o abraço um conto por leandro diniz · no dia seguinte, mais feliz que no anterior, lauro acordou...

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O Abraço um conto por Leandro Diniz

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O Abraço um conto por Leandro Diniz

E finalmente se abraçaram. O abraço era aconchegante. Ela apoiava a cabeça entre o queixo e o peito dele, uma de suas mãos a envolvia enquanto a outra passeava nos longos cabelos dela, num carinho afetuoso. Sentiam-se unidos naquela sensação que só um sincero e longo abraço pode definir. Para entender como esse momento é importante temos que relembrar alguns fatos da vida dos dois. Esses fatos que aparentemente não tem nada a ver com o abraço em si determinaram cada uma das duas personalidades, dele e dela, e por isso mesmo, passam a ser importantes justamente para a hora em que o abraço aconteceu. Lauro conheceu Kátia em uma boate. Enquanto o som alto e rítmico tentava fazer surdos seus ouvintes, ele a viu de relance no meio do buraco que algumas cabeças em uma conjunção certa de movimentos fez, e nessa hora seu olhar em nenhum outro ponto estava que ali naquela única posição que ele poderia vê-la. Por que ele virou a cabeça naquela hora? Ninguém nunca vai poder explicar, acontece que ele a viu. Esperou para sondar a natureza dela, era extremamente atraente, parecia estar sozinha, deveria ter um ou dois anos a mais que ele, isso o desestimulava, mas inacreditavelmente quando o buraco se acertou e permitiu a sua visão, ela, por sei lá que coincidência, olhou também, como se o momento fosse aquele e aquele único somente houvesse para os dois se olharem, e foi assim que os dois trocaram olhares, rápidos, mas mútua e imediatamente desejosos. Quando teve a certeza que estava sozinha, foi lá falar com ela. Ela já meio predisposta a ouvi-lo não demorou muito para facilitar o beijo e assim, como acontece dezenas de vezes em cada boate em cada noite de cada cidade, eles ficaram juntos, ao som da música que ainda se fazia ensurdecedora em uma altura que dificultava enormemente a troca de palavras, mas foi estrategicamente pensada para favorecer a conversa ao pé do ouvido e com isso facilitar a aproximação dos corpos, que independentemente de qualquer palavra falavam por si sós. Os corpos de Lauro e Kátia falavam sozinhos, se desejavam independentemente deles, esse desejo irrefreável muito mais selou o encontro dos dois naquela noite que manteve depois. Pois como sabemos os corpos agem instintivamente enquanto o tempo age racionalmente. Ao fim da noite eles trocaram telefones e dentro em pouco estavam namorando. Para Lauro ela era uma conquista, dois anos mais velha, bonita e inteligente, mas o que se passava na cabeça dele, apesar de tudo, era o desejo de possuí-la. Gostava imensamente de passar horas ao seu lado conversando ou passeando, mas em seu íntimo sentia isso. Esse desejo masculino de posse, do corpo da parceira, essa lascívia determinante para a propagação da espécie. Naquele dia estava meio preocupado com algumas tarefas de seu emprego que estavam inacabadas, somado ao fato que seu time tinha perdido para o rival de goleada, coisa que, convenhamos, tem uma capacidade enorme de determinar humores das pessoas e até de países, estava meio ausente, a mente vagando em todos os lugares, menos no programa que fazia com Kátia. Não que estivesse infeliz, apenas estava em um daqueles momentos em que não se está focado. Infelizmente nesse mesmo dia Kátia recebera a incrível informação de que sua amiga que não encontrava há mais de três anos viria passar as próximas férias no Brasil, em sua cidade. E essa notícia foi um bálsamo restaurando todas as suas forças. Feliz como

estava saiu muito animada e falante, justamente no dia em que Lauro não ia bem. O mais incrível era que o seu time tinha perdido no domingo e já era quarta, mas com o acúmulo de tarefas inacabadas no trabalho, por simples sobrecarga humana, fez com que a lembrança que seu time tinha perdido se aliasse ao desânimo do ofício resultando naquele estado de espírito que não combinava nem um pouco com o de Kátia. Então, Kátia, empolgada contava episódios seus com sua amiga e falava da saudade, e da felicidade que não conseguia conter. Mas, sinceramente, quem consegue ficar feliz pela outra pessoa quando está desanimado? Uma força, não podemos mentir, Lauro fez, esboçou interesse e começou a ficar alegre pela alegria da namorada, mas não se sabe porque em um momento uma palavra falada por ela, que agora não pode ser mais lembrada, fez com que ele relembrasse tudo. Infelizmente esse não era o momento certo para Kátia perguntar o que houve. Lauro infeliz já com seus problemas pensou que contar aquelas coisas que lhe abatiam era um desrespeito com a felicidade da sua namorada, e em um impasse enorme disse o clássico “não é nada não” que tanto cria minhocas na cabeça alheia. Kátia por sua vez insistiu na pergunta, mas como sempre o outro lado negou com veemência. “Não é nada mesmo, acredite em mim”. Mesmo tendo passado por essa situação muitas vezes todos nós sempre ficamos encasquetados quando alguém diz algo parecido. Lógico que era alguma coisa, pensava Kátia e por sua capacidade imaginativa um pouco avançada não se conteve em casa, depois do encontro, e pensou demais, como a maioria das pessoas imaginativas acaba fazendo. E logo logo as coisas mais escabrosas passavam por sua cabeça. Lauro, nem imaginando que tinha plantado uma erva daninha no jardim florido que compartilhava com Kátia foi tranqüilo para casa e adormeceu. Quando, dois minutos depois de pegar no sono, seu celular tocou. Era Roberta. Seu pai tinha enfartado e ela sozinha desesperada não pensou direito para quem ia ligar. Discou o número de Lauro, mas quando viu que era o seu ex-namorado, desligou. Não queria falar com ele, havia um ano que não se falavam. Como o celular de Lauro ficara no bolso de sua calça jeans, ele não ouviu o único toque da chamada. Na manhã seguinte Lauro acordou como de costume atrasado pelos constantes “mais cinco minutos” na cama. Diariamente tinha problemas para acordar, principalmente nos últimos tempos que levantava às seis. Acordar com o céu escuro era demais. Mas tinha melhorado seu desempenho. Catou seu celular no bolso de sua calça, colocou no bolso da calça atual, pegou suas coisas e foi trabalhar. Inacreditavelmente o projeto em que vinha trabalhando teve um contratempo da área de marketing e disseram que eles tinham mais duas semanas para terminá-lo. Coisa que deixou Lauro muito mais aliviado. Junto com seu amigo Diogo relaxou e conversou durante o almoço, um dos mais tranqüilos dos últimos dias. Isso revigorou suas forças. Diogo, sem saber que contribuía para a primeira briga do casal, chamou Lauro para ir ao estádio ver o jogo nessa quinta-feira. Lauro entusiasmado como estava aceitou. Ligou para Kátia, que atendeu meio ressabiada, e dessa vez ao se mostrar animado contrastou com o tom seco de Kátia. Perguntou então “que que houve?” ela por sua vez disse o fatídico “nada não”. E assim o ciclo se completou. Por um capricho do destino o

“nada não” que todos falamos e a todos cria tensão mental completara seu ciclo de vida, dando a vez para o embrião da briga. A primeira. Ao dizer que ia ao jogo à noite com o Diogo, Lauro sem saber tinha agravado um pouco a impaciência de Kátia que tinha resolvido pelos dois que hoje seria a noite que iria tirar a limpo o porquê do desanimo de Lauro na noite anterior. Tinha ligado para duas melhores amigas e todas elas concordaram com o plano. Sair para jantar e conversar, era o que iam fazer. Até que Lauro quebrasse ao meio o futuro e o redesenhasse a seu modo. Como o jogo era tarde, à noite, o jantar fora comprometido e como era quinta-feira na sexta havia trabalho. Então não se veriam até lá, já que praticamente Lauro sairia do trabalho direto para o jogo, tentar conseguir os ingressos para entrar. Como era um jogo de meio de semana contra um time pouco expressivo conseguiu facilmente os ingressos. Ficou alegre com isso e junto com seu amigo entrou no estádio, compraram cervejas e brindaram cantando as músicas que a torcida em uníssono vociferava. No dia seguinte, mais feliz que no anterior, Lauro acordou na hora e levantou entusiasmado. A vitória do time por dois a zero o estimulava, havia uma penca de pessoas que torciam pelo time adversário a caçoar em seu emprego. Pensava com carinho em Kátia e com pesar por não tê-la visto no dia anterior planejou sair com ela, só esperaria a hora do almoço para ligar e convidá-la a sair. Como acordava muito cedo não tentou contatá-la e assim que chegou em seu emprego entrou em uma reunião importante, que acontecia toda sexta feira de duas em duas semanas para avaliação interna e tomada de novas diretrizes dos projetos que estavam desenvolvendo. Como a reunião se estendeu por muito tempo as três ligações que recebeu não foram atendidas. Lauro saiu da sala de reuniões e viu seu celular. Kátia nunca ligava em horário de trabalho, pensou que algo de sério tivesse acontecido. Ficou um pouco preocupado, mas ficava estranhamente sem graça de ligar para ela durante o horário do expediente. Nunca viu ninguém fazer ligações pessoais dali de dentro e iria seguir a risca essa norma não falada, mas praticada por todos. Recebeu um sms um pouco depois. Faltava meia hora para o almoço. O texto dizia “Amor vc stava ausente na quarta, foi no jogo ontem e hoje n me atendeu, o q houve?” e isso o abalou completamente. Até então não pensara nenhum momento que isso pudesse se passar pela cabeça de Kátia. Sentiu um nó na garganta e um frio no estomago. Xingou silenciosamente suas atitudes e percebeu o quanto o seu “nada não” foi longe.

*** É indescritível como duas pessoas podem se amar, odiar e se amar novamente mudando de humor em menos de alguns minutos. Sentado no bar digo a André: _ Olha aquele casal na mesa ali no canto.

Ele se vira sem cerimônia para olhar o acontecimento. Digamos que os dois estão em um impasse. Não faço a mínima idéia do que se passa, mas realmente é um impasse. Eles discutem e ninguém discute, incisivamente, se não for por um impasse. Ele meio cabisbaixo ouve o falatório da mulher. Mulheres sempre têm um falatório, elas guardam tudo para si e começam a descarregar de uma vez, na primeira oportunidade, como uma vingança de nível profundo. _ Não sei sobre o que conversam – disse André para mim. Aceno para o garçom e peço dois chopes, nossos copos jaziam vazios. Olhando para aquele casal, assim, quase vociferando um para o outro, tive a idéia. Fantástica, inominável. _ Cara, vou escrever um conto, esse casal me deu uma idéia excepcional. Um abraço, sim um abraço. _ Mas como vai ser isso? _ Tudo parte do abraço de paz, depois da guerra. Relacionamentos hoje em dia são guerras, já percebeu? _ Esqueceu que terminei o meu tem dois meses? Chegaram os chopes e os dois copos voltaram a viver, com aquelas pequenas bolhinhas saltitantes no meio do líquido amarelado. O colarinho dava vida ao copo clássico. Tudo começou na mesa, eles brigando. André na minha frente começou a ficar angustiado, não conseguia vê-los brigando, eles formavam um casal muito bonito, aqueles tipos de pessoas que se completam, fazem todo o sentido juntas. André repentinamente se levantou, foi até seu encontro. Eu gelei, é praticamente uma regra que não se mete a colher em briga... Bem ele estava lá com uma colherona, daquelas de pegar arroz aos domingos em almoços de família. E a meteu na briga, quase senti o rasgão. Não se contentou em somente meter a colher, estava já tirando o garfo e a faca também. De onde eu estava não podia saber o que se passava realmente, mas não tinha planejado isso, André, personagem do meu conto, se rebelando contra a narrativa assim tão despojadamente e metendo a colher onde não era chamado. Nunca teria previsto isso. Realmente foi algo fora do comum. Os demais freqüentadores também ficaram estupefatos.

