o adolescente em conflito com a lei e o debate sobre a redução da maioridade penal:...

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1 O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal: esclarecimentos necessários Enid Rocha Andrade da Silva Raissa Menezes de Oliveira Brasília, junho de 2015 Nº 20

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    O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Reduo da Maioridade

    Penal: esclarecimentos necessrios

    Enid Rocha Andrade da Silva

    Raissa Menezes de Oliveira

    Braslia, junho de 2015 N 20

  • 2

    O Adolescente em conflito com a Lei e o debate sobre a Reduo da Maioridade Penal: esclarecimentos necessrios.

    Enid Rocha Andrade Silva1

    Raissa Menezes de Oliveira2 1 - INTRODUO Por ocasio da divulgao dos crimes considerados hediondos que envolvem

    adolescentes comum o acirramento do debate sobre a reduo da maioridade penal.

    O reaparecimento dessa questo, de tempo em tempos, pautado em matrias

    veiculadas na grande mdia e ganham tons alarmistas, aumentando o medo e a

    sensao de insegurana,. Por se tratar de medida com forte impacto na vida de

    milhares de adolescentes e suas famlias, a reduo da maioridade penal requer

    maiores reflexes e discusses pautadas em dados e informaes inequvocas capazes

    de retratar a real dimenso do envolvimento de adolescentes em delitos de alta

    gravidade. No menos importante, a necessidade de esclarecer a sociedade sobre os

    dispositivos e sanes existentes no sistema brasileiro de justia juvenil para os

    adolescentes que cometem atos infracionais.

    Existem diversas propostas para a modificao da legislao a respeito da

    maioridade penal, seja para diminuir de forma direta abaixando a idade seja de

    forma indireta aumentando o tempo de internao3. Tais projetos vm ganhando

    fora atualmente em um contexto em que parte da populao se mostra indignada com

    a impunidade, com a violncia e parece perder a confiana nas instituies de justia.

    Esse fenmeno, que pode ser descrito sociologicamente, como uma forte onda de

    1 Tcnica de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas Sociais DISOC/IPEA, Economista, Mestre em Economia e Doutora em Cincias Sociais pela Unicamp. 2 Pesquisadora do Subprograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNDP) na DISOC/IPEA, Mestre em Sociologia pela UNB 3 Alm da PEC 171/1993 reaberta no incio deste ano, outras propostas recentes so: o anteprojeto de novo Cdigo Penal (PLS 236/2012), onde a reduo da maioridade penal proposta no foi aceita por tratar-se de clusula ptrea. Ainda em tramitao: Proposta de emenda constitucional 33/2012, do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), prope reduo da idade penal para 16 anos quando for reincidente ou quando cometer um ato correspondente a crime hediondo, trfico de drogas, terrorismo e tortura. Proposta de emenda constitucional 74/2011 senador Acir Gurgacz (PDT-RO) prope a diminuio da imputabilidade para 15 anos nos casos de homicdio doloso e roubo seguido de morte, alegando o aumento do discernimento dos adolescentes nos dias atuais. Proposta de emenda constitucional 83/2011 senador Clsio Andrade (PMDB-MG) prope a maioridade a partir dos 16 anos, afirmando que a pessoa capaz de exercer todos seus direitos civis tambm deve ser penalmente imputvel. Projeto de Decreto Legislativo 539/2012 do senador Ivo Cassol (PP-RO) sugere a realizao de um plebiscito sobre a diminuio da maioridade penal para 16. Projeto de Lei 346/2011 da deputada Andreia Zito (PSDB/RJ) aumenta a durao da internao para at oito anos.

  • 3

    intolerncia moral ao crime, no algo singular da sociedade brasileira. Trata-se de

    um aspecto muito estudado por especialistas da rea em todo o mundo.

    Tonry (2006)4, socilogo americano, mostra que em diversos pases do

    ocidente o crime ordinrio geralmente visto como produto de desvantagens pessoais

    ou falha e desorganizao social. Porm, este autor mostra que nos EUA surgiam, de

    tempos em tempos, ondas de intolerncia que fortaleciam o entendimento de que a

    causa do crime est ou no indivduo que os criminosos so pessoas ms ou nas leis

    que no so suficientemente severas. Essas impresses fundamentavam a

    modificao na legislao penal e nas polticas de segurana pblica. Atualmente o

    Brasil vive uma situao anloga.

    O autor argumenta ainda que o crescimento da ansiedade pblica e do pnico

    social sobre o tema da violncia geralmente no acompanhado da elevao real dos

    nmeros de crime, mas torna-se uma questo de jogo poltico, onde governos e

    parlamentares buscam apresentar respostas rpidas e incisivas para conter a

    insatisfao pblica. Assim, Tonry (2006) demonstra que, em dcadas recentes, o

    controle do crime tem sido o centro das discusses dentro dos governos, mas que as

    polticas no tm sido formuladas baseando-se em conhecimento e sim em discursos,

    retricas e na confuso da utilizao dos conceitos de opinio pblica e de

    julgamento pblico. Ainda segundo o autor, a vulnerabilidade da classe mdia

    diante da crise econmica promove maior receptividade aos apelos populistas, o que

    torna a onda de intolerncia mais forte.

    No ano de 2015, foi aprovado na Cmara dos Deputados um projeto de lei que

    modifica as penas para os assassinatos cometidos contra agentes pblicos de segurana

    e seus familiares e para a leso corporal cometida contra policiais, tipificando esses

    crimes como hediondos.5Ao mesmo tempo, o projeto6 que torna ilegal o auto de

    resistncia medida administrativa criada durante a Ditadura Militar , perde fora. Como se v, as discusses em torno da reduo da maioridade penal no um tema

    isolado. Faz parte de um fenmeno moral de tolerncia zero ao crime, composto por

    sentimentos fortes de revolta, punio, vingana, e pelo apelo maior represso

    4TONRY, Micheal H. Thinking about crime: sense and Sensibility in American Penal Culture. Oxford: Oxford University Press, 2006. ISBN: 9780195304909. 5PL 3131/08 do Senado 6 Projeto de Lei 4.471/12, que prev a investigao de qualquer morte violenta envolvendo foras policiais.

  • 4

    policial. No por acaso, acompanhado pelo aumento dos casos de linchamentos7,

    quando pessoas civis decidem praticar a justia com as prprias mos. Nesses

    momentos aparecem solues desvirtuadas da ideia de justia.

    A defesa da reduo da maioridade penal possui algumas caractersticas em

    comum com as acima colocadas: baseada na crena de que a represso e a punio

    so os melhores caminhos para lidar com os conflitos e escorada na tese de que a

    legislao atual deve ser mudada, pois estimula a prtica de crimes. Parecem solues

    fceis para lidar com o problema da violncia, mas surtem o efeito oposto, ou seja,

    aumentam a violncia, principalmente quando se leva em conta as condies atuais

    dos espaos das prises brasileiras.

    Esta Nota Tcnica tem a pretenso de cumprir um duplo objetivo. O primeiro

    o de chamar ateno para alguns aspectos da desigualdade social e de renda que

    cercam a vida de milhares de jovens adolescentes brasileiros, que vivem nas periferias

    das grandes cidades do pas. So adolescentes que, apesar da tenra idade, estudam e

    trabalham. H os que j abandonaram precocemente a escola e s trabalham nos

    mercados informais sem nenhuma proteo social. E ainda h os que no estudam e

    no trabalham. O segundo objetivo trazer baila questes importantes para a

    discusso em pauta da reduo da maioridade penal, como, por exemplo: Quem so?

    Quantos so os jovens adolescentes infratores? Quais so os principais delitos

    cometidos por esses adolescentes? quais sanes esto sujeitos os adolescentes que

    cometem ato infracional? Onde cumprem as medidas socioeducativas de privao de

    liberdade? Qual a situao das instituies de execuo das medidas de privao de

    liberdade ao adolescente em conflito com a lei no Brasil? Como esto sendo aplicadas

    as medidas socioeducativas em meio aberto?

    Para a concretizao do primeiro objetivo, de realizar um diagnstico sobre a

    situao dos jovens adolescentes no pas de 12 a 17 anos, esta Nota Tcnica lanou

    7Segundo dados do Ncleo de Estudos da Violncia da USP, os casos registrados de linchamento vinham caindo no Brasil desde 2000, passando de 59 para 9 em 2006, ltimo ano monitorado pelo grupo. Em 2014, o site de notcias G1 divulga uma reportagem especial com os 50 casos de linchamentos ocorridos at julho daquele ano (http://g1.globo.com/politica/dias-de-intolerancia/platb/#inicio). O socilogo Jos de Souza Martins, que documenta esses casos no pas h mais de 20 anos, disse em entrevista em fevereiro ao jornal Folha de S. Paulo que, atualmente, h uma mdia de um linchamento por dia no Brasil. Segundo o socilogo, uma ligeira intensificao de ocorrncias aconteceu nos ltimos tempos. http://jornalismosp.espm.br/plural/aumento-dos-casos-de-linchamento-brasil-preocupa-especialistas. Vide ainda os recentes casos de infratores amarrados a postes, que deixam claro que a violncia est sendo usada como uma das solues para a criminalidade.

  • 5

    mo de indicadores elaborados com base nos micro dados da Pesquisa Nacional por

    Amostra de Domiclios do IBGE (PNAD) para o ano de 2013. Na consecuo do

    segundo objetivo necessrio esclarecer que existem poucos dados sistematizados

    disponveis. As informaes existentes so fragmentadas, oriundas de fontes diversas

    e, na maior parte, desatualizadas. Por essa razo, nesse tpico as discusses sero

    realizadas com base em dados de pesquisas e de informaes j divulgados

    anteriormente pelo IPEA e por outras instituies de referncia.

    2- Quem so os Adolescentes Brasileiros: algumas caractersticas

    No Brasil, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) considera

    adolescncia a faixa etria dos 12 at os 18 anos de idade incompletos. Em outras

    reas do conhecimento, como a psicologia, usual definir a adolescncia como um

    momento crucial da vida de um indivduo, quando ocorre a perda definitiva da

    condio de criana, que implica na finalizao de um processo de desprendimento

    que comeou no nascimento (Aberastury, 2008 p.18). Outro importante psiquiatra e

    estudioso da rea da infncia e da adolescncia, Levisky (1995 p. 15), prefere se

    utilizar do termo revoluo em sua definio sobre adolescncia. Para esse autor,

    adolescncia um processo que ocorre durante o desenvolvimento evolutivo da pessoa

    humana, caracterizado por uma revoluo biopsicossocial. Por sua vez, a literatura

    mdica sobre adolescncia foca sua ateno principalmente nas mudanas provocadas

    pela puberdade, com destaque para a acelerao e desacelerao do crescimento fsico,

    mudana da composio corporal, ecloso hormonal e evoluo da maturao sexual

    (Brasil, 2007)8.

    Apesar das diferentes definies, certo que a adolescncia um perodo que

    merece ateno e cuidado em vista das mudanas, riscos e oportunidades que encerra.

