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JORGE DE LIMA

NOVOS POEMAS POEMAS ESCOLHIDOS POEMAS NEGROS

by Editora Nova Aguilar S.A. Rua Dona Mariana, 250, casa I Botafogo CEP: 22280-020 - Rio de Janeiro, RJ Tel/Fax: 537-7189 - 537-8275 Capa: Victor Burton

CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. L698n Lima, Jorge de, 1893-1953 Novos poemas ; Poemas escolhidos ; Poemas negros / Jorge de Lima. Rio de Janeiro : Lacerda Ed., 1997. ISBN 85-7384-003-X 1. Poesia brasileira. I. Ttulo : Novos poemas. II. Ttulo : Poemas escolhidos. III. Ttulo : Poemas negros. 97- 0481 CDD 869.91 CDU 869.0(81)-1

NOTA

EDITORIAL

A trajetria da poesia de Jorge de Lima pode ser dividida em quatro fases, com mais clara ou mais sutil diferenciao. Nascido em 1893, a primeira feio do poeta alagoano nos poemas dispersos ou nos do livro de estria, XIV alexandrinos a de um ortodoxo neoparnasiano. A influncia de Bilac evidente, sobretudo nas chaves de ouro, com a anttese caracterstica: Mudo que quer ter voz e ao ter voz quer ser mudo!; A Cincia que sonha e o verso que investiga.; O rir bom de Jesus e o riso mau de Judas., etc. Curiosamente, em um soneto de 1913, Meu decasslabo, descobrimos, na mesma poca, a mais direta influncia de Augusto dos Anjos: Como s vezes no Bom surge uma inata / E atvica tendncia de ser fera...; Herdeiro dos pavores do Selvagem / E dos vcios, das dores, das desgraas / Originrias de milhes de raas... Em 1925, subitamente, acontece a adeso ao Modernismo, com o poema O mundo do menino impossvel, republicado em Poemas, em 1927. Neste livro, assim como em Novos poemas, de 1929, Poemas escolhidos, de 1932, e Poemas negros, s reunidos em 1947, encontramos a segunda fase, ortodoxamente modernista, de Jorge de Lima. A temtica regional, o coloquialismo da lngua, o folclorismo, a enumerao de um lxico tpico, do topomnico ao onomstico e ao culinrio, caracterizam o estilo dessa segunda fase, marcada tambm por um constante interesse temtico pelo elemento negro, que a singulariza em relao a diversas individualidades poticas ento preocupadas com uma redescoberta do Brasil, por mais distante que tudo isso esteja, paradoxalmente, do que pelo resto do mundo significou a expresso modernismo.

Em Tempo e eternidade, de 1935, escrito em parceria com Murilo Mendes, aparece o catlico militante, que dominaria a terceira fase. H um sopro bblico claramente identificado, uma caudal claudeliana, neste livro, assim como no que lhe sucede, A tnica inconstil, de 1938, ao lado de uma sensvel aproximao ao Surrealismo. Em Anunciao e encontro de Mira-Celi, esse elemento surrealista, mais universal e ainda que totalmente catlico menos explicitamente militante, d incio ao que poderamos caracterizar como quarta e ltima fase. Estas caractersticas o uso cada vez maior do inconsciente, o universalismo e a aproximao da poesia pura se radicalizariam nas duas ltimas obras, o Livro de sonetos, de 1949, e o enorme conjunto lrico de A inveno de Orfeu, de 1952. Na presente edio, reunindo os Novos poemas, Poemas escolhidos e Poemas negros, encontrar o leitor a feio mais tpica do Jorge de Lima da segunda fase, o regionalista e folclorista, que conquistou todo o Brasil com a sua irresistvel Negra Ful. Os Editores

NOVOS POEMASA Isolina e Herclito Belfort Gomes de Sousa

ESSA

NEGRA

FUL

Ora, se deu que chegou (isso j faz muito tempo) no bang dum meu av uma negra bonitinha chamada negra Ful. Essa negra Ful! Essa negra Ful! Ful! Ful! (Era a fala da Sinh) Vai forrar a minha cama, pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Ful! Essa negra Ful! Essa negrinha Ful ficou logo pra mucama, para vigiar a Sinh pra engomar pro Sinh! Essa negra Ful! Essa negra Ful! Ful! Ful! (Era a fala da Sinh)

vem me ajudar, Ful, vem abanar o meu corpo que eu estou suada, Ful! vem coar minha coceira, vem me catar cafun, vem balanar minha rede, vem me contar uma histria, que eu estou com sono, Ful! Essa negra Ful! Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possua um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinh me mandou que vos contasse mais cinco. Essa negra Ful! Essa negra Ful! Ful? Ful? Vai botar para dormir esses meninos, Ful! Minha me me penteou minha madrasta me enterrou pelos figos da figueira que o Sabi beliscou.

Essa negra Ful! Essa negra Ful! Ful? Ful? (Era a fala da Sinh chamando a Negra Ful.) Cad meu frasco de cheiro que teu Sinh me mandou? Ah! foi voc que roubou! Ah! foi voc que roubou! O Sinh foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa. O Sinh disse: Ful! (A vista se escureceu que nem a negra Ful.) Essa negra Ful! Essa negra Ful! Ful? Ful? Cad meu leno de rendas cad meu cinto, meu broche, cad meu tero de ouro que teu Sinh me mandou? Ah! foi voc que roubou. Ah! foi voc que roubou. Essa negra Ful! Essa negra Ful!

O Sinh foi aoitar sozinho a negra Ful. A negra tirou a saia e tirou o cabeo, de dentro dele pulou nuinha a negra Ful Essa negra Ful! Essa negra Ful! Ful? Ful? Cad, cad teu Sinh que nosso Senhor me mandou? Ah! foi voc que roubou, foi voc, negra Ful? Essa negra Ful!

SERRA

DA BARRIGA

Serra da Barriga! Barriga de negra-mina! As outras montanhas se cobrem de neve, de noiva, de nuvem, de verde! E tu, de Loanda, de panos-da-costa, de argolas, de contas, de quilombos! Serra da Barriga! Te vejo da casa em que nasci. Que medo danado de negro fujo! Serra da Barriga, buchuda, redonda, do jeito de mama, de anca, de ventre de negra! Munda te lambeu! Munda te lambeu! Cad teus bumbuns, teus sambas, teus jongos? Serra da Barriga, Serra da Barriga, as tuas noite de mandinga, cheirando a maconha, cheirando a liamba? Os teus meios-dias: tibum nos peraus! Tibum nas lagoas! Pixains que saem secos, cobrindo sovacos de sucupira, barrigas de barana! Munda te lambeu! Munda te lambeu! De noite: tantas, curros-curros e bumbas, batuques e baques! E bumbas!