***

Kátia tinha ido aquela boate naquele dia, pois suas amigas praticamente a tinham carregado até lá. Ela não gostava muito de boates, o som era muito estridente, mas estava se divertindo, tinha bebido dois drinques e as músicas da rádio que o Dj tocava a agradavam. Na rodinha em que estava, por mais que fossem suas amigas, não estava agüentando muito mais o falatório feminino. Eram assuntos muito prosaicos e chatos. E percebeu o quão somos momentâneos, um dia atrás estava no mesmo nível de falatório e não se importava nem um pouco, hoje aquilo lhe causava arrepios. O que levou Kátia a não ir à boate não era de fato algum o de não gosta do tipo de ambiente. Ela estava desanimada por que não passou em um concurso e teria que estudar mais. Já estava na idade de se arrumar, mas pelo visto teria que adiar seus planos por mais algum tempo. Mas ao mesmo tempo em que pesava saber disso sentia aliviada de ter conhecimento que não passara. A tensão da espera do resultado era enorme. Assim pode relaxar e curtir mesmo sabendo que não fora aprovada. Estava totalmente distraída e nada de especial a fez girar o olhar na direção que aparentemente não tinha nada. Mas assim que girou sua cabeça aquele caminho surgiu entre o monte de cabelos e sentiu um calafrio com o olhar que se direcionava para ela. Foram alguns segundos rápidos, mas intensos. Mas assim que as cabeças restabeleceram suas posições formando uma barreira o olhar sumiu. Visivelmente se movimentou para ver quem era o dono do par de olhos que a fulminou, e mais tarde quanto os viu vindo em sua direção sabia que não iria agüentar muito tempo sem beijar a boca que os acompanhava. Mesmo sem poder ouvir muita coisa da conversa, já lhe agradava unicamente por ser masculina, tirando-a daquele mundo de blá blá blás feminino. Quando a mão do rapaz tocou na sua, se derreteu e foi um instante para que se inclinasse a frente e selasse o beijo. Aquele beijo e aquele homem significavam um total relaxamento e seu corpo falava por si só. Fazia um tempo que não sentia isso, aliás um bom tempo. E como sabemos que depois de terminar um relacionamento destrutivo ficamos mais propensos a negar os próximos, e esse foi um sentimento que a pegou desprevenida. Como um peixe que nada tranquilamente e de repente ao comer uma simples refeição é içado para fora d’água e morre sem saber o que aconteceu. Pelo fim do antigo relacionamento ficara um tanto abatida, mas nada melhor que o tempo para curar esses rasgões que ferem nossas almas. O tempo fez parte de seu trabalho, mas o ex namorado lutou contra. Ligou várias vezes, saíram para conversar e esse constante contato não fazia bem a nenhum dos dois, mas como duas fraquezas que não conseguem sair de si mesmas eles continuaram um tempo com essa dança do sofrimento. No dia do beijo fazia exatamente três semanas que não falava com o “estorvo”. Era assim que se referia a ele às suas amigas. Quando terminaram, até hoje não concordam entre si em quem terminou ou causou o término, ela não sentia nada de ruim por ele. Era simplesmente aquele sentimento claro de que não adiantava mais, a vida a dois terminara. Mas com o passar do tempo foi ganhando antipatia por suas atitudes, essas conversas eram mais nervosas, ataques e defesas. Cada vez mais queria vê-lo menos.

Infeliz a princípio ela passou os dias não muito entusiasmada e os momento que passava com Lauro a tranqüilizavam. Mas sentia que ele não sentia que ela estava realmente gostando de sair com ele, coisa que era errada, mas não conseguia se livrar do peso do ex que parecia mais um fardo a carregar. Odiava quando percebia que durante um jantar com Lauro começava a falar do outro, ou em um momento de carinho ficava feliz e dizia que o outro nunca tinha feito isso ou aquilo. Essa constante intromissão dele no presente era penoso. Até que por um que do destino ele parara de ligar, havia três semanas e passaram como revigorantes. Ao fim da terceira ela ficara com Lauro, e de repente ela se lembrou dele. Não tinha a mínima idéia do por que. Era um pensamento muito menos intenso, mas suficiente para levantar seu nome algumas vezes em conversas com Lauro, odiava tais recaídas. Foi então que recebeu a ligação mais feliz dos últimos meses. Raquel sua amiga de muito tempo, que estava na França, ligou dizendo que dali a quatro meses estava vindo para o Brasil passar seis meses de férias. Um tipo de férias. Ela arrumou um programa de especialização em sua área, e felizmente, só havia aqui no Brasil. Assim passaria seis meses em sua terra natal e ficaria bem perto de Kátia. Essa felicidade era transbordante e como todas as felicidades transbordantes, assim como todo sofrimento profundo, um sentimento extremamente único e pessoal. Mas quando ficamos transbordantes de felicidade esquecemos essa verdade, esse fato e queremos compartilhar com todo mundo nossa incrível felicidade. Foi assim que Kátia saiu com Lauro, que nesse exato dia estava meio mal. Lógico que ela percebera. Eles saíram várias vezes e enquanto era ela que andava meio desanimada ele a colocava para cima. Seu medo era que ele não quisesse ficar ao lado de alguém sempre desanimada, logo ela que era uma pessoa extremamente descontraída. Mas ninguém escolhe os momentos por que passa e assim ela feliz duplamente saiu com Lauro. Feliz pela amiga e feliz por si mesma que conseguia, pelo menos naquele dia, superar seu desanimo e finalmente se mostrar como queria para ele. Como que duas partes de uma mesma moeda Lauro e Kátia nesse dia revezaram de humor. Kátia falava animada, descontraída, sorridente, enquanto Lauro se esforçava para parecer animado, e seu esforço para se animar passou exatamente como isso, um esforço. Ao perceber isso Kátia gelou, percebeu que algo estava diferente. Mas por essa incrível distância que temos dos outros não percebeu que não havia nada de mais, nada com ela ou com seu relacionamento. E impensadamente, sempre é impensado, perguntou a ele: “o que houve?”. O que foi percebido dois segundos depois de perguntado como algo que não deveria ter sido verbalizado. Algo de uma monstruosidade profunda. E assim ficou suspensa aquela tensão, que por sua vez, Lauro, não soube pescar com devida perspicácia e respondeu “não é nada não”. E não sabia o que tinha feito. Devemos culpar alguém? Acreditamos que sim, eu digo que não, nem Lauro nem Kátia tinham a noção do que fazer com suas devidas partes nessa hora e cada um se virou como pode, insuficientemente lógico, mas ninguém podia ter feito nada diferente do que

fez. Depois se têm aquela ilusão de que poderia não ter perguntado, ou respondido, isso ou aquilo, mas pura ilusão. Passou o dia todo meio no automático, com aquele germe de preocupação em sua mente. Todo o peso de seu antigo relacionamento veio se manifestar em seus ombros e um cansaço, uma vontade de desistir de Lauro se abateu profundamente por alguns segundos. Coisa que foi devidamente afastada as pressas pelo bom senso que prevalecia em Kátia. Durante o dia teve toda essa impressão que podia ser injusta em achar uma coisa que não correspondia à realidade. E assim decidiu que iria sair com Lauro hoje para conversar, sobre ontem, e tirar a limpo o que tudo estava acontecendo, mesmo que o tudo significasse nada. Durante o almoço ligou para duas amigas e perguntou o que deveria fazer. E isso era o melhor a fazer. Ela iria ligar para ele assim que chegasse em casa do trabalho. O dia se passou e à tardinha recebeu uma ligação de Lauro, antes que pudesse chegar em casa, isso a desanimou. Certamente não queria falar com ele agora. Não que não fosse atender o telefone, há coisas que fazemos sem realmente querer e às vezes fazemos muito bem, daí, muitas das vezes, essa falta de contato com o outro. Para o outro a coisa que nós fazemos é perfeitamente normal enquanto para nós é um estorvo e um peso, mas fazemos. Atitude essa que Kátia não teve ao atender ao telefone. Não percebeu de primeira que foi meio grossa ao atender Lauro que por sua vez percebeu claramente o tom para baixo em que Kátia falou do outro lado e perguntou automaticamente “Que que houve?”. E por sua vez não pensou e soltou “nada não”. Consolidando de vez o embrião. Depois da conversa, Lauro foi para o jogo de futebol, e ela, arrasada estava comprimida em seu próprio eu. Não sabia o que fazer. Seus planos para essa noite foram estragados por um maldito jogo de futebol. Não que eles realmente tivessem algo sério. Mas se davam muito bem, gostava um do outro, e era um momento ótimo para ela, e para ele também. Kátia lamentava esse fato de modo incisivo. Desligou o telefone e ligou imediatamente para uma das amigas. Disse claramente que Lauro a estava evitando e que percebera na noite anterior sua hesitação e distanciamento. Que pela primeira vez Lauro se encontrara com ela sem estar presente. Logicamente estava certa quanto ao fato, mas totalmente errada sobre as causas. Humanos somos todos e sabemos que temos aqueles dias ruins em que nada nos anima e uma boa cama depois de comer e tomar um banho é tudo que precisamos para levantar no dia seguinte renovados. E era o dia, esse exato dia, de Lauro. Que por dizer o nada não influenciado pela felicidade de Kátia sobre a amiga que vinha para o Brasil, começou todo o ciclo da briga. Sua amiga conseguiu, e a duras penas, convencê-la que não era assim que tudo funciona e que temos dias ruins. São nesses momentos que conseguimos dizer para os outros tudo que deveríamos fazer nós mesmos quando as situações se passam conosco. E que ela

deveria dar um desconto, sair para conversar e esperar para ver o que era, provavelmente não era nada demais. Mas Kátia, inevitavelmente, em sua ingenuidade ficara ressabiada. E, talvez, aqui a personagem se esconde um pouco de mim, ela tenha até ansiado por uma outra razão mais obscura, mais profunda, por um simples desejo de uma vida fora do comum. E assim sua imaginação a levou, muito dentro do comum, a imaginar que talvez ele tivesse outra. Não no fato concreto de estar saindo com outra menina, mas talvez estivesse repensando seu relacionamento, desejando algo a mais, tivesse recebido uma proposta de uma sedutora à toa. A imaginação, nesses casos, não tem limite como sabemos e por demais que não queiramos ela vagueia por si mesma pelos caminhos mais obscuros das hipóteses mais improváveis. E por um desses caminhos que a imaginação de Kátia a levava nessa hora. Kátia nunca ligava para Lauro enquanto estava em horário de trabalho, mas nessa sexta, em uma demonstração precipitada de saudade ela ligou. Pensava... se falasse que sentia muita saudade, talvez, pudesse trazê-lo um pouco mais para perto de si e animá-lo. Não sabendo que Lauro não ousava falar no telefone durante o expediente ligou insistentemente três vezes até que após o ímpeto percebeu que estava sendo totalmente inconveniente. Saiu para tomar um café, uma pausa de quinze minutos apenas, e quando voltou não se conteve, achava que era dominada por algo a mais do que ela, que sua essência a obrigava a fazer certas coisas. E fez. Mandou o sms para Lauro, e sem saber, criara um distúrbio profundo nele, que não tinha a menor idéia do que se passava. E mesmo tendo enviado a mensagem continuava angustiada.

