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Ano: 2010 . nr 02 . Mês: Março . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço: 0,01 € 03 . 10 NR 02 WWW.JORNALOSUL.COM ASTROLÁBIO No ano em que se come- mora o centenário da proclamação do dia 8 de Março como Dia In- ternacional da Mulher, é com alegria e justificado orgulho que escrevemos este editorial. Conscientes de que «este século de lu- zes e de sombras» não contemplou ainda as mulheres de todo o planeta, não pode- mos deixar de o valorizar como o século das mulheres que conquistaram direitos, se eman- ciparam e demonstraram as suas capacidades em todas as áreas da actividade humana. Escrever num jornal foi uma luta travada pelas mulheres, luta dura como todas as que foram tra- vando e de que foram saindo sempre vitoriosas. Em Portugal, no início do século XIX, era uma raridade a mulher jornalista, escondendo-se quase sempre no anonimato. É necessário recordar que escrever, reflectir e pensar em público eram consideradas activida- des masculinas. De resto, a virtude estava associada à ignorância. Contudo, a partir dos meados do mesmo século, a mulher instruída percebeu que teria de usar a imprensa para fazer ouvir a sua voz, os seus anseios e fazer dela a tribuna de luta debatendo proble- mas, expondo ideias e propondo soluções. Em 1849, surge A Assembleia Literária,o primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher, Antónia Pusich, e que se dedicou à instrução do sexo fe- minino. Outros surgiram, dos quais referimos A Voz Femini- na, em 1868 e O Progresso em 1869, fundados por Francisca Wood, O Almanaque das Senhoras em 1870, fundado e dirigido por Guiomar Torrezão; Elisa Curado dirige A Mulher, surgido em 1883; Beatriz Pinheiro funda e dirige A Ave Azul em 1898. Excepto o jornal A Ave Azul que se localizava em Viseu, todos os outros eram editados em Lisboa. O direito à educação foi o que surgiu nestes pri- meiros jornais. Em 1844, havia 44 escolas que eram frequentadas por 1835 meninas. Compre- ende-se, pois, porque as taxas de analfabetismo feminino eram elevadíssimas, 85%, num país rural, pobre e esmagadoramente analfabeto (a taxa de analfabetismo masculina era de 75%). Só as mulheres das classes altas tinham acesso à instrução. Mais tarde, surge o direito ao trabalho como reivindicação da emancipação feminina e depois o direito ao voto como direito político elementar numa socie- dade que se acreditava democrática e liberal. Em Setúbal, A Bandeira, o primeiro jornal fundado e dirigido por mulheres, surgiu só em 4 de Dezembro de 1910 e apenas foram publicados 4 números, porque a sanha masculina foi tão grande que foi editado um jornal, dirigido por homens, tendo como único objectivo combater A Bandeira e fê-lo de forma, de resto, bem soez e grosseira. O ob- jectivo foi conseguido, porque duas das redactoras se afastaram (possivelmente por pressões familiares), inviabilizando a continuidade do jornal. O nosso preito a Pátria Ramos, a Ária Ramos, a Marta Lebre e Ernestina Abreu, as quatro corajosas mulheres que se atreveram a publicar A Bandeira. Um século de luzes, mas também de sombras, sombras para todas aquelas mulheres que ainda não puderam alcançar o que nós, mulheres do primeiro mundo, conquistámos, mas também de sombras, porque pesam nuvens carregadas sobre o que se alcançou. O capitalismo sob a forma de neoliberalismo trouxe- nos ameaças bem sentidas já no quotidiano dos povos e das mulheres, em particular. Em Portugal, as mulheres estão longe de verem concretizadas todas as condições, todos os direi- tos que no plano nacional e internacional lhe são reconhecidos; pelo contrário, nos últimos anos de políticas neolibe- rais, assistimos a enormes regressões sociais, à perda de direitos laborais, a discriminações salariais que só dão lu- cros às empresas, ao desemprego e à precariedade, à pobreza instituída, mesmo de mulheres que tra- balham, com reflexos profundamente negativos na qualidade de vida e na situação de milhares de famí- lias, nomeadamen- te, das crianças. E que dizer dos direitos relativos à mater- nidade? As alterações ao Código do Trabalho, afectando todos os trabalha- dores, atingem de forma mais grave as mulheres que detêm ainda muita da responsabilidade familiar, senão mesmo toda a res- ponsabilidade em casos de famílias monoparentais. As mulheres idosas vivem em si- tuação verdadeiramente chocan- te, com reformas por velhice cujo valor médio mensal é de 286,11€; também aqui as discriminações persistem, pois, o valor médio da reforma por velhice do homem é de 472,72€ (valor baixo, certamente, para uma vida inteira de trabalho e descontos). Temos razões para celebrar as luzes, para fes- tejar com alegria as vitórias, mas as sombras só se esfumarão pelo reforço da luta das mulheres contra os retrocessos dos seus direitos. Celebremos o centenário do Dia Internacional da Mulher, porque apesar da existência de inúmeras desigualdades e injustiças, temos de valorizar as conquistas sociais, cívicas e políticas que se devem às lutas das mulheres e manter viva a actualidade da intervenção das mulheres em defesa dos seus direitos, conscientes de que a sua participação contribui para uma sociedade mais equilibrada, mais justa e com mais cidadania. Anita Vilar, Maria Madalena Fialho Patrícia Trindade Coelho e Rita Olveira Martins Nô Kume Sabi: a chegada à Guiné PÁG. 03 Teatro: esta arte jovem tão antiga PÁG. 15 O u s e m o s s o n ha r

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Jornal cultural e debates

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Page 1: NR 2_O SUL_MAR_10

Ano: 2010 . nr 02 . Mês: Março . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço: 0,01 €

03.10 NR

02

www.jornalosul.com

ASTROLÁBIO

N o ano em

que se come-mora o centenário

da proclamação do dia 8 de Março como Dia In-

ternacional da Mulher, é com alegria e justificado orgulho que

escrevemos este editorial.Conscientes de que «este século de lu-

zes e de sombras» não contemplou ainda as mulheres de todo o planeta, não pode-

mos deixar de o valorizar como o século das mulheres que conquistaram direitos, se eman-

ciparam e demonstraram as suas capacidades em todas as áreas da actividade humana.

Escrever num jornal foi uma luta travada pelas mulheres, luta dura como todas as que foram tra-

vando e de que foram saindo sempre vitoriosas.Em Portugal, no início do século XIX, era uma raridade a mulher jornalista, escondendo-se quase sempre no anonimato. É necessário recordar que escrever, reflectir e pensar em público eram consideradas activida-des masculinas. De resto, a virtude estava associada à ignorância. Contudo, a partir dos meados do mesmo século, a mulher instruída percebeu que teria de usar a imprensa

para fazer ouvir a sua voz, os seus anseios e fazer dela a tribuna de luta debatendo proble-

mas, expondo ideias e propondo soluções.Em 1849, surge A Assembleia Literária,o

primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher, Antónia Pusich, e que

se dedicou à instrução do sexo fe-minino. Outros surgiram, dos

quais referimos A Voz Femini-na, em 1868 e O Progresso

em 1869, fundados por Francisca Wood, O

Almanaque das Senhoras

em

1870, fundado e dirigido por Guiomar Torrezão; Elisa

Curado dirige A Mulher, surgido em 1883; Beatriz Pinheiro funda e dirige A Ave Azul em 1898.Excepto o jornal A Ave Azul que se localizava em Viseu, todos os outros eram editados em Lisboa.O direito à educação foi o que surgiu nestes pri-meiros jornais. Em 1844, havia 44 escolas que eram frequentadas por 1835 meninas. Compre-ende-se, pois, porque as taxas de analfabetismo feminino eram elevadíssimas, 85%, num país rural, pobre e esmagadoramente analfabeto (a taxa de analfabetismo masculina era de 75%). Só as mulheres das classes altas tinham acesso à instrução. Mais tarde, surge o direito ao trabalho como reivindicação da emancipação feminina e depois o direito ao voto como direito político elementar numa socie-dade que se acreditava democrática e liberal.Em Setúbal, A Bandeira, o primeiro jornal fundado

e dirigido por mulheres, surgiu só em 4 de Dezembro de 1910 e apenas foram publicados 4 números, porque a sanha masculina foi tão grande que foi editado um jornal, dirigido por homens, tendo como único objectivo combater A Bandeira e fê-lo de forma, de resto, bem soez e grosseira. O ob-

jectivo foi conseguido, porque duas das redactoras se afastaram (possivelmente por pressões familiares), inviabilizando a continuidade do jornal. O nosso preito a Pátria Ramos, a Ária Ramos, a Marta Lebre e Ernestina Abreu, as quatro corajosas mulheres que se atreveram a publicar A Bandeira.Um século de luzes, mas também de sombras, sombras para todas aquelas mulheres que ainda não puderam alcançar o que nós, mulheres do primeiro mundo, conquistámos, mas também de sombras, porque pesam nuvens carregadas sobre o que se alcançou.O capitalismo sob a forma de neoliberalismo trouxe-nos ameaças bem sentidas já no quotidiano dos povos e das mulheres, em particular. Em Portugal, as mulheres estão longe de verem

concretizadas todas as condições, todos os direi-tos que no plano nacional e internacional lhe são reconhecidos; pelo contrário, nos últimos anos de políticas neolibe-rais, assistimos a

enormes regressões sociais, à perda de direitos laborais, a discriminações salariais que só dão lu-cros às empresas, ao desemprego e à precariedade, à pobreza instituída, mesmo de mulheres que tra-balham, com reflexos profundamente negativos na

qualidade de vida e na situação de milhares de famí-lias, nomeadamen-te, das crianças. E

q u e d i z e r dos direitos relativos à mater-nidade? As alterações ao Código do Trabalho, afectando todos os trabalha-dores, atingem de forma mais grave as mulheres que detêm ainda muita da responsabilidade familiar,

senão mesmo toda a res-ponsabilidade em casos de famílias monoparentais.As mulheres idosas vivem em si-tuação verdadeiramente chocan-te, com reformas por velhice cujo valor médio mensal é de 286,11€;

também aqui as discriminações persistem, pois, o valor médio da reforma por velhice do homem é de 472,72€ (valor baixo, certamente, para uma vida inteira de trabalho e descontos).Temos razões para celebrar as luzes, para fes-tejar com alegria as vitórias, mas as sombras só se esfumarão pelo reforço da luta das mulheres contra os retrocessos dos seus direitos.Celebremos o centenário do Dia Internacional da Mulher, porque apesar da existência de inúmeras desigualdades e injustiças, temos de valorizar as conquistas sociais, cívicas e políticas que se devem às lutas das mulheres e manter viva a actualidade da intervenção das mulheres em defesa dos seus direitos, conscientes de que a sua participação contribui para uma sociedade mais equilibrada, mais justa e com mais cidadania.