    A prpria Constituio Brasileira, em seu artigo 227, reconhece o conjunto de

    responsabilidades da famlia, do Estado e da sociedade coma infncia e a adolescncia,

    da seguinte forma: dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e

    ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao,

    educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito,

    8 Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. rea de Sade do Adolescente e do Jovem. Marco legal: sade, um direito de adolescentes / Ministrio da Sade, Secretaria de Ateno Sade, rea de Sade do Adolescente e do Jovem. Braslia: Editora do Ministrio da Sade, 2007. 60 p.: il. (Srie A. Normas e Manuais Tcnicos) ISBN 85-334-0856-0

  • 6

    liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda

    forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

    ()

    Para muitos jovens adolescentes do pas esses direitos esto longe de serem

    alcanados. A despeito dos avanos conquistados na ltima dcada na reduo das

    desigualdades sociais, na ampliao da escolaridade, no aumento do nmero de

    empregos gerados para os jovens, h ainda inmeros fatores limitantes que se

    interpem ao desenvolvimento pleno da populao de 15 a 17 anos. Apontar as

    fragilidades sociais de renda, escola e trabalho de parte significativa dos adolescentes

    brasileiros no contexto da discusso da reduo da maioridade penal importante para

    evidenciar o tamanho da dvida social do Estado e da Sociedade com esses meninos e

    meninas. Ser mostrado mais adiante, neste estudo, que os adolescentes em conflito

    com a lei padecem de vulnerabilidades semelhantes s fragilidades sociais de parte da

    adolescncia brasileira. Ou seja, quando cometeram o delito tinham em torno de 16

    anos, no haviam concludo o ensino fundamental, no estudavam e no trabalhavam

    (SILVA, Enid Rocha, GUERESI, Simone 2003). Assim, impossvel no questionar

    sobre o que teriam sido os jovens infratores de hoje, se tivessem tido acesso proteo

    integral de seus direitos, conforme garantidos na Constituio Federal e no ECA?

    2.1 Juventude brasileira: avanos recentes conquistados

    A ltima dcada no Brasil assistiu a expressivos avanos na ampliao do

    acesso aos direitos sociais, com destaque para a educao, visando preparar os jovens

    para a entrada na vida adulta e promover, no tempo certo, a insero qualificada no

    mercado de trabalho. Entre 1992 e 2013 a proporo de jovens brasileiros com idade

    de 15 a 17 anos que frequentavam a escola se elevou de 59,7% para 84,4%. De 2004 a

    2013, o percentual de jovens dessa mesma faixa etria que frequentava o ensino mdio

    aumentou de 44,2% para 55,2%.

    De acordo com dados do Ministrio da Educao, entre 2011 e 2014 foram

    realizadas mais de oito milhes de matrculas, entre cursos tcnicos e de formao

    inicial e continuada por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Tcnico e

    Emprego (Pronatec). Em relao ao ensino superior pblico e privado, no perodo de

    2001 a 2013 a taxa de frequncia lquida registrou um aumento expressivo, de 8,9%

    para 16,5%.

  • 7

    Grande parte desses avanos consequncia direta de programas sociais de alcance

    nacional, voltados para o pblico jovem, como o (PRONATEC); o Programa Nacional

    de Incluso de Jovens (Projovem Urbano); o Programa Universidade para Todos

    (ProUni); o Programa Nacional de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI); entre

    outros. A despeito das conquistas recentes, h ainda inmeros fatores limitantes que se

    interpem ao desenvolvimento pleno da populao de 15 a 29 anos. A reduo da

    maioridade penal uma medida que no responde aos desafios da juventude brasileira.

    Assim, para essa discusso apontar as fragilidades sociais de renda, escola e trabalho

    que ainda persistem para parte significativa dos adolescentes brasileiros.

    2.2 Jovens adolescentes: caractersticas demogrficas

    Os adolescentes brasileiros de 12 a 18 anos incompletos totalizavam em 2013

    21,1 milhes, o que correspondia a 11% da populao brasileira e encontravam-se

    distribudos em todas as regies do pas. A regio Sudeste concentrava a maior

    proporo dos adolescentes, 38,7%, seguida pela regio Nordeste, com 30,4%.

    Posteriormente seguem as regies Sul, com 13,3%; a Norte (10,2%) e a Centro-Oeste

    (7,4%).

    Conforme se observa pelas informaes contidas na Tabela 1, entre os

    adolescentes dessa faixa etria predomina certa igualdade na proporo por sexo, que

    em 2013 era de 51,19% de homens e 48,81% de mulheres. No quesito raa/cor, 58,9%

    dos adolescentes de 12 a 17 anos se autodeclararam negros (pretos e pardos); 40,4% se

    autodeclararam brancos e menos de 1% se declarou de outras raas amarela ou

    indgena. Mais de 80% da populao de 12 a 17 anos viviam em domiclios situados

    em reas urbanas, na proporo de quase cinco adolescentes para apenas um vivendo

    em residncias situadas em reas rurais.

    As informaes sobre a escolaridade dos jovens adolescentes brasileiros

    mostram que h uma grande defasagem entre a idade e o grau de escolaridade

    atingido, principalmente entre aqueles entre e 15 e 17 anos, que deveriam estar

    cursando o ensino mdio ou j t-lo concludo. Em 2013, cerca de um tero dos

    adolescentes de 15 a 17 anos ainda no havia terminado o ensino fundamental e menos

    de 2% (1,32%) haviam concludo o ensino mdio. Na faixa etria de 12 a 14 anos, que

    corresponde aos ltimos anos do ensino fundamental, os dados mostraram que a

  • 8

    imensa maioria (93,3%) tinha o fundamental incompleto e apenas 3,47% haviam

    completado esse nvel de ensino.

    2.2 Estudo e Trabalho

    Apesar de a adolescncia ser um perodo onde se considera que a atividade

    mais importante seja o estudo, em detrimento do trabalho, os dados da PNAD 2013

    revelam que o Brasil tem ainda enormes desafios para garantir que todos os jovens

    adolescentes estejam estudando e concluindo a escolaridade bsica. Conforme

    apontam os dados contidos na Tabela 2, em 2013, dos 10,6 milhes de jovens de 15 a

    17 anos, mais de 1,0 milho no estudavam e nem trabalhavam9; 584,2 mil s

    trabalhavam e no estudavam; e, aproximadamente, 1,8 milho conciliavam as

    atividades de estudo e trabalho.

    Entre os jovens no estudam, no trabalham e no procuraram emprego na

    semana de referncia da pesquisa observam-se as caractersticas tpicas de excluso

    social do pas: a maior parte da raa negra (64,87%); 58% so mulheres e a imensa

    9 No estudavam e estavam fora da populao economicamente ativa (PEA)

  • 9

    maioria (83,5%) pobre e vive em famlias com renda per capta inferior a um salrio

    mnimo. Os jovens adolescentes que j esto fora da escola e s trabalham apresentam

    perfil semelhante a dos adolescentes acima destacados, com a diferena de que, nesse

    grupo, os homens so a maior parte e representam 70,65%, enquanto que as mulheres

    so menos de um tero (29,35%). Os adolescentes que s trabalham tambm so, na

    maior parte, negros (61,46%) e pobres (63,68%). O perfil de excluso tambm se

    repete entre os adolescentes que necessitam conciliar trabalho e estudo, esses so na

    maioria do sexo masculino (60,75%), negros (59,8%) e pobres (63,03%) (Tabela 2).

    Caractersticas selecionadas s estuda estuda e trabalhas

    trabalha

    Nemestuda Nem

    trabalhabrancos 42,15 39,48 37,84 34,49negros 57,16 59,80 61,46 64,87outras raas 0,70 0,71 0,70 0,64Total 100 100 100 100homem 48,16 60,75 70,65 41,88mulher 51,84 39,25 29,35 58,12Total 100 100 100 100vivem em famlias com renda familiar per capta inferior a 1 SM

    67,11 63,03 65,68 83,50

    vivem em famlias com renda familiar per capta de 1 a 2 SM

    17,92 24,81 23,48 9,14

    vivem em famlias com renda familiar per capta superior a dois salrios mnimos

    9,85 6,34 4,90 3,17

    Sem declarao de rendimento 5,12 5,83 5,93 4,19Total (%) 100 100 100 100Total (nmeros absolutos) 7.210.636 1.763.990 584.228 1.083.489Fonte: IBGE/PNAD

    Elaborao:IPEA/DISOC

    Tabela 2: Distribuio percentual de jovens adolescentes de 15 a 17 anos de idade, por tipo de atividade em 2013 (%)

    A Tabela 3 apresenta as caractersticas sociais dos jovens adolescentes de 15 a

    17 anos que j trabalham. No Brasil o trabalho proibido para menores de 14 anos e,

    desta idade at os 15 anos, o trabalho s permitido na condio de aprendiz. Entre os

    16 e 17 anos o trabalho liberado, desde que no comprometa a atividade escolar e

    que no ocorra em condies insalubres e com jornada noturna.

  • 10

    Como se nota, os dados contidos na Tabela 3 apontam que 85,8% dos

    adolescentes de 15 anos que trabalham ganham menos de um salrio mnimo e mais de

    60% dos jovens de 15 a 17 anos sequer chegam a auferir um salrio mnimo por ms.

    A imensa maioria exerce atividade laboral na informalidade, sem qualquer proteo

    social. Quanto escolaridade dos adolescentes que trabalham, 90% daqueles com 15

    anos no concluram o ensino fundamental e 69,4% dos jovens de 16 a 17 anos

    tambm no completaram esse nvel de ensino.

    Praticamente todos os jovens adolescentes de 15 a 17 anos que trabalham (100%

    e 99%) vivem em famlias muito pobres. Porm, de acordo com estudos sobre o tema,

    atualmente as motivaes do trabalho na faixa etria da adolescncia no esto apenas

    relacionadas pobreza, mas tambm necessidade de ter acesso a bens de consumo,

    que so valorizados socialmente como roupas e tnis de marca e aparelhos celulares,

    por exemplo.10

    2.2 Vitimizao e Acesso Justia por parte da populao de 15 a 17 anos.

    Em suplemento especial da PNAD 2009, identificou-se que 1,6% do universo

    de pessoas entrevistadas j haviam sofrido algum tipo de agresso fsica. Entre os

    jovens adolescentes (12 a 17 anos), essa proporo sobe para 1,9%. Desses, cerca de

    10http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/brasil-enfrenta-nova-fase-do-combate-ao-trabalho-infantil/

  • 11

    60% eram negros e 40% eram brancos. Do total dos adolescentes agredidos, 2,8% dos

    brancos e 4,0% dos negros tiveram como agressor um policial ou um agente de

    segurana privada. As agresses fsicas contra os adolescentes cometidas por parentes

    alcanaram a proporo de 7,26%. de se notar, no entanto, que mais da metade das

    agresses sofridas por jovens adolescentes foram cometidas por pessoas conhecidas

    (56,78%).

