o aluno surdo - ufrgs
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O aluno surdo, a intérprete, os alunos ouvintes e a professora
nas aulas de língua inglesa1
Maria de Fátima Comini da SIlva
Sou uma professora, entre muitas outras, que está na sala de aula de língua
inglesa com um aluno surdo, em uma turma do segundo segmento da modalidade EJA
(Educação de Jovens e Adultos), no período noturno, de uma escola estadual na
periferia de Cuiabá.
Dilke2, o aluno surdo que
chegou à escola no início do ano letivo 2012, 18 anos,
surdo desde o seu nascimento. Aprendeu LIBRAS no CEAADA (Centro Estadual de
Atendimento e Apoio ao Deficiente Auditivo) na adolescência, mas, em casa,
comunica-se basicamente por sinais domésticos, uma vez que os familiares não sabem
LIBRAS.
Quando começou a frequentar as aulas de inglês, não havia intérprete3 na
escola, e a situação ficou assim por algum tempo. Nossa comunicação era por mímica
ou escrita, em atos corriqueiros de informação; a inclusão do aluno nas aulas era
apenas física. Deparei-me com minha falta de experiência na interação com surdos e
sem conhecimentos adequados para lidar com tal situação, pois nunca havia estudado
língua de sinais. Não era obrigação e, em princípio, não havia necessidade, ademais, o
ensino de LIBRAS é um acontecimento muito recente nas universidades. Os meus
únicos recursos, portanto, eram a intuição e a boa vontade, ou melhor, “investimento”
(Bonny- Norton, 1995). O conceito de investimento, segundo a autora, refere-se aos
recursos simbólicos (língua, educação, amizade) e aos recursos materiais (bens de
1 Este trabalho originou-se do estímulo de Assis-Peterson, professora que respeito, admiro e agradeço pela presença constante na minha vida de aprendiz. 2 Nome fictício.
3 De acordo com Quadros, o tradutor /interprete de LIBRAS é conceituado como a “pessoa que
interpreta dada língua de sinais para outra língua, ou desta outra língua para uma determinada língua
de sinais”, ou seja, de língua de sinais pra língua oral ou vice-versa.
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capital, bens imóveis, dinheiro) adquiridos pelo aprendiz e que são capazes de
valorizar seu capital cultural (Bourdieu, 1992).
No meu esforço para interagir com Dilke, buscava respostas para perguntas,
tais quais: Como integrar Dilke com os outros alunos ouvintes? Como administrar a
atenção ao Dilke sem deixar de lado os outros alunos? Como preparar atividades
didáticas para incluir um aluno surdo, sem ser habilitada em LIBRAS? A quem recorrer?
Embora o desconhecido me assombrasse, por conta própria, contatei uma
colega do mestrado, pedagoga e intérprete de LIBRAS4, para falar com os alunos da
turma sobre LIBRAS e o processo de inclusão de alunos surdos na escola. Nesse dia,
coincidentemente, chegou também a intérprete de LIBRAS, habilitada em Língua
Portuguesa, contratada para dar suporte a Dilke em todas as aulas.
A palestra trouxe para os alunos ouvintes e para mim esclarecimentos sobre
diversas questões em relação à cultura do surdo. Falar alto demais em sala, arrastar
cadeiras incomodam os surdos que, segundo Padden & Humphries (1988), “têm uma
vida cheia de cliques, zunidos, estalos e grunhidos” ( in Gesser, 2009: 48). A professora
e os outros alunos, ao falar com os surdos, devem olhar para eles, não dar as costas. As
imagens são fundamentais nas atividades didáticas para otimizar o processo de
aprendizagem. São detalhes simples que fazem muita diferença e que nós, ouvintes,
ignoramos.
Alma5,
uma jovem educadora com habilitação estadual para atuar como
intérprete de LIBRAS tornou-se um valioso e importante “instrumento” de interação
entre Dilke, a professora e os alunos ouvintes. Os ouvintes passaram, então, a ver Dilke
como realmente um colega e as tentativas de comunicação com ele iniciaram quando
pedi ao Dilke para ensinar a mim e todos da turma alguns sinais de LIBRAS. A partir daí,
ora sou professora de Inglês, ora sou aprendiz de LIBRAS.
4 Profª. Suammy Priscila Rodrigues, a quem agradeço pela amável cooperação.
5 Nome fictício.
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Hoje, por já conhecermos alguns sinais de LIBRAS, os alunos e eu temos maior
grau de interação com Dilke. Nossa intérprete, que deixou de ser apenas do aluno
surdo para ser de todos nós, também colabora e dá sugestões para que as atividades
pedagógicas possam incluir o estudante. Todos os ouvintes já têm um sinal de
identificação pessoal, como se fosse o nome da pessoa em LIBRAS. Os surdos criam
sinais de acordo com as características de cada pessoa para representá-la, evitando
assim a escrita dos nomes todas as vezes que mencionarmos tal pessoa. A turma faz
exercícios em grupos e Dilke nunca fica de fora, responde aos exercícios dados através
da LIBRAS e faz, rapidamente, todos as atividades escritas em inglês.
Um dos momentos mais inusitados e jamais esquecidos ocorreu quando eu
estava trabalhando com a origem dos alunos através do uso do verbo “to be”. Dilke
deu-me a resposta correta em LIBRAS. Sem a interferência da intérprete,
imediatamente entendi os sinais e escrevi no quadro em inglês (IS) o que o aluno havia
falado. Ele confirmou que eu havia entendido o que ele disse em LIBRAS, e eu, feliz,
gritei “OBA, EU APRENDI!”. A turma toda caiu em gargalhada, Dilke bateu palmas em
LIBRAS e eu constatei mais uma vez: “Na sala de aula, todos ensinam, todos
aprendem” (Auerbach, 2000, p. 147-148, citado em Schlatter, 2009, p.20).
Ainda há muito a ser feito e mudanças devem ser encaradas como
responsabilidade da escola, da sociedade civil e dos representantes do poder público.
Temos que lidar com os meios de comunicação presentes dentro e fora da sala de
aula, com a instabilidade, com o imprevisível, com a nossa própria ignorância, com o
conhecimento do aluno, com as diferenças e os diferentes (o cego, o surdo, o
cadeirante, entre outros).
Diante desse cenário, estou aprendendo com os meus aprendizes e vou
construindo, sem medo de errar, uma nova prática pedagógica. Nesse palco, sou
eterna aprendiz.
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Referências Bibliográficas
GESSER, A. Libras? Que língua é essa?: Crenças e preconceitos em torno da Língua de
Sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
PEIRCE, BONNY NORTON. Social Identity, Investment, and Language Learning. Tesol
Quarterly, Vol. 29, No. 1, Spring 1995
SCHLATTER, M. O ensino de leitura em língua estrangeira na escola: uma proposta de
letramento. Calidoscópio, Vol.7, n.1, p. 11-23, jan/abr 2009.
Maria de Fátima Comini da Silva - mestranda do
Programa de pós-graduação em Estudos de
Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso.
Graduada em Letras e especialista em Ensino e
Aprendizagem de Língua Inglesa também pela UFMT,
atua como professora no ensino superior do Instituto
Cuiabano de Educação e no ensino médio da
Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso.
Tem experiência na área de Letras e em cursos
tecnólogos, com ênfase em Língua Inglesa e
Portuguesa.