E cucas: ! E bantos: ! Aqui no h cangas, nem troncos, nem banzos! Aqui Zumbi! Barriga da frica! Serra da minha terra! Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi! Depois, minha serra, tu desabando, caindo, levando nos braos Zumbi!

COMIDASComer ef, pimenta, jil! Iai me coma, sou quimbomb! Cobrei sustncia com mocot! Iai me diga, nessa comida voc botou mulata em p? Iai me coma sou quimbomb! Ai Bahia de Todos os Santos, at nos pecados das comidas, voc botou nome santo? Papos-de-anjo, Peitinhos-de-freira, Quindins-de-convento, Fatias-da-s! Ai! Bahia de Todos os Santos, o poema das suas comidas foi So Benedito quem lhe ensinou? Baba-de-moa,

Olho-de-sogra, Levanta-marido, Fatias-paridas, Trouxinhas, Suspiros, e Mimos-do-cu! Bahia, estas comidas tm mandinga! Bahia, esse tempeiro tem moc! L vem tabuleiro! Cocadas, pipocas! L vem verdureiro: Pimenta, jil! L vem Frei Tom: Barriga-de-freira, Toicinho-do-cu! Bno, Frei Tom! Moqueca, dend, Arroz com ef, Pimenta, jil! Me coma Iai que eu sou quimbomb! que eu sou quimbomb! L vem tabuleiro de amendoim! Comidas gostosas mexidas por mim! Me compre Iai

por So Bom Jesus Senhor do Bonfim!

MALEITAL vem maroim, l vem carapan, l vem murioca sambando com pium. A terra est suando poas dgua, a lagoa est dormindo, o caboclo est tremendo, est sambando com pium. Minha madrasta Maleita foi voc que me enterrou. Quem sabe se por um figo que o destino beliscou? Manda um rabinho da seca de 77, meu So Sol, pra secar estas lagoas, pra esquentar esta maleita. Mas vem correndo um vento frio e at a gua se arrepia. O caboclo est tremendo, est sambando com pium!

INVERNOZefa, chegou o inverno! Formigas-de-asas e tanajuras! Chegou o inverno! Lama e mais lama, chuva e mais chuva, Zefa! Vai nascer tudo, Zefa! Vai haver verde, verde do bom, verde nos galhos, verde na terra, verde em ti, Zefa, que eu quero bem! Formigas-de-asas e tanajuras! O rio cheio, barrigas cheias, mulheres cheias, Zefa! guas nas locas, pitus gostosos, cars, cabojes, e chuva e mais chuva! Vai nascer tudo: milho, feijo, at de novo teu corao, Zefa! Formigas-de-asas e tanajuras! Chegou o inverno! Chuva e mais chuva! Vai casar tudo,

moa e viva! Chegou o inverno! Covas bem fundas pra enterrar cana; cana caiana e flor de Cuba! Terra to mole que as enxadas nela se afundam com olho e tudo! Leite e mais leite pra requeijes! Cargas de imbu! Em junho o milho, milho e canjica pra So Joo! E tudo isto, Zefa... E mais gostoso que isso tudo: noites de frio, l fora o escuro, l fora a chuva, trovo, corisco, terras-cadas, corgos gemendo, os cabors gemendo, os cabors piando, Zefa! Os cururus cantando, Zefa! Dentro da nossa casa de palha: carne-de-sol

chia nas brasas, farinha-dgua, caf, cigarro, cachaa, Zefa... ... rede gemendo... Tempo gostoso! Vai nascer tudo! L fora chuva, chuva e mais chuva, trovo, corisco, terras-cadas e vento e chuva, chuva e mais chuva! Mas tudo isso, Zefa, vamos dizer, s com os poderes de Jesus Cristo!

MADORNA

DE IAI

Iai est na rede de tucum. A mucama de Iai tange os piuns, balana a rede, canta um lundum to bambo, to molengo, to dengoso, que Iai tem vontade de dormir. Com quem? Ram-rem. Que preguia, que calor! Iai tira a camisa, toma alu, prende o coc, limpa o suor, pula pra rede. Mas que cheiro gostoso tem Iai! Que vontade doida de dormir... Com quem? Cheiro de mel da casa das caldeiras! O sagim de Iai dorme num coco. Iai ferra no sono, pende a cabea,

abre-se a rede, como uma ing. Pra a mucama de cantar, tange os piuns, cala o ram-rem, abre a janela, olha o curral: um bruto sossego no curral! Muito longe uma peitica faz si-d... si-d... si-d... si-d... Antes que Iai corte a madorna, a moleca de Iai balana a rede, tange os piuns, canta um lundum to bambo, to molengo, to dengoso, que Iai sem se acordar, se coa, se estira e se abre toda, na rede de tucum. Sonha com quem?

DIABO

BRASILEIRO

Enxofre, botijas, galinha preta! Credo em cruz, capeta, p-de-pato! Diabo brasileiro, dente-de-ouro, botija, onde est? Credo, capeta, p-de-pato! Diabo brasileiro quero saber quando d a dezena do carneiro? Enxofre, botija, galinha preta! Credo em cruz, capeta, p-de-pato! Capeta, dente-de-ouro, tome galinha preta, quero dormir com a Zefa! Capeta, bode preto, quero dormir com a Zefa! Capeta, diabo brasileiro, s lhe dou galinha preta! Capeta, quero casar com a Zefa, quero que So Vigrio me case logo com a Zefa! Capeta tome galinha preta! Capeta, diabo brasileiro, quando d a centena do macaco? Quero quebrar banqueiro, capeta danado, p-de-pato, dente-de-ouro, cheiro de enxofre, tome galinha preta! Capeta, p-de-pato, quero acertar com o bicho, quero comprar gravata, botina de bico fino, terno de casimira pra quando a Zefa me ver! Capeta, p-de-pato, tome galinha preta!

Capeta, p-de-pato, dente-de-ouro, quero dente de ouro, quero capa de borracha, punho engomado, camisa, bengala casto de ouro, capeta, p-de-pato tome galinha-preta! Quero saber suas partes, suas sabedorias, quero saber mandingas, capeta, p-de-pato, tome galinha preta, que eu quero quebrar banqueiro, que eu quero tirar botija, que eu no quero trabalhar, que eu tambm sou brasileiro! Capeta, tome galinha preta, que eu quero saber embolada, quero saber martelo, quero ser um cantador, capeta, quero dizer Zefa essa quentura de amor! Capeta, tome galinha preta, que eu quero casar com a Zefa. Por Deus, que eu quero, capeta, p-de-pato! Tome galinha preta!