    Do total dos jovens (405,7 mil) que sofreram agresso fsica em 2009, cerca de

    14 mil no reportaram a ltima agresso sofrida na delegacia de polcia. Os dados da

    Tabela 4 mostram que os motivos elencados guardam uma assimetria racial marcada,

    principalmente, pela maior importncia concedida pelos adolescentes negros em

    relao aos brancos s citaes como medo represlia" e no queria envolver a

    polcia. Entre os adolescentes negros que no registraram a agresso polcia, os

    principais motivos citados, os quais juntos somam mais de 80%, foram os seguintes:

    (i) no queria envolver a polcia (13,98%); (ii) no era importante (16,12%);

    (iii) medo de represlia (22,9%); e (iv) a polcia no quis fazer o registro

    (27,79%). J para os adolescentes brancos, foram dois os principais motivos citados:

    (i)a polcia no quis fazer o registro (31,76%) e (ii) no acreditava na polcia

    (33,96%).

    Tabela 4: Motivo de pessoas de 12 a 17 anos no terem feito o registro da ltima

    agresso fsica na delegacia de polcia, segundo sexo e cor ou raa - 2009

    Brancos Negros11,82% 6,86%

    16,12%33,96% 4,28%

    13,98%10,90% 22,90%31,76% 27,79%7,36%4,19% 8,07%

    100,00% 100,00%Fonte:IBGE/PNAD2009Elaborao:IPEA/DISOC

    Motivos

    Total

    Motivodepessoasde12a17anosnoteremfeitooregistrodaltimaagressofsicanadelegaciade

    polcia,segundosexo,ecorouraa2009

    Outro

    FaltadeprovasNoeraimportantenoacreditavanapolcianoqueriaenvolverapoliciaMedoderepresliaApolcianoquisfazeroregistroResolveusozinho

    Segundo o Mapa da Violncia de 2013, os homicdios so a principal causa de

    morte no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores

    de periferia e reas metropolitanas dos centros urbanos. Para Novaes (2014), esta

    situao produz uma discriminao por endereo: ao dizer onde moram, os jovens

  • 12

    das favelas e periferias brasileiras so estigmatizados e para eles se fecham portas de

    oportunidades. Em outras palavras, a criminalizao por territrios acarreta a morte de

    jovens que se tornam vtimas de aes policiais de combate ao uso de drogas e ao

    trfico e de disputas entre faces criminosas.11

    Embora possa parecer o contrrio, a vulnerabilidade dos jovens s mortes por

    armas de fogo maior hoje do que na dcada de 80. No conjunto da populao, o

    crescimento da mortalidade por armas de fogo foi de 346,5%, j para os jovens foi de

    414%. Segundo a estimativa do Mapa da Violncia, o Brasil o pas com maior

    nmero de homicdios por amas de fogo no mundo e alm do grave fato de a

    populao jovem ser a mais vitimada, tambm h uma forte seleo racial: morrem

    133% mais negros do que brancos (WAISELFISZ, 2013).

    Em 2012, dados do IHA (2014) mostraram que em 34% dos municpios

    brasileiros as chances de um adolescente do sexo masculino ser assassinado so mais

    que dez vezes a de uma menina. Enfim, so os jovens os que mais sofrem as

    consequncias do fracasso do atual sistema de controle de drogas e de legislao que

    realmente inibe a proliferao de armas de fogo. A mdia de investigao de

    homicdios no Brasil de apenas 5% a 8%12. assim que a frequente vitimizao dos

    jovens negros e a cultura da impunidade podem estar na raiz dos motivos que fazem

    com que esses jovens no procurem a polcia ao sofrerem agresso fsica.

    As informaes sobre a situao de escola e trabalho e vitimizao analisadas

    nos pargrafos anteriores evidenciam que o caminho para combater a violncia e a

    criminalidade entre os jovens deveria ser a promoo dos direitos fundamentais, como

    o direito vida, e dos direitos sociais preconizados na Constituio e no ECA, de

    educao, profissionalizao, sade, esporte, cultura, lazer, e viver em famlia.

    Entretanto, o grave problema da situao de desproteo social em que se encontra

    parcela expressiva dos adolescentes brasileiros fica secundarizado diante da prioridade

    concedida pelo Congresso Nacional de tramitao de uma Proposta de Emenda

    Constituio (PEC 171/1993), que prev a reduo da maioridade penal de 18 para 16

    anos.

    11Texto divulgado na pgina: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/edicoes-revista/mal-estar-medo-e-mortes-entre-jovens-das-favelas-e-periferias/ 12Observatrio de Favelas e Unicef, ndice de homicdios na adolescncia. 2010-2011

  • 13

    Estimativas do UNICEF Brasil, com base em dados do levantamento SINASE

    (2012) e da PNAD/IBGE (2012), destacaram que, dos 21 milhes de adolescentes que

    vivem no Brasil, menos de meio por cento (0,013%) cometeu atos contra a vida, isto ,

    cumpriam medidas socioeducativas de privao de liberdade por atos anlogos a

    homicdio, latrocnio, estupro e leso corporal. Apesar de alguns adolescentes estarem

    cometendo atos reprovveis, a maioria das informaes disponveis do conta de que

    um conjunto expressivo dos jovens esto desprotegidos das polticas pblicas e dos

    direitos sociais bsicos e so, ainda, vtimas de violncia, e no autores, conforme

    grande parte da sociedade acredita.

    2.3 Desigualdade social e a vulnerabilidade social do jovem13

    As consideraes feitas at aqui remetem para a importncia de se pensar a

    problemtica dos conflitos cometidos e sofridos pelos jovens no quadro da

    vulnerabilidade social potencializada pela sua situao socioeconmica . Por

    vulnerabilidade social entende-se o resultado negativo da relao entre a

    disponibilidade dos recursos materiais ou simblicos dos atores, sejam eles indivduos

    ou grupos, e o acesso estrutura de oportunidades sociais, econmicas, culturais que

    provm do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em

    debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidades social dos atores

    (ABRAMOVAY et al., 2002:13).

    A especificidade social da condio jovem torna este segmento um pblico

    especialmente exposto vulnerabilidade social, uma vez que a definio pouco precisa

    do seu papel na sociedade contempornea em termos de autonomia relativa, (in)

    dependncia financeira e responsabilidades e direitos ambguos no que se refere sua

    participao no mercado de trabalho, por exemplo submete essas pessoas aos efeitos

    mais imediatos das adversidades econmicas e sociais e lana uma srie de incertezas

    quanto a sua trajetria futura. H que se considerar ainda o fato de que os jovens so

    particularmente suscetveis ao apelo do risco e tm sua identidade social construda,

    em grande parte, com recurso ideia de transgresso, o que configura um complexo

    13Esse tpico foi elaborado com base em Artigo escrito por uma das autoras deste texto - Enid Rocha Andrade da Silva em conjunto com a tcnica de planejamento e pesquisa do IPEA Luseni Ma. Cordeiro de Aquino em 2004, publicado parcialmente pela ANDI, intitulado: Desigualdade Social, Violncia e Jovens no Brasil. Braslia: Andi, 2004.

  • 14

    quadro de vulnerabilidade que a pobreza, ou de forma ainda mais ampla, a

    desigualdade social potencializa.

    Neste sentido, a existncia de deficincias e barreiras de acesso dos jovens

    pobres educao e ao trabalho os dois principais mecanismos, considerados lcitos,

    de mobilidade e incluso social da nossa sociedade bem como s estruturas de

    oportunidades disponveis nos campos da sade, lazer e cultura, contribuem para o

    agravamento da sua situao de vulnerabilidade social. Sem escola, sem trabalho ou

    com insero laboral precria, os jovens ficam mais desprotegidos e,

    consequentemente, mais expostos, por exemplo, cooptao pelo crime organizado.

    Assim, a prtica de furto e a comercializao de drogas ilcitas muitas vezes

    iniciadas por influncia do grupo de amigos mais prximo representariam uma

    alternativa real de trabalho na esperana de mobilidade social para o jovem morador

    das periferias pobres das grandes cidades, ainda que o exponha aos riscos e

    criminalizao relacionados s prticas desviantes.

    Este enfoque permite compreender a experincia da violncia entre jovens

    dentro de um quadro maior em que a vulnerabilidade prpria condio jovem, aliada

    a condies socioeconmicas desfavorveis, alimentam tenses e frustraes que

    repercutem diretamente sobre os processos de integrao social e, em alguns casos,

    fomentam a violncia e a incurso na criminalidade (ABRAMOVAY et al., 2002). A

    vulnerabilidade social constituiria uma categoria de mediao entre a

    desigualdade/excluso social e a violncia entre jovens, mediao esta cujo

    mecanismo explicativo pode ser identificado nas frustraes que ela alimenta e que

    influem decisivamente sobre o processo simblico de construo da identidade do

    jovem. Mais que a pobreza, portanto, a desigualdade social que suscita maior

    sofrimento entre os jovens de baixa renda pela comparao feita entre a sua prpria

    condio e a imagem do outro, socialmente valorizada. A desigualdade social exprime

    uma circunstncia relativa de privao de direitos que amplifica a vulnerabilidade

    social da populao pobre.

    No entanto, mais do que as desigualdades em si, a forma como se canaliza o

    descontentamento com elas o que permite compreender de maneira mais adequada a

    violncia entre os jovens. OLIVEIRA (2001), ao discutir o delito enquanto produo

    de sentido para a juventude ressalta que ... a violncia e o delito na adolescncia

    suburbana podem ser entendidos como respostas ao desprezo ou indiferena a que

    esto submetidos os adolescentes moradores do outro lado da cidade e, neste caso,

  • 15

    so manifestaes de esperana, pois mesmo que seja por arrombamento, eles buscam

    inventar outro espao, outras regras de deslocamento de lugar (OLIVEIRA, 2001:

    65). Em outras palavras, a vivncia cotidiana de excluso social impulsiona os jovens

    da periferia a buscarem espaos de participao, mecanismos e formas que

    possibilitem sair do anonimato e da indiferenciao. Esta busca est na origem da

    formao de grupamentos juvenis de comportamento tipicamente violento, como as

    gangues e galeras, que manifestam pela revolta uma excluso no apenas

    socioeconmica, mas tambm simblica. A mesma busca d origem a grupos cuja

    identidade se expressa atravs da participao e produo cultural, como as tribos, os

    grupos de capoeiras, de Hip Hop, entre outros.

    Outro aspecto importante a ser sublinhado refere-se ao preconceito cultural

    vigente na sociedade que condena, antecipadamente, os jovens da periferia e das

    favelas, sobretudo os negros, pelo fato de no corresponderem aos padres idealizados

    da sociedade: branco, bem vestido, escolarizado, trabalhador com carteira assinada,

    entre outros atributos valorizados socialmente. assim que esse olhar deve estar

    presente quando se analisa, por exemplo, o perfil do adolescente em conflito com a lei

    que cumpre medida de privao de liberdade no Brasil. Esses so, na maioria, negros,

    pobres, com ensino fundamental incompleto, no estudam e nem trabalham.