*** Quem já viu qualquer comédia romântica sabe do que se trata, um casal que é predestinado a estar junto no fim, passa por inúmeras intempéries durante todo o filme e nos minutos finais conseguem se acertar, inúmeras vezes não pelo bom senso, mas somente pela conveniência do roteiro. Muito parecido com novela das oito. Aquela em que o autor enrola durante oito meses uma “trama” e em menos de uma semana resolve todos os pepinos, incongruências e disputas da historia. Assim é com total desconfiança que fico quanto começo ver algum desses filmes, e é com muito mais desconfiança que eu vejo as novelas. Mas o que isso tudo tem a ver com Lauro, Kátia e André? São personagens, de um conto, em que no fim tudo vai se ajeitar, e me espanta o leitor ainda se surpreender com tudo isso, já no começo da coisa toda, lá na primeira frase eles se abraçam. Resta saber como tudo vai acabar, e aí que classificamos as boas comédias românticas e as ruins, em como tudo acontece. Preste bem atenção, em como tudo acontece. Esse é o segredo.

Quando Sarah, em Fim de Caso, renuncia a ficar com Maurice, quando pede suplicante por um milagre, ela sabe que está repartindo-se em dois, pois realmente acredita no que pede, um milagre?, e sabe que se for atendida vai cumprir o que prometeu. Ajoelhada em frente da cama, da casa bombardeada, com suas roupas íntimas, levemente ensurdecida com o estrondo da bomba que acabara de explodir, chorava em uma angústia tremenda e assim que renunciou ao seu egoísmo, pediu a quem quer que fosse que a ouvisse, mantivesse o Senhor Bendrix, seu ciumento amante, vivo. Que poder é esse de devolver a vida a alguém? E quando viu Maurice chamando pelo seu nome, olhou incrédula para seu corpo vivo, despedaçou-se. Sabia que ele estava morto, tinha visto há poucos instantes. Agora ele vivia em sua frente e tinha que cumprir sua promessa. Mesmo que vivesse triste até o fim de seus dias. Assim Graham Greene entende perfeitamente que seus personagens, por mais que queria que fiquem juntos, têm uma lógica própria, eles vivem, praticamente sozinhos e não me espantaria muito se quando Maurice tivesse seus ataques de ciúmes o fizesse fora do âmbito do escritor, como André se levantou e foi meter a colher na briga do casal, Maurice se descontrolava em rompantes de ciúmes. Essa vida própria dos personagens é que dá um sabor a mais às tramas. Geralmente os dramas são mais profundos que as comédias românticas porque os personagens vivem, independentemente do autor. E assim como em uma comédia romântica os protagonistas ficam bem, quase sempre juntos, em dramas isso não pode ser dito. Assim é a divisão das bilheterias, comédias românticas são para jovens, principalmente meninas, e dramas são para adultos, geralmente casais. Adolescentes ainda tem muito a que se desiludir, e por isso erigem seus pensamentos nas fantasias do amor idealizado, do casal predestinado a ficar junto durante toda a vida. Casais, que já se relacionam há algum tempo, sabem das complicações, das dificuldades, da nossa condição humana e por isso, mesmo que recorra às comédias românticas... não passa de uma diversão pueril que não tem muito paralelo na realidade, deixando muitas vezes as portas abertas aos dramas que os tocam mais profundamente, considerando que nos ajudam a viver melhor.

*** Estava na hora do almoço e Lauro ficou contente porque poderia ligar para Kátia. Desceu do prédio, o elevador comumente abarrotado funcionava em sua normalidade. Ganhou a rua e sentiu o sol bater em seu rosto. Pegou o celular e discou o número de Kátia. Ela estava sentada com uma amiga do trabalho conversando frivolidades, aquelas normais do dia a dia, nada sério, quando seu celular tocou. Ela em um rompante pegou

o aparelho, viu no visor o nome de Lauro. Nessa hora lembrou das três ligações e do sms não respondido, ficou com uma raiva profunda dele e resolveu em uma atitude totalmente infantil, mas corriqueira, não atendê-lo de primeira. Deixou tocar e tocar e tocar. Naquele momento um risco gélido perpassou sua coluna, quando viu a mensagem na tela do celular. A mensagem deu alguns segundos para quem quer que fosse tentar atender a chamada, mas ela foi inábil e o celular morreu. Sim, toda essa correria a fez esquecer de um simples hábito que acompanha cada ser humano atualmente. Carregar a bateria do seu celular. Lauro olhou para o sinal de término de chamada, ouviu rapidamente a mensagem da caixa postal. Sentiu o mesmo frio que percorreu a coluna de Kátia, mas de modo diferente. Dela foi algo perto do desespero, da falta de idéias. Dele foi algo como um medo de perda. De repente ficou sem rumo, perdeu a fome e tudo que queria ela falar com ela. Kátia estava realmente desesperada, mulheres ficam desesperadas com facilidade, e quase matou a amiga por não ter trazido o celular para o almoço. Cida era assim. Meio liberta dessa corrente digital. Usava bem o computador, mas com uma utilidade tremenda. Celular era dispensável, emails, sites de relacionamentos... passavam por ela como despercebidos, e não fazia falta realmente. E por isso quase foi estrangulada. Mentalmente Kátia a esbofeteou, mas na realidade só ficou bem triste. Lauro tentou mais algumas vezes e como só caía na caixa postal ele se dirigiu lentamente para um restaurante perto de onde estava. Era um aconchegante estabelecimento, bem reservado. Já conhecia Marcus, o gerente e sempre era tratado de forma cordial. Sentou-se e pediu o prato do dia, almoço executivo, sempre bom, gostoso e mais em conta. Bebericava o refrigerante com limão e gelo quando tocou seu celular. Um entusiasmo se inflamou por dentro e atabalhoadamente retirou o aparelhinho do bolso da calça. Era um número local, chamada a cobrar. Atendeu. Mensagem de chamada a cobrar, a voz da mulher que dizia os pormenores da qualidade da ligação era enervante. _ Alô? _ Lauro? _ Amor! Nossa que bom! Tentei falar com você mas não deu – se perdia em explicações que nada tinham a ver com o que queria realmente falar. _ É meu celular morreu, Cida não trouxe o dela para o almoço, tentei encontrar um orelhão, mas esse foi o primeiro que estava funcionando. Demorou um pouco, mas consegui. _ Kátia, minha linda, quanta saudade! Olha não te ignorei não, não seja boba de pensar assim, estou morrendo de saudades, vamos sair hoje? Um barzinho?

_ Ah! Ótimo! Assim que sair do trabalho eu te ligo, passo pra te pegar e vamos para algum lugar. _ Ok! Te amo meu amor! _ Oh! Que lindo, eu também te amo. E assim combinou-se de saírem juntos aquela noite. Lauro olhou para Ferraz que trazia seu almoço, agora com fome renovada iria devorar o prato todo. Pensava em como é bom estar bem com a namorada. Ficou extremamente aliviado e degustou seu almoço com total vontade. Kátia passou no salão e marcou mão e pé para mais tarde, daria um jeito de sair mais cedo do trabalho, queria ficar bonita para seu amor.

*** O ser humano é muitas vezes engraçado, outras trágico. E a fina linha que separa as duas correntes é a distância. Se estamos distantes fisicamente da tragédia ela logo vira cômica. E quanto mais cômica é nossa situação atual e mais presente estamos dentro dela, mais trágico isso tudo parece, como se fosse um peso a ser carregado, e o riso alheio, essa leveza com que os outros vêem tudo, pesa ainda mais. Era um dia ensolarado e Lauro foi para o trabalho como qualquer outro dia comum da semana. O clima estava leve e ele acordara de bom humor. Enfrentou o ônibus do dia com tranqüilidade, sentou-se e leu um pouco do livro que estava em sua mochila. Onde pegava o ônibus sempre podia escolher onde se sentar. Coisa que era negada aos passageiros que subiam já dois pontos depois. No máximo o primeiro que subia poderia sentar no único lugar que vagava, o resto esperaria e se espremeria em pé. Teve um dia normal de trabalho, até o meio dia. Perto das onze o prédio ficou sem água, por uma obra emergencial da estação da concessionária que explorava os serviços de distribuição do liquido pela cidade. Dali até o fim do dia o fornecimento de água estaria suspenso, coisa que muito animou Lauro, já que no prédio em que trabalhava o ar condicionado era hidráulico e sem o ar funcionando, o andar com mais de duzentas pessoas rapidamente se tornava impraticável. O calor assolava todos de uma maneira direta. E como não havia água os bebedouros ficavam desativados, e a higiene após ir ao toalete era impossível. Em menos de meia hora o prédio ficava um forno e o suor não combinava nunca com papéis, computadores e análises. O pessoal todo era liberado mais cedo, e sair na hora do almoço era uma felicidade extrema. Desceu do elevador com um sorriso animado e falante, trocou frivolidades, algo sobre futebol, com o segurança e um dos porteiros e tomou a rua. A baforada que geralmente era quente, parecia normal hoje, as temperaturas quase se igualavam, interna e externamente. Apensar do edifício ser de vidro revestido com filmes refletores o calor se manifestava pelo abafamento. Pegou um ônibus que naquela hora ia prazerosamente vazio, pagou a passagem e pegou-se a ler no ônibus, um hábito. Passeava pelas linhas tortas da comédia escancarada de Woody Allen, o homem discutia com a morte para

que ela no o levasse. Cômico. O ônibus chegou a seu ponto, fez o sinal interno e saltou. Finalmente ia chegar em casa e almoçar uma comida caseira. Quando Lauro entrou em casa o clima estava pesado. Sentiu que algo aconteceu e não fora nada leve. Após os olhos lacrimejantes de sua mãe e sua avó, percebeu que o choro vinha da cozinha. “Que houve?” perguntou baixo para a mãe. “O irmão de Rogéria..., não está mais entre nós”. Rogéria era a empregada que trabalhava na casa há mais de vinte anos, quase durante sua vida inteira a tinha visto por ali. Limpando, passando, cozinhando, etc. Agora diante desse terrível acontecimento ele ouvira sua mãe tentando amenizar a situação, e ao ouvir a expressão “não está mais entre nós” sentiu uma enorme vontade de rir. A mãe por si falaria “morreu”, mas com medo de ser muito dura e seca, caso Rogéria ouvisse, tentou amenizar a frase, mas ela resolveu amenizá-la quando já a tinha começado. Então no meio da frase teve que recuperar da memória uma expressão, qualquer uma. Saiu automaticamente “não está mais entre nós”. Lauro não riu da expressão em si, ele sabia o que ela significava, nem tampouco riu de seu significado, que ele morrera, nem tampouco da falta de familiaridade com que foi pronunciada por sua mãe. Mas justamente porque o irmão de Rogéria nunca esteve entre eles. E isso, aliado a forma com que ela disse o que disse, causou uma vontade alucinante de rir e gargalhar. Nessa hora Rogéria chegou para servir a sobremesa e tudo que conseguiu falar para ela, após engolir o próprio riso de forma automática muito mais em respeito às suas lágrimas foi um modesto “que ruim”. E isso sim foi engraçado.