SANTA RITA DURODuro! que apelido bom para um caboclo pachola, caboclo de bagaceira ou cangaceiro do serto, capaz de bancar Caramuru no bando de Lampio! Mas teu Brasil, Caramuru, no tem serto, nem sul, nem norte, nem no teu mato h catol, oiticor, cabao de marimba, barbatimo! Nas tuas roas no tem banana-sambur, no tem mandioca-gomo-roxo, no tem feijo mulatinho, no tem nada, So Duro! Nos teus caminhos no h malmequeres, flor-de-relgio, vassoura-de-boto, no h, So Duro, essa florzinha espia-caminho que moa no pode ver! As tuas semanas-santas no tm flores-de-quaresma para alegrar Nossa Senhora que perdeu Nosso Senhor! As tuas frutas so como essas frutas de cera (enfeites de certas mesas). As tuas caatingas no tm burras-leiteiras que do leite, no tm pau-sangue que verte sangue, que nem cabocla, todas as luas, no tm peitinhos de jaracatis, no tm beijos de maracujs-de-estalo,

no tm imbs chupando troncos de baranas to grossas, to pretas como pretas-minas! E os teus quintais no tm, plantado num caco de panela, um p de saudade roxa, pra o enterro dos manezinhos que se no morressem (quem sabe, So Duro?), poderiam ser cangaceiros do grupo de Lampio. E agora, agora vo ser anjinhos pra glria de Deus! Amm!

JOAQUINA

MALUCA

Joaquina Maluca, voc ficou lesa no sei por que foi! Voc tem um resto de graa menina, na boca, nos peitos, no sei onde ... Joaquina Maluca, voc ficou lesa, no ? Talvez pra no ver o que o mundo lhe faz. Voc ficou lesa, no foi? Talvez pra no ver o que o mundo lhe fez. Joaquina Maluca, voc foi bonita, no foi? Voc tem um resto de graa menina no sei onde ... To suja de vcio, nem sabe o que o foi. To lesa, to pura, to limpa de culpa, nem sabe o que !

OS

CAVALINHO

Os cavalinhos ficam nas noites de festa dentro das mil e uma noites. Eles rodam, rodam, rodam, marcam na terra o limite do mundo. Eles levam os mais belos guerreiros! Que felizes guerreiros! As suas damas vo com eles peleja! E em vez dos cavalinhos irem pelo mundo, o mundo que vem rodar em torno dos cavalinhos. O realejo toca. As damas esto alegres. Os cavaleiros riem. Poeta, para onde te levaram os teus corcis?

MINHA

SOMBRA

De manh a minha sombra com meu papagaio e o meu macaco comeam a me arremedar. E quando eu saio a minha sombra vai comigo fazendo o que eu fao seguindo os meus passos. Depois meio-dia. E a minha sombra fica do tamaninho de quando eu era menino. Depois tardinha. E a minha sombra to comprida brinca de pernas de pau. Minha sombra, eu s queria ter o humor que voc tem, ter a sua meninice, ser igualzinho a voc. E de noite quando escrevo, fazer como voc faz, como eu fazia em criana: Minha sombra voc pe a sua mo por baixo da minha mo, vai cobrindo o rascunho dos meus poemas sem saber ler e escrever.

DOMINGOAmanh domingo pede cachimbo. O galo monteiro pisou na areia. A areia fina deu no sino. O sino de prata deu na mata. A mata valente deu no tenente. O tenente mofino deu no menino. O menino carolho furou teu olho. Ah! que saudades que eu tenho da aurora de minha vida! Ah! Casimiro, a aurora de minha vida foi um domingo bonito: Logo cedo o galo monteiro cantava no ptio e a aurora saa do canto do galo e o Zuza da Lica, tenente da guarda, de quepe nos olhos, botes areados, rondava fumando a casa da Aurora! (Aurora Carvalho cunhada do padre!) O sino da igreja chamava pra missa. A areia era fina nos ps sem sapatos. E a gente trepava na torre da igreja e o sino da igreja cantava to alto que o galo monteiro olhava de baixo ciscando na areia com inveja do sino, e a mata escutava o canto de prata. Somente o tenente ficava danado, subia na torre atrs do menino!

Os olhos carolhos olhavam de cima: Tenente mofino! Tenente mofino! Amanh domingo pede cachimbo. O galo monts pisou na areia. A areia fina deu no sino. O sino de prata deu na mata. A mata valente deu no tenente. O tenente mofino deu no menino. O menino carolho furou teu olho.

FLOS

SANCTORUM

Santa Brbara que nos livra do corisco. So Bento que cura mordida de cobra, So Gonalo casador. So Jorge que me cedeu o seu nome pra meu pai me batizar, que escolheu o seu dia pra eu chegar nesse mundo, que s no me deu seu cavalo porque o pobre do bichinho no podia descer da lua! Pulei tanta tacha de engenho, passei tanta correnteza, conheci tanto perau fundo! E voc, meu anjo-da-guarda, nunca me disse seu nome, pra eu fazer um poeminha pra voc!

LOUVADOLouvado seja N.S. Jesus Cristo e a Me dEle Nossa Senhora, minha madrinha. Louvado seja o que dEle e dEle vem: ritos, amitos, benditos, so beneditos! Louvadas sejam suas palavras to bonitas: Glria Patri, Aleluia, salve-rainha e tambm suas palavras misteriosas: per omnia scecula, vita cetema, amen. Louvado seja este louvado em nome dEle e mais louvado que esse louvado Jesus Cristo mas a Me dEle Nossa Senhora, minha madrinha. Louvadas sejam as virtudes teologais e entre elas trs seja louvada a F. Louvados sejam os santos nacionais martirizados pelos caets. Louvadas sejam as coisas religiosas: santas misses e procisses, sermes. Louvado seja o meu pas cristo pelo tempo da Pscoa descoberto todo enfeitado como um cu aberto.

Louvado seja esse Jesus daqui. Jesus camarada, Cristo bonzo, a quem todo brasileiro ofende tanto contando sempre com o seu perdo.