    2.4 Quem so os adolescentes em conflito com a Lei no Brasil

    Os estudos mostram que o fenmeno contemporneo do ato infracional juvenil

    est associado no pobreza ou misria em si, mas, sobretudo, desigualdade social,

    e dificuldade no acesso s polticas sociais de proteo implementadas pelo Estado.

    De acordo com o levantamento realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da

    Presidncia da Repblica (2013), dos adolescentes em conflito com a lei que

    cumpriam medida socioeducativa de privao de liberdade, 95% eram do sexo

    masculino e cerca de 60% tinham idade entre 16 e 18 anos. Sobre as caractersticas

    sociais dos adolescentes infratores no existem dados recentes, mas na tentativa de

    dimensionar essa questo, citam-se aqui os resultados de uma pesquisa realizada pelo

    IPEA e Ministrio da Justia (2003), que mostram um perfil de excluso social entre

    esses adolescentes: mais de 60% dos adolescentes privados de liberdade eram negros,

    51% no frequentavam a escola e 49% no trabalhavam quando cometeram o delito e

    66% viviam em famlias consideradas extremamente pobres (SILVA, Enid Rocha;

    GUERESI, Simone, 2003).

  • 16

    Assim, se fato que os jovens excludos enfrentam maiores dificuldades de

    insero social, o que ampliam as chances de inscreverem em sua trajetria

    cometimentos de atos reprovveis, tambm verdade que os jovens oriundos de

    famlias mais abastadas se envolvem to ou mais com drogas, uso de armas, gangues,

    atropelamentos, apedrejamentos, etc. A diferena que esses possuem mais recursos

    para se defenderem, sendo mais raro terminarem sentenciados em unidades de

    privao de liberdade, ao passo que os adolescentes mais pobres, alm de terem seu

    acesso justia dificultado, ainda so vtimas de preconceitos de classe social e de

    raa, comuns nas prticas judicirias.

    3 - COMO O SISTEMA DE JUSTIA JUVENIL BRASILEIRO HOJE?

    3.1 A legislao: um pouco da histria de defesa dos direitos de crianas e

    adolescentes no Brasil14

    O princpio do discernimento x princpio da dignidade humana

    Um dos argumentos a favor da diminuio da maioridade penal que tem mais

    aceitao social de que o adolescente possui capacidade de entender o que certo e o

    que errado e que por isso teria as mesmas condies de escolha e, logo, deveria estar

    sujeito s mesmas responsabilidades de um adulto. Esse pensamento, bastante

    difundido no senso comum, foi durante muito tempo um princpio que embasou o

    direito penal.

    Tavares (2004) sublinha que na Inglaterra e na Itlia de antigamente para

    conhecer se a criana agira ou no com discernimento, aplicava-se a prova da ma

    de Lubecca, que consistia em oferecer uma ma e uma moeda. Escolhida a moeda

    estava provada a malcia e anulada qualquer proposta legal com proteo. Por isso,

    encontram-se registros sobre a pena capital recaindo em crianas de dez e onze

    anos15. Esse princpio se baseava em o juiz, ou algum outro especialista, avaliar se a

    criana ou o adolescente j possua aptido para distinguir o bem do mal, o justo

    14 Esse tpico foi extrado de texto escrito pelas pesquisadoras Enid Rocha Andrade da Silva e Simone Gueresi e publicado em agosto de 2003 em TD 0979 - Adolescentes em Conflito com a Lei: Situao do Atendimento Institucional no Brasil. Disponvel em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4548 15TAVARES, Heloisa Gaspar Martins. Idade penal (maioridade) na legislao brasileira desde a colonizao at o Cdigo de 1969 Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 508, 27 nov. 2004. Disponvel em: . Acesso em: 11 nov. 2005.

  • 17

    do injusto, o lcito do ilcito. Como no existiam garantias e requisitos objetivos a

    serem observados, o futuro de crianas e adolescentes dependia, exclusivamente, dos

    critrios considerados pelo magistrado, que decidia de acordo com seu arbtrio.

    No Brasil, o critrio do discernimento para a responsabilizao penal dos

    adolescentes predominou no Imprio e no incio da Repblica. O Cdigo Criminal do

    Imprio (1830) colocava a maioridade penal absoluta a partir dos 14 anos, mas

    crianas a partir de oito anos poderiam ser julgadas como adultos, pegando pena

    perptua, caso fosse avaliado que agiram com discernimento. Durante a Repblica, o

    Cdigo Penal Republicano (1890), tambm determinava a inimputabilidade absoluta

    at os 09 anos de idade e submetia aos maiores de 09 e menores de 14 anos anlise

    do discernimento, critrio este que sempre foi um verdadeiro enigma para os

    aplicadores da lei, censurado pelo jurista Evaristo de Moraes, de 'adivinhao

    psicolgica' (TAVARES, 2004).

    Na segunda dcada do sculo XX, foram editadas normas voltadas ao interesse

    das crianas e adolescentes, quando o critrio do discernimento eliminado,

    estabelecendo o limite mnimo da imputabilidade penal para 14 anos16. Todavia, a

    teoria do discernimento volta a ser adotada no Brasil durante a ditadura militar,

    quando o Cdigo Penal Militar (1969), fixava o limite penal em 18 anos salvo se, j

    tendo o adolescente de 16 anos, revelado discernimento. Com a reabertura

    democrtica, essa teoria novamente abandonada e a maioridade garantida na

    Constituio partindo dos princpios da dignidade humana, dos direitos sociais e do

    direito individual, pilares do Estado democrtico de Direito.

    Como se continuar mostrando a seguir, a trajetria institucional da poltica da

    criana e do adolescente no Brasil teve inmeras variaes, reflexo das diferentes

    ticas sob as quais o tema da criana e do adolescente era entendido dentro do aparato

    estatal. Desde uma perspectiva correcional e repressiva, visando proteger a sociedade

    de crianas e adolescentes em situao irregular, at uma viso de garantia de direitos,

    com o objetivo de oferecer proteo integral a todas as crianas e adolescentes.

    16(...) nos fins do sculo XIX outra ordem de motivos veio a influir na matria motivos de natureza criminolgica e de poltica criminal, segundo os novos conhecimentos sobre a gnese da criminalidade e a ideia da defesa social, que impunha deter os menores na carreira do crime. Da nasceu o impulso que iria transformar radicalmente a maneira de considerar a tratar a criminalidade infantil e juvenil, conduzindo-a a um ponto de vista educativo e reformador" (BRUNO apud TAVARES, 2004).

  • 18

    No Brasil, um conjunto de leis, polticas e instituies consolidou a doutrina da

    situao irregular no trato de crianas e adolescentes, assim como as posteriores

    mudanas em direo doutrina da proteo integral.17A dcada de 1980 caracterizou-

    se pelo incio da abertura democrtica, e a legislao e as polticas destinadas aos

    adolescentes passam a ser vistas como integrantes do arcabouo autoritrio do perodo

    anterior. Por outro lado, o menino de rua passa ser a figura emblemtica da situao

    da criana e do adolescente no Brasil. A percepo dos fatores sociais existentes por

    trs da realidade daqueles meninos refora a necessidade de uma nova abordagem da

    questo18.

    O crescimento e a consolidao dessas discusses, em especial do movimento

    de defesa de meninos e meninas de rua, culminaram na criao, em 1986, da Comisso

    Nacional Criana e Constituinte. Em 1988, a nova Constituio Nacional contemplou

    a proteo integral a crianas e adolescentes em seus artigos 227 e 228. Nessa poca,

    no panorama internacional, as mudanas tambm estavam em curso. As discusses da

    Conveno das Naes Unidas sobre o Direito da Criana comearam bem antes de

    1989, de modo que os seus princpios foram considerados na Constituio Brasileira,

    mesmo antes da aprovao daquela Conveno pela ONU, que foi ratificada pelo

    Brasil apenas em 1990. Nesse mesmo ano, o ECA coroa o novo paradigma da doutrina

    da proteo integral, constituindo-se na nica legislao adequada aos princpios da

    Conveno das Naes Unidas sobre o Direito da Criana no contexto latino-

    americano. Desde ento a legislao brasileira para a infncia e adolescncia serviu de

    referncia internacional e, atualmente, a maioria dos pases (78% de 54) estabelece a

    maioridade penal aos 18 anos ou mais tarde, segundo o levantamento do Unicef

    (2009).

    assim que os adolescentes privados de liberdade tm no ECA a garantia de

    inmeros direitos especficos para garantir a eficcia da aplicao da medida 17Em 1927, foi criado o primeiro Cdigo de Menores e, nesse mesmo ano, o Servio de Assistncia ao Menor (SAM), rgo do Ministrio da Justia, equivalente ao Sistema Penitencirio para a populao de maior idade, com enfoque tipicamente correcional-repressivo. Em 1964, foi estabelecida a Poltica Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM), de carter assistencialista, que tinha como rgo nacional a Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem). Em 1979, aprovado o Cdigo de Menores, que tratava da proteo e da vigilncia dos menores em situao irregular e correspondia a um nico conjunto de medidas destinadas, indistintamente, aos meninos e meninas cometedores de atos infracionais, e aos abandonados, com vivncia de rua que padeciam do acesso aos direitos bsicos. 18 poca, um grupo de tcnicos do Unicef, da Funabem e da Secretaria de Ao Social (SAS), do Ministrio da Previdncia e Ao Social, deu incio ao Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua.

  • 19

    socioeducativa de privao de liberdade, tendo em vista a extrema necessidade que

    deve justificar sua indicao. Alm disso, o cumprimento de medida socioeducativa

    d-se no mbito da proteo integral a crianas e adolescentes, tambm garantida pelo

    Estatuto. Ao contrrio do antigo e extinto Cdigo do Menor (1927), que oferecia

    respaldo legal para o controle e a interveno sobre uma parcela das crianas e dos

    adolescentes considerados em situao irregular, o ECA apresenta garantias para todos

    os adolescentes e crianas, sem distino.

    A legislao e os avanos constitucionais foram inspirados na viso da poltica

    social pertencente ao campo do projeto democrtico-participativo. Preconizam a

    integralidade dos direitos para todo o universo das crianas e adolescentes brasileiras,

    propem a elaborao de polticas amplas que consideram crianas e adolescentes

    pessoas em desenvolvimento, e que, portanto, possuem prerrogativas diferenciadas dos

    adultos.19

    Atualmente, a legislao para a infncia e adolescncia no Brasil est de

    acordo com o direito internacional. Qualquer modificao da legislao sobre a

    maioridade penal que diminua os direitos dessa populao ir contra os acordos e

    convenes dos quais o Brasil signatrio. Os principais tratados internacionais

    ratificados pelo Brasil revestem-se de status normativo-constitucional, conforme

    ilustra o Quadro 1 abaixo. A nfase desses documentos no carter ressocializador

    justificada pelo fato de o adolescente ser considerado um sujeito em desenvolvimento,

    algum com potencial de mudar os caminhos trilhados se tiver oportunidades.

    Entretanto, muitos adolescentes convivem cotidianamente no apenas com o

    descumprimento das determinaes especficas para o atendimento socioeducativo,

    mas tambm com a violao de seus direitos como adolescentes, previstos no ECA.

