MouraO amor nos tempos do AI-5Ricardo de Moura FariaBarueri, SP: Novo Século Editora, 2015.

(Talentos da Literatura Brasileira)

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série

15-09529 cdd-869.3

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção: Literatura brasileira 869.3

novo século editora ltda.Alameda Araguaia, 2190 — Bloco A — 11o andar — Conjunto 1111 cep 06455-000 — Alphaville Industrial, Barueri — sp — BrasilTel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br | [email protected]

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.

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Este romance é dedicado à juventude brasileira que não viveu o tempo da ditadura, mas que precisa conhecê-lo para não desejar a volta de tempos tão sombrios. Para “transformar o distante em algo próximo, possível e visível”.

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“Dizem que o mundo é feito de átomos. Está bem. ‘O mundo não é feito de átomos, o mundo é feito de histórias’, disse uma amiga. Eu acredito que sim, o mundo deve ser feito de histórias, porque são as histórias que a gente

conta e escuta, recria e multiplica. São as histórias que permitem transformar o passado em presente, e também permitem transformar o distante em próxi-

mo. O que está distante em algo próximo, possível e visível.”(Eduardo Galeano)

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No ambiente esfumaçado por conta de um velho cachimbo, o professor Afonso sentou-se na cadeira preferida e prestou atenção aos sons da “Petite Suite – en bateau”, de Debussy, que inundaram o ambiente. Afonso ali permaneceu, silenciosamente. Aquele momento era um ritual seguido havia mais de dez anos. Sempre no último dia de férias, à tardinha, ele fechava as cortinas de seu espaço-so escritório, iluminado tão somente pela fraca luz de um abajur, ligava a vitrola e, sentado na velha cadeira de balanço – herança de seus pais já falecidos –, fe-chava os olhos e saboreava cada nota, dando longas baforadas em seu cachimbo.

Seus pensamentos, invariavelmente, oscilavam entre as impressões que os sons lhe causavam e a apreensão pelo dia seguinte, quando uma nova turma esta-ria à sua espera. Ninguém o interrompia. O momento era só seu. A esposa Celina e os filhos, Nelson e Ana Beatriz, um casal de dez e oito anos respectivamente, sabiam daquela sua idiossincrasia e não o perturbavam.

Naquele domingo, 28 de fevereiro de 1971, no entanto, a música, por alguma razão que não soube explicar, causou-lhe uma reação diferente. A primeira parte da Suite, que o impressionava pela capacidade de Debussy provocar a sensação de que o ouvinte estava de fato dentro de um barco, a navegar num lago calmo, parecia ter sido concluída muito rápido e o que vinha em seguida, sons mais tu-multuados, tornou-se mais perceptível, causando um grande incômodo.

Seria um sinal? Ele, historiador e bastante cético, não era chegado a acre-ditar nesse tipo de sinais. Sem ter uma explicação para o que estava sentindo, concluiu que talvez fosse ele que não estivesse se sentindo bem. Bebera muito vinho no almoço, na casa do sogro, um coronel com o qual evitava discutir pois era um defensor ardente do Ato Institucional no 5, que desabara sobre o país em 1968. Devia ser isso. Com certeza era isso. Repetiu para si mesmo dezenas de vezes, como se quisesse acreditar em algo que não era crível.

Desligou a vitrola, guardou carinhosamente o LP tantas vezes já manuseado e foi para a sala onde todos viam televisão. Não conseguiu prestar atenção, sequer seria capaz de identificar o canal sintonizado. Às 22 horas, chamou todos para a cama. As crianças foram para seus quartos e ele e sua esposa também se recolheram.