POEMA

DE DUAS MOZINHAS

E aquelas mozinhas, to leves, to brancas, riscavam as paredes, quebravam os bonecos, armavam castelos de areia na praia, viviam as duas qual Joo mais Maria. A boca da noite o Cata-piolhos rezava baixinho: Pelo sinal da Santa Cruz livre-nos Deus Nosso Senhor. E aquelas mozinhas dormiam unidinhas qual Joo mais Maria. Dedo-mindinho, So vizinho, o Pai-de-todos, So Fura-bolos, Cata-piolhos,

quede o toicinho? o gato comeu. Mas noites de lua cheinhas de estrelas, So Fura-bolos contava as estrelas... O Pai-de-todos cuidava dos outros: nasciam berrugas no Cata-piolhos, E aquelas mozinhas viviam sujinhas qual Joo mais Maria... Um dia (que dia!) o Dedo-mindinho feriu se num espinho... E boca da noite o Cata-piolhos deixou de rezar; e Joo mais Maria, juntinhos, ligados, pararam em cruz cobertos de fitas que nem dois bonecos sem molas, quebrados... Quem compra um boneco da loja de Deus?

MS

DE MAIO

Ms de maio! Ai! ms bem feito que tem o dia primeiro pra ser Dia do Trabalho. Comemorando este dia vamos todos descansar! Ms de maio, ms de maio, ai, mesinho brasileiro! O Brasil quis fazer anos escolheu seu dia trs. Comemorando este dia vamos, meu bem, descansar! Ms de maio, fora os domingos, fora os dias emprensados que a gente deve guardar, tem dia santo de guarda que o dia nove de maio, tem o maior dia santo dia do Corpo de Deus. Comemorando esses dias o brasileiro s deve pensar mesmo em descansar! Quem trabalhou mais que Pai Joo cavando a terra com a enxada?

Dia 13 de Pai Joo! Meu bem... vamos nos deitar? Ms de maio, ms santinho! Nossa Senhora escolheu este ms pra ser ms dela... Nossa Senhora no deixe este mesinho acabar.

MEUS

OLHOS

Nossa Senhora, minha madrinha, tu vs as coisas verdes, no ? Meus olhos pretos, coitados deles! Teus olhos verdes, felizes deles, minha madrinha, Nossa Senhora da Conceio! Nossa Senhora, d-me teus olhos para eu ver com eles meus pobres olhos. Coitados deles, minha madrinha, s vem as coisas como elas so. Nossa Senhora, minha madrinha pinta meus olhos, que eu quero ver verdes os dias que inda viro. Nossa Senhora, minha madrinha, tu vs as coisas verdes, no ? Teus olhos verdes, felizes deles! Meus olhos pretos, cor de carvo! Nossa Senhora, minha madrinha, tu vs meus olhos como eles so?

CREDOPadre nosso que ests no Cu, perdi meu Credo que tu me deste. Eu era menino: Creio em Deus Padre... Que fora me dava a tua orao! Santa Maria, me de Jesus, perdi as armas que Deus me deu! Padre Nosso que ests no cu, santificado seja teu nome, seja feita a tua vontade, e faze que eu ache meu credo de novo! Eu era menino: Creio em Deus Padre... Que fora me dava a tua orao! Santa Maria, me de Jesus, procura pra mim, meu Creio em Deus Padre, Santa Maria, me de Jesus!

CANTIGASAs cantigas lavam a roupa das lavadeiras. As cantigas so to bonitas, que as lavadeiras ficam to tristes, to pensativas! As cantigas tangem os bois dos boiadeiros! Os bois so morosos, a carga to grande! O caminho to comprido que no tem fim. As cantigas so leves... E as cantigas levam os bois, batem a roupa das lavadeiras. As almas negras pesam tanto, so to sujas como a roupa, to pesadas como os bois... As cantigas so to boas... Lavam as almas dos pecadores! Levam as almas dos pecadores!

SALMO Deus, est no Livro: 1 Louvai ao Senhor no seu santurio; louvai-o no firmamento de sua virtude; 2 Louvai-o nas virtudes dele; louvai-o segundo a multido de sua grandeza; 3 Louvai-o ao som da trombeta; louvai-o com saltrio e citara; 4 Louvai-o com adufe e frauta; louvai-o com cordas e rgo; 5 Louvai-o com cmbalos sonoros, louvai-o com cmbalos de jbilo; 6 Todo esprito louve o Senhor. Aleluia! Senhor, Cmbalos e ctaras no tenho no! Mas vou fazer uma procisso pra voc, Senhor. Pra seu Menino, vou fazer uma novena! Ladainhas pra sua Mame, Senhor! Aceite, meu Deusinho! Abel, quem est lhe dando!

MEU

PAS

O Pas mais novo deste mundo eras tu, meu Pas! Entretanto, Deus amado, meus ps correram descalos, pelo meu Pas. E enfim eu no sei se sou feliz ou se sou infeliz. Sei que estou olhando pra cima, para o vosso Pas! E o Pas mais novo deste mundo eras tu, meu Pas! Deus amado, eu tenho a curiosidade dos navegadores, pelo vosso Pas! Os meus olhos-marujos dizem: ali! ali! Contai aos marujos, Deus amado, as histrias encantadas desse vosso Pas! Deus amado, eu um dia, prometo, irei ver esse vosso Pas! Quero olhar, l de cima, o meu velho Pas!

POEMAS ESCOLHIDOS(1925 a 1930)

NORDESTENordeste, terra de So Sol! Irm enchente, vamos dar graas a Nosso Senhor, que a minha madrasta Seca torrou seus anjinhos para os comer. So Toms passou por aqui? Passou, sim senhor! Paje! Paje! Vamos lavar Pedra Bonita, meus irmos, com o sangue de mil meninos, amm! D. Sebastio ressuscitou! S. Tom passou por aqui? Passou, sim senhor. Terra de Deus! Terra de minha bisav que danou uma valsa com D. Pedro II. So Tom passou por aqui? Tranca a porta, gente, Cabeleira a vem! Serto! Pedra Bonita! Tragam uma virgem para D. Lampio!

ENCHENTE Por que as jandaias e os periquitos esto gritando como os [meninos do Grupo, na hora de vadiar? uma cabea de enchente que veio ontem de tardei E o rio deu pra falar grosso e bancar Z-pabulagem: No duvide que eu levo a sua almofada de fazer renda, minha velha! E o rio cresceu. Entrou na camarinha e l se foi com a almofada da velha! Deus te favorea, meu filho, voc, ainda outro dia, era to manso, lavava at os pratos de minha cozinha! No duvide, seu canoeiro que eu emborco a sua canoa! E rodou com o canoeiro e virou a canoa mesmo. E entrou nos fundos das casas e saiu nas portas da rua. Subiu no olho da ingazeira, tirou ing e comeu. Pulou das pedras embaixo, espumando como um doido. Fez at medo s piabas, que correram pra os barreiros. S os meninos esto satisfeitos:

Deus permita que o rio encha mais! Deus permita que o rio encha mais! Quando o rio entrar na rua, as salas de visita sero banheiros. Eles deitaro barquinhos de cima das janelas, e a professora fechar a escola! Deus permita que o rio encha mais! Deus permita que o rio encha mais!