    Assim pertinente refletir sobre a seguinte questo: Se o adolescente no teve acesso

    aos direitos sociais bsicos, que poderiam lhes garantir outra trajetria social, como

    imputar-lhes a responsabilidade integral por ter aderido criminalidade?

    19 Silva, Enid Rocha A. - Projetos polticos e arranjos participativos nacionais: os significados e os desdobramentos nos conselhos nacionais. Unicamp, 2013. Tese de doutorado.

  • 20

    Quadro1: A maioridade penal nos tratados internacionais assinados pelo Brasil TRATADOS INTERNACIONAIS

    Regras Mnimas das Naes Unidas

    para a Administrao da Justia

    Juvenil (Regras de Pequim, 1959):

    Estabelece cautela quanto fixao da maioridade penal,

    levando em conta o princpio da proporcionalidade e o

    objetivo de proteger crianas e adolescentes.

    Conveno sobre os Direitos da

    Criana (ONU, 1989):

    Estabelece os 18 anos como marco de idade penal e coloca

    que nenhum de seus signatrios poder tornar suas normas

    internas mais gravosas do que as que esto dispostas na

    aludida Conveno

    Conveno Internacional sobre os

    Direitos da Criana (ratificada

    internamente pelo Decreto

    99.710/90):

    Estabelece que criana o sujeito que se encontra at os 18

    anos de idade e necessita de atendimento especializado

    Princpios Orientadores de Riad

    (ONU, 1990):

    Torna invivel a elaborao de legislao conflitante com os

    tais instrumentos de proteo.

    Pacto Internacional sobre Direitos

    Econmicos, Sociais e Culturais:

    Afirma constantemente a progressividade das medidas

    tomadas, trata-se de um princpio ou clusula de

    proibio/vedao do retrocesso social ou da evoluo

    reacionria.

    Conveno Americana dos Direitos

    Humanos:

    Estabelece a progressividade na implementao dos direitos

    do Pacto e cria, como consequncia, o princpio ou clusula

    da proibio do retrocesso social ou da evoluo reacionria.

    Elaborao: IPEA/DISOC

    3.2 O mito da Impunidade

    O ECA prev que o menor de 18 anos inimputvel, mas capaz de cometer ato

    infracional e contempla um sistema de controle judicial baseado na responsabilizao

    socioeducativa de pessoas entre 12 e 18 anos incompletos que praticam conduta

    considerada ilcita.20 O adolescente responsabilizado mediante processo legal que

    estabelece sanes, sob a forma de medidas socioeducativas, que respeitem sua 20 A criana (pessoa at 12 anos incompletos), que praticar ato infracional ser encaminhada ao Conselho Tutelar e estar sujeita s medidas de proteo previstas no art. 101; o adolescente (entre 12 de 18 anos), ao praticar ato infracional, estar sujeito a processo contraditrio, com ampla defesa. Aps o devido processo legal, receber ou no uma sano, denominada medida socioeducativa, prevista no art. 112 do ECA.

  • 21

    condio peculiar de pessoa em desenvolvimento, conforme previsto no artigo 227 da

    Constituio Federal e no artigo 104 do ECA. Verificada a prtica de ato infracional,

    a autoridade competente poder aplicar ao adolescente medidas socioeducativas em

    meio aberto (i) advertncia; (ii) obrigao de reparar o dano (iii) prestao de servio comunidade; e (iv) liberdade assistida. Ou pode aplicar as medidas

    socioeducativas em meio fechado, que so: (i) insero em regime de semiliberdade;

    (ii) internao em estabelecimento educacional e, ainda, quando se aplicar, (iii)

    internao provisria.21 (Quadro 2)

    Em complementao, o ECA destaca que a medida aplicada ao adolescente

    levar em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstncias e a gravidade da

    infrao e que, em hiptese alguma e sob pretexto algum, ser admitida a prestao de

    trabalho forado. Em relao aos adolescentes portadores de doena ou deficincia

    mental, o Estatuto estabelece que esses devem receber tratamento individual e

    especializado, em local adequado s suas condies.

    importante esclarecer que, apesar de o ECA estabelecer que o prazo mximo

    de internao de trs anos22, como, aps o cumprimento da medida de internao,

    o adolescente poder ainda ser colocado em regime de semiliberdade ou de

    liberdade assistida23, o processo de responsabilizao penal pelo delito cometido

    pode se prolongar por mais de trs anos. Alm disso, de acordo com algumas

    jurisprudncias, no caso de concurso de atos infracionais, por exemplo, estupro, roubo

    e leso corporal grave (trs vtimas diferentes), o prazo mximo de internao

    contado para cada ato infracional separadamente.24

    Embora muitos argumentem que a lei no pune nem responsabiliza os

    adolescentes que cometem delitos, segundo estudiosos, a justia juvenil tende a ser

    aplicada de forma mais dura do que a justia penal comum, no que consiste ao tempo

    de durao da medida efetivamente cumprida pelo infrator. Estevo (2007),25 ao

    21Ou qualquer uma das medidas previstas no art. 101, I a VI. 22Ou por tempo indeterminado at os 21 anos de idade e Exceto na hiptese do artigo 122, III por descumprimento reiterado e injustificvel da medida anteriormente imposta, quando o prazo de internao na hiptese do inciso III deste artigo no poder ser superior a trs meses. 23Conforme a dico do 4 do mesmo artigo. 24Dessa forma, um adolescente com 12 anos que comete estupro, roubo e leso grave poder ficar internado at os 21 anos, se o juiz assim determinar. Ou seja, poder ficar detido por nove anos. Julgado em HC 99565 de 7.05.09. Ver em http://materiaparaestudo.blogspot.com.br/p/ acodamento-no.html 25ESTEVO, Roberto F. A reduo da maioridade penal medida recomendvel para a diminuio da violncia? Revista jurdica: judiciria. 55, n. 361, p. 115133, nov., 2007. Disponvel em:

  • 22

    comparar os dois sistemas, conclui que para um adulto infrator chegar a cumprir trs

    anos em regime fechado, a pena de recluso recebida no poder ser inferior a 18

    anos, sendo rara a aplicao de pena dessa magnitude.

    Como exemplo, esse autor destaca os crimes de roubo com emprego de arma

    de fogo que resulta, em regra, em pena de cerca de cinco anos, e a prtica de estupro

    presumido, que tem como vtima pessoas de at 14 anos de idade, para a qual fixada,

    em geral, recluso por perodo de seis anos. Nesses dois exemplos, o sentenciado

    adulto, aps permanecer cerca de um ano em regime fechado, j teria cumprido os

    requisitos para passar ao regime de semiliberdade. Nessa linha de argumentao, o

    autor demonstra que um adolescente permanece em regime fechado (internao) por

    um perodo maior que um adulto que pratica a mesma espcie de delito. (ESTEVO,

    2007: 17 e 18).

    Ainda que adultos e adolescentes permanecessem em regime fechado o mesmo

    perodo de tempo ao cometer os tipos anlogos de delitos, essa medida seria

    considerada mais rgida para o adolescente, pois h de se considerar que a recluso de

    trs anos para uma pessoa de 16 anos dentro do sistema prisional tem muito mais

    impacto do que para uma pessoa de 30 anos.

    Quadro 2: Medidas Socioeducativas e sua Aplicao, de acordo com o ECA Medidas Objetivo Regras de Aplicao

    1. Advertncia Alertar o adolescente e seus genitores ou responsveis para os riscos do envolvimento no ato infracional.

    Poder ser aplicada sempre que houver prova da materialidade da infrao e indcios suficientes de autoria (art. 114, nico).

    2. Reparao de danos

    Reparar ato infracional com reflexos patrimoniais em terceiros.

    Determinao para que o adolescente restitua o patrimnio, promova o ressarcimento do dano, ou por outra forma compense o prejuzo da vtima. Para evitar que sejam os pais dos adolescentes os pagadores dos danos, e para que no se perca o carter educativo, essa medida poder ser substituda por outra mais adequada a fim de que o prprio adolescente repare o dano.

    3. Prestao de Servio Comunitrio

    Proporcionar oportunidade, ao adolescente infrator, de realizar trabalho de interesse geral e gratuito em reas de interesse da comunidade.

    A prestao de servios comunitrios consiste na realizao de tarefas gratuitas de interesse geral, por perodo no superiora seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congneres, bem como em programas comunitrios ou governamentais.

    4. Liberdade Assistida

    Destina-se a acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, mantendo-o na famlia e na comunidade sob a superviso da autoridade judiciria, com o objetivo de impedir a reincidncia.

    O Juiz destaca um assistente tcnico/orientador (em geral um psiclogo ou assistente social) para acompanhar o adolescente no frum. Se o juiz preferir, ele pode recomendar que uma entidade ou programa de atendimento acompanhe o adolescente. Tem prazo mnimo de seis meses, com a possibilidade de ser prorrogada, renovada ou substituda por outra medida (art. 118, 2).

    . Acesso em: dezembro de 2014.

  • 23

    5. Semiliberdade Trata-se de medida que implica em privao da liberdade e busca preservar os vnculos familiares e sociais, possibilitando a realizao de atividades externas, independentemente de autorizao judicial.

    Pode ser aplicada como medida inicial, desde que a deciso seja fundamentada, tendo em vista o princpio da excepcionalidade da restrio liberdade do adolescente. Ou pode ser decretada como transio de uma medida mais grave ou menos grave. Deve ser executada em estabelecimento adequado as condies do adolescente, e no pode ser cumprida em estabelecimento prisional. obrigatria a escolarizao e a profissionalizao. Pode ser decretada por tempo indeterminado, mas no pode durar mais do que trs anos ou at 21 anos (o que chegar primeiro).

    6. Internao medida privativa de liberdade, sujeita aos princpios da brevidade, excepcionalidade e respeito condio peculiar de pessoas em desenvolvimento. a medida mais severa de todas as medidas previstas no ECA por privar o adolescente de sua liberdade de ir e vir.

    A medida comporta prazo mximo de trs anos, com avaliao a cada seis meses. Atingido o limite de trs anos o adolescente ser colocado em liberdade, e, dependendo do caso, ainda ser submetido medida de semiliberdade ou liberdade assistida. Ocorrer nas seguintes hipteses: ato infracional cometido mediante violncia ou grave ameaa; reincidncia em infraes graves (punidas com recluso) e descumprimento reiterado e injustificvel de outra medida imposta (mximo de trs meses). Nesse caso obrigatrio a observncia do princpio do contraditrio. Aos 21 anos a liberdade compulsria. Deve ser usada em ltimo recurso (art. 122, 2 do ECA), apenas quando a gravidade do ato infracional cometido e a ausncia de estrutura do adolescente indicar que a possibilidade de reincidncia em meio aberto elevada.

    7. Internao Provisria

    a medida socioeducativa cautelar com carter privativo de liberdade (o adolescente fica detido). aplicada antes da sentena, quando h indcios suficientes de autoria e materialidade do delito.