Anita Vilar,

Maria Madalena Fialho Patrícia Trindade Coelho

e Rita Olveira Martins

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Teatro: esta arte jovem tão antigaP

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Ouse

mos sonhar

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Desafios para a próxima ediçãoO Sul é um jornal aberto

à colaboração de todos, aco-lhendo artigos de opinião, re-flexão ou análise, reportagens, entrevistas ou textos de di-vulgação científica, que serão seleccionados pelo Conselho Editorial d’O Sul.

São aceites todos os con-tributos, sem restrições .

Seguem abaixo os nossos desafios para os próximos

números. As sugestões são meramente indicativas e os ângulos de abordagem de-pendem da criatividade de cada um.

Edição n.º 3Entrega: até 26 de MarçoSai em meados de Abril

Precariedade – A Constituição da República Portuguesa de-

fende a segurança no traba-lho, mas cada vez se respeita menos este direito. Que me-didas podem ser tomadas para inverter esta situação, tanto a nível legal como de organi-zação dos trabalhadores?

Lusofonia – «Minha pátria é a língua portuguesa», afirmava Bernardo Soares, semi-hete-rónimo de Fernando Pessoa.

Se assim for também para nós, o que significa o novo acordo ortográfico? E porquê tanto desassossego em torno dele?

Religião – Se o que faz a reli-gião é a prática, fará sentido alguém afirmar-se católico (ou muçulmano, ou judeu) não praticante? E como são hoje vistas as efemérides reli-giosas? E a fé individual?

Os artigos devem se-guir as normas para envio de contributos indicadas abaixo e ser enviados para o e-mail [email protected]. Caso não tenha possibilidade de usar este meio de comunicação , contacte-nos através do telefone 963 883 143 para, em conjunto, encontrarmos uma solução.

São capazes de já ter ouvido falar de um grupo chamado Monstro Mau. São do Porto, têm dois álbuns lançados e são uma banda de funk à antiga, com guitarras wah-wah gor-das e um groove cheio de gin-ga, com resquícios do tropica-lismo brasileiro. No princípio

do ano, depois de lançarem o disco mais recente – intitula-do “Lixo” –, os Monstro Mau apresentaram um desafio ao público: rodar um teledisco para o seu primeiro single, “O realizador”, uma canção de bossa nova a resvalar para o jazz. Em troca ofereciam uma

câmara de filmar super 8mm, alguns rolos de filme e respec-tiva revelação, uma claquete e a discografia da banda.

A Low Cost Filmes pres-tou-se a aceitar o desafio. Principalmente porque uma claquete fazia-nos muita falta. Afinal de contas, andamos há

dois anos a filmar sem uma. Que credibilidade dá isto a uma produtora audiovisual que se quer credível?

Ao digitalizar as imagens de uma filmagem que tínha-mos feito para o primeiro de dois telediscos que estamos a realizar para os Nervo – ban-da rock em português aqui nossos vizinhos, da Moita –, uma lâmpada piscou sobre as nossas cabeças: era uma ideia. Ao vermos uns grandes pla-nos dos pés da banda a baterem ao ritmo da mú-sica veio-nos a imagem de um teledisco inteiro feito apenas com pés. E como a mú-sica dos Monstro Mau se chamava “O realizador” e a letra continha uma série de referências à sétima arte, que tal pormos esses pés a fazerem algumas cenas emblemáticas do cine-ma que envolvam dança?

Três dançarinas reunidas, um figurante, um cenário montado no espaço gentil-mente cedido de uma com-panhia teatral setubalense (obrigado Teatro Estúdio Fontenova) e meio dia para filmar “O realizador”, versão Low Cost Filmes. Mais um dia para montar, outro par de horas para acrescentar uns “efeitos especiais” e siga para bingo.

A cerimónia para anunciar o vencedor decorreu no bonito espaço do cinema Passos Ma-

nuel, no Porto. Rui Reininho, dos GNR (vénia), foi o anfitrião e foi ele que anunciou a Low Cost Filmes como vencedora do novo teledisco dos Mons-tro Mau, escolhido de entre os dez participantes pelo júri que incluía o Tiago Guedes, realiza-dor de filmes como “Coisa ruim” e “Entre os dedos”, ou a Luísa Sequeira, a jornalista da RTPN que apresenta o programa “Fo-togramas”. Quem se baldou foi o

Mário Augusto, supostamente por ter ido en-trevistar o Woo-dy Allen. Como é que dá para perceber estas prioridades?

A b a n d a d e u - n o s o s parabéns , o júri deu-nos os parabéns e o Rui Reini-

nho deu-nos os parabéns. A Prima Folia convidou-nos a escrever sobre isso nesta nova edição de O SUL e nós aceitámos, mesmo correndo o risco de soarmos pedantes. Para casa já havíamos trazido o ego inchado, a sensação de dever feito, o teledisco novo de uma das boas bandas nacionais que por aí andam sem receberem a atenção que mereciam e uma claquete. Só não trouxemos o disco novo dos Monstro Mau, porque o Reininho se abarbatou dele. Malvado!

António AleixoRealizador e montador

Low-Cost Films

“A demanda da claquete”

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“ Ao vermos uns grandes planos dos pés da banda a baterem ao ritmo da música veio-nos a imagem de um teledisco inteiro feito apenas com pés.

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Nô Kume Sabi: a chegada à Guiné

Só tivemos um desnutrido grave o ano passado. E foi em Dezembro”, conta-me Nunki, meio desiludido por esta criança lhe “estragar” as estatísticas. É o responsável pela farmácia e pelos registos do Centro de Recu-peração Nutri-cional (CRN) de Cacheu, Guiné-Bissau, onde as Irmãs Francis-canas de Nos-sa Senhora da Aparecida, em parceria com o ISU - Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária, desenvolvem, des-de 2006, o projecto Nô Kume Sabi, de combate à desnutrição materno-infantil, articulando o estímulo à produção local, com a alimentação alternativa.

Estou em Cacheu há dois dias, há um mês em solo guineense e procuro conhecer todas as dinâmicas e procedimentos do

Centro de Produção e do CRN de Cacheu: segundas e quartas-feiras são dias de Tabanka, uma espécie de serviço ambulatório que leva às populações isoladas consultas gratuitas e permite

fazer um contro-lo nutricional das crianças; terças e sextas-feiras são dias de atendi-mento no CRN, de crianças num dia e grávidas no outro. Fazem o atendimento e

controlo de crianças em situ-ação de desnutrição, pesam-nas e medem-nas e ensinam às mães a preparar refeições equilibradas e diversificadas com produtos locais. Às grá-vidas é dada formação, que as prepara não só para o perío-do da gravidez, mas também para os cuidados a ter com os filhos.

“A formiga afunda-se num

copo de leite materno como se afoga se a colocarem num copo de água. O vosso leite é bom e é, aliás, o mais rico alimento que podem dar nos primeiros seis meses de vida”, explica um dos animadores procurando desmistificar um dos muitos mitos exis-tentes que levam as mães a abandonar a amamentação porque considerarem que o leite é mau para o bebé.

O objectivo é claro e insinua-se nas diferentes actividades do projecto: dar a conhecer os benefícios de uma alimentação rica e variada como essenciais e como a base para uma vida saudável e um desenvolvimen-to normal.

Centro de Produção: a Mul-timistura

Ao mesmo tempo, a cerca de 500 metros, e dentro do espaço da Missão, os trabalha-dores do Centro de Produção

lavam, secam, descascam e pi-lam os alimentos que depois de triturados e transformados vão compor a Multimistura, a Farinha de Cabaceira ou a Papa de Milho Preto. Os in-gredientes são comprados a produtores individuais nas Tabankas de Cacheu, fomen-tando a economia da região e aumentando os rendimentos familiares, numa região onde a produção agrícola familiar é cada vez menos variada e mais insuficiente, o que contribui para a precariedade da saúde da população e para o surgi-mento de numerosos casos de desnutrição, essencialmente na população infantil.