ARRANHA-CUO campeo mundial de misticismo, que tinha batido o record de comunhes do corpo do Senhor, quis, naquela poca avanada, subir no elevador para ver o cu. O campeo foi pelos andares parando... parando... sempre em linha vertical. Viu, no centsimo, o campeo da ondulao permanente; viu outros ases, outros heris extraordinrios. No derradeiro parou: Nem um anjo. Ento desceu, desceu, desceu e atravessou o asfalto com um medo danado de morrer sem confisso debaixo dos autos.

CRISTO REDENTORO av de minha av

DO

CORCOVADO

morreu tambm corcovado carregando um Cristo de maaranduba que protegia os passos vagarosos da famlia. Arranjei velocidade. Virei homem de cimento armado. Adoro esse Cristo turista de braos abertos que procura equilbrio na montanha brasileira. Os homens de F tm esperana nEle, porque Ele ligeiro, porque Ele ubquo, porque Ele imutvel. Ele acompanha o homem de cimento armado atravs de todas as substncias, atravs de todas as perspectivas, atravs de todas as distncias.

POEMA

DE

NATAL

O meu Jesus, quando voc ficar assim maiorzinho venha para darmos um passeio que eu tambm gosto das crianas. Iremos ver as feras mansas que h no jardim zoolgico. E em qualquer dia feriado iremos, ento, por exemplo, ver Cristo Rei do Corcovado. E quem passar vendo o menino h de dizer: ali vai o filho de Nossa Senhora da Conceio! Aquele menino que vai ali (diversos homens logo diro) sabe mais coisas que todos ns! Bom dia, Jesus! dir uma voz. E outras vozes cochicharo: o belo menino que est no livro da minha primeira comunho! Como est forte! Nada mudou! Que boa sade! Que boas cores! (Diro adiante outros senhores.)

Mas outra gente de aspecto vrio h de dizer ao ver voc: o menino do carpinteiro! E vendo esses modos de operrio que sai aos domingos pra passear, nos convidaro para irmos juntos os camaradas visitar. E quando voltarmos pra casa, noite, e forem pra o vcio dos pecadores, eles sem dvida me convidaro. Eu hei de inventar pretextos sutis pra voc me deixar sozinho ir. Menino Jesus, miserere nobis, segure com fora a minha mo.

AVE MARIABoa tarde meu caminho estreito por onde os ltimos da vila vo! Boa tarde, avozinhas, Boa tarde, avozinhas, me dai uma histria do vosso surro! Me dai a Princesa Morgana-Vilo, que eu sem histria no durmo no! Ai que h noites mais tempors, mais frias, mais tristes que as outras noites! Boa tarde, avozinha, onde que eu me acoito da minha prpria inquietao? Boa tarde, avozinhas, boa tarde, avozinhas, as ltimas andorinhas l vo! As vossas mos, avozinhas, onde que esto? Adeus, adeus, caminho estreito! Santa Maria, me de Deus, rogai por ns... Blo!

BALADAOs camponeses tinham ceifado a floresta das chamins para ver seus irmos operrios, para ver no meio deles o de 7 anos: Vladimir Ilitch o irmo do enforcado, para ver o Volga, para ver Kazan, para ver religiosamente Simbirsk, para ver a irm de Oulianov costurando ao lado do irmo que l, que l todas as vrgulas de Marx. Os camponeses tinham fome de paisagens humanas. (Plekanov uma sombra amorosa.) A irm de Oulianov costura ao lado do irmo que l todas as vrgulas de Marx. Oferta Perdo Vladimir, a tua irm se feriu no dedo. Para mim todas as dores tm tamanho. Experimenta se as minhas mos so leves para fazer um penso.

FIMPararam as mquinas! Eita! Gritos, choros, pragas! Eita! Foi o filho do operrio, que uma roda matou. No, no foi. Foi a mquina que matou o burgus e a [famlia dele no h.

O

FILHO PRDIGO

Nas engrenagens das fbricas bolem como vermes dedos decepados de operrios. H intestinos rotos de crianas nos vaivns do correame das oficinas. A cor e a alegria das moas empregadas dissolvem-se na algazarra montona dos teares. O avio comeu a saudade das mes que a distncia separou dos filhos vagabundos. H mquinas que cegam os adolescentes ansiosos de ver o progresso do mundo. Um homem teve medo de enlouquecer perseguido pela fora e pelo orgulho das mquinas assassinas. Cad a luz trmula de vela pra alumiar o meu poema antigo? O lirismo perdeu a sua liturgia. As lmpadas Osram velam funebremente a poesia. Ah! que existe uma tristeza na terra que nem lgrimas produz de sua esterilidade to seca. Eu sou um corpo distrado. Biam os meus olhos pelas superfcies. Mas os meus olhos correm mais perigo

do que se andassem em acrobacias contemplativas pulando no cu alto, perto das estrelas. Vovozinha, venho de longe, ando h muitos sculos a p. Ensina-me de novo a ficar de joelhos, que j tarde e eu quero me deitar.

POEMA

RELATIVO

Vem, bem-amada. Junto minha casa tem um regato (at quieto o regato). No tem pssaros, que pena! Mas os coqueiros fazem, quando o vento passa, um barulho que s vezes parece bate-bate de asas. Supe, bem-amada, se o vento no sopra, podem vir borboletas procura das minhas jarras onde h flores debruadas, to debruadas que parecem escutar. Todos os homens tm seus crentes, bem-amada: os que pregam o amor ao prximo e os que pregam a morte dele. Mas tudo pequeno e ligeiro no mundo, amada. S o clamor dos desgraados cada vez mais imenso! Vem, bem-amada.

Junto minha casa tem um regato at manso. E os teus passos podem ir devagar pelos caminhos: aqui no h a inquietao de se atravessar o asfalto. Vem, bem-amada, porque, como te disse, se no h pssaros no meu parque, pode ser, se o vento no soprar forte, que venham borboletas. Tudo relativo e incerto no mundo. Tambm tuas sobrancelhas parecem asas abertas.

MULHER

PROLETRIA

Mulher proletria nica fbrica que o operrio tem, (fbrica de filhos) tu na tua superproduo de mquina humana forneces anjos para o Senhor Jesus, forneces braos para o senhor burgus. Mulher proletria, o operrio, teu proprietrio h de ver, h de ver: a tua produo, a tua superproduo, ao contrrio das mquinas burguesas salvar teu proprietrio.