*** O encontro estava perfeito. Descontraído como sempre foi, eles conversavam de forma espontânea e leve. Lauro pensava que finalmente tudo ia se acertando e depois de uns dias de desentendimentos a coisa voltava para os trilhos. Tinha realmente visto que quando seu “nada não” fora complementado pelo dela em retorno a possibilidade de um fosso se abrir entre eles era grande. Já tinha visto em relacionamentos de amigos essa brutal separação por causa de uma única coisinha que veio em hora errada. O fosso se dá sempre que duas pessoas parecem esconder da outra alguma coisa e não importa o que seja, não importa que não seja nada, mas aquele incomodo vai ficar ali ruminando para sempre. E a confiança dos dois vai se dissolvendo. A cada coisa mal entendida, cada desconfiança, cada pedacinho minúsculo de inquietação o fosso vai se aprofundando. Mas, temos que ressaltar que o fosso não abre de primeira por cima e caem dentro dele, não é bem pior. O fosso se mantém fechado, mas como uma camada de gelo em um lago, ele aparentemente diz que está sólido, tudo resistente. Enquanto que por baixo o buraco vai aumentando cada vez mais e o sentimento de vazio e afastamento causa o desgasta necessário para uma hora o chão romper, com isso, quando o rompimento se dava, então tudo terminava e aquela separação perduraria para sempre. _ Você esta me ouvindo? – perguntou Kátia que percebeu o devaneio de Lauro e a expressão de medo em seu rosto. _ Oh minha linda desculpe, estava distraído. – foi sincero com ela.

_ Em que essa cachola tava pensando? _ Sinceramente? Tenho medo de te perder, de criarmos uma distancia, intransponível depois. _ E porque criaríamos essa distancia? – a voz dela já se fazia temerosa e como sabemos a mente feminina vai às possibilidades imaginativas muito mais frequentemente que a do homem. _ Por nada, esse é o problema. Por nada. Nessa hora o garçom chegou com dois chopes e a porção de aipim frito. Depositou-a no centro da mesa acompanhada de dois garfos, molho, guardanapos e o saleiro. O saleiro sempre fica com aquele acúmulo úmido de sal, que impedia a sua queda perfeita. Mesmo com arroz o sal tinha problemas, o problema era na boca frisada do saleiro na qual incrustava as pedras do pó. _ Amor tenho que ir ao banheiro, são dois minutos. – Lauro levanta e se dirige ao banheiro dentro do bar, já que eles sentavam do lado de fora, mais arejado. É nessas horas que o trágico vira cômico e vice versa. Kátia muito sem ter o que fazer enquanto Lauro ia ao banheiro, não querendo comer antes que ele chegasse, viu o celular do namorado em cima da mesa. Pegou-o com total desinteresse e ficou passeando pelas fotos já tiradas que deixava ali como recordação, já que ele não entendia muito de tecnologias e não sabia como passar as fotos para um computador. E vejamos que coincidência, sei que nesse ponto como autor eu sou um tanto mau por determinar assim o destino dos dois, mas como disse esse acontecimento já existia mesmo antes de começar a escrevê-lo, quando repentinamente no breve momento de três minutos em que Lauro gastou no banheiro e que Kátia estava brincando com o celular na mão este resolve tocar. Kátia leva um breve susto e ri se si mesma, espantada à toa. E vê que quem chama é seu amigo Diogo, aquele que o levou para o jogo e futebol que a deixou meio ressabiada pois tinha marcado de sair com Lauro, e por uma fração de segundos não quis atendê-lo, mas logo depois sentiu vergonha de si mesma por um sentimento tão infantil e levou o dedo ao botão que receberia a chamada, sem saber que aquele sentimento bobo e infantil era exatamente o sentimento certo que iria evitar todo o estresse que se passaria, digamos inutilmente, entre os dois já que atender o celular abriria o caminho para todo o desentendimento. “Alô?”. Era realmente Diogo, que ligava para avisar a Lauro que no sábado teria um encontro do pessoal do trabalho. Solícito falou alegremente com ela e disse que teria que desligar, pois estava dirigindo e não queria ficar falando celular juntamente com a atenção na estrada, que estava indo para não sei aonde e que voltaria amanha a tempo do encontro, que ela seria muito bem vinda na reunião e seria no bar tal. Sem saber que não era para ela que a voz se dirigia se virou na cadeira, uma voz estridente gritava “Kátia” uma três vezes bem alto. E nesse momento viu que a Kátia que respondia a voz a deixava como que solta, virada inutilmente. Mas essa distração

foi exatamente pertinente para o que viria a acontecer. Ela por um descuido não apertou o botão de finalizar chamada, e quando não fazia isso e a chamada era terminada pelo outro lado o celular de Lauro caía automaticamente na listagem de chamadas recebidas. Qual foi a surpresa de Kátia ao perceber que o nome da ex-namorada de Lauro figurava entre as ultimas dez chamadas, e em um dia que ele não estava com ela na hora mostrada no visor. Repentinamente todo o “nada não” voltou com força total em sua mente, que em menos de meio segundo se tornou uma nuvem tempestuosa cheia de raios que cruzavam o céu escuro e se transformavam nas mais idiotas e perigosas suposições. Será que ele foi mesmo ao jogo? Porque não me disse dessa ligação? Que ela queria com ele essa hora da noite? E está aí, se o leitor pode perceber a ironia da situação. Ele realmente nada sabia dessa ligação, quando ela o perguntar que ligação é aquela, e ele lhe responder sinceramente “não sei” ela vai ficar muito mais furiosa com ele e se digamos que o fosso não existia, passou a ter um considerável espaço embaixo da camada sólida. Ele voltava contente do banheiro. Estava aliviado dos chopes anteriores e não fazia a mínima idéia de tudo o que tinha acontecido em três minutos decorridos de sua ausência. “Que ligação é essa da sua ex no seu telefone?” praticamente como um soco essas palavras o pegaram totalmente desprevenido, até porque se estivesse prevenido estaria do mesmo jeito que está agora. Estático. Ele pensava profundamente e não encontrava em sua gama de memórias qualquer referencia a uma ligação da ex-namorada recentemente, já não falava com ela tinha bastante tempo. Inocentemente ele estava prestes a pronunciar exatamente aquela única resposta que não poderia de jeito algum dizer naquele momento para ela... “não sei que chamada é essa”.

*** Há uma diferença entre terror e horror. E explicava para André. Tudo aconteceu dessa forma; Ele se levantou da nossa e foi até a outra mesa. Quando lá chegou a discussão acalorada se mantinha por mais de dez minutos, o aipim frito esfriava e os chopes já não tinham colarinho algum, inclusive ele acha que viu algo boiando em um dos chopes, não se lembra agora em qual. “Ei, ei, que é isso meus caros, vamos com calma, o bar inteiro está ouvindo”, essa primeira investida não foi percebida com importância e ela de um lado se mantinha irredutível com o celular na mão enquanto ele amedrontado do outro lado não sabia o que fazer, seus olhos lacrimejavam enquanto ela vociferava contra ele. André tentou mais uma vez calmamente, como era de seu feitio apaziguador, “olha que casal mais lindo vocês formam, não podem aleatoriamente se desentender dessa maneira, que houve?” e para sua surpresa ele ouviu: _ Ouve? O que houve? Houve que esse filho da puta aqui fala com a ex-namorada enquanto não está comigo, na calada da noite. Houve que a gente confia no canalha e ele nos faz de palhaça. Quando pergunta pra o coitadinho o que houve para ele estar tão triste do meu lado, ele responde “nada não” e é um “nada não” muito canalha se ele fica se falando com a ex. Que espécie de idiota você pensa que eu sou seu cafajeste? E você? Quem é você? Mais um corno que vem socorrer o amigo quando está em necessidade?

É isso? Tem um clã agora? Vocês ficam se defendendo? Quero mais é que vocês morram todos. André sem palavras gelou quando ela levantou. Eu vi que ele congelou-se todo em um tom amarelado. Ela jogou o celular em cima do Lauro que levou um belo projétil no meio da testa. E teve sorte que nada aconteceu a ele. Kátia o destruiu com um olhar fulminante e saiu em disparada. Lauro demorou um tempo para se recobrar do tiro em sua testa. Quando se deu conta do que acontecia ela estava longe. Então ele voltou ligeiramente espantado para a nossa mesa. “Quem manda se rebelar contra o escritor?”, “mas não me rebelei, se eu fui até lá é porque você escreveu horas”. Sem mas o que discutir, sem cair em uma argumentação inútil continuei explicando para ele a diferença entre terror e horror. Terror é uma força avassaladora que te paralisa, por falta de conhecimento o medo extrapola os limites e se torna terror que é afinal um medo maior e imediato, instantâneo. Já o horror é debilitante. Ele vem pela sabedoria, pela sabedoria da brutalidade, do mal indizível, e quando ficamos horrorizados é por total conhecimento de alguma coisa, que não se encaixa em nossa mente. Enquanto o terror é pelo medo do desconhecido. Na hora em que a dor da testa se tornou mais branda e Lauro se deu conta do que o tinha atingido ele ficou com uma raiva praticamente incontrolável. Ainda mais que a discussão que acabara de ter com Kátia foi para ele totalmente incompreensível. Ficou aterrorizado assim que ela começou a discutir, e em sua paralisia, que geralmente bloqueia o pensamento arejado, não conseguia pensar à frente do momento da discussão, e agora ele via o quão incapaz foi de pensar que se dissesse o que disse daria no que deu. Ficou aterrorizado antes, mas agora mais calmo as coisas ficavam mais tranqüilas em sua mente. E ficava horrorizado, lentamente, quando a idéia de uma vida sem Kátia se montava em sua mente, por um motivo que não sabia qual, isso não se encaixava em sua cabeça de jeito nenhum e por isso ficou angustiadamente horrorizado. Fez o que tinha que fazer. Reestruturou-se na cadeira, pediu a conta, comeu um ou dois aipins no reflexo, enquanto pensava e ficava cada vez mais horrorizado. Pagou a conta e não esperou pelo troco que encheu o bolso do garçom de forma que ele agradeceu internamente à briga do casal, de maneira meio desconfortável, sentiu-se mal de desejar a briga de alguém ou agradecer por ela, mas a vida segue, mais um chope tem que ser servido. _ André, que tu foi fazer na mesa do casal? Não tinha bom senso não? _ Já resolvi uns dois casos assim, parecidíssimos. Então achei que uma cabeça de fora traria juízo aquele casal tão lindo. _ Tem que aprender a não se descontrolar mais. Se escrevo a história é porque ela deve seguir como quero e não com revoltas e atitudes impensadas. _ Um pouco de aleatoriedade na vida é bom, relaxa e vamos pedir mais dois chopes.