    Em nenhuma hiptese poder ultrapassar 45 dias. Deve ser cumprida em estabelecimento especial, sem qualquer proximidade com adulto.

    Fonte: ECA Elaborao: IPEA/DISOC Como se observa, a partir das informaes do Quadro 2, o ECA prev sete

    diferentes medidas socioeducativas, que so estabelecidas de acordo a gravidade do

    ato infracional, sendo as mais severas aquelas que restringem a liberdade: de

    semiliberdade e de internao. As medidas socioeducativas so, portanto, sanes

    impostas aos adolescentes em conflito com a lei que buscam, de um lado, punir a fim

    de que esses jovens possam refletir e reparar os danos causados e, de outro, reeducar

    para lograr nova reinsero social, familiar e comunitria. A impunidade do

    adolescente , portanto, um mito compartilhado por muitos que contribui para reiterar

    o desconhecimento da populao e abrir caminho para a proposta de reduo da

    maioridade penal. As regras, as leis e as sanes existem. Os problemas residem na

    enorme distncia entre o que est previsto no ECA, especificamente nos servios que

  • 24

    deveriam ser ofertados pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

    (SINASE), e a dura realidade enfrentada nas instituies socioeducativas.26

    O SINASE foi institudo, inicialmente em 2006, por uma resoluo do

    Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente (CONANDA) e,

    recentemente foi transformado em Lei27. Desde ento, passou a ser obrigatria a

    elaborao e implementao, nas trs esferas de governo, do chamado "Plano de

    Atendimento Socioeducativo", discriminando a oferta de programas destinados

    execuo das medidas socioeducativas em meio aberto de responsabilidade dos

    municpios - e privativas de liberdade de responsabilidade dos governos estaduais.

    No entanto, o levantamento 2012 da Secretaria de Direitos Humanos tambm

    constatou a ausncia de diversos servios e estrutura necessrios para a correta

    implementao do SINASE. Os estados mais bem estruturados eram Paraba e Rio de

    Janeiro. Aqueles em piores situaes eram os estados de Alagoas, Rio Grande do

    Norte, Minas Gerais, Esprito Santo, Acre, Roraima, Tocantins e Maranho. Apesar da

    precariedade na execuo das medidas socioeducativas, os dados da Pesquisa

    Panorama Social (2012) do Ministrio da Justia mostraram que o SINASE apresenta

    ndices de reincidncia melhores do que o sistema penal para adultos. A seguir a

    Tabela 5 mostra a quantidade de estados que apresentam carncias de cada um dos

    itens, que estruturam o SINASE.

    26Apesar de no prevista como medida socioeducativa, a internao provisria pode ser entendida como outra medida em meio fechado, pois, anloga priso preventiva para os adultos, permite que o adolescente fique internado em regime fechado por at 45 dias, embora, na prtica, o adolescente permanea por longos meses detido, enquanto aguarda que seu processo seja avaliado pelo judicirio. 27Lei 12.594, de 18/01/2012.

  • 25

    Tabela 5: Quantidade de UFs no adequadas aos parmetros do SINASE,

    2012.

    Itens do SINASE Nmero de UFs

    Inadequadas

    Capacitao para os funcionrios 5

    SIPIA SINASE web28 17

    Colegiado Interinstitucional 21

    Comisso Interssetorial 23

    Ouvidoria 17

    Plano de Atendimento 11

    Estudos sobre o tema 13

    Fonte: LEVANTAMENTO SDH Elaborao: IPEA/DISOC

    Em 2012, os itens com maior defasagem nas unidades federativas diziam

    respeito inexistncia do Colegiado Interinstitucional e da Comisso Intersetorial.

    Esses rgos so responsveis pelo fortalecimento do dilogo entre atores do sistema

    de garantia de direitos nos trs nveis do governo e por elaborar de forma articulada

    entre os diversos setores institucionais o esboo do Plano de Atendimento

    Socioeducativo. A grande quantidade de inexistncia dessas instncias pode ser

    explicada pelo fato de o SINASE ainda no ter sido regulamentado por lei em 2012.

    Em seguida, tambm com muita defasagem, aparece a utilizao do SIPIA

    WEB e a inexistncia da ouvidoria. Esses itens so fundamentais para o

    monitoramento do Sistema de Atendimento, para gerar dados atualizados que

    embasam estudos posteriores e para o controle e preveno das violaes de direito

    ocorridas dentro das unidades do SINASE. Destaca-se ainda a inexistncia do Plano

    de Atendimento em 11 unidades federativas, o que prejudica o acompanhamento do

    desenvolvimento do adolescente.

    Muitas vezes a justia juvenil no aplicada conforme as disposies

    estabelecidas no ECA e no SINASE e costumam ser mais severas do que o ato

    infracional requer. Em 2013 existia um total de 23,1 mil adolescentes privados de

    liberdade no Brasil. Desses 64% (15,2 mil) cumpriam a medida de internao, a mais

    28 Sistema Nacional de Acompanhamento de Medidas Socioeducativas, verso Web Nacional, prope a criao de um Sistema de Informao em rede para registro e tratamento de dados referentes a adolescentes em conflito com a lei em cumprimento de medidas socioeducativas.

  • 26

    severa de todas; outros 23,5% (5,5 mil) estavam na internao provisria; 9,6% (2,3

    mil) cumpriam medida de semiliberdade e 2,8% (659 mil) estavam privados de

    liberdade em uma situao indefinida. (Grfico 1)

    4 Quais os principais delitos praticados pelos adolescentes privados de liberdade?

    Conforme mostram as informaes contidas na tabela 6, as infraes patrimoniais

    como furto, roubo e envolvimento com o trfico de drogas constituram-se nos principais

    delitos praticados pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de

    privao de liberdade no Brasil nos ltimos trs anos. Em 2011, roubo (38,12%), furto

    (5,6%) e trfico (26,56%) representaram, juntos, mais de 70% do total de delitos

    praticados pelos adolescentes detidos. Em 2012, esses atos infracionais alcanaram,

    aproximadamente, 70% do total e, em 2013, cerca de 67%. Por sua vez, os delitos

    considerados graves, como homicdios (8,39%), latrocnio (1,95%), leso corporal (1,3%)

    e estupro (1,05%) alcanaram, em 2011, 11,7% do total dos atos praticados pelos

    adolescentes detidos no Brasil. Em 2012, tais infraes representaram 13,5% e, em 2013,

    12,7%.

    O cotejamento dos dados das medidas socioeducativas aplicadas (grfico 1) com o

    tipo de delito praticado pelos adolescentes privados de liberdade (tabela 5) indicam que o

    judicirio tem dado preferncia para a aplicao das medidas mais severas, como a de

    internao em regime fechado. Tal procedimento est em desacordo com as orientaes

    do ECA que estabelece que a medida de internao deve ser aplicada apenas na seguintes

    hipteses: (i) ato infracional cometido mediante violncia ou grave ameaa; (ii)

  • 24

    reincidncia em infraes graves (punidas com recluso) e (iii) descumprimento reiterado

    e injustificvel de outra medida imposta (mximo de 3 meses). (art. 122, 2 do ECA).

    Se essa mxima fosse cumprida, em 2013, por exemplo, os adolescentes internos

    privados de liberdade no Brasil, seriam cerca de 3,2 mil Homicdios (2,2 mil);

    latrocnio (485); estupro (288); e leso corporal (237) e no 15,2 mil (64%); como na

    realidade. Assim, a rigidez na aplicao das medidas socioeducativas parece no estar de

    acordo com a gravidade dos atos cometidos pelos adolescentes em conflito com a lei.

    Alm disso, importante observar que a internao provisria, medida limitada

    pela legislao, exigindo que s seja decretada excepcionalmente. requerida pelos

    promotores na maioria dos casos, alegando-se simplesmente periculosidade e desajuste

    social. O juiz, por sua vez, quase sempre acolhe o pedido e decreta a internao

    provisria sem fundament-la, como exigido pelo ECA e pela Constituio Federal. A

    defesa s pode questionar a internao provisria depois que o juiz j tiver tomado sua

    deciso (ILANUD, 2007)29. O mais comum que o Habeas corpus seja julgado quando o

    adolescente j no pode ser beneficiado.

    Assim, a justia juvenil tem seguido a tendncia do sistema de justia comum

    com alto nmero de prises cautelares, conforme o estudo do Ministrio da Justia

    (2015): o instrumento da priso cautelar tem se consolidado como regra de

    funcionamento do sistema repressivo brasileiro, dezenas de milhares de pessoas vm

    sendo detidas e mantidas presas sem que os fundamentos de suas prises sejam imediata

    e adequadamente avaliados. Processos duram anos e rus, por muitos meses, s vezes

    anos encarcerados, no raro so absolvidos, quando chegam a conhecer uma deciso de

    mrito.

    Para a Secretaria de Direitos Humanos (2011), o crescimento de adolescentes

    cumprindo medidas socioeducativas de privao ou restrio de liberdade durante as

    ltimas duas dcadas deve-se, principalmente : (i) construo de unidades

    socioeducativas, (ii) tendncia de aplicar medidas mais severas do Judicirio, mesmo

    29 ILANUD, (Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para Preveno do Delito e Tratamento do Delinquente). Quando o Estado agride a criana. Disponvel em: http://www.unicef.org/brazil. Acesso em 14. abr 2007.

  • 25

    quando no amparada no ordenamento legal30, (iii) exposio da populao adolescente a

    territrios que concentram indicadores de violncia e (iv) expanso do comrcio ilcito de

    drogas.

    Alm desses motivos, necessrio acrescentar ainda as maiores dificuldades

    enfrentadas pelo Judicirio para a aplicao das demais medidas socioeducativas

    previstas no ECA como, por exemplo, a de liberdade assistida e a de prestao de

    servios comunitrios. Isto porque para essas medidas a responsabilidade de execuo

    foi atribuda aos rgos da Poltica Nacional de Assistncia Social, demandando maior

    dilogo e articulao entre o Executivo e o Judicirio no mbito dos municpios, entes

    responsveis pela execuo da aplicao das medidas em meio aberto.

    5 Onde esto os adolescentes sentenciados privao de liberdade no Brasil

    Segundo informaes da Secretaria de Direitos Humanos, os estados com o maior

    nmero de adolescentes em medidas socioeducativas de restrio e privao de liberdade

    30 Um estudo da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia mostra que recorrente a aplicao de medidas de internao justificada por motivos no amparados no ECA (Democratizao de Informaes no Processo de Elaborao Normativa Projeto Pensando o Direito).

  • 26

    em 2012, em nmeros absolutos, eram So Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Cear. O

    Grfico 2 apresenta a distribuio dos adolescentes em cumprimento de medidas

    restritivas e privativas de liberdade em 201231 entre as regies do pas. A maior

    concentrao est no Sudeste, seguida da regio Nordeste, que, em conjunto, concentram

    mais de 75% dos adolescentes em restrio de liberdade. A regio Sul reunia, em 2012,

    11% dos adolescentes, as regies Centro-Oeste e Norte detinham 6%, respectivamente.