FELICIDADETo bonita a Lagoa Munda! Eu vi os meninos pobres que iam tirar sururu. Um bando deles. Uns tinham doze ou treze anos e pareciam [ter oito. Amarelos. Perto da Satuba tem um massap timo. Eles amassam, amassam, fazem balas. Cozidas so mais gostosas que sururu. E quem no sabe comer [barro no sabe tirar sururu, com gosto. Comer terra! Quando a bala vermelhinha cor de telha toca na [lngua a boca se enche dgua para a bala se embeber. Os meninos amarelos tm gua por demais na boca. Gosto de terra no gosto de comida, de sal, de acar, de [carne. gosto diferente. De terra! um gosto doente [como gosto de maleita. Tambm quem no tem maleita no sabe tirar sururu com [gosto. O frio da maleita no se importa com sol nem com chuva nem [com o frio que est por fora da gente, no ar. um frio que vem de dentro. D-se a mo e a mo est com 40. Mas o frio bom porque [diferente dos outros frios. Os meninos que vo tirar sururu tm os olhos sumidos. Me-maleita dorme com eles no jirau de pau-cundu. Me[maleita d-lhes sonhos de febre. Os meninos sonham coisas doidas. Que uma inglesinha que [passou uma vez numa lancha-automvel veio urinar [no massap. Eles sentem o gosto da inglesinha, sonhando com o gosto do

[massap mijado. Tm outros sonhos, todos gostosos. Os meninos tiram sururu com gosto. Ao meio dia o sol tine. A [gua est morna e suja. Ali pertinho j a lama do sururu. Que gosto pisar na lama! diferente de pisar nas praias, na neve, na grama. Os ps dos meninos tm sensibilidades inditas. A lama abarca [o p, entra entre os dedos, mais grossa do que baba de [boi, gruda-se na pele, d uma coceira boa nas frieiras. Os meninos entram mais. A lama sobe. uma carcia peganhenta [pelo corpo. As mos descem na lama. As canoas afundam de sururu. O sol [est tinindo, mas ningum sente calor. Tudo bom. A misria boa. A lama amorosa. Parece que a [vida uma feitiaria de sonho de maleita.

POEMA

DO NADADOR

A gua falsa, a gua boa. Nada, nadador! A gua mansa, a gua doida, aqui fria, ali morna, a gua fmea. Nada, nadador! A gua sobe, a gua desce, a gua mansa, a gua doida. Nada, nadador! A gua te lambe, a gua te abraa a gua te leva, a gua te mata. Nada, nadador! Seno, que restar de ti, nadador? Nada, nadador.

POEMA irm

IRM

agora, que as noites vm cedo e paira por tudo uma tristeza enorme e o silncio to longo que os ces enlouquecem nas ruas, irm, vem me relembrar que crescemos juntos quando os dias eram compridos e diferentes. Irm, se tu sabes signos para mudar o tempo, vem. Vem que eu quero fugir para outras paragens onde as gaivotas sejam menos inteis e haja um corao em cada porto; e os pssaros do mar to lavados e to alvos e to lentos e to sabedores de viagens venham esvoaar sobre o meu cachimbo em que os cometas do cu se apagaram. Irm, nos meus ritmos h colegas que gritam: Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas, vagabundos, crianas, operrios, leprosos e prostitutas que se lembram ainda de suas oraes familiares.

H no sei onde outros ares e outras serras, outros limites, adeus irm. que noite longa, que noite to longa! Que que chora l fora? A humanidade ou qualquer fonte?

POEMA

BEM-AMADA

Amada, no penses, escutemos a chuva que o inverno chegou. Sejamos as rvores que Deus semeou sem nunca O ouvir, sem nunca O olhar serenos, morramos sem nos separar. Renunciemos, amada, os vos pensamentos, cumpramos apenas a lei do Senhor sem nunca O ouvir, sem nunca O tocar, sem nunca duvidar, duvidar, duvidar. Soframos, amada, sem nos lamentar. Sejamos as rvores que Deus esqueceu, que o vento abalou e o raio abateu. Amada! Amada! Bem-aventurado quem j morreu. Escutemos a chuva, que a chuva de Deus!

POEMA

A

MARCEL PROUST

mon petit Proust, hoje o teu rosto de lua desse quadro bonito de Jacques mile Blanche; o teu rosto de flor noturna se apagou, mon petit, e dentro de mim voltou, o serto, o serto, o serto, pois, mon petit, no meu pas as polcias passaram e Lampio ficou; os governadores passaram, os congressos, os chefes polticos, os exrcitos, as repblicas, as revolues, os grandes generais passaram e Lampio ficou. A nova poesia brasileira passou e Lampio ficou iluminando tudo mais que teu rosto de lua que Jacques mile Blanche comps. preciso ver: Lampio eterno e preciso crer na

opinio da Europa: Lampio tira dos ricos para dar aos pobres. preciso crer nas oraes fortes, preciso crer em Lampio. Mon petit Proust, sai do teu salo, vem ver o meu luar: no h no mundo luar como este do serto.

VOLTA

CASA PATERNA

tarde e eu quero entrar em casa, que a noite vem a, cheia dos seus espantos. A luz foi intensa, o dia foi clido, o ritmo das horas montono e irreal. As danas do ptio, as paisagens de fora, os caminhantes so falsos. Os caminhos so errados. Os ritmos so errados. Os poemas so outros. A noite a vem cheia dos seus espantos. H uma rede aqui dentro que me embalou. H na parede da sala uma estampa sagrada que por mim chorou. H um raio de lua no corredor. Ser a alma de meu pai que Deus mandou? Casa, doce casa sem elevador, cad o Ford que me levou? H sombras que passam, fantasmas que vo, que vm, que choram, que riem, que me beijam... H um livro aberto na minha mesa: Padre Nosso que ests no cu, santificado, vem a ns... assim na terra...

POEMA

PTRIA

grande pas, tu aderiste tambm. Teus urubus so inquietados nos teus ares altssimos pelos avies. Nos teus cus os anjos j no podem solfejar, sufocados de fumaa, importunados pelo pessoal do Limbo. Tu vais ficar irremediavelmente toda Amrica, irremediavelmente gmeo, irremediavelmente comum.

POEMAS NEGROS

BICHO

ENCANTADO

Este bicho encantado: no tem barriga, no tem tripas, no tem bofes, no maribondo, no mangang, no caranguejeira. Que que Janjo? a Estrela-do-mar que quer me levar. S tem olhos, s tem sombra. Babau! No jimbo, no muum, no sariema. Que que Janjo? a Estrela-do-mar que quer me afogar. Esse bicho encantado: no quer de-comer, no quer munguz, no quer caruru, no quer quigomb. S quer te comer. Que que Janjo? a Estrela-do-mar que quer me esconder.