*** Saiu correndo em direção ao ponto de táxi. Lauro sabia que aquela hora era difícil encontrar um. E ela veio no carro dele. Não ia conseguir pegar um ônibus naquela hora. Mas assim que começou a correr, pensou e refletiu, e foi muito bom ele ter feito isso, diminuindo o passo, até parar. Viu um banco de concreto e se sentou. Não adiantava ir agora ao encontro dela. Ela estava nervosa, irritada, aliás perigosamente puta da vida. Ficou excitado com a situação. Reviveu em sua mente a briga, a ferocidade dela, toda sua força, sua vitalidade e impensadamente isso lhe excitou. Ela estava dentro do táxi, sua cabeça girava rapidamente em todos os pontos. Agora mais calma, percebia que poderia ter sido injusta. Em nenhum momento deixou Lauro explicar. Logo ele que era calmo e não iria nunca levantar a voz para se impor. Ela vociferou tudo o que veio à sua cabeça e nunca tinha se mostrado tão agressiva. O que ele iria pensa dela? Afinal ela deu aquele piti todo mas queria resolver as coisas. Ao mesmo tempo não queria. Esse desejo conflitante é puramente orgulhoso, e logo logo passa. Assim que toda mulher cria um caso ela logo pensa internamente no que fez, que fez exageradamente, mas não dá o braço a torcer, assim iria esperar ele ligar, contatar. Lauro levantou de onde estava, colocou o celular no bolso e caminhou. Sua cabeça estava pesada, seu peito ofegante, sua respiração agitada e seu coração palpitante. A dor de não saber o que o atingiu era por demais profunda. Estava perdido e não sabia que rumo tomar. Pegou seu celular e verificou as chamadas recebidas. O nome dela realmente constava lá. E por demais ficava intrigado, pois não tinha falado com ela. Ficou com medo de ligar agora para saber que história era aquela e dar mais motivo para Kátia o destroçar. Nunca a tinha visto nesse nível de irritação, e praticamente estava irreconhecível, ao xingar alguém que ela nem conhecia. Nesse exato momento se passou na cabeça dos dois ao mesmo tempo por mais uma coincidência: “quem era aquele homem?”. Por um momento ficou a dúvida e a imagem daquele rapaz que se aproximou, e nada conseguiu fazer, se desanuviou na mente deles. Era como se ele nunca tivesse existido, ou fosse apenas uma interferência em uma transmissão contínua que seria logo descartada como ruído. André foi apenas uma tentativa, uma presença volúvel. E não conseguiu em nada afetar coisa alguma na vida do casal. Escrevendo sobre a volubilidade de André automaticamente me leva a lembrar de Diogo, que deixou o recado com Kátia sobre o encontro no dia seguinte da turma do trabalho de Lauro. Podemos adivinhar facilmente sem lembrar de pormenores que Kátia não avisou Lauro e ele ao olhar para o visor do celular procurando a veracidade do nome da ex não reparou de modo algum no primeiro nome, Diogo e em qual hora ele ligou. Por conta disso Lauro provavelmente vai perder o encontro. Não que isso seja importante agora. Afinal ele chegou em casa triste e tentou se comunicar com Kátia algumas vezes. O celular estava desligado, impensadamente mandou um sms, que pelo mesmo motivo dela não atender ao telefone não foi entregue. Tentou inutilmente o telefone de casa, mas provavelmente ela tirou do gancho. E assim sentado no sofá de

casa, no escuro, largou o tênis e esticou os dedos do pé, se reclinou com a cabeça apoiada no braço e ficou encarando o teto. Nessas horas em que a coisa mais importante fica inconstante, se esvai e torna-se etérea nosso sentido perde toda a consistência. Comer, dormir, tomar banho, e qualquer ato prosaico da vida perde o sentido. Não que tivesse algum sentido mesmo antes, mas é que criamos essa ilusão de que tudo faz sentido. E quando algo, que consideramos maior acontece, o sentido coitado dessas pequenas coisas se esvai, como um copo de água que enquanto está cheio se mantém, dando forma a água, mas assim que ele vira... a água perde todo o formato e se desmantela. Deixando o copo vazio. Assim era como Lauro estava durante o resto da noite, vazio. Mesmo determinada a não ligar para dizer o quanto amava Lauro, que se arrependia de ter feito todo aquele escarcéu e que queria fazer as pazes ela se manteve firme no pilar que chamamos orgulho. Não iria facilitar a vida dele, e se ela errou também, foi por culpa dele, que até então não tivera nenhuma chance de se explicar, mas canhestramente disse de cara lavada que não sabia do que se tratava. Ela estava acostumada com mentiras desse nível. Alguns de seus antigos relacionamentos deram-na mostras bem contundentes dessa práxis masculina. Mesmo assim, agora que estava tranqüila revivia em sua mente toda a expressividade de Lauro. Realmente ela tinha uma boa parte de sinceridade, para não dizer muita. Chegou em casa e foi tomar um banho, estava se sentindo suja. Enquanto a água morna batia sobre seu corpo ela foi massageando a pele com a bucha natural que comprara e o sabonete neutro dava a sensação de maciez à pele, enquanto fazia seu ritual higiênico ela sentiu que Lauro era um homem certo, determinado e louco por ela. Nunca tinha feito nada que fosse consideravelmente ruim, aliás não se lembrava de nada que fosse minimamente ruim. Ficou constrangida por toda aquela discussão. Ainda mais com o vulto para quem dirigiu um olhar destruidor de raiva. Poucas vezes tinha ficado tão irada e muito menos por tão pouco. Agora sentia que sua insegurança de perder Lauro foi totalmente contrabalanceada com esse ataque de fúria. Para não se mostrar insegura atacou. Mas a sensação de que amava Lauro era maior agora e tudo poderia ser resolvido. Bastava ele ligar. Depois do banho se deu conta que havia desligado seu celular e que ao colocar o pé em casa tirou o telefone fixo do gancho. Assim Lauro não conseguiria falar com ela, que agora relaxada passou a esperar ansiosamente pela ligação dele. Esquecendo ainda que passou praticamente uma hora e meia debaixo do chuveiro e que se Lauro tentasse ligar para ela, estando todas as formas de comunicação cortadas, ele desistiria. Nessa hora mesma Lauro começava a adormecer no sofá de casa. E enfim Kátia ligou o celular. Colocou o telefone no gancho. E foi preparar algo para comer, pois o aipim frito ficou para lá assim como o chope e agora sua barriga pedia avidamente por comida. Lauro pensava em Kátia e Kátia em Lauro, ela arrependida, ele confuso. Essa combinação nunca é boa, pois quem está arrependido, mas não quer ceder, tem tão pouca humildade que deixa o orgulho subir preenchendo todo o espaço vazio criado pelo arrependimento, enquanto quem está confuso fica meio inseguro, dando brechas ao medo. E quando o medo paralisa e bloqueia Lauro, Kátia fica sem sua ligação. O problema consequentemente nunca se resolve. E qualquer tempo, seja arrependido seja inseguro é um tempo que não passa. Ele corrói as entranhas mais profundas e atormenta

o sono, ora não deixando quem é atormentado dormir ora transformando seus sonhos em pesadelos medonhos. As costas de Lauro já afundavam no sofá. O suor escorria do contato com o revestimento plástico e mesmo com esse incomodo ele continuava lá. Como já falamos aqui o sentido de levantar e não suar mais não existia e ele começou a gostar do suor, de poder suar sem se importar com isso. Pensava que suar é natural e quando suamos normalmente achamos isso ruim, mas suamos frequentemente e nos chateamos frequentemente, mas naquela hora suar estava sendo bom, sem mais nada a fazer ele suava, e gostava. Enquanto Kátia cortava fatias do queijo masdaam em cima da mesa da cozinha e comia as lascas juntamente com o resto do vinho merlot do dia anterior. A garrafa ia quase pela metade e o queijo sobraria. Sentada na mesa da cozinha, comendo o queijo consistente e bebendo o vinho seco ela pensava o quão comer era bom, ainda mais comer coisas que se gosta e coisas gostosas. Mas logo divagou para uma analogia interessante. Quando viu o aipim frito na mesa, antes de brigar com Lauro, achou apetitosa e chamativa aquela porção. Mas quando viu o nome da ex no celular dele, a primeira coisa que vira fora o aipim e naquela hora o aipim era a coisa mais asquerosa possível. Um monte de gordura frita com uma cor meio amarelada, laranja e branca o aipim determinantemente era algo ruim. E então olhando para o seu queijo agora percebia que nem o aipim era bom nem o queijo, ela que os desejava comer ou não. Cortou, então, mais um pedaço e colocou na boca. Esperou a saliva o derreter minimamente e se pôs a mastigar e sentir sua textura, logo depois secando a boca com o vinho que deixava sua marca atiçando as gengivas com meu resquício de uva.

*** Levantei do bar sozinho. Estava intrigado. André sumira. Sim desapareceu bem na minha frente, conversávamos sobre um livro e ele desvaneceu. E se por um acaso eu não tivesse escrito isso eu duvidaria da veracidade desse sumiço. Mas como escritor eu digo que estava lá e ele começou a ficar transparente e se foi. Continuei a beber meu ultimo chope, paguei a conta e pus-me a andar. Pensava em Lauro e Kátia. Algumas idéias se passavam por minha cabeça. Sabia exatamente que Lauro ao levantar de seu estado de torpor, depois que parasse de gostar de suar, iria começar a repensar todo o seu relacionamento e a validade de continuá-lo. Por mais que gostasse dela, ela se manifestara de forma brutal e grotesca com ele hoje, e ainda mais com alguém desconhecido, que não podia lembrar agora quem era. Sabia também que Kátia em seu orgulho feminino não iria ligar, embora esperasse avidamente pela ligação que iria lhe trazer o fogo de volta ao coração. Como se em uma virada de bateria um blues melancólico virasse aquele rock enérgico e estimulante. Aquele que faz você saltar e depois da introdução animada, com suas guitarras e baixos em uníssono um breve momento em silêncio diz que a hora da voz chegou, consequentemente seguida do vocalista que começava a completar o ânimo.