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Custou a dormir e, quando o conseguiu, teve um sonho tumultuado. Esta-va em um barco, havia mais alguém com ele, e por mais que tentasse enxergar, não conseguia vislumbrar o rosto da pessoa. Aquela imagem não lhe era estranha. Sim… parecia uma tela do século XIX, A dama de Shalott, do pintor inglês John William Waterhouse, pintura cheia de simbolismos relacionados à morte. A Petite Suite estava sendo executada, só que ele não via a orquestra. Súbito, o bote come-çou a girar como se capturado fosse por um redemoinho, as águas perderam o tom azul esverdeado, adquiriram uma tonalidade vermelha que, perplexo, identificou como sangue. Procurou a pessoa que estava no barco com ele e não a viu.

Acordou suado, arfando. Olhou para o lado e viu a esposa dormindo placida-mente. Tentou reatar o sono; quando conseguiu, o sonho não retornou.

De manhã, ao acordar, vestindo-se para começar o novo curso, lembrou-se do sonho e tentou encontrar uma explicação para ele. Porém, não era versado no assunto. Desistiu.

Nosso personagem andava pela faixa dos 42 anos. Casara-se aos 27 com Celi-na, sete anos mais moça. Era professor de História Contemporânea na universidade. Com cinco anos de casados tiveram o primeiro filho e dois anos após a filha. Não pensaram em mais filhos. Para um casal de professores brasileiros, com salários sem-pre defasados, dois filhos eram mais do que suficientes. Residiam na casa que havia sido dos pais dele, simples, porém bastante confortável, com quatro quartos, sala, copa, cozinha, e um espaçoso quintal onde as crianças brincavam e Celina cultivava uma pequena horta e algumas árvores frutíferas. Um dos quartos fora transformado em biblioteca, repleta de livros e arquivos com recortes, material útil para suas aulas.

A vida transcorria pacata, apesar do governo então instalado e que só não era mais temido porque o pai de Celina era coronel, militar influente no Esta-do e não deixaria, em tese, nada de ruim acontecer a eles.

O sonho que Afonso teve aquela noite foi uma autêntica premonição de que o ano de 1971 seria atípico e que a vida deles deixaria de ser tão pacata quanto fora até aquele momento.

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Afonso entrou no Fusca 1300 novinho, azul-claro, que adquirira nas férias. Custara Cr$ 12.500, um valor muito alto, considerando seu salário de professor universitário. No entanto, conseguira um bom preço pelo Fusca an-tigo, o que possibilitou dar uma entrada bem razoável e valores menores nas prestações. O carro era excelente, a família toda gostara.

Em cerca de vinte minutos percorreu o trecho entre sua casa e a faculdade. Estacionou o carro e ali mesmo viu alguns colegas que chegavam. Lá estava a pro-fessora Noemi, com sua expressão de eterno enfado. Também a sua colega Amélia – aquela que os alunos sempre diziam viver no mundo da lua – com seus grandes óculos. E o chatíssimo professor Nestor – uma peça rara, puxa-saco emérito do coordenador, do diretor, enfim, de toda e qualquer autoridade a que estivesse su-bordinado – também acabava de chegar. Afonso detestava conversar com ele, pois sempre respingava alguma saliva “nestoriana” no infeliz que estivesse próximo.

Positivamente, o professor Nestor era uma pessoa extremamente desagradável.

Cumprimentou-os e fez questão de demorar-se bastante tempo no estacio-namento esperando que os três entrassem. Só então se dirigiu para o elevador e subiu ao oitavo andar. Vários alunos e alunas subiram com ele, apesar de o ele-vador ser, teoricamente, privativo de professores e funcionários administrativos. Afonso não se incomodava em ter estudantes ao seu lado no elevador, pois costu-mavam ser bem mais agradáveis que boa parte dos colegas docentes…

O corredor do oitavo andar estava repleto de estudantes. A algazarra pró-pria do primeiro dia de aulas era facilmente perceptível. Aqueles que já haviam estudado com ele o cumprimentavam festivamente. Em todas as portas das sa-las de aula a confusão imperava, exceto em uma. Afonso sabia de antemão que veria isso, afinal, aquela sala era a dos calouros, que entravam timidamente no novo mundo. Chegavam ressabiados, com medo de possíveis trotes, entravam, sentavam-se e ficavam em absoluto silêncio. Olhavam desconfiados para os veteranos que assomavam à porta.