Babau!

BANGCad voc meu pas do Nordeste que eu no vi nessa Usina Central Leo de minha terra? Ah! Usina, voc engoliu os bangezinhos do pas das Alagoas! Voc grande, Usina Leo! Voc forte, Usina Leo! As suas turbinas tm o diabo no corpo! Voc uiva! Voc geme! Voc grita! Voc est dizendo que U.S.A grande! Voc est dizendo que U.S.A. forte! Voc est dizendo que U.S.A. nica! Mas eu estou dizendo que V. triste como uma igreja sem sino, que voc mesmo como um templo evanglico! Onde que est a alegria das bagaceiras? O cheiro bom do mel borbulhando nas tachas? A tropa dos pes de acar atraindo arapus? Onde que mugem os meus bois trabalhadores? Onde que cantam meus caboclos lambanceiros? Onde que dormem de papos para o ar os bebedores de resto [de alambique? E os senhores de espora? E as sinhs-donas de coc? E os cambiteiros, purgadores, negros queimados na fornalha? O seu cozinhador, Usina Leo, esse tal Mister Cox que tira [da cana o que a cana no pode dar e que no deixa nem bagao

com um tiquinho de caldo para as abelhas chupar! O meu bangezinho era to diferente, vestidinho de branco, o chapeuzinho do telhado sobre os olhos, fumando o cigarro do boeiro pra namorar a mata virgem. Nos domingos tinha missa na capela e depois da missa uma feira danada: a zabumba tirando esmola para as almas; e os cabras de faca de ponta na cintura, a camisa por fora das calas: Mo de milho a pataca! Carretel marca Alexandre a doistes! Cad voc meu pas de bangs com as cantigas da boca da moenda: Tomba-cana Joo que eu j tombei! E o eixo de maaranduba chorando talvez os estragos que a cachaa ia fazer! E a casa dos cobres com o seu mestre de acar potoqueiro, com seu banqueiro avinhado e as tachas de mel escumando, escumando como cachorro danado. E o bang que s sabia trabalhar cantando, cantava em cima das tachas: Tempera o caldo mulher que a escuma assobe... Cad a sua casa-grande, bang, com as suas Dondons, com as suas Tets, com as suas Benbens, com as suas Donanas alcoviteiras? Com seus Tots e seus Pipius corredores de cavalhada? E as suas molecas catadoras de piolho,

e as suas negras Calus, que sabiam fazer munguzs, manus, cuscuz, e suas sinhs dengosas amantes dos banhos de rio e de redes de franja larga! Cad os nomes de voc, bang? Maravalha, Corredor, Cip branco, Fazendinha, Burrego-dgua, Menino Deus! Ah! Usina Leo, voc engoliu os bangezinhos do pas das Alagoas! Cad seus quilombos com seus ndios armados de flecha, com seus negros mucufas que sempre acabavam vendidos, tirando esmola para enterrar o rei do Congo? Folga negro Branco no vem c! Si vinh, Pau h de lev! Voc vai morrer, bang! Ainda ontem so Major Totonho do Sanhar esticou a canela. De noite se tomou uma caninha pra se ter fora de chorar. E se fez sentinela. E voc, bangezinho que faz tudo cantando foi cantar nos ouvidos do defunto: Totonho! Totonho! Ouve a voz de quem te chama

vem buscar aquela alma que h treis dias te reclama! Bang! E eu pensei que estavam cantando nos ouvidos de voc: Bang! Bang! Ouve a voz de quem te chama!

HISTRIAEra princesa. Um libata a adquiriu por um caco de espelho. Veio encangada para o litoral, arrastada pelos comboieiros. Pea muito boa: no faltava um dente e era mais bonita que qualquer inglesa. No tombadilho o capito deflorou-a. Em nag elevou a voz para Oxal. Ps-se a coar-se porque ele no ouviu. Navio guerreiro? no, navio tumbeiro. Depois foi ferrada com uma ncora nas ancas, depois foi possuda pelos marinheiros, depois passou pela alfndega, depois saiu do Valongo, entrou no amor do feitor, apaixonou o Sinh, enciumou a Sinh, apanhou, apanhou, apanhou, Fugiu para o mato. Capito do campo a levou. Pegou-se com os orixs: fez bob de inhame para Sinh comer, fez alu para ele beber, fez mandinga para o Sinh a amar. A Sinh mandou arrebentar-lhe os dentes: Fute, Cafute, P-de-pato, No-sei-que-diga. avana na branca e me vinga.

Exu escangalha ela, amofina ela, amuxila ela que eu no tenho defesa de homem, sou s uma mulher perdida neste mundo. Neste mundo. Louvado seja Oxal. Para sempre seja louvado.

DEMOCRACIAPunhos de redes embalaram o meu canto para adoar o meu pas, Whitman. Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados, catecismo me ensinou a abraar os hspedes, carum me alimentou quando eu era criana, Me-negra me contou histrias de bicho, moleque me ensinou safadezas, massoca, tapioca, pipoca, tudo comi, bebi cachaa com caju para limpar-me, tive maleita, catapora e nguas, bicho-de-p, saudade, poesia; fiquei aluado, mal-assombrado, tocando marac, dizendo coisas, brincando com as crioulas, vendo espritos, abuses, mes-dgua, conversando com os malucos, conversando sozinho, emprenhando tudo que encontrava, abraando as cobras pelos matos, me misturando, me sumindo, me acabando, para salvar a minha alma benzida e meu corpo pintado de urucu, tatuado de cruzes, de coraes, de mos-ligadas, de nomes de amor em todas as lnguas de branco, de mouro ou [de pago.

RETRETA

DO VINTE

O cabo mulato balana a batuta, meneia a cabea, acorda com a vista os bombos, as caixas, os baixos e as trompas. (No centro da Praa o busto de D. Pedro escuta.) Batuta pra esquerda: relincham clarins, requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20. Batuta direita: de novo os trombones e as trompas soluam. E os bombos e as caixas: ban-ban! Vm logo operrios, meninas, cafuzas, mulatos, portugas, vem tudo pra ali. Vem tudo, parecem formigas de asas rodando, rodando em torno da luz. Nos bancos da Praa conversas acesas, apertos, beijocas, talvezes. D. Pedro II espia do alto. (As barbas to alvas to alvas nem sei!) E os pares passeiam, parece que danam, que danam ciranda, em torno do Rei.