Compra-se a cabaceira, a moringa e o farelo de arroz. O caju, a folha de batata e a folha de mandioca são cultivados no espaço da Missão. Os ingre-dientes são transformados, junta-se o Farelo de Arroz e a Multimistura está pronta a

ser embalada em embalagens de 100 gr, disponibilizadas ao público por 500 francos CFA. A Multimistura é um suple-mento alimentar, feito à base de produtos locais, muito rica em nutrientes (ferro, proteí-nas e vitaminas), que em geral, não estão presentes da dieta alimentar da Guiné-Bissau, ba-seada no consumo de hidratos de carbono.

Considera-se que o con-sumo da Multimistura tem desempenhado um papel muito importante para travar o surgimento de mais casos de desnutrição, tendo essencial-mente um carácter preventi-vo, como defende o texto do documento de validação da MM, emitido pelo Ministério da Saúde da Guiné-Bissau.

Formação

“As proteínas são os ele-mentos construtores e encon-tram-se no peixe, na carne, ovos…”, diz Miro enquanto mostra um cartaz com uma casa com tijolos que põe em imagens o que acaba de dizer. Não existe qualquer espécie de consciência alimentar e a alimentação responde a um instinto biológico. É preciso mostrar que cada tipo de nu-trientes tem uma função espe-cífica e que são fundamentais para o desenvolvimento. “As proteínas para construir, as vitaminas para afastar as do-enças e os minerais para regu-lar as funções do organismo”. Faz-se educação alimentar, educação para saúde e para os cuidados com a higiene, promove-se o consumo de produtos locais, o cultivo e as hortas comunitárias.

A formação é uma das acti-vidades da minha responsabi-lidade quando faço o acom-panhamento aos CRN. Serão mais de 50 as visitas este ano e muitas as formações. Pelo que já me pude aperceber a heterogeneidade predomina ao nível dos CRN, havendo uns totalmente auto-suficientes e outros com inúmeras defici-ências.... Trabalho não falta, num país em que quase tudo parece estar por fazer.

Margarida MadureiraVoluntária do ISU

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“ Não existe qualquer espécie de consciência alimen-tar e a alimentação responde a um ins-tinto biológico.

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A Natureza é imprevisível, é a sua natureza. Somos nós que temos de estar preparados.

Antes mesmo da nossa ca-beça surgir ansiosa sobre o ca-pim e de darmos os primeiros passos no planeta já havíamos descoberto, às nossas custas, de que espécies de animais deví-amos fugir e quais as que não eram de temer. Ao levantarmos o tronco e erguermos a cabeça, procurámos uma visão mais privilegiada das coisas. Procu-rávamos antecipar os perigos.

As ameaças constantes à nossa sobrevivência fizeram com que desenvolvêssemos atributos de observação. Atra-vés destes, desvendámos, mais

tarde, os segredos das sementes e aprendemos a escolher os me-lhores solos para o seu cultivo. Abandonámos o nomadismo e a recolecção, e construímos povoações. Durante essa tran-sição ficámos muitas vezes sem abrigo, porque os construímos em locais sujeitos a deslizamen-tos, inundáveis ou expostos a marés extraordinárias.

Foi a capacidade de es-tabelecermos uma relação entre as nossas desgraças e as suas causas que nos distin-guiu dos restantes animais e nos fez chegar até este tempo, triunfantes sobre as parcas probabilidades que a Natureza remotamente nos reservou.

Tivemos sucesso porque o instinto e a inteligência permi-tiram que nos adaptássemos aos sortilégios da Natureza.

Já não somos uma espécie frágil procurando sobrevi-ver entre as demais num ambiente agreste.

A capacidade de comunicar gerou cultura, o conhecimento trouxe tecnologia, os artefac-tos colocaram-nos no topo da evolução. Passámos de caçados a predadores.

Multiplicámo-nos e modelá-mos o ambiente à nossa ima-gem e chegámos a um ponto em que concorremos pelo espaço e pelos recursos contra todas as outras espécies animais e vegetais. Toldados pela insa-ciedade, transformámo-nos na única espécie que inventa necessidades.

Menosprezamos que os rios, os mares e as florestas não são inesgotáveis, continu-amos a usá-los sem controlo e sem deixar que se regenerem, conduzimos espécies à extin-ção. Ao fazê-lo fragilizamos as condições que nos têm garantido a existência.

O conhecimento científico actual aponta e acusa: as des-graças naturais que ocorrem no nosso mundo não são “obra da cólera dos deuses”, como diria a ignorância dos antigos, mas o resultado de acções hu-manas concretas.

Apesar das luzes de aviso que se acendem por todo o mun-do, deixamos que se apoderem da Natureza como se esta fosse uma Mercadoria e que a cir-cunscrevam a “parques natu-rais” e “reservas agrícolas”, cada vez mais reduzidos pelo apetite da especulação imobiliária.

Permitimos que moldem o nosso habitat e as nossas ci-dades ao arrepio da convivên-cia com a Natureza, deixamos que os únicos parques urbanos sejam os de estacionamento, achamos natural que os carros se apoderem do nosso espaço e dos nossos pulmões e que até as praias onde os nossos avós se banhavam nos sejam negadas em nome do “progresso”.

Ao contrário do que os nos-sos ancestrais a p r e n d e r a m dolorosamente, deixamos que se construa nos leitos de cheias e nas zonas de drenagem das chuvas, que se ocupem de prédios as sensíveis zonas ribeirinhas como forma de as “devolver aos cidadãos”. Permitimos que a única precaução contra as ocorrências extraordinárias da Natureza e a segurança das populações seja aquela que possa ser contabilizada pelas companhias de seguros.

Nesta batalha mercantil que vamos travando contra a Natureza, há mais vítimas que a degradação ambiental. A redução dos recursos está a colocar quem os detém contra quem deles precisa, fazem-se guerras para conquistar o que sobra. Para manter a loucura consumista, uma minoria es-preme o planeta até à exaustão. Enquanto isso as condições mínimas de sobrevivência não passam de uma miragem para milhões de seres humanos.

Da luta contra a Natureza só resultará a derrota da nos-sa espécie. Muitos de nós já chegaram a esta conclusão. Denunciam que consumi-mos e esbanjamos os recursos

mais depressa do que a velocidade com que a Natu-reza os consegue repor. Horroriza-dos pelas conse-quências futuras para a Humani-dade, protestam

e manifestam-se perante a incapacidade dos governan-tes. Desgraçadamente gastam grande parte das suas energias a combater a distracção dos seus concidadãos, que se abs-têm de tirar o leme das mãos irresponsáveis.

José Tavares da [email protected]

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O azar não existe

Imaginem uma cidade onde toda a gente anda de bicicleta e a pé. Imaginem uma cidade sem o barulho e a poluição dos carros. Ima-ginem que é possível ver o mundo um bocadinho mais devagar, que conseguimos descortinar beleza em sítios onde passamos todos os dias. Imaginem a recompensa automática que temos por chegar do ponto A ao ponto B usando apenas as nossas pernas, o prazer de o termos conseguido à custa apenas do nosso esforço.

A bicicleta é uma grande invenção do homem e hoje

em dia não lhe damos valor porque temos sempre os car-ros. O conforto, a velocidade mas também o estatuto que um carro nos dá. A que custo, é a pergunta que temos de fazer. Acidentes, dívidas ao banco, o corpo que se torna flácido, as filas, a irritação porque o carro da frente não anda, porque o semáforo não abre. De bicicleta o caminho para o trabalho torna-se uma corrida, um passeio, uma via-gem. Os pássaros de manhã, os carros parados numa fila, o cheiro a terra molhada, o vento na cara.

A “Massa Crítica” é uma

forma de juntar pessoas que compreendem tudo isto e de cativar algumas mais que o querem compreender. Ape-nas uma vez por mês dá-se um encontro informal em várias cidades espalhadas pelo planeta, onde grupos de ciclistas se reúnem para dar um passeio juntos pela cidade. É uma forma de dar visibilidade a este nobre meio de transporte, de trocar expe-riências e conhecer pessoas e, quem sabe, meter mais gente a andar de bicicleta.

Rui [email protected]

Um pouco mais devagar

> Próximo encontro dia 26 de Março às 18h na Praça do Bocage

“ Menospreza-mos que os rios, os mares e as florestas não são inesgotáveis

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A destruição de uma biblio-teca, ou de um arquivo, é um acontecimento de consequên-cias inimagináveis. Sobre este crime reflectiu Ray Bradbury no romance Fahrenheit 451. A história enquadra-se num futuro ficcional, onde os livros são proibidos, não havendo espaço para a opinião própria e o pensamento crítico é su-primido. Longe do ambiente literário, mas tão perto nas suas consequências, junto de nós, assistimos a uma re-alidade chocante, onde uma biblioteca e um arquivo úni-co, irrepetível, encontra-se em perigo eminente de ser suprimido, extinto. Trata-se da biblioteca e do arquivo do Centro de Cultura Libertária, em Cacilhas.

Desconhecendo, por com-pleto, em que consistia o C.C.L., lá me dirigi numa tarde, maravilhado pela beleza do enquadramento de Cacilhas, onde a dureza da paisagem in-dustrial petrificada, não con-segue empalidecer a ternura que a presença contígua do rio oferece ao casario antigo de Cacilhas Velha. Subindo a Rua Cândido dos Reis, por entre a azáfama de grupos de pessoas que procuram o peixe mais fresco no meio dos inúme-ros restaurantes, lá cheguei ao nº 121, deparando-me com um singelo edifício, talvez de Setecentos, ou inícios de Oito-centos, com dois pisos. Na va-randa do primeiro andar, uma placa, muito apagada, quase já não permite ler “Centro de Cultura Libertária”. Subi as es-cadas, a porta da rua estava aberta, e bati no 1º direi-to. Abriram. Com um sorriso solto, convidaram-me a entrar. Um ho-mem de cabelo grisalho, idade indefinível, bem disposto, rapida-mente me fez sentir em casa. O Centro dispõe de uma sala de biblioteca, uma sala de tertúlia e uma copa onde se confrater-niza igualmente. Tudo o que lá existe, a vista alcança em três minutos, mas leva horas para realmente se ver.