Afonso conseguiu chegar à sala dos professores. Finalmente encontrou colegas de quem gostava muito: o velho professor Hanibal, pessoa muito fina,

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grande amigo; o professor Guerra, de óculos com lentes fundo de garrafa, ca-ladão, que pouco se misturava com alunos e colegas e ficava quase sempre isolado num canto da sala, mas que apreciava sempre tomar um uísque Old Parr, fosse em seu apartamento ou na casa de Afonso, de quem era padrinho de casamento com sua esposa Heloisa.

Estava ali, ainda, a professora Berenice, que dividia a cadeira de História Contemporânea com Afonso. Mais idosa, solteira, também não curtia os papos furados de Nestor & cia. Talvez por isso ela e Afonso se davam tão bem.

O comentário, naquela manhã, entre os professores era a nova direção do Centro de Estudos. Os estudantes haviam escolhido uma chapa única no final do ano anterior, e a nova direção se esforçava para levantar o “astral” do curso, como eles diziam. Devido à situação política do país, os Diretórios Acadêmicos e o Diretório Central dos Estudantes estavam fechados, ninguém sabia por quanto tempo. Os Centros de Estudos (CE) eram os únicos órgãos representa-tivos dos interesses estudantis. Para possibilitar uma fachada democrática, um representante do CE participava das reuniões do departamento. No entanto, como toda reunião era iniciada com tudo previamente decidido, as pessoas falavam, falavam, mas no final se fazia como a direção determinava. Uma farsa completa, mas era assim que tudo funcionava.

Diante disso, a nova direção do CE tentava levantar o astral do curso. Um imenso mural, ocupando toda uma parede da sala que abrigava o CE, fora de-nominada de “I-mural” e centenas de gravuras recortadas de jornais e revistas compunham uma mensagem que conclamava os estudantes a participar, a se envolver nos assuntos do curso. Era louvável a atitude da nova direção, pois o marasmo que se seguiu ao final de 1968, quando fora decretado o AI-5, deixava a todos angustiados. Toda a movimentação política e cultural que marcara o início da década de 1960 se esvaíra.

Entretanto, o “I-mural” detonara o alarme para os responsáveis pela segu-rança e alguns professores – os de confiança da direção – tinham sido intimados a analisarem atentamente o conteúdo. Seria subversivo? Seria pornográfico? Em qualquer situação, a diretoria do CE deveria ser punida?

Por mais que tentassem, os tais professores (aí incluído o chefe do depar-tamento, um velhinho simpático, típico professor da velha guarda, cujas aulas faziam os alunos dormirem) não conseguiram classificar o tal “I-mural”. Os alu-nos, por sua vez, ficaram alvoroçados, já que após muitos anos se percebia uma grande movimentação. A sala do CE, até então entregue às moscas, agora via uma revoada de moças e rapazes, que olhavam tudo, numa curiosidade mesclada com receio, pois os boatos se espalhavam celeremente.

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Os alarmistas diziam que o CE seria fechado, com toda a certeza. Outros argumentavam que aquele mural não era motivo para fechá-lo. E muitos se questionavam sobre os reais motivos de a nova diretoria ter feito tudo aquilo. Porém, todos acabaram reconhecendo que o “I-mural” fora importante, pois os estudantes do curso agora estavam se conhecendo. O marasmo existente até então fazia com que cada universitário, ao chegar à faculdade, se dirigisse à sua sala de aula e de lá saísse apenas no intervalo e no final. Ninguém conhe-cia ninguém…

Em uma semana, todos estavam se conhecendo. Por fim, era uma vitória.Durante a semana, a direção do CE trouxe alguns conferencistas para falar

aos calouros, inclusive o diretor da faculdade, que era professor do Departa-mento de História.

Nada como fazer média com a direção em tempos sombrios – pensou Afonso.

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