QUICHIMBI

SEREIRA NEGRA

Quichimbi sereia negra bonita como os amores que tem partes de chigonga no tem cabelos no corpo, lisa que nem muum, ligeira que nem buru no tem matungo e donzela, ao mesmo tempo pariu jurar sem urucaia. Quichimbi vive nas ondas coberta de espuma branca, dormindo com o boto azul, conservando a virgindade to difcil de sofrer. Quichimbi segue nas ondas dez mil anos caminhando, dez mil anos assistindo as terras mudar de dono, o mar servindo de escravo ao homem branco das terras. Quichimbi sereia negra bonita como os amores dormindo com o boto azul, no sabe de nada, no.

ZEFA

LAVADEIRA(Trecho de A mulher obscura)

Uma trouxa de roupa um mundo animado de anguas, de corpinhos, de fronhas, de lenis e toalhas servis; em resumo: dos homens e suas preocupaes. E qual a maior fora desse mundo? Onde o segredo das suas atividades? Olha o amor, Zefa, olha os lenis torna-nos semelhantes aos deuses, faz vibrar em ns o poema dos plasmas que neles se geraram. Por eles, retrocedendo pelo caminho de certas memrias obscuras, voltamos s Formas primeiras, s Energias inteligentes. E desfazendo aquela trouxa de roupa com o desembarao de Jeov, compondo e recompondo um caos, mostra-me pea por pea, todas aquelas foras mencionadas, lodos gensicos, ou salivas do Esprito que adejou sobre as guas. Mas Zefa deu um muxoxo, arrepanhando as fraldas, arrastando os ps. Zefa no tinha antenas para a torrente declamatria interior de minha juventude em dias de convalescena. Pela vereda que vinha do rio, surgiu cantarolando uma cafuza nova, com o pote cabea, o brao direito erguido, segurando a rodilha. E senti-a em tudo, na algazarra dos ramos, na toada das guas despenhadas, nos vegetais variegados como arraiais, no tumulto dos seres que sofrem, amam e se perpetuam correndo a vida. Josefa lavadeira, porque se julga a ss, vai despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza. No remanso em que bate a roupa, h bambus e ingazeiros

pelas margens. Josefa entra o caudal at as coxas morenas, a camisa arregaada, o cabeo de croch impelido pelos seios duros, tostados de soalheiras. O brao valente arroja o pano contra a pedra de bater, e a axila cobre-se e descobre-se, piscando a tentao de arrochos e rendies cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de roupa boa cantaderia. A cantiga uma corruptela de velhas toadas num tom languoroso, alimentado de sofreguides, de desejos incontidos, e de lamentaes incorrespondidas. Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-se corando sobre o capim. Ento Zefa lavadeira ensaboa o seu prprio corpo, vestido do manto de pele negra com que nasceu. Outras Zefas, outras negras vm lavar-se no rio. Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a minha infncia. A gua, levada nas cuias, comea o ensaboamento; desce em regatos de espuma pelo dorso, e some-se entre as ndegas rijas. As negras aparam a espuma grossa, com as mos em concha, esmagam-na contra os seios pontudos, transportam-na com agilidade de smios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de sabo se despenha pelas coxas, as mos cncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que a frica parece dormir o sono temeroso de Cam.

BENEDITO CALUNGABenedito Calunga calunga- no pertence ao papa-fumo, nem ao quibungo, nem ao p de garrafa, nem ao minhoco. Benedito Calunga calunga- no pertence a nenhuma ocaia nem a nenhum tati, nem mesmo a Iemanj, nem mesmo a Iemanj. Benedito Calunga calunga- no pertence ao Senhor que o lanhou de surra e o marcou com ferro de gado e o prendeu com lubambo nos ps. Benedito Calunga pertence ao banzo que o libertou, pertence ao banzo que o amuxilou, que o alforriou para sempre em Xang.

Hum-Hum.

LADEIRA

DA

GAMBOA

H uma rua que eu conheo Rua Baro da Gamboa tem uma ladeira de lado com o mesmo nome da rua nenhum baro mora l mas porm gente que sua gente que sobe gente que desce gente que vai para a vida gente que dela vem no h meio de dizer-se na ladeira ningum vem voc mesmo no se agenta pois a ladeira um vaivm parece mesmo com a vida tem subida tem descida Baro no Poesia mesmo toa tem lama poeira buracos tudo o que a vida possui mas polcia no tem no polcia l no influi que a vida no tem polcia a vida mesmo um vaivm igualmente esta ladeira d na gente uma canseira tem subida tem descida tem mais que tudo canseira igualmente esta ladeira

da Rua Baro da Gamboa. Que boa. Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa.

PASSARINHO

CANTANDO

Congos, cabindas, angolas, tambm de Cacheo e de Bissao, Maranho, Pernambuco, Par, Fernando P, So Tom, Ano Bom, Serra Leoa, Serra Leoa, Serra Leoa! Cabo Verde, Moambique, duas cozinheiras, trs belas mucamas, leo de coco, (o boto tambm gosta de teu sangue Sudo). Senhor Manuel Teixeira dos Santos vem de redingote, suas e procurao. Ana Maria doceira de meu pai amancebou-se com o alferes; na segunda gerao: nem culatronas, nem ps apalhetados, nem panos-da-costa, nem figas, nem alu. Na terceira nasceu Maricota, filha-de-santo, checher, rainha suicidou-se com fogo. Deixou uma filha sagrada com gua benta, fechada com mandinga, branca, casada, com chcara. H na sua pele trs estrelas marinhas, duas estrelas-d'alva, a Lua, a gua-viva, a Fome de abraos. H no seu sangue: tr moas fugidas, dois cangaceiros, um pai-de-terreiro, dois malandros, um maquinista, dois estourados. Nasceu uma ndia, uma brasileira, uma de olhos azuis,

uma primeira comunho, uma que deu seus cachos ao Senhor da Paixo, uma que tinha ataques, uma que foi ser freira, uma que nasceu em Londres e parenta do Rei. O passarinho ficou rfo cantando, catando penas s.

EXU

COMEU TARUB

O ar estava duro, gordo, oleoso: a negra dentro da madorna; e dentro da madorna bruxas desenterradas. No cho uma urupema com os cabelos da moa. Foi ento que Exu comeu tarub e meteu a figa na mixira de peixe-boi. A na distncia sem fim, moas foram roubadas, e sror Adelaide veio viajando de rede, era alva ficou negra, era santa ficou lesa: caiu na madorna, o ar duro, gordo, oleoso. Exu comeou a babar a mixira de peixe-boi, o professor tirou o pincen; estava trado pelo donatrio, sem barregs, sem ginetes, sem escravos. A na distncia sem-fim, viajando de rede D. Diogo de Holanda veio parar na madorna, o ar duro, gordo [do, oleoso. Exu comeou a lamber a mixira de peixe-boi: Isabel Lopo