Decorria uma tarde cultural. Na sala meia dúzia de pessoas

de todos os géneros, de todas as idades, amenamente ca-vaqueavam. Procedeu-se à passagem de um filme, sendo que, de seguida, promoveu-se debate de ideias, explanan-do posições, contrapondo, clarificando e partilhando conhecimentos, percepções. A discussão esteve animada, prolongando-se para lá do filme, para lá do realizador, em conversa sadia. No final, gentilmente, partilhou-se chá, para retemperar forças.

É deste espírito de partilha, olhar plural e solidário, que nasce a revista publicada pelo C.C.L., a Húmus, homenagem merecida ao grande escritor Raul Brandão que, com a publicação do romance com este mesmo título nos dis-se, de forma veemente: “nós não somos inutilidades num mundo feito, mas os obreiros de um a fazer.”

Pude então observar a bi-blioteca. Cerca de dois mil volumes com os expectá-veis Proudhon, Bakunine e Racine, um improvável Ge-orge Orwell, bem como os portugueses, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Edgar Rodrigues, Ana Barradas e Júlio Carrapato. Biblioteca de uma associação sem fins lucrativos, é de acesso livre, nada se cobrando pela con-sulta e requisição das obras de fundo especializado.

Criado logo após o 25 de Abril de 74, por militantes antifas-cistas anarquistas, pautando figuras como Francisco Quintal, Jaime Rebelo, Adriano Bote-

lho, Sebastião de Almeida e José Correia Pires que, no Tarrafal, pagou pesado tributo pela sua coerência. Dife-rentes publica-ções surgiram ao longo dos 36 anos de exis-

tência deste espaço cultural, como o jornal Voz Anarquis-ta, na década de 70, a revista Antítese, em 80 ou o Boletim de Informação Anarquista, em 90 do Século XX.

Em Janeiro de 2009 foi ins-taurada uma acção de despe-jo pelo novo proprietário ao C.C.L., apesar da associação

pagar renda com pontualidade e conforme ao acordado. No dia 2 de Novembro foi de-cretada sentença favorável ao proprietário, que alegou que a associação fazia ruído, o que para além de ser senso comum, sublinha apenas a vi-talidade da mesma. Estranha é a celeridade com que o Tri-bunal de Almada sentenciou uma ONG, quando já vai de Novembro de 2006, ultrapas-sando se não todos os prazos legais pelo menos os morais, para se pronunciar sobre o processo que as autarquias da Arrábida colocaram à SECIL, a propósito do problema de saúde pública inerente à co-incineração na cimenteira. Se a justiça deve ser cega, aqui apresenta-se zarolha…

Com todas as valências acima enunciadas, que só por si justificam a utilidade social e pública de um espa-

ço com estas características, o C.C.L. possui um fundo do-cumental insubstituível, que encerra um século inteiro de história do movimento anarco-sindicalista e anar-quista em Portugal. Raro, precioso, retrata, ao invés da habitual documentação, a história das gentes, na sua maioria simples trabalhado-res, fazendo deste espólio um dos mais importantes para a compreensão das lu-tas sociais do país no Século XX. Não é requisito partilhar da ideologia vigente do Cen-tro, para se perceber a im-portância extraordinária do ele encerra, basta perspec-tivar a preservação da me-mória colectiva portuguesa, na qual se inclua todos os portugueses, como útil.

A questão que se levan-ta em todo este processo é pertinente. Se for realizado

o despejo, o que acontece-rá ao fundo bibliográfico e arquivístico? A resposta é, infelizmente, também ela evi-dente. A documentação será encaixotada o melhor que for possível aos voluntários da associação que, por sua vez, entre si distribuirão as tarefas de armazenamento do mes-mo, em situação precária e com a boa intenção de o reu-nir novamente em dia mais bonançoso. Porém, o ânimo inflamado que entusiasma a dedicação actual ir-se-á perder em dois ou três anos e as pessoas vão seguindo com suas vidas. Os contac-tos entre uns e outros, sem o espaço que a todos une, paulatinamente esboroar-se-ão. Em suma, por essa altura, adquirir-se-á a consciência daquilo que já se sabia antes. É inseparável o espólio do sí-tio onde está radicado, ambos são um mesmo conjunto, uma mesma coisa.

Numa noite amena, 77 anos antes, milhares de jovens armados com ar-chotes, incitados por Goe-bbels, atearam fogo a pilhas de livros, cerca de 20 000 crê-se. Autores como Wal-ter Benjamin, Thomas Mann, Bertold Brecht, Erich Maria Remarque, Karl Marx, Sig-mund Freud ou Albert Eins-tein arderam na pira. Como desabafou Heinrich Heine, a propósito da intolerância: “onde começam a queimar livros, terminam a queimar homens.” Ao que parece, es-quecer o passado permite perpetuar erros cíclicos e temos em crer, à luz do que pudemos verificar, que o Tribunal não julgou com verdadeira Justiça. Encer-rando o C.C.L., desbarata-se uma biblioteca e um arquivo inestimável, constituindo-se este caso como o mais dramático crime da história da cultura da Margem Sul do Século XXI. Sem este acervo será, doravante, impossível desvendar os mistérios so-bre o passado colectivo da região; existirão lacunas que nunca mais poderemos vir a preencher.

José Luís [email protected]

Evitem pedir desculpa às gerações vindouras

“ (...) uma biblioteca e um arquivo único, irrepetível, encon-tra-se em perigo eminente de ser suprimido

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Desde 1961 que o Instituto de Estudos de Teatro, uma organização que a UNES-CO instituiu, celebra a 27 de Março, o Dia Mundial do Teatro. Nesse dia, é lida uma mensagem de uma persona-lidade ligada a esta arte, que será ouvida em cada sala por todo o mundo. O primeiro foi Jean Cocteau, em 1962. Até hoje foram homenageados nomes como Pe-ter Brook, Pablo Neruda, Iones-co, Arthur Miller, Edward Albee, Va-clav Havel e no ano passado, Augusto Boal. Infelizmente, Boal faleceu uns meses de-pois, mas a sua obra ficará para sempre. Boal foi o cria-dor do chamado “Teatro do

Oprimido”, um teatro com pendor social bastante for-te, dando voz a quem habi-tualmente não a possui. Foi no Brasil que começou, nas favelas e bairros sociais. Um teatro que fala dos problemas comuns de toda uma popula-ção. Temas como o racismo

e a xenofobia, as discrimina-ções sexuais e de género, as discriminações sociais, são re-tratadas neste tipo de teatro. O o b j e c t i vo é pôr todos a

falar sobre tudo, sem tabus nem temores. E isto leva-me à primeira questão: quem po-derá ter capacidade para ser actor? Pois, socorro-me de Boal para a resposta: “ Todos

nós podemos ser actores, até mesmo os próprios actores”. Com esta frase Boal vem dis-sipar todas as dúvidas. Todos nós podemos e devemos ser actores sociais durante a vida. Devemos ser activos, participativos, para as mu-danças que todas as socieda-des anseiam. Uma condição essencial para que haja teatro é a de que exista simultanea-mente acção. Sem acção não há vida, e o teatro é a vida em acção. Retomo a Boal: “Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”

Quanto aos próprios acto-res, esses, têm um papel deci-sivo na mudança de menta-lidades e transformação das sociedades. Os actores profis-sionais devem ser exemplos

éticos de profissionalismo, de valores de cidadania, de solidariedade, de alavancas para a mudança de compor-tamentos e de atitudes. Como diria Grotowski, o actor é um sacerdote, pois tem de ser exemplar na sua profissão. Não pode ceder aos caprichos dos poderes instituídos, nem ao facilitismo da fama e do estrelato espúrios, que infe-lizmente abundam cada vez mais no nosso meio audiovi-sual. Além de ser um exemplo para os outros, os actores e criadores de teatro utilizam os textos e as palavras de gran-des dramaturgos para passar mensagens e novos modos de pensar o mundo.

Isso leva-nos à interroga-ção final: como pode o tea-tro contemporâneo competir com este mundo moderno e pejado de dimensões audio-visuais e virtuais? Pois o que pode parecer fraqueza, julgo ser a maior virtude do teatro: ao contrário de outras artes, é uma arte presencial, a três dimensões, em que ocorre uma partilha simultânea entre actores e público. A atmosfera criada na sala de teatro é diferente de sessão para sessão. O actor num dia pode enganar-se numa parte de um texto, o público num dia ri-se mais, noutro não se ri tanto. Tudo isto faz com que cada espectáculo seja único, ao contrário do

cinema ou da televisão, em que podemos repetir indefi-nidamente aquela cena, que sairá sempre igual. No teatro temos a imprevisibilidade e a efemeridade. O teatro é efémero. Termina com os aplausos da representação. O teatro é um mundo de par-tilha, de comunicação viva e em directo.