A cada passo tudo se clarificava em minha mente e ficava preocupado, pois pensava em nuances muito mais profundas do relacionamento dos dois e sabia que nunca iria poder escrevê-las. Nunca conseguiria alcançar em um texto tantos entrelaçamentos entre sentimentos, causas, conseqüências e resultados. Mas me deliciava com aquilo tudo. E, enfim, tive uma idéia. Estava chateado com a briga do casal. Por mais que fosse necessária ela tinha sido por um motivo vão. Como se quase todas as brigas não fossem, mas essa em particular me desgostou, já que eles me são tão queridos. E a idéia era simples. Enquanto caminhava para meu carro eu encontrei uma antiga amiga. Mara. Demos os devidos cumprimentos, bem animados, um abraço acolhedor e espontâneo que se seguiu de uma breve e característica conversa, daquelas que a gente pergunta tudo e ouve tudo com indiferença sobre o outro, “como vai?”. “e a família?”, “os amigos?” e “o trabalho?”, logo depois como a conversa não amainava resolvemos sentar-nos em um barzinho que ficava perto, inclusive em frente da onde estávamos. Pedimos dois chopes e ela me perguntou por que estava triste. Falei então tudo o que me afligia, contei de Lauro e Kátia, de André que se rebelou, da briga dos dois, do casal lindo que formavam e da idiotice que fizeram ao brigar e lógico da ignorância de Lauro e do orgulho de Kátia, os dois razoáveis pelas circunstâncias, mas idiotas do mesmo jeito. Ela então me perguntou “e onde você quer chegar com isso tudo?”. _ Bem, agora vem a parte mais difícil – disse eu meio encabulado. _ Conta! – ela meio nervosa. _ Então que você ainda não sabe, mas você é amiga também de Kátia, você até conheceu Lauro uma vez – ela ficou estarrecida com a informação, mas continuei determinado – É no dia em que eles ficaram pela primeira vez você estava lá, ao lado dela. Você inclusive, logo após o primeiro beijo, piscou para Kátia em sinal de aprovação – como ela continuava meio aérea continuei – Então o que quero que você faça é o seguinte: vá até a casa dela, amanhã, porque hoje será inconveniente, e convença-a de que Lauro, pode achar que ela foi totalmente aleatória, grossa e estúpida e ter desanimado de continuar tudo, que é para ela largar de ser orgulhosa e ceder, ligar e pedir desculpas. _ Mas ela é meio cabeça dura e provavelmente não vai me ouvir. _ Gostei de você! Criei-te tem pouco tempo e já pegou o ritmo da coisa. _ Sou fictícia mesmo? _ Lógico, veja você mesma, está aí no papel enquanto eu determino o seu rumo, se eu parar de escrever você acaba e fica só até aqui. _ Mas me sinto tão real, tão cheia, importante em minha tarefa. _ Você realmente é importante, então se aprume e resolva esse problema, ficaria muito chato se eu aparecesse lá sem sequer conhecê-la. “Oi, prazer sou eu que criei você...”, acho que ficaria meio impróprio.

_ Ok, então. Amanhã assim que acordar eu vou lá e tento resolver isso. Bebemos mais alguns chopes e nos despedimos, tinha que ir para casa descansar, o sábado prometia. Além de fazer tudo o que faço normalmente teria que conduzir Mara pelos vieses da amizade para convencer Kátia a abandonar seu orgulho. O que considerando o orgulho como si mesmo não é nada fácil, ainda mais em Kátia.

*** O ciúme é algo de doentio. Quando Bendrix diz para sua amante que tem ciúmes de suas meias porque elas podem abraçar suas pernas e ele não, que diz que tem ciúmes de seus sapatos porque eles podem beijar seus pés inteiros de uma vez e etc, o ciúme toma conta dele a mesma forma que André tomou conta de seus passos e se rebelou contra o escritor. É um sentimento que preenche o ser. Mas não do jeito expansivo, não da maneira da preocupação que pelo vazio ela se infla comendo todo o espaço possível, mas de um jeito diferente, o ciúme ele tira tudo que estiver lá e toma conta do local. Ele como um tanque de guerra que invade um país inimigo chega destruindo tudo por onde passa e quando estaciona deixa sua presença, imponente. Ele pode ter vários níveis e há quem diga que um mínimo de ciúmes é bom, é saudável para os relacionamentos. Só para eles mesmos, em suas vãs ilusões, pois o ciúme é doentio em qualquer nível. Esse sentimento nos diz minimamente, ou no nível mais alto, que podemos perder aquela pessoa. Ciúme é isso, um medo enorme da perda. Atrelamos nossa felicidade, ou na maioria das vezes nossa infelicidade, a alguma coisa ou pessoa e por isso, por nossa incapacidade de controlar o mundo, ficamos com medo, aterrorizados e consequentemente paralisados. E é assim que o ciúme funciona na mente, ele a paralisa naquele ponto e dá muito mais importância que deveria ao nada. Assim vemos quanto é ridículo e pesaroso ouvir de um personagem que ele sente ciúmes das meias da amante. Mas ao mesmo tempo é tocante, essa devoção toda ao outro, esse sentimento de querer estar junto, se amalgamar e tornar-se com o outro um só ser. Nesse momento vemos o quanto o ciúme pode ir longe, uma ida sozinho à padaria pode desencadear pensamentos psicóticos de ciúme, doentio, mas não vejo tanta diferença no caso de um amante que vá a uma festa sozinho. O processo é igual nos dois. E como se não bastasse nos relacionamentos amorosos, existe o ciúme nos relacionamentos afetivos. Quando Mara apareceu para falar comigo, quando eu a coloquei na história, não sabia nada do que se passava e à medida que fui contando, ela foi se enciumando de Kátia, sim, um ciúme. De ter a preferência, ser a protagonista, mas acima de tudo por formar um lindo casal com Lauro. Coisa curiosa, pois logo após saber que ela era amiga de Kátia, e que iria resolver o problema ela se arrependeu e eu vi o rubor subindo às suas faces, fato de que ela logo se constrangeu e ficou evidente que ela tinha sentido ciúmes, se arrependido e se envergonhado de tudo.

Já o outro tipo de ciúme foi tomando conta de Kátia ao longo da noite, depois de algumas mastigadas no queijo, mais precisamente depois de três copos de vinho, ela começou a sentir ciúmes. A raiva passava e lentamente ia embora dando lugar ao ciúme. Como já disse o ciúme vai tomando conta aos poucos da mente e depois de algum tempo ela já imaginava se Lauro tinha ido mesmo pra casa, se ele estava com outra, se ele para se vingar tinha ligado para algum amigo e saído, e após inúmeras viagens ela se envergonhou também. Não se envergonhou de ter pensado essas coisas, mas de não conhecer Lauro tão bem quanto pensava que conhecia. Lauro por sua vez já estava dormindo. Mal tinha pregado os olhos e seu corpo entorpeceu-se. O sofá nunca fora tão aconchegante e seu suor já não fazia nenhuma menção para que trocasse de local. O som da cidade lá fora diminuía a cada minuto e logo seu corpo se distanciava da realidade. Imerso em outra existência, a do sono, o seu corpo relaxava, como mostra claramente a imagem, seu braço pendia para fora do sofá e um leve ronco começava a ser ouvido, sinais claros de relaxamento. Logo logo ele começaria a sonhar. Conversava com seus pais, eles já bem mais velhos do que eram atualmente, ele mais novo. Oprimido pelos comentários dos seus pais ele se sentia cada vez menor, o ambiente era meio esfumaçado, mas forçando um pouco a memória poderia dizer que era a casa de Kátia. Ele se encolhia cada vez mais aos comentários incompreensíveis dos pais, o que lhe oprimia era o tom, a veemência com que eram feitos. E fechou os olhos, quando os abriu novamente Kátia vinha em sua direção. De uma maneira acolhedora ela abraçou-lhe e ele tomou confiança novamente, crescia, se reestruturava. Logo seus pais já falavam e os sons não saíam de suas bocas, ou se saíam não lhe atingiam, ela era seu pilar, sua estabilidade, depois de muito tempo desequilibrado. E por isso, mesmo dormindo, chorou. Lágrimas quentes desciam de seu rosto deitado. Quando acordou seu sonho era apenas parcialmente rememorável, mas o suficiente para que soubesse que Kátia era o ponto de equilíbrio e que sem ela ficaria abalado novamente, por essa vulnerabilidade se sentiu envergonhado e corou.

*** Eu sei exatamente o que Mara disse a Kátia quando chegou a seu apartamento no dia seguinte. Elas tiveram uma longa conversa, que passeou por todos os tipos de assuntos, e infalivelmente caiu sobre o problema da noite anterior. E sobre esse problema discutiram um tanto. Kátia não sabia que eu tinha contado tudo para Mara e ela por sua vez fez por onde e não demonstrou que sabia mais do que falava. Essa omissão foi importantíssima para a solução do problema. Que convenhamos é totalmente infantil. Uma briga por coisa alguma. Ressaltando que na nossa visão é, realmente, coisa alguma, mas Kátia estava coberta de razão para agir como agiu, coisa que não justifica sua ação só nos dá aquela compreensão que decai para a lástima ou a pena. E Lauro tinha motivos suficientes para não saber que diabos aconteceu e com isso, esse buraco em seu entendimento, dava chance à sua imaginação a qualquer tipo de pensamento. Mara conseguiu mostrar a Kátia que ela fora precipitada. Mara sabia que nunca poderia dizer a sua amiga que ela errou, seu orgulho iria subir a cabeça. Mas ser precipitado é uma ótima forma de fazer a outra pessoa pensar. Ela conseguiu que Kátia pensasse que

poderia ter feito o que fez, só que deveria ser mais cautelosa. Ela por sua vez concordou com tudo o que sua amiga lhe dissera, já que minimamente havia pensado sobre isso durante o queijo. E estava disposta a dar a chance a Lauro pra que tudo se resolvesse. Mas ao mesmo tempo sentia que tudo isso que acontecia era desgastante. Sentia o peso da vida e, experiência pela qual todos passam, ela estava cansada. O pior era sentir isso na sua idade. Todas essas brigas e desentendimentos davam a clara impressão que tudo permanecia na mesma. Não ficava chateada por brigar, mas por achar que sempre seria assim, antecipava o futuro. Como uma vidente enxergava quanto de brigas ainda teria que passar e via quantas delas seriam inúteis e isso a desanimava. Na verdade ficava desanimada pelo jeito que agia, mas nunca conseguia se controlar e ser diferente, vejo nessa hora o quanto que isso a afetava, não conseguir mudar. Repensando todos os seus relacionamentos se lembrou de uma vez que namorava F. e não se sabe por que ela recordava agora esse momento que não tinha nada demais. Ela chegava a seu apartamento, com um presente para sua sogra. Tocou a campainha e quando ele abriu a porta, depois de alguns segundos ouvindo passos apressados, ele estava com a escova de dentes na boca e a espuma se amontoava pelos lábios dando uma impressão muito engraçada, mas ele com um semblante sério, já que estava atrasado, tentou dizer algo como “entra rápido que estamos atrasados”, mas saiu algo como “empra rápipo be schamoss abrasabos” e ela começou a rir, antes um leve sorriso despontou em sua expressão, depois um riso contido em sua garganta, logo após uma gargalhada sonora que preenchia todo o corredor do prédio. Ele ficou parado olhando pra ela, com seriedade, se virou e foi em direção do banheiro. Ela sentiu um frio na espinha, engoliu a gargalhada, mas o barulho que sua garganta fez, quase um “gulp” abafado, a fez sorrir de novo, fechou a porta do apartamento e caiu na gargalhada novamente. Sentia saudade dessa leveza que tinha. Dessa época em que o peso da vida e da rotina não lhe oprimiam a deixando descontraída, paciente e feliz. Hoje era tudo mais pesado, se sentia como F. dando a volta sério enquanto ouvia uma gargalhada pelas costas, atrasado e incapaz de relaxar. E justamente por isso sentia o peso de sua atitude. Justamente por isso queria se resolver com Lauro, lhe dizer que nunca mais ia ser tão grossa e estúpida, que iria rir novamente e que estaria disposta a agir mais tranquilamente em relação a tudo. Sentia essa vontade tremenda, e sabia que isso lhe fazia falta. Mas nunca achava onde estava a causa disso tudo. Nesse momento ela se lembrou de Jean Cabot em Crash, repassou o diálogo inteiro que sabia de cor:

I sent her for groceries, that was “eu pedi pra ela fazer umas compras, há

two hours ago.... Carol, you should duas horas atrás… Carol, você devia talk, you go through six housekeepers

falar, você tem seis empregadas a year.... I'm not snapping at you,

por ano… Não estou pressionando você, I'm just angry; I'm sorry....