    Grfico 2: Distribuio das medidas de restrio e privao de liberdade aplicadas

    no Brasil por regio, 2012

    Fonte: LEVANTAMENTO SDH Elaborao: IPEA/DISOC

    Tal distribuio pode ser explicada, em parte, pela forma como a populao

    jovem est distribuda no pas32. O Grfico 3, que compara o nmero de adolescentes em

    cumprimento de medidas socioeducativas de privao de liberdade para cada 1.000

    adolescentes no pas, outra forma de comparar as regies que so mais severas em

    relao aos adolescentes em conflito com a lei. Para citar apenas as cinco unidades da

    federao com maior nmero de adolescentes privados de liberdade, destaca-se que em

    So Paulo, por exemplo, para cada 1.000 adolescentes existem trs adolescentes privados

    31 Foram utilizados dos dados de 2012 para essa anlise, pois os dados de 2013 disponibilizados no foram separados por estado e regio. 32Como colocado no item 2.1 desta nota: A regio Sudeste concentra 38,7%, seguida pela regio Nordeste, com 30,4%. Posteriormente seguem as regies Sul, com 13,3%; a Norte (10,2%) e a Centro-Oeste (7,4%).

  • 27

    de liberdade. No Acre, para cada 1.000, existem 2,6; no Esprito Santo so 2,3 por 1.000;

    no Distrito Federal, 2 por 1.000 e no Rio de Janeiro, 1,9 por 1.000.

    Grfico 3: Proporo Adolescentes privados de liberdade por cometimento de ato

    infracional para cada 1000 adolescentes (12 a 21 anos) por UF, 2012.

    Fonte: LEVANTAMENTO SDH Elaborao: IPEA/DISOC

    A Tabela 6 mostra quais foram os motivos mais recorrentes que geraram a

    aplicao das medidas de restrio e privao de liberdade em cada regio. Em todas as

    regies, mais da metade das medidas aplicada por atos referentes a roubo, furto e trfico

    de drogas, principalmente nas regies Sudeste (81%) e Centro-Oestes (64%). Norte e

    Centro-Oeste chamaram ateno por terem mais da metade dos adolescentes cumprindo

    medida em meio fechado por atos como roubo e furto, ao mesmo tempo em que possuam

    as menores porcentagens de atos relativos ao trfico de drogas.

    A regio Sul possua 20% dos seus adolescentes em medidas de privao e

    restrio de liberdade por motivo de homicdio e latrocnio, a regio com maior

    porcentagem desse delito. O que pode indicar uma preferncia de aplicao de medidas

    mais severas para as infraes mais graves. Nota-se que o Nordeste possua o maior

    nmero absoluto de adolescentes cumprindo medidas por infraes referentes a

    homicdio e latrocnio.

  • 28

    Tabela 6: Medidas Socioeducativas de privao de liberdade aplicadas segundo s

    principais motivos. Total Roubo e

    furto

    Trfico de

    drogas

    Homicdio e

    latrocnio

    Outros

    delitos

    NORTE 1267 (100%) 643 (51%) 87 (7%) 172(13%) 365 (29%)

    NORDESTE 5030 (100%) 1965 (39%) 667 (13%) 869 (17%) 1529 (31%)

    CENTRO-

    OESTE 1221 (100%) 640 (52%) 144 (12%) 181 (15%) 256 (21%)

    SUDESTE 11987 (100%) 5186 (43%) 4536 (38%) 766 (7%) 1499

    (12,5%)

    SUL 2214 (100%) 855 (39%) 447 (20%) 451 (20%) 461 (21%)

    Fonte: LEVANTAMENTO SDH Elaborao: IPEA/DISOC

    Complementando a anlise, a Tabela 7 demostra que em todas as regies, apesar

    de possurem mais da metade de adolescentes institucionalizados por atos de baixo teor

    ofensivo, a tendncia a aplicao majoritria da medida de internao em regime

    fechado. Novamente destaca-se o Sudeste, onde 71% das medidas aplicadas referem-se

    medida mais severa. Por outro lado, o Centro-Oeste era o que mais utilizava em termos

    proporcionas a internao provisria, embora a proporo seja alta em todas as regies. O

    Norte se destaca na aplicao da semiliberdade, que representava 14% das medidas.

    Tabela 7: Proporo das medidas socioeducativas aplicadas segundo a regio, 2012

    Total de medidas Semliberdade Internao provisria

    Internao

    NORTE 1267 (100%) 14% 30% 56% NORDESTE 5030 (100%) 9% 29% 62% CENTRO-OESTE

    1221 (100%) 9% 35% 56%

    SUDESTE 11987 (100%) 9% 20% 71% SUL 2214 (100%) 9% 28% 63%

    Fonte: LEVANTAMENTO SDH Elaborao: IPEA/DISOC

  • 30

    6. Como so as unidades socioeducativas de privao de liberdade?

    Os problemas do Sistema Socioeducativo so similares aos do sistema prisional:

    a seletividade racial, a massificao do encarceramento, a superlotao, assassinatos

    dentro instituio, relatos de tortura. O relatrio "Um Olhar Mais Atento s Unidades de

    Internao e de Semiliberdade para Adolescentes", publicado em 2013 pela Comisso

    de Infncia e Juventude do Conselho Nacional do Ministrio Pblico, apontava que, no

    Brasil, h superlotao nas unidades de internao de adolescentes em conflito com lei

    em 16 estados. De acordo com o relatrio, em alguns estados a superlotao era maior

    que 300%. A maior parte dos estabelecimentos no separava os internos provisrios dos

    definitivos nem os adolescentes por idade, por compleio fsica e pelo tipo de infrao

    cometida, como determina o ECA. Entre maro de 2012 e maro de 2013, registrou-se a

    fuga de 1.560 adolescentes, nmero correspondente a 8,48% do total de internos no

    pas33. Adolescentes em conflito com a lei tambm convivem com a ausncia do

    Ministrio Pblico ou do defensor pblico para ajud-los em sua defesa.

    As informaes do Levantamento Nacional do SINASE em 2012 do conta que

    nesse ano 30 adolescentes vieram a bito: Significa que a cada quatro meses foram a

    bito dez adolescentes em unidades do sistema socioeducativo, no cumprimento de uma

    medida privativa ou restritiva de liberdade (...) (SDH, Sinase, 2012:21). Entre as

    causas do bito destacaram-se: conflito interpessoal (11 adolescentes, 37% do total),

    Conflito Generalizado (nove adolescentes, 30% do total) e Suicdio (17% do total, cinco

    adolescentes).

    O Mapeamento Nacional das Unidades Socioeducativas, realizado pelo IPEA e

    Ministrio da Justia em 2002 tambm j apontava o fragrante descumprimento dos

    princpios do ECA nas unidades de execuo de medida de privao de liberdade para o

    adolescente em conflito com a lei. De acordo com as informaes constantes nesse

    Mapeamento, no que se refere ao ambiente fsico das unidades, 71% no estavam

    adequadas s necessidades da proposta pedaggica do ECA. As inadequaes variavam

    desde a inexistncia de espaos para atividades esportivas e de convivncia at as

    pssimas condies de manuteno e limpeza. Ainda preciso salientar que, entre

    aquelas unidades adequadas, algumas foram assim consideradas levando em conta mais

    os aspectos relacionados segurana da Unidade do que propriamente sua adequao

    33Conselho Nacional do Ministrio Pblico, 2013.

  • 31

    para o desenvolvimento de uma proposta socioeducativa. Muitas unidades mantinham

    caractersticas tipicamente prisionais. Outras, em que pese posse de equipamentos

    para atividades educativas como quadra de esportes, por exemplo, no utilizavam. 34

    7. Medidas Socioeducativas (MSE) em Meio Aberto: uma luz no fim do tnel

    Com a estruturao do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS), a

    implementao das medidas em meio aberto de Liberdade Assistida (LA) e de Prestao

    de Servio para a Comunidade (PSC) vm ganhando um novo impulso para a sua

    melhor estruturao, tornando cada vez mais real a possibilidade de apostar e investir na

    ressocializao dos adolescentes em conflito com a lei. A operacionalizao do servio

    de MSE por meio do SUAS representa, atualmente, o principal recurso do poder pblico

    no pas para assegurar o acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de LA e

    de PSC. A demanda por este servio ocorre a partir da aplicao da medida por parte da

    autoridade judiciria.

    A Tipificao Nacional de Servios Assistenciais35, em conformidade com o

    ECA e as demais legislaes dos direitos da criana e do adolescente, considera que

    adolescentes e jovens em cumprimento de LA e de PSC requerem acompanhamento

    especializado, individualizado, continuado e articulado com a rede. Por esse motivo, no

    mbito do SUAS, a execuo das medidas socioeducativas em meio aberto, voltadas

    para o adolescente em conflito com a lei entre 12 a 18 anos incompletos, ou jovens de

    18 a 21 anos, esto organizadas no rol dos servios da Proteo Social Especial de

    mdia complexidade e so ofertados pelos Centros de Referncia Especializado de

    Assistncia Social (CREAS) , nos territrios e municpios onde se identificar a demanda

    de sua oferta.

    A medida socioeducativa PSC prev a realizao de tarefas gratuitas de interesse

    geral, por perodo no excedente a seis meses, em uma jornada mxima de 8 horas

    semanais, sem prejuzo das atividades escolares ou profissionais, devendo ser realizada

    junto a instituies identificadas no prprio municpio (entidades sociais, programas

    comunitrios, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congneres, bem como em

    programas comunitrios ou governamentais). Ademais, a outorga de tarefas ao

    34Silva, Enid Rocha e Gueresi, Simone, 2003. 35Resoluo n109, de 11 de novembro de 2011.

  • 32

    adolescente autor de ato infracional levar em conta a sua capacidade de cumpri-la e as

    suas aptides.

    Por sua vez, a medida socioeducativa de LA tem como objetivo o

    acompanhamento, o auxlio e a orientao do adolescente para evitar que esse cometa

    novamente o ato infracional. Para a execuo da LA a autoridade judicial designar

    pessoa capacitada para acompanhar o caso, a qual poder ser recomendada por entidade

    ou programa de atendimento. O prazo mnimo da medida de seis meses, podendo a

    qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituda por outra medida, aps consulta

    ao orientador, ao Ministrio Pblico e ao defensor pblico.

    Na Proteo Social Especial (PSE) da Poltica Nacional de Assistncia Social,

    os principais servios ofertados aos adolescentes em cumprimento de medida

    socioeducativa em meio aberto so os seguintes: (i) elaborao do Plano Individual de

    Atendimento (PIA) e acompanhamento sistemtico, com frequncia mnima semanal,

    que garanta o desenvolvimento do mesmo; (ii) atendimento do adolescente (individual e

    em grupo) (iii) atendimento da famlia, em articulao com o Servio de Proteo e

    Atendimento Especializado a Famlias e Indivduos (PAEFI); (iv) acompanhamento da

    frequncia escolar do adolescente; (v) elaborao e encaminhamento de relatrios sobre

    o acompanhamento dos adolescentes ao Poder Judicirio e Ministrio Pblico; (vi)

    elaborao e encaminhamento de relatrios quantitativos ao rgo gestor sobre os

    atendimentos realizados; (vii) articulao com a rede.