Ao invés, o virtual é deso-ladoramente sempre igual e formatado. No virtual vivemos emoções que, no fundo, são de uma profunda solidão. O mundo moderno é uma parti-lha fictícia, basta ver quantos se iludem perante um écran de televisão. O mundo real é o do teatro, onde o ser huma-no se mostra perante outros humanos, num processo de comunicação mútua e bilate-ral. Claro que o teatro actual também pode e deve utilizar alguns meios modernos de comunicação, mas nunca poderá existir teatro sem esta força dupla: o actor perante um público.

Concluindo, volto a Augus-to Boal: “Teatro não pode ser apenas um evento. Teatro é for-ma de vida!”. Continua a ser essencial para as sociedades, pois é uma forma verdadeira de mostrar a vida dos seres humanos e reflectir sobre as suas atitudes.

Mário Rui FilipeEncenador, Actor e Professor de Teatro

O Teatro

“ Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”

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Nasci no sexo feminino. Não sei como fui recebida nesta condição tão marcante para uma vida. A dificuldade de expressão de sentimentos de uma mãe demasiado ocupa-da e a expressão ambivalente de um pai ora amoroso, ora agressivo, foi fazendo de mim uma sombra de um irmão de-masiado inteligente para que achasse graça própria.

Fui Maria-Rapaz, gostando apenas das brincadeiras atlé-ticas e de risco, como trepar árvores e pular muros. Também brinquei aos sol-dadinhos, não me lembrando hoje se ganhava ou perdia batalhas contra o meu ir-mão. Cresci, mes-mo assim, com graça de menina, apesar de minha mãe sempre me dizer que tinha corpo de homem devido a ser demasiado musculada, dizia. Também durante anos reforçou a ideia de que teria as sobrancelhas demasiado grossas.

Na adolescência, curiosa-mente, era bastante cobiçada pelos rapazes. Sem ser boni-ta, teria com certeza alguns atractivos que a isso levavam. A esse facto todavia, não lhe dei qualquer importância. Desde nova que me focava unicamente em quem gos-tava, tudo o resto não tinha valor. Lá fui tendo os meus namorados mas, confesso, sempre escolhendo-os mal. Pessoa submissa mas alegre, via que a minha mãe não acertara, que fugia ao vati-cínio da sacerdotisa, pois fui vivendo pensando que seria sim, feminina.

Os anos passaram, encar-

regando-se de estiolar o op-timismo da juventude. A vida acabou por me ofertar papéis difíceis, entre o masculino e o feminino. Mãe extremo-sa, mas pai em simultâneo. Dona de casa, boa cozinhei-ra, sabendo fazer malhas e bordados, bem característico de uma mulher, mas supor-te financeiro do agregado. Trabalhos, canseiras, que durante tempos e tempos pensei nunca mais iriam aca-bar. No entanto, ganhando

e trabalhan-do sozinha, tratando ao mesmo tempo da economia doméstica, lá estava o ou-tro papel bem característico do que nunca

soube o que era ter: “ um chefe da casa”.

Assim vivi dividida e so-brecarregada com a respon-sabilidade, com a carga, com um peso do qual apenas por vezes, aliviava, enquanto so-nhava almejar um amor eter-no, que me desse felicidade e leveza que provavelmen-te, por não estar habituada, não saberia gerir. Alimentada de quimeras, vejo hoje que tudo voltou ao mesmo lugar, da ambivalência andrógina mulher-homem, quer nas responsabilidades, quer nas emoções. Em casa o papel é de um homem. Na profis-são, substitui um homem. No aguentar os desgostos, papel de homem, pois dificilmen-te as mulheres aguentam tão pesada carga. No pensar to-dos os dias na morte, por não aguentar mais dor, creio que é papel de homem, pois mãe nenhuma, sem pai para divi-

dir, se pode dar a esse luxo de pensamentos. Um eterno retorno entre a esperança e a frustração inevitável.

Numa coisa sou mulher.

No amor que sinto por um homem. E também, contra-riando o papel de mulher e ganhando coragem para assumir mais uma vez uma

atitude atípica, te pergunto: Queres casar comigo?

Margarida VazFuncionária da Administração Pública

Testemunho de mulher

“ A vida aca-bou por me ofertar papéis difíceis, entre o masculino e o feminino.

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Cem anos antes...No dia 8 de Março de 2010

celebram-se os cem anos do Dia Internacional da Mulher. Embora cada vez mais detur-pado pelo pensamento domi-nante, este dia representa, na realidade, a luta das mulhe-res trabalhadoras pelo fim da sua exploração e opressão. A origem deste dia suscita algu-ma controvérsia na historiografia, contudo, existe uma versão dos factos que é a mais consensual. Con-ta a história que o dia 8 de Março se deveu à luta das 129 trabalhado-ras de uma fábrica têxtil de Nova Iorque, em 1857, quando estas organizaram uma greve e ocupação pela diminuição da jornada de trabalho, que terminou com os patrões a trancá-las dentro da fábrica e a incendiar o edifício, causan-do a sua morte. Assim, o Dia

Internacional da Mulher terá surgido por uma proposta de Clara Zetkin – editora do jor-nal socialista A Igualdade – ao II Congresso Internacional das Mulheres Socialistas, que se realizou em Copenhaga, já em 1910 - este dia seria um marco histórico para relembrar todas as lutas e

conquistas da mulher explo-rada, e serviria para homena-gear as lutado-ras em todo o mundo.

Sete anos de-pois da realiza-ção do II Con-gresso, deu-se a r e vo l u ç ã o

russa, na qual as mulheres russas lançaram o tiro de partida para a revolução, a Fevereiro de 1917. Nesse ano, as mudanças na vida destas mulheres ocorreram à veloci-dade da luz: foi a primeira vez que se legalizou a interrup-ção voluntária da gravidez, foi

feito um devido planeamen-to familiar, deu-se apoio na maternidade com a criação de creches, houve diminui-ção da jornada de trabalho e houve a possibilidade de todas as mulheres acederem à educação, tornando-se cada vez mais independentes. Por esta altura, as mentalidades começavam a mudar...

Cem anos depois... Passados todos estes anos

algo mudou mas, porém, qua-se tudo continuou como esta-va... A legalização da interrup-ção voluntária da gravidez só foi possível, em Portugal, 33 anos depois do 25 de Abril: foi uma grande vitória, contudo, a mulher continua a não ter à sua disposição um plane-amento familiar devido, feito pelo Serviço Nacional de Saú-de. Continua colocada para segundo plano no acesso ao emprego, bem como no sa-lário recebido relativamente ao homem, a ser explorada no trabalho, precária, sujeita

a despedimentos por engra-vidar, tendo, por vezes, que acumular dois trabalhos para poder manter a sua independên-cia financeira. Se para as que não pretendem ter filhos a vida está cheia de a c r o b a c i a s , então para as q u e p r e t e n -dem torna-se uma verdadeira odisseia: com trabalhos de 12 horas (ou mais) por dia, quem cuida dos fi-lhos? Serão os infantários a 400 euros por mês quando o salário mínimo é de 475 euros?!! Parece-me que não será preciso ser-se contabilista para perceber imediatamente que se torna um cálculo impossível! A du-pla jornada de trabalho con-tinua presente, e a violência doméstica é uma realidade

cruel, a maioria das vezes guardada nas quatro paredes onde ocorre. Parece-me que o 8 de Março é mesmo para

lembrar e também para agir.

Para já!A realidade ac-

tual está atrasada. É importante, de uma vez por todas, que as mulheres exploradas per-cebam que há um culpado por esta situação. O siste-ma capitalista e os seus represen-tantes nunca per-mitirão que estas

mulheres mudem a sua con-dição. Aliás, nunca o permitiu. Apenas lhes dará pequenas reformas, muito progressivas, mas que nunca serão sufi-cientes para acabar com a sua opressão e exploração.

Sofia RajadoProfessora

Dia Internacional da Mulher – O que mudou?

“ (...) este dia representa, na re-alidade, a luta das mulheres traba-lhadoras pelo fim da sua exploração e opressão.

“ (...) ser explo-rada no trabalho, precária, sujeita a despedimentos por engravidar, tendo, por vezes, que acumular dois trabalhos para poder manter a sua independência financeira

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No mês em que se come-mora em todo o mundo o Dia Internacional da Mulher, dedi-co este artigo às mulheres do Sahara Ocidental. São, como tantas outras, uma força vital da sua sociedade. Suportam, como muitas, as privações e um quotidiano agreste e di-fícil. Amam, como todas, as suas famílias e o seu país. E quando se celebra a data pro-clamada em 1910 por Clara Zetkin, em homenagem às operárias que lutavam por melhores condições de vida e de trabalho e na exigência de mais direitos para as mu-lheres, é importante revelar ou relembrar a situação de um povo africano que, em pleno século XXI, ainda luta pela sua auto-determinação e pelo direito a um país livre e independente.

O Movimento Democrá-tico de Mulheres integrou, em Abril de 2009, uma Ca-ravana de Solidariedade aos acampamentos de refugiados sarauís, no sul da Argélia. A

história destes acampamen-tos começa com a grande travessia do deserto, em 1975, fugindo da genocida ofensiva marroquina nos territórios ocupados do Sahara Ociden-tal. As mulheres, carregadas com os seus filhos e ajudan-do os mais idosos, deixando para trás todos os bens que possuíam e perdendo pelo deserto muitos familiares e companheiros, partilharam a injustiça de uma pátria rou-bada e a violência do país opressor.

Tivemos opor-tunidade de co-nhecer melhor como se organi-zaram, destacan-do o determinante papel da União Nacional de Mu-l h e r e s S a r a u í s (UNMS) , como potenciaram as suas capa-cidades para o bem comum, como desenvolveram novas capacidades e investiram no enriquecimento pessoal

para contribuir para o co-lectivo. Visitámos escolas de mulheres, vimos como as preparavam para participar activamente na sociedade e as capacitavam para exer-cer uma profissão, fazendo a difícil aprendizagem da va-lorização do trabalho num espaço onde ele não existe. A par da formação e da pro-fissionalização das mulheres, constatámos também outra componente fundamental

para o desen-volvimento e a emancipação das sarauís: a existência de e s p a ç o s d e discussão e o aprofunda-mento da re-flexão sobre temáticas do quotidiano (o

trabalho, o divórcio, a saúde). A história recente deste povo proporcionou às mulheres uma intervenção determi-nante e transformadora na

sociedade: combateram ao lado dos homens, defende-ram acampamentos, ocupa-ram lugares de decisão, pro-tegeram as suas famílias. E a sua implantação perdura no tempo, reforça-se e alarga-se como vimos na manifes-tação organizada junto ao Muro da Vergonha erguido pelos marroquinos, em que a UNMS coordenou a parti-cipação de mulheres vindas dos vários acampamentos e uma Faixa das Mulheres do Mundo, com representantes de organizações de mulhe-res de vários países, entre as quais o MDM.

Visitámos hospitais e esco-las, abraçámos a generosida-de das mães e brincámos com as crianças da família que nos receberam, conhecemos pro-fessores inspiradores e fomos recebidos pelo Presidente da República Árabe Sarauí De-mocrática. Uma semana plena de informação, conhecimen-to, emoção, partilha.

Para as mulheres portugue-

sas, aderentes do MDM que, como eu, partiram na aventura da solidariedade, só nos resta agradecer a oportunidade que nos deram de conhecer me-lhor o trabalho da UNMS, no difícil cenário que é a sua vida real, e também conhecer mais um exemplo de mulheres que, no mundo, lutam não só pelo dia a dia, pelas suas famílias mas também pelo seu país.

Um século de lutas das mulheres pela igualdade na lei e na vida obriga-nos a reflectir sobre uma compo-nente fundamental das co-memorações do 8 de Março: a solidariedade! Pela nossa parte, contribuiremos para a divulgação de tudo o que vimos e vivemos no Sahara e estamos aqui, ao lado destas mulheres e homens esqueci-dos pelos senhores do mundo, para lutar por um país livre e independente.

Natacha Amaro

Dirigente do Movimento Democrático de Mulheres

Um século de lutas, séculos de resistência

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“ (...) mulheres e homens esquecidos pelos senhores do mundo, para lutar por um país livre e independente.

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Regularmente tenho o mes-mo sonho. Sempre o mesmo sonho. Passo pelo magnífico Bairro Salgado e contemplo toda a sua decoração exterior. Azulejos azuis com cenas bu-cólicas, eternecedoras, familia-res, e, ao longe, vejo a cabeça de uma mulher que me chama .

É estranho, como uma ca-beça que sai de um cenário de teatro, que me grita para ver se vou conversar com ela. Diz que me quer falar. Acho es-tranho, julgo estar doente ou louco, mas não, somen-te durmo. Por isso creio ser possível esse ser poder fa-lar comigo. Diz-me que está muito só, que na maioria das vezes, as pessoas não conseguem ouvir os seus chamamentos .

Aquela mulher pede-me que olhe bem para aquela rua, para os seus azulejos, as suas por-

tas, janelas, tudo aquilo que me pareça mais estranho. Nesse instante dá-se um estranho acontecimento, pois viajo sem sair do lugar, apenas no tem-po, passando para cerca de 100 anos antes. A mulher de azulejo transformou-se numa burguesa instruída e real, con-trariando as chatas senhoras vitorianas da altura.

À época o grande movimen-to artístico era a “Arte Nova”. Esse movimento espalhou-se

e desenvolveu-se, tendo adqui-rido caracterís-ticas nacionais em cada país europeu. Em Portugal, este género de arte

teve pouca influência e em Setúbal apenas algumas ruas da cidade, como as do Bairro Salgado e em alguns casos da Avenida Luísa Todi, foram projectadas segundo

os desígnios de um grupo de arquitectos inspirados nesse estilo. Portugal adoptou o ter-mo “Arte Nova”, do francês “Art Noveau”.

Deixemos as derivações e retornemos ao bairro onde nos encontramos, o Bairro Salgado. Foi aí que observei azulejos azuis e brancos com cenas do quo-tidiano, nessas casas que são unifamiliares. Intelectuais, empresários, a r m a d o r e s eram os habitantes que se alojaram no “resort” periféri-co da cidade. - Neste bairro… - disse a estranha mulher - Foram lançadas as bases do progresso, através de um grupo que se via a si próprio como bem-pensante, que ten-tava proteger-se da maioria da população. A maioria eram

os operários, a paisagem era dos barulhos e dos cheiros das fábricas de conservas. Era, no fundo, uma cidade de arruaceiros. Antes, todo este bairro era um enorme campo, quintas que se projectavam até ao mar. As comunicações feitas eram difíceis e morosas.

Daí que o com-boio veio per-mitir um desen-volvimento maior da nossa cidade, trazendo capitais estrangeiros que deram origem às fábricas de con-

servas. Todas as suas ruas fo-ram planeadas, estruturadas, como se fossem desenhadas num papel, ligadas e trazendo todas as inovações. Foi neste bairro que se concentraram alguns dos melhores exem-plares de “Arte Nova”. Nes-te bairro temos casas com fachadas de azulejos azuis

e brancos com representa-ções familiares, algumas com raparigas em idade de casar. Esses azulejos tinham uma proposta muito subtil que levaria à junção de fortunas e títulos, que dariam lugar à perpetuação da ordem natu-ral das coisas.

Hoje em dia o Bairro Sal-gado é uma sombra daquilo que foi outrora. Bairro geri-átrico, habitado por idosos e edíficios mal tratados pelos seus proprietários. Por vezes creio que essas casas estão assombradas e que os seus habitantes ali desejam con-tinuar, que desejam que as suas memórias sejam recu-peradas, só não sabem fazer manifestações. Digam que ali vivem vampiros, vão ver que as verbas para a recuperação dos edíficios logo aparece.

António AlmeidaHistoriador

As lágrimas do Bairro Salgado

“ Hoje em dia o Bairro Salgado é uma sombra daquilo que foi outrora.

“ viajo sem sair do lugar, apenas no tempo

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Estaciono o carro ao pé de casa e lembro-me que tenho de ir à Baixa. Ainda são 17h. Reparo no trânsito, nos jovens que saem da escola em gru-pos numerosos e barulhen-tos, nas pessoas que saem dos seus empregos e caminham ainda tranquilamente pelas ruas, nas esplanadas da Praça do Bocage e nos gastos ban-cos que a circundam. Reparo nas pessoas que aí estão sen-tadas, com mais de 60 anos e que passam ali muito tempo do seu dia. Uns conversam avidamente sobre o resulta-do do jogo do serão anterior, outros sobre o resultado que há-de ser de esta noite, mas outros, simplesmente ali estão, a olhar quem passa e por vezes até pegam no sono como se da sua sala de estar se tratasse. Depois apercebo-me que talvez a praça seja mesmo a única sala de estar que eles conhecem enquanto tal. Começo a reparar que as pessoas com mais idade têm uma sintonia agradável com certos espaços da Cidade.

“Eu nunca me sentaria num banco da Praça do Bocage, ou do Largo da Misericórdia ou na Avenida Luísa Todi, até por-que corro o risco de ser atro-pelado pelos pombos em voos rasantes (ou coisas piores que caem do céu e nos atingem à traição); nunca passaria na-quelas esplanadas mais de 30 minutos que é tempo suficien-te para lanchar ou beber uma imperial… a Avenida Luísa Todi serve para estacionar o carro e é onde estão os bares. Simplificando, o significado da Praça do Bocage, bem como dos outros espaços são para mim e para muitos, apenas o de meros locais de passagem, o sítio onde está a Câmara,

o sítio onde está aquela far-mácia, o sítio onde nunca há lugar para estacionar e o Lar-go da Misericórdia, nem sei porque é que se chama assim já que a Misericórdia é ao pé do Largo de Jesus. Quanto à

Avenida Luísa Todi, o jardim até é giro, mas não percebo a pseudo-ciclovia enviesada, nem porque à noite continua escuro, perfeito e simpático para acolher a criminalidade e vandalismo.”

Ironia à parte, o ponto cen-tral da questão é que, para as pessoas que acima referi, e outras seguramente, a Praça do Bocage, a Avenida Luísa Todi e o Largo da Misericórdia – que assim se chama porque

lá esteve instalada essa ins-tituição de 1566 a 1914 – são espaços de permanência, com os quais criaram profundos laços de familiaridade e iden-tidades pessoais e colectivas. São espaços de comunhão en-tre o seu passado e a solidão do presente.

No século passado, não há muitos anos atrás, as socia-bilidades entre a população em dias de festa, os namoros, os Carnavais, os cortejos, o trabalho, a assistência, a benemerência, as aparições públicas, as visitas de esta-do, as procissões austeras e tementes, os bailes das asso-ciações, os bailes dos clubs, o mercado… ligaram eterna e solidamente, a Vida ao espaço e a sociedade à Cidade. E a tudo isto eu chamo e conside-ro Património que, apesar de invisível, imaterial, efémero, abstracto e fugaz, faz parte da nossa identidade cultu-ral colectiva. Agora apenas sombras… vultos quase irre-conhecíveis.

Este conjunto de lugares, objectos, práticas e crenças constituem as nossas origens que, uma vez esquecidas, pro-duzem um efeito assustador de desconhecimento e igno-rância nas populações que culminará, por sua vez, na falta de respeito por aquilo que nos rodeia, levando ine-vitavelmente à sua destruição e esquecimento. As eternas questões quem somos e para onde vamos obtêm neste contexto respostas com um significado aterrador: já nos esquecemos e não fazemos ideia. Reflictamos acerca de uma palavra, Património.

Daniela SilvaHistoriadora

As Sombras de Setúbal

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O Pranto de Maria Parda é uma das mais célebres peças de Gil Vicente. Intencional-mente, o grande dramatur-go, retratou a realidade das classes pobres de Lisboa, no Século XVI. Contrariando os discursos que enalteciam e louvavam a beleza e opulên-cia da capital de um imenso império, Gil Vicente procura desvelar a vivência dos negros e mestiços chegados e nas-cidos na metrópole que, em Quinhentos, calcula-se que perfaziam 10% da população de Lis-boa. Muitos eram alcoólatras, mal-crist ianizados, deprimidos pela sub-vida serviçal e sem perspec-tivas de futuro a que estavam votados. Vêm-se carnalizados na figura literária de Maria, arguta e corrosiva obser-vadora da socie-dade, amante do vinho carrascão. Podemos imaginar apenas o impacto que o monólogo terá tido na corte e junto do monarca; quando se viu de-fronte de atrevida mestiça, da base da pirâmide social, para mais mulher, mais a mais sexualmente livre, assumir, entre canadas de vinho, uma das mais lúcidas e desespe-

rançadas críticas à sociedade dos “fumos da Índia”.

Gil Vicente foi genial e ar-rojado, mas quinhentos anos depois já o império se foi, já nada diz. Na linha de exigência a que acostumou o seu públi-co, O teatro Estúdio Fonte-nova diz-nos, uma vez mais, como George Bernard Shaw, que “um delírio nunca foi tão preciso como numa época de crise de ideias.” Respeitando a integralidade do texto vicen-tino e sendo fiel à oralidade

lusa do Sé-culo XVI, não deixa de nos desconcertar e surpreender a reposição de uma das péro-las da literatu-ra portuguesa. A parda Maria é substituída por uma actriz branca como cal, corte de cabelo meta-moderno, com “tailleur” preto acetinado. Os

acessórios, como lençóis de cetim, sapatos altos, cigarros, roupas algo extravagantes, um gravador, um telemóvel 3G e um PC portátil são, numa primeira análise, absoluta-mente contraditórios com a intenção original do tex-to. Contudo, o pai do teatro português não iria desgostar

da adaptação, que procurou um novo ambiente, urbano e contemporâneo, para realçar a intemporalidade do sentido do seu texto. A pobreza mise-rável da parda quinhentista é transformada na miséria pobre da existência actual. A relação virtual que ali é exaltada, a ausência do espi-ritual, característica da classe média contemporânea, é ra-dicalmente assumida como vértice da mensagem. Aliás, é interessante que o espelho seja vazio, como que reafir-mando que somos todos que

nos estamos a ver ao espelho. É a história de Maria, mas … somos todos Marias!

Para lá da coisificação com-pulsiva, uma criatura parda; si-multaneamente pária, perdida e deambulando com desespero na solidão, procurando uma voz que não responde: - “Não sei que faça…” – diz. “Quem quer fogo, busque lenha!” – troça de si. Opressão auto-infligida, é um retrato e metáfora da fra-gilidade humana.

Na estreia, a actriz, Car-la Garcia, não arrebatou no difícil monólogo, mas cum-

priu. Maria Parda, poderosa sedutora cheia de espírito, sorumbática neurasténica, não é fácil de ser interpreta-da por tão jovem profissional. Melhorará, certamente, com o número de representações. Já a encenação de Eduardo Dias, a Banda Sonora de Bruno Mo-raes e a Cenografia de Mónica Santos estão de parabéns, bem como toda a restante equipa associada a esta produção.

Hugo Silva e José Luís [email protected]

[email protected]

O Projecto Maria Parda

“ Na linha de exigência a que acostumou o seu público, O teatro Estúdio Fontenova diz-nos, uma vez mais, como George Bernard Shaw, que “um delírio nunca foi tão preciso como numa época de crise de ideias.”

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Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem.

“Bertold Brecht”

O Vale é um espectáculo produzido pela Arteemrede, da autoria de Madalena Vito-rino, que parte do património dos lugares e das gentes do Vale do Tejo.Começa com um respirar, que é quase um sussur-ro, O Tejo agita-se nos corpos que o compõem, uma criança caminha sobre as águas que invadem as margens. Neste cenário de cheia, através da nossa história e das nossas estórias, através de nós e das nossas memó-rias, os corpos são fotografias em movimento dos nossos hábitos, que a erosão do quo-

tidiano apaga e a dança nos relembra da beleza do sim-ples gesto de existir.

O conceito que a equipa de Madalena Vitorino nos traz, não se enclausura nos ensaios, nem se efemeriza no palco. Onde O Vale se apresenta convida as pessoas da terra a serem par-te integrante do espectáculo, além dos sete dançarinos e dos seis músicos, trinta pes-

soas dos mais variados esca-lões etários co-mungam com os intérpretes a preparação da peça, e com eles sobem ao palco, influen-c i a m e s ã o

influenciados pela peça, há sempre algo de novo para ver a cada representação: “É uma nova forma de ver e aproximar as pessoas ao teatro”, diz-nos a criadora no final da peça.

Tal como o rio, que tem vontades próprias, o espec-táculo transborda para o pú-blico. Somos inundados nas sensações, quer pela música composta por Carlos Bica, que nos traz muitas das so-noridades da região, quer pelos corpos hipnotizantes que respiram a vida, a mor-te como parte dela e as mais básicas ne-cessidades da nossa condição humana, que nos recorda sempre o inevi-tável animal que somos.

Imagens dos animais que n’O Vale habitam são projec-tadas nas vestes (e já nor-malmente nelas existem) e nas peles dos intérpretes, lembrando-nos que parti-lhamos o mesmo habitat. Com o correr dos cavalos,

esquecemos as correrias da vida moderna, reaprendemos o gozo de correr pelo simples gozo, pela liberdade de o fa-zer. Percorrer os campos que nos alimentam e olhar para a terra com a ternura do olhar

de uma criança para a Mãe, e ela sem dúvida o é. A cada movimento dançado enterra-mos mais os pés nesta terra, que é nossa e que so-mos nós, são os animais que nela

habitam, as suas plantas e o seu rio, que transborda para fertilizar tudo à sua volta.

Nas palavras de Madalena Vitorino: “Nesta terra onde o rio é o mar, aprendemos que a pele tem flor, que o gado tem vida de homem, que os lençóis são de água escura, que as pedras se rebentam para fazer nascer as olivei-

ras, que no tomilho poisam morcegos, que o vento lava, leva e traz.”, é desvendada a narrativa que molda os cor-pos, percebe-se o trabalho de pesquisa nas paisagens do Vale do Tejo e o parti-lhar da vida com as gentes e os seres que nele habitam. São os hábitos do trabalho, os costumes, os animais e os campos que saltam para cima do palco, o elo está criado e as mais de quatro-centas pessoas na sala cheia do Fórum Cultural da Baixa da Banheira aplaudem de pé. E isto numa linguagem que normalmente se quer fazer crer estranha para as gentes. Como em tudo, a comunica-ção pratica-se, por muito que alguns nos queiram somente a falar de uma maneira, seja na arte, ou noutros meios...

Leonardo [email protected]

O Vale

“ São os hábitos do trabalho, os cos-tumes, os animais e os campos que saltam para cima do palco“ Onde O Vale se

apresenta convida as pessoas da terra a serem parte inte-grante do espectá-culo

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Num discurso ao país, o nosso Presidente da Repú-blica lançou o alarme “A situação está explosiva”. Governo, jornalistas, co-mentadores políticos, outros sociólogos e os economistas do costume vieram pronta-mente dar-lhe razão.

Espremida a declaração b o m b á s t i c a f i c a o a n a l -gésico, escu-samos de nos pôr por aí a rebentar que eles tratam da situação. Não temos nada a fazer, é melhor continuarmos com a nossa vida, porque ela é assim. Ou, como o jorna-lista do filóso-fo José Gil no seu “Portugal, Hoje o Medo de Existir”: “É assim a vida”. Constatações com o intuito de nos sossegar o espírito, a inevitabilidade, a concor-dância com as pessoas para as manter adormecidas.

Há dias, num dos tele-jornais nacionais, três eco-nomistas concordavam na necessidade de uma inter-venção do FMI (Fundo Mo-netário Internacional) em Portugal. “Há que ultrapassar as divergências para o bem maior que é o país” diziam, um pensamento alinhado que me fez questionar onde andaria o debate. Ouvindo os catedráticos senhores a chegarem tão nobremente a um consenso, recordo-me que ainda no mês passado o generoso e salvador FMI aconselhou o governo por-tuguês a baixar os salários e a congelar o Salário Mínimo. Isto quando temos um dos salários mínimos mais baixos da Europa, 450 euros, um va-lor que corresponde ao único rendimento de grande parte da nossa população, no país europeu com a maior discre-pância salarial entre traba-lhadores e patrões.

Cenário: Centro de Em-prego . Uma voz chama

“número 31, faça o favor de entrar”. Entro na sala e antes que me sente estou a ser gritado, um homen-zinho à minha frente voci-fera que isto é uma repre-ensão e chama por outro nome. Educadamente, ou talvez um pouco a medo, entrego-lhe a carta que me

fez ir ao seu en-contro. Ele olha, pede desculpa e r a p i d a m e n -te torna ao tom acusador, desta v e z a c e r t a n d o no meu nome: “O senhor não sabe que é uma falta de respeito falhar uma apresenta-ção quinzenal? Não pode gozar assim com o di-nheiro dos con-tribuintes. Isto é uma benesse que lhe estamos a dar!”.

Não, não sou criminoso, nem ele é o meu agen-

te de liberdade condicional. O meu crime é estar de-sempregado e ter falhado à apresentação quinzenal. Se eu devesse dinheiro ao Estado, o que não seria... Imagino o Manuel Fino, a reprimenda que ele deve ter levado, ou os raspanetes aos patrões que fecham fábricas com falên-cias fraudulentas depois das benesses do Estado. Ou ainda o Oliveira e Costa e o Dias Loureiro com as suas fugas aos impostos e o dinheiro es-condido nos offshores, ou os pobres dos gestores de em-presas públicas que ultrapas-sam orçamentos ou compram serviços acima dos preços de mercado... Nem imaginar a monumental repreensão que devem ter apanhado.

Como toda a gente sabe como estes senhores foram e continuam a ser tratados, a ideia de que a justiça e a eco-nomia trata toda a gente por igual só sobrevive na mentira mediática ou na ingenuidade exagerada. Sobra-nos ques-tionar as caixinhas mágicas nas nossas salas e as canti-gas de adormecer que delas emanam.

Esta geração será a primeira a viver com muito menos do que os pais, menos direitos laborais, menor salário, me-nor capacidade para arranjar casa. Isto num país que to-dos os meses perde 100 jo-vens licenciados, obrigados a construir vida no estrangeiro e onde 18% da população vive no limiar da pobreza.

Quando a mesma gente que vem falar em reduções nas reformas, as acumula e aos milhares de euros, é caso para

dizer que afinal a situação não está “explosiva” para todos. Mas vai rebentar.

O discurso do deficit outra vez, o futuro, temos de pensar no futuro, e aplicar as receitas do passado que nos trouxe-ram a este presente. E eu han? Quero ser feliz Hoje!

Quando se considera nor-mal existirem mãos desem-pregadas e uma “benesse” o subsídio de desemprego, quando se acha natural pa-gar as dívidas aos bancos

que continuam a apresen-tar lucros, e não se perdoa os juros aos desempregados, que a “situação explosiva” rebente já. Antes que nos re-bente a todos. Quando isso ocorrer, que os estilhaços atinjam quem nos trouxe a este sobreviver que não é vida. Porque as nossas vi-das valem mais que os lucros deles!

Leonardo da [email protected]

“ (...) a ideia de que a justiça e a economia trata toda a gente por igual só sobrevive na mentira mediática ou na ingenuidade exagerada. Sobra-nos questionar as caixinhas mágicas nas nossas salas e as cantigas de adormecer que delas emanam.

Vamos continuar a dormirenquanto nos roubam a cama?

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Venha ou não um dia a ser descodificado no nosso genoma o ADN que corres-ponde à compulsão humana originadora do fenómeno te-atral, a questão da irrequieta e obstinada perdurabilidade do teatro radica numa es-pécie de constante antro-pológica, isto é, uma ma-nifestação arquetípica que é identificadora do humano enquanto tal: a atracção pelo jogo de ser outro e pelo de-sejo de assistir ao fascínio, sempre reactualizado, des-se mesmo jogo. Estas duas formas (o jogar e o assistir) de realizar o jogo do teatro podem oscilar entre pólos diferenciados, num espectro oscilante: desde a situação mais convencional em que o lugar do espectador está bem distinto daquele que é ocupado pelo intérpre-te na cena; até à situação proposta , por exemplo, pelas abordagens de teatro e comunidade, nas quais os intervenientes que tra-dicionalmente constituiriam o público são implicados por inteiro no fazer cénico, tor-nando-se então em actores improvisados - os assim de-signados espect-actores, na expressão feliz e sugestiva de Augusto Boal.

O apelo do teatro eclode deste inato prazer de nos vermos representados; o prazer de espiar o outro mas, ao mesmo tempo, de nos vermos nele projectados; de podermos ser espectado-res de possibilidades nossas que não concretizámos, que gostaríamos ou teríamos re-ceio ou pavor de experien-ciar. Disto se faz a matéria de sonho e de desejo de que o teatro se nutre. O leitor dirá porém, com legitimi-dade, que há uma suspeição latente nesta apologia solar da espionagem às claras que

o teatro promete. De facto, pode argumentar-se que o jogo de ficcionar o outro foi disseminado por outras modalidades de arte e/ou comunicação, assentes na tecnologia da imagem, que integraram processos de re-presentação dramática, mas já não são teatro porque a cena ao vivo tomou neles os formatos vários do ecrã. Uma interrogação surge associada

a esta suspeição: será que a manipulação tecnológica de imagens (nos seus diversos media) esvaziou a potencia-lidade atractiva do teatro, num tempo de tráfego e tráfico de imagens virtuais para consumo global? Uma questão aliás donde nem o cinema sai já incólume, como é sabido. Não é só a ances-tral espionagem mimética, inerente ao jogo do teatro,

que conhece há muito outros meios mais sofisticados para se concretizar. Também o ci-nema, feito com actores den-tro, vacila no estatuto que foi seu de arte dominante de massas do sécu-lo passado; visto que está cada vez mais próxima a possibilidade de for jar a cópia , mais do que per-feita, de filmar o real com simula-cros de gente viva em movimento, sem nunca ter havido nenhu-ma pessoa a ser filmada para aquilo com que o ecrã nos agarra e seduz o olhar. Já o teatro, por radi-car na pobre mas inventiva artesania que sempre foi sua, encontra-se paradoxalmente mais protegido. Perante os desafios de novas encruzi-lhadas virtuais, uma coisa é certa: não é possível roubar ao teatro a pobreza primor-dial que confere identidade ao seu modo de relaciona-mento com os fruidores dele; ainda que o teatro se decline no plural, e que não exista teatro mas teatros, ou seja, modos diversos de ser teatro e, por vezes, quando alguns modos dele dão origem a eventos cénicos que rejei-tam a designação de teatro, mesmo que do teatro sejam subsidiários, em maior ou menor grau.

A partir deste lugar de onde se vê, de acordo com a eti-mologia da palavra teatro, continuam a poder ver-se e experimentar-se coisas que só a ele pertencem. É possí-vel descobrirmos a desperta juventude, a cada tempo re-criada, numa arte com dois milénios e meio de idade, na certidão ocidental do seu nas-cimento. No encontro com o

outro em forma viva, comu-nicável e respirante, habita a primitiva essencialidade do teatro; esse rito profano de que continuamos a neces-sitar para nos sabermos vi-

vos, sensíveis, p e n s a n t e s , imaginosos. A imaginação é o motor por excelência do teatro; exerci-da através dos territórios in-tercambiáveis do corpo e da sua (más)cara, d a m e m ó r i a que é (pa)lavra

testemunhal de vivos. Por isso ele é capaz de nos libertar um pouco de nós mesmos. Es-creveu Walter Benjamin, um melancólico apaixonado pelo teatro, que cada um de nós é uma droga para si mesmo, ingerida em solidão. O jogo partilhado do teatro produz um fármaco que contribui para nos purgar das toxinas que o eu de cada um segre-ga. Um efeito psicotrópico a que Aristóteles chamou ca-tarse. O teatro faz connosco o pacto da metáfora. Foi ele afinal a primeira arte virtual da História. Entramos no seu jogo pela simples presença do intérprete na cena. Inventa-mos a viagem que conjuga a possibilidade da emoção e a emergência do pensamento crítico, a promessa lúdica da diversão e a surpresa de intuir o que o (in)consciente sintoniza no cosmos, no lap-so de um espectáculo. Mas se o teatro que andar por aí anunciado não vos der tudo isto, então protestem, exijam um novo teatro, porque ele existe. Só é preciso fazê-lo nascer outra vez.

Armando Nascimento RosaProfessor e Dramaturgo

Teatro: esta arte jovem tão antiga

FICHA TÉCNICA:Propriedade e Editor: Prima Folia - Cooperativa Cultural, CRL Morada: Largo António Joaquim Correia, nr 7 1º Dto, 2900-231 Setúbal Director: António Serzedelo Subdirectores: Anita Vilar e José Luís Neto Consultor Especial: Fernando Dacosta e Raul Tavares Conselho Editorial: Hugo Silva, Leonardo da Silva, Maria Madalena Fialho e Patrícia Trindade Coelho Directora de Arte: Rita Oliveira Martins Consultor Artístico: João Raminhos Morada da redacção: Rua Deputado Henrique Cardoso, nr 30-34, 2900-109 Setúbal E-mail: [email protected] Site: http://www.jornalosul.com Registo ERC: 125830 Depósito Legal: 305788/10 Periodicidade: Mensal Tiragem: 10.000 exemplares Impressão: Tipografia Rápida de Setúbal Morada da tipografia: Travessa Gaspar Agostinho, nr 1 - 2º - 2900-389 Setúbal Telefone: 265 539 690 Fax: 265 539 698 E-mail: [email protected]

“ O jogo partilhado do teatro produz um fármaco que contribui para nos purgar das toxinas que o eu de cada um segrega.

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