Estou apenas nervosa; Desculpe… (with growing agitation)

(com uma agitação interna)

Yes, at them! And the police and Sim, com eles! E com a polícia e

Rick and Maria and the dry cleaner Rick e Maria e com a lavanderia

who ruined another blouse and the que destruiu outra blusa e com

gardener who keeps over-watering o jardinheiro que cisma em molhar demais

the lawn and.... o gramado e…

(stops, grapples with (para, se retrai com

an explanation) uma explicação)

I just woke up this morning and I Eu acordei essa manhã e eu

thought I'd feel better. You know? Pensei que ia me sentir melhor. Sabe?

But I was still mad...and I realized Mas eu ainda estava mal… e eu vi ... it wasn't about having my car

…Que isso não tinha a ver com o carro stolen. That's how I wake up every

roubado. É assim que eu acordo toda morning.... I'm angry all the time.

Manhã… Estou com raiva o tempo todo. (at the point of tears)

(quase chorando) And I don't know why. Carol,

E eu não sei porque. Carol, I don't know why. eu não sei porque.

Sentia que estava assim. Em um ponto que tudo o que acontecia era um pulo para uma discussão, um ataque de raiva ou uma chateação. Se o ônibus não passasse em pouco tempo ficava chateada, se chegasse ao trabalho e não ouvisse um bom dia, e os ses se acumulavam. Estava cansada disso. Mara olhou diretamente para Kátia que estava ausente durante mais de cinco minutos, perdida no interior de seus pensamentos, e compreendeu subitamente que aquilo era sério, mas não tinha como chegar até o ponto da questão, por não saber qual era o ponto da questão. Nem Kátia sabia. Era tudo, e não era nada ao mesmo tempo. Adorava o tempo que passava junto com Lauro, estava feliz que sua amiga viria passar um tempo com ela, mas mesmo assim essa pressão violenta ainda se abatia sobre tudo. Mara em uma vontade forte de ajudar acabou perguntando “o que foi? O que houve?” e Kátia só conseguiu pronunciar: Estou cansada.

***

Lauro acordou melhor, mas não menos apreensivo. Era sábado e não tinha nada o que fazer. Andou até a cozinha colocou a água no fogo para fazer café. Sabia que quando tudo se acalmasse Kátia iria lhe dar a chance de falar. Ele queria, sobretudo, pedir uma explicação. E ainda mais dar sua explicação, mas era difícil pensar nisso, pois não tinha uma explicação. Não queria ligar para a ex agora e dar mais motivos para Kátia. Estava em um beco sem saída, onde ela vinha em sua direção, e ele ficava acuado no fundo. Mas ao invés de atacá-lo Kátia levantada um muro, entre ele e o muro do fim do beco. E assim ele ficava isolado, acuado no meio de dois muros que o oprimiam. Esse aperto era sentido diretamente no estômago. E ainda mais se comparado com o fosso, que se formava logo abaixo da superfície. Antes a impressão era de que estava livre, mas não se conhecia o perigo, o fosso ia se formando aos poucos enquanto a superfície permanecia inalterada e a sensação de normalidade era estável. Agora não, ao invés da possibilidade de queda, tinha uma barreira que o impedia pular por cima. O muro fazia seu limite até o céu, crescendo. Erigido por Kátia em uma briga e essa impossibilidade de pulá-lo é que fazia seu sentimento de angústia ficar inalterado. Emprego, tarefas inacabadas e estresses. Amigo, futebol, nada não, ausência, amiga de Kátia que viria, distância. Telefonema, desilusão, nada não novamente e um ciclo infinito de razões e conseqüências. É praticamente inevitável, isso é a vida, pelo menos a vida que têm e escolheu. Mas nunca seria a vida tranqüila que imaginava. Sabia que mesmo ao lado da pessoa que mais gostava teria seus percalços. Essas agitações ondulares na maioria das vezes o estimulava. Viver para ele era assim, sabe aproveitar a crista da onda e ter consciência do fundo dela para não naufragar. Mas o que temia era a calmaria. Temia essa fase, ou esses momentos em que o mar não ondulava, tudo estaria calmo e sereno. Nessas horas não tinha como lidar aproveitando os melhores momentos, nem teria como usar seu pensamento, sua vontade, sua determinação para sair ou agüentar os perrengues. Temia esses momentos e não sabia exatamente por que. Lembrava da vez em que depois de ter-se esforçado durante um ano inteiro passou no vestibular e tinha sua vaga para a faculdade garantida. Mas passou para começar no segundo semestre do ano vindouro. E, então, teria cinco meses de descanso. Estava com tudo pronto para fazer um curso de intercambio nos Estados Unidos, mas lhe negaram o visto por alguma razão que desconhecia. Depois de tentar novamente pegar o visto e não conseguir resignou-se. E imediatamente veio-lhe à cabeça essa idéia fantástica. Não estava trabalhando, havia passado para a tão concorrida faculdade, não iria para os Estados Unidos. Teria cinco meses livres. De férias. Era exatamente esse sentimento que lembrava, a possibilidade de estar consigo mesmo, e aproveitar os cinco meses que precediam o ingresso à faculdade. Antes pensou em fazer algum curso, estudar alguma coisa, mas a estafa que lhe abatia depois de um ano intenso de estudos, simulados e provas lhe dizia para relaxar. Viajou durante um mês inteiro, visitou parentes no interior de Minas Gerais e tirou duas semanas para passear pela Bahia. Mas o sentimento que lhe saltou para fora nessa hora foi o que precedeu essas atividades, quando voltou, após se estabelecer novamente em casa. Tudo passava. Os dias se enfileiravam meio que sem sentido, não tinha nada o que fazer e isso o angustiava.

O sol nascia e se punha no horizonte e a praia era o melhor lugar para perceber isso, passara a freqüentar a praia mais vezes. Estirado na areia, embaixo de uma barraca percebia o movimento de rotação da Terra, o quanto o tempo demorava a passar. O Sol queimando-lhe era o indicativo disso. Experimentava ficar boa parte do dia nessa tarefa o que o levou a perceber os detalhes do tempo. O quando ele é relativo e se antes na correria de estudar todas as matérias relativas às suas provas para ingressar na faculdade, aliado aos cursos de línguas e palestras para enriquecer seu conhecimento da atualidade o deixavam sem nenhuma noção do que chamamos vida. O ano de seu vestibular se amontoava em um emaranhado de dias de estudo, provas e cansativas horas de aprendizado, informacional. E agora? Que sentido tinha tudo? Era uma lacuna de sentido, sabia que em poucos meses entraria para a faculdade novamente. O mesmo ritmo sobreviria e começaria a fazer como tantas pessoas que já tinha visto, estágios, cursos de aperfeiçoamento, empregos, etc. Agora sabia que essa vida parada, esse eterno freqüentar a praia, não tinha muito mais sentido que tudo o que achava que era cheio de sentido anteriormente. Embrenhando-se pelas vielas da sociedade para conseguir um lugar ao bendito Sol ele se esquecera o que era ser feliz e agora que podia ser não conseguia. E se sentia incapacitado, preso e condenado a sua vida. Era angustiante. Antes dois muros lhe assaltavam e lhe oprimiam, não olhava para os lados, não podia sair direito, relaxar nem sequer parar para pensar em se tudo valia a pena, agora tinha uma superfície toda disponível para construir sua felicidade, que fosse dentro dos meses que tinha, mas sentia profundamente o fosso que perigava se abrir sobre seus pés. E não sabia o que fazer. Era justamente assim que se sentia agora. Depois de passar um tempo no turbilhão emocional com Kátia se sentia perdido. Após algum tempo, que se embaralhava em sua mente, de beijos, sexo, carinhos e atenção, após tanta intimidade conquistada que parecia uma conexão profunda e durável um evento aleatório lhe arrancava de todo esse turbilhão. E sozinho, nesse sábado em casa, sentia que tinha a superfície dura e incômoda sobre seus pés, mas sentia profundamente o fosso que poderia se abrir sobre si e a queda seria inevitável. Demorou um pouco para ouvir o telefone tocar, o som veio lá do fundo em um crescendo que ressoou forte quando ele se deu conta de que seus pensamentos não eram tão palpáveis assim. “Alô” atendeu com uma passividade estúpida. Ouviu uma voz do outro lado que demorou a reconhecer, a associar com alguém que conhecia. Diogo. “Não, não sei que encontro é esse não”. Então lhe explicou calmamente tudo que podia explicar, já que a base de toda sua insegurança era a total ignorância do fato que levara a discussão. Diogo ficou meio ressabiado, pois tinha falado com ela no telefone no dia anterior e tudo parecia andar as mil maravilhas, e lhe disse isso. Lauro então depois de parar e pensar chegou a conclusão. Ou ela estava simulando estar bem ou tudo aconteceu entre ele sair para ir ao banheiro e voltar e menos ainda, tudo ocorreu entre a ligação de Diogo e seu retorno. Mas mesmo pensando profundamente não conseguiu chegar à conclusão nenhuma. Tudo que podia fazer era tentar falar com Kátia e conversar, saber o que tinha acontecido de tão repentino para que isso acontecesse. Mas sentia o peso da ligação totalmente desconhecida da sua ex para seu celular. Era como uma caixa que tinha em mãos sem saber o que tinha dentro e não podia abri-la.

Sentiu um vazio enorme no peito, e sua angústia ainda estava por lá. Mas tinha que terminar com isso, embora não tinha muito tempo, ela já se assomava em níveis dolorosos. Pegou o celular e discou o número de Kátia.