    O propsito dos servios socioassistenciais para os adolescentes infratores

    destinar ateno e acompanhamento com o objetivo de contribuir para o acesso a

    direitos e para a ressignificao de valores. Desse modo, no h iseno da

    responsabilizao face ao ato infracional praticado, uma vez que as medidas

    socioeducativas so as sanes aplicadas quando a contraveno praticada por

    adolescentes. Entretanto, seu carter pedaggico busca criar condies para a

    construo/reconstruo de projetos de vida que visem ruptura com a prtica do ato

    infracional por parte de adolescentes e jovens. Os servios socioassistenciais

    contribuem para o estabelecimento da autoconfiana e da capacidade de reflexo sobre

    as possibilidades de construo de autonomias, viabilizando acessos e oportunidades

    para a ampliao do universo informacional, cultural e o desenvolvimento de

    habilidades e competncias, alm do fortalecimento da convivncia familiar e

    comunitria.

  • 33

    De acordo com informaes do Censo SUAS 201336, em 2012 o nmero de

    adolescentes em cumprimento de medidas em meio aberto de LA e de PSC

    acompanhados pelos CREAS era igual a 89.718. Desses, 50,9% estavam cumprindo LA

    e outros 49,1% cumpriam PSC. Em torno de 75% eram do sexo masculino e 11,5% do

    sexo feminino 37. Os dados do Censo SUAS para anos anteriores apontam que houve

    aumento expressivo no quantitativo de adolescentes em cumprimento de medida

    socioeducativa acompanhados pelas equipes de profissionais do CREAS entre 2010 e

    2011, passando de 67.045 para 88.022, respectivamente. Referido aumento reflete o

    maior investimento da Poltica Nacional de Assistncia Social na ampliao e

    capacitao de suas equipes para a oferta de servios de acompanhamento aos

    adolescentes em conflito com a lei.

    Tabela 8 - Total de adolescentes acompanhados no Servio de Proteo Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa (LA e PSC) - 2012

    Quantidade de casos

    Mdia por unidade

    Total de

    unidades

    Total de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no

    ano de 2012 - total 89.718 54,4

    1.649

    Total de adolescentes em cumprimento de media socioeducativa no

    ano de 2012 - masculino 67.389 40,9

    1.649

    Total de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no

    ano de 2012 - feminino 10.373 6,3

    1.649

    Total de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa

    2012 - sem informao de sexo 12.069 7,3

    1.649

    Fonte: CENSO SUAS 2013.Elaborao: IPEA-DISOC

    36As informaes divulgadas no Censo SUAS 2013 referem-se ao ano de 2012. O mesmo ocorre para os Censos SUAS 2012 e 2011, que apresentam informaes para 2011 e 2010, respectivamente. 37 Importante informar que 13,47% dos questionrios preenchidos pelos CREAS no apresentavam a informao de sexo, conforme ilustra a Tabela 8.

  • 34

    A tabela 9 abaixo apresenta o quantitativo de unidades CREAS no Brasil que

    realiza o Servio de Proteo Social aos Adolescentes em Cumprimento de Medida

    Socioeducativa de PSC e LA para os anos de 2012 e 2013. Observa-se que a proporo

    de unidades que realizam esse tipo de servio est em torno de 70%. De um ano para

    outro, 89 novos CREAS passaram a ofertar esse Servio. Vale notar que a taxa de

    crescimento no nmero de CREAS que passou a executar o Servio de Proteo Social

    aos adolescentes em conflito com a lei, entre os anos de 2012 e 2013 foi de 5,7%,

    maior, portanto, que a taxa de crescimento total de CREAS no pas para o mesmo

    perodo.

    Tabela 9: Brasil Quantidade de Unidades CREAS que Realizam o Servio de Proteo Social a Adolescentes em Cumprimento de Medidas de LA e de PSC

    Especificaes

    Quantidade de unidades que realizam o Servio de LA e de PSC

    (a)

    Total de CREAS (b)

    2012 1561 2167 2013 1650 2249

    % (a/b) 72,04 73,37 Diferena absoluta 2012-

    2013 89 82 Taxa de crescimento 2012/2013 5,70 3,78

    Fonte: MDS Censos SUAS 2012 e 2013 Elaborao: IPEA/DISOC A tabela 10 traz as aes e atividades realizadas pelos profissionais dos CREAS

    para os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de LA e PSC. Em

    primeiro lugar importante chamar ateno para a pluralidade de aes realizadas no

    apenas para os adolescentes, como tambm para suas famlias. As aes vo desde

    visitas domiciliares at o encaminhamento dos adolescentes e suas famlias para os mais

    diversos servios sociais disponveis na comunidade, tais como educao, sade,

    profissionalizao, tratamento para usurios dependentes de substancias psicoativas,

    entre outros.

    As informaes apresentadas na Tabela 10 tambm colocam em evidencia outra

    peculiaridade importante dos servios prestados aos adolescentes infratores no mbito

    dos CREAS: a individualidade do atendimento. Como se observa, a imensa maioria dos

    CREAS que responderam essa pergunta no Censo SUAS 98,5% em LA e 92,8% em

  • 35

    PSC declararam que elaboram plano individual para o adolescente e que prestam

    atendimento individual para o mesmo. Com certeza, aes dessa natureza concorrem

    para o sucesso da execuo da medida socioeducativa em meio aberto, que tem como

    objetivo maior ajudar os adolescentes na construo de um projeto de vida,

    respeitando os limites e as regras de convivncia social, buscando sempre reforar os

    laos familiares e comunitrios (MIRANDA, s.d.)

    Tabela 10 Proporo de equipamentos CREAS, segundo as aes e atividades realizadas pelos profissionais em atendimento aos adolescentes em cumprimento de

    medidas socioeducativas em meio aberto

    Fonte: MDS Censo SUAS 2012 e 2013 Elaborao: IPEA/DISOC

  • 36

    8 - Consideraes finais

    Para contribuir com o debate atual sobre a reduo da maioridade dos

    adolescentes no Brasil, essa Nota Tcnica trouxe para a discusso alguns aspectos

    relevantes que ajudam a refletir sobre a necessidade e a eficcia das propostas de

    emendas constitucionais diminuio da imputabilidade penal. Entre as questes aqui

    discutidas destacam-se:

    (i) a relao entre o ato infracional juvenil e a desigualdade social no Brasil;

    (ii) as fragilidades sociais de renda, escola e trabalho de parte significativa

    dos adolescentes brasileiros, que evidenciam o tamanho da dvida social do Estado e da

    Sociedade com meninos e meninas de 12 a 18 anos incompletos;

    (iii) as caractersticas sociais dos adolescentes em conflito com a lei no

    Brasil;

    (iv) os tipos de delitos por esses praticados;

    (v) o mito da impunidade dos jovens, que ignora a existncia de uma justia

    juvenil no pas;

    (vi) a situao das unidades socioeducativas responsveis pela execuo das

    medidas de privao de liberdade e a fragrante violao de direitos dos adolescentes

    internos nesses espaos; e

    (vii) os avanos na estruturao das medidas socioeducativas em meio aberto

    (liberdade assistida e prestao de servios para a comunidade) a partir da Poltica

    Nacional de Assistncia Social ofertadas pelos CREAS.

    As discusses sobre a reduo da maioridade penal, em geral, passam ao largo

    de suas causas e desviam o foco das questes que so discutidas nesse trabalho. A

    aplicao correta dos princpios do ECA e do SINASE no tocante execuo das

    medidas socioeducativas apenas uma das questes a serem enfrentadas com urgncia.

    Outra a necessidade de se encontrar mecanismos de trazer para a escola e para a

    qualificao de postos de trabalho decente milhares de meninos e meninas de 15 a 17,

    devolvendo a esperana de que a mobilidade social pode ser feita pelo caminho lcito da

    ampliao da escolarizao, da qualificao e, fundamentalmente, da cidadania.

    Conforme foi discutido nesse trabalho, o fenmeno contemporneo do ato infracional

    juvenil no Brasil deve-se, sobretudo, desigualdade social, ao no exerccio da

    cidadania e s dificuldades das polticas pblicas existentes alcanarem parcela

    expressiva de adolescentes que enfrentam toda sorte de dificuldades para manterem-se

    estudando e para conciliar estudo e trabalho.

  • 37

    As informaes sobre a situao de escola, trabalho e vitimizao analisadas

    evidenciaram que o caminho para combater a violncia e a criminalidade entre os

    jovens deveria ser a promoo dos direitos fundamentais, como o direito vida, e dos

    direitos sociais preconizados na Constituio e no ECA, de educao,

    profissionalizao, sade, esporte, cultura, lazer, e viver em famlia. Entretanto, o grave

    problema da situao de desproteo social em que se encontra parcela expressiva dos

    adolescentes brasileiros fica secundarizado diante da prioridade concedida pelo

    Congresso Nacional, que colocou em pauta a tramitao de uma Proposta de Emenda

    Constituio (PEC 171/1993), que prev a reduo da maioridade penal de 18 para 16

    anos.

    Neste sentido, a existncia de deficincias e barreiras de acesso dos jovens

    pobres educao e ao trabalho os dois principais mecanismos, considerados lcitos,

    de mobilidade e incluso social da nossa sociedade bem como s estruturas de

    oportunidades disponveis nos campos da sade, lazer e cultura, contribuem para o

    agravamento da sua situao de vulnerabilidade social. Sem escola, sem trabalho ou

    com insero laboral precria, os jovens ficam mais desprotegidos e, consequentemente,

    mais expostos, por exemplo, cooptao pelo crime organizado.

    Conforme se tentou mostrar ao longo desse texto, a grande maioria dos delitos

    cometidos por adolescentes so o roubo e o trfico de drogas e no atos contra a vida

    que justificariam medidas mais severas de privao de liberdade por longos perodos.

    As infraes contra o patrimnio e o trfico de drogas constituram-se nos principais

    delitos praticados pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de

    privao de liberdade no Brasil nos ltimos trs anos. Em 2011, roubo (38,12%), furto

    (5,6%) e trfico (26,56%) representaram, juntos, mais de 70% do total de delitos

    praticados pelos adolescentes detidos. Em 2012, esses atos infracionais alcanaram,

    aproximadamente 70% e, 2013, cerca de 67%. Por sua vez, os atos considerados graves,

    como homicdios (8,39%), latrocnio (1,95%), leso corporal (1,3%) e estupro (1,05%)

    alcanaram, em 2011, 11,7% do total dos delitos praticados pelos adolescentes detidos

    no Brasil. Em 2012, esses atos representaram 13,5% e, em 2013, 12,7%.

    Alm disso, a reduo da maioridade vai contra os princpios contidos na

    Constituio, no ECA e nos tratados internacionais assinados pelo Brasil. A legislao

    dos direitos da infncia