*** Após uma breve surpresa Kátia pegou o celular com o coração palpitante. _ Ola! – diz ele meio contido após ouvi-la atender. _ Oi – diz ela seca. _ Você está bem? – pergunta de um modo automático, mas percebe que foi uma pergunta infeliz. _ Você acha que eu estou bem? – responde ela meio nervosa. _ Não, eu também não estou nada bem. _ Olha, o que aconteceu ontem, eu sei que agi meio impulsivamente, mas você me deve uma explicação. _ É sobre isso mesmo que eu queria falar. _ Ah! Então agora você tem uma explicação? _ Não, n... _ Não? _ Olha, eu te juro por tudo que é mais sagrado que eu não tenho idéia de que ligação foi essa. _ Como que você não sabe? Taí escrito no seu celular... _ É você reagiu meio repentinamente, eu fui ver aqui no meu celular depois. A chamada não foi atendida. _ Ahan. _ Sério, está aqui. Sei que meu celular não faz distinção entre chamadas atendidas e perdidas só recebidas, mas se você ver a duração da chamada, ela não tem duração nenhuma. _ Ah... – esse foi um ah daqueles que a pessoa passa, minimamente, a se dar conta de que pode realmente ser essa a versão da história. _ E eu não liguei pra ela novamente ainda porque achei que seria ruim, não sabia o que você ia pensar.

_ Ahan – ela estava muito sem o que dizer nessa hora. _ Então eu pensei, eu posso ligar pra ela na sua frente, no viva voz e ver o que foi isso. _ Hmm – uma pausa prolongada de pensamento que envolvia duramente sua relutância em aceitar que essa é realmente a melhor das soluções e ela ficou minimamente com raiva de não ter tido essa idéia antes – acho que seria uma ótima coisa. _ Você sabe que eu nunca mentiria para você e eu até agora estou chocado com a sua reação... Sinceramente eu não sei o que houve, mas também não quero saber cada um tem o seu dia e se nós já nos desentendemos seria bom colocar uma base nisso para não acontecer mais. Ela se sentia desestruturada, todo o seu sentimento de afetação e irritação confluía agora para um sentimento de carinho profundo por aquela pessoa do outro lado do telefone. Queria estar ao seu lado e se sentir protegida. Mas não protegida do mundo, sabia desde que perdeu o pai baleado em um assalto que o mundo não tinha essas proteções, mas queria se sentir protegida de si mesma, de seus ataques de irritação, de suas variações estúpidas de humor e sabendo que Lauro, mesmo com todas essas coisas, queria continuar ao seu lado, fazia com que ela sentisse mais afeto por ele. Nessa hora ela se sentiu meio tonta, abobalhada e com todo o sentimento de tontura que estava pensou que tinha que reparar isso de alguma maneira e antes que pudesse pensar falou: _ Diogo, seu amigo, te ligou ontem nos convidando para um encontro hoje do pessoal do seu trabalho, isso foi logo depois de você ir ao banheiro e antes de voltar. Sem querer ele em um rápido e impensado reflexo de boa vontade querendo amenizar a situação como que querendo não deixá-la tão preocupada com sua falha respondeu: _ É eu sei, ele me ligou hoje, tranqüilo. Mal sabia ele que falando isso faria com que ela minimamente se sentisse um pouco mais culpada, Pois se ele não tivesse ligado para ela, ela não teria ligado para ele e ele saberia por Diogo de tudo e ela não se perdoaria se não tivesse contado para ele antes do acontecido. Mas tudo foi relevado pelo tom de voz com que ele dissera aquilo, o tom de voz disse muito mais do que a frase inteira. _ Você me desculpa por ontem? _ Kátia, você é muito mais do que eu um dia pensei em ter. Eu fiquei inteiramente angustiado com tudo o que aconteceu, mas se tenho que passar por isso para melhorarmos e sermos mais felizes, você acha que eu não te desculparia? _ Quer almoçar comigo? _ Só se for naquele restaurante novo que abriu aqui perto de frutos do mar. _ Duas horas lá então?

_ Duas e dois. _ Beijos.

*** A paz é um estado de calmaria entre duas guerras. É através da guerra que o homem se afirma. Nada é eterno e a verdade é parcial, depende de um ponto de vista. Homens lutam para defender seus pontos de vistas. Seja qual nível da guerra, seja qual nível da luta. Assim parece ser nos relacionamentos também. Enquanto Kátia se sentia oprimida por tudo que passava, lutou contra mais alguma coisa que não conseguia ver e exatamente por esse motivo essa coisa era mais pesada ainda. Lauro por sua vez sentiu ferrenhamente as conseqüências dessa sua. E no momento que se deu conta se sentiu oprimido por algo que não sabia o que era. Tinha recebido um míssil sem saber a causa. Durante a história da humanidade muitas guerras já foram travadas por enganos, erros e desavenças que no fundo eram tão ridículas e superficiais quando a razão que levou Kátia a lançar o celular de Lauro em sua testa. Ele se sentiu ridículo. Um casal de namorados duas meses adiante rira do projétil, não porque ele acertou a testa de Lauro, mas do barulho que fez. Nessas horas quando se está afastado da tragédia ela vira cômica. Mas é justamente por essa distância que os povos lutam separadamente. Aqui de onde estou foi puramente angustiante a cena em que Kátia ficou fora de controle, enquanto para o casal que riu aquilo era mais uma coisa como outra qualquer. Esse descaso com os outros, essa falta de empatia ou compaixão é que leva o riso de escárnio, enquanto a empatia e a compaixão levam ao riso fraternal de comunhão. Nunca saberemos qual desses risos se manifesta, e temos por momentos impressões. Temos a impressão que nosso amigo está rindo junto de nós por fraternidade, mas ele pode muito bem estar rindo com escárnio. Essa é a nossa condição, solitária. E por isso mesmo ridícula. Foi ridículo levar um míssil tecnológico na testa. Como se esse acontecimento tivesse criado um fosso profundo entre ele e todo o resto que ali estava. E esse fosse é justamente aquele que dá chance ao escárnio. Como hoje, fui marcar um exame em uma clínica e ao chegar lá estava uma mãe, com dois filhos, um deles se servia de água em um copo de plástico descartável, enquanto o outro, bem menor, esticava a mão para um copo também e gritava “mim dá”, como não era ouvido e sua mãe não ligava para ele, e seu irmão tampouco, ele começou a fazer mais barulho, mais e mais barulho, com isso a mãe o foi arrastando com cuidado para fora da clinica e seu irmão seguindo atrás. Eu ri. Essa distância... Charbonneau foi um missionário canadense que viveu no Brasil antes e durante a ditadura. Ele era um gênio e um ótimo argumentador, como padre ele ouvia casais e com isso passou a projetar um encontro de casais para que pudesse colocar questões em pauta e discutir com eles. Em pouco tempo o encontro de casais era procurado por centenas de casais e Padre Charbonneau ficou popular. Ele falava e atingia as pessoas. Ele sabia exatamente como chegar aos casais, seus problemas, e fazer toda uma reestruturação do casamento, na visão do casamento na sociedade. Diz-se que ele conquistou admiradores e casais que sempre lhe foram gratos por conseguir salvar seus

casamentos. Padre Paul-Eugene Charbonneau viajara para fora do país devido algumas circunstâncias e trocava cartas com um amigo de longa data. Esse amigo depois de perder o filho entrou em um estado de depressão e se matou. O padre então voltou para o Brasil para prestar as homenagens ao amigo e escreveu o livro Crônica da Solidão. Essa distância é a nossa solidão. E nossa solidão é essa distância. Kátia se atrasou um pouco e vinha andando mais leve do que saíra do bar ontem. Ela vinha arrumada, perfumada e com bom ânimo, mesmo assim sentia o peso de uma briga séria e não sabia se se sentia culpada ou isenta de culpa. Afinal tudo veio culminar naquela reação e por um momento se sentiu refém de si mesma. Devido a inexorabilidade da coisa toda, ela sorriu. “Vou vítima de mim mesma” levou esse pensamento consigo durante todo o caminho. Lauro estava com as mãos suando. Esperava Kátia há 20 minutos na frente do restaurante. Pensava em como tinha sido ruim essa noite e o quanto faltaria sentido em sua vida sem ela. Sabia também que se eles rompessem o relacionamento iria sobreviver, iria tocar sua vida pra frente, e provavelmente em algum tempo tudo se acalmaria, mas não gostava de pensar na dor. Kátia era o sentido que dava a sua vida agora. Quando a viu girando pela esquina seu coração começou a bater mais forte e instintivamente mordeu os lábios freneticamente extravasando seu nervosismo. Ela vinha em sua direção e tinha um ligeiro sorriso no rosto, ele pensou que ela estava feliz de vê-lo. Kátia por sua vez viu Lauro mordendo o lábio e sabia que ele estava nervoso, pensou que poderia ter sido pontual e que essa ansiedade dele tinha razão de ser, pensava em como fora calmo com ela no telefone e sentiu certa dose de insegurança ao pensar que ele provavelmente ficaria bem sem ela, mas ali estava ele, nervoso e isso era um bom sinal. Chegou em frente a Lauro e ia pronunciar alguma coisa, quando (e aqui os leitores me perdoem o clichê, mas foi isso mesmo que ele fez) ele colocou a mão sobre sua boca e a impediu de falar alguma coisa, ela sorriu um pouco mais, pois sempre vira aquilo acontecer em filmes e se sentindo boba associou isso aos casos românticos que sempre terminam bem, ficou feliz por essa idéia. Lauro colocou a mão sobre sua boca sem saber absolutamente a razão. Não sabia a razão até ter feito isso. O silêncio era a ponte que passou a unir os dois naquela hora. A troca de olhares subitamente os fez sentir mutuamente atraídos um pelo o outro. Não foi um olhar como o da primeira vez, sem querer, conjunção de fatores que fizeram por um motivo indeterminado eles se olharem e se desejarem. Esse olhar era um olhar voluntarioso. Ela viera em direção dele o encarando afetuosamente. Enquanto ele permanecia parado, trocando de posições na noite em que se conheceram. Engraçado esse paralelo que se faz entre a primeira grande briga e a primeira vez que se viram, é como se houvesse um recomeço, mas mais gostoso. A atração era forte entre os dois, um em frente do outro. E em um ímpeto mútuo, como duas solidões que se inclinam uma sobre a outra, ela com o sentimento profundo de arrependimento ele com um medo contundente da perda de sentido, os dois se sentiam carentes e sem precisar trocar palavras fizeram a única coisa que poderiam fazer naquela hora.

Abraçaram-se. O abraço era aconchegante. Ela apoiava a cabeça entre o queixo e o peito dele, uma de suas mãos a envolvia enquanto a outra passeava nos longos cabelos dela, num carinho afetuoso. Sentiam-se unidos naquela sensação que só um sincero e longo abraço pode definir. E essa união que passara tão pouco tempo por um abalo se ergueu, ou se reergueu. E o único gesto que poderia reatar vividamente esse sentimento foi o abraço, um beijo pareceria algo muito carnal, mas um abraço... nada mais íntimo e profundo que um abraço. Voltaram a ficar bem, até o próximo abraço. Mas naquela hora eles não pensavam nisso, o abraço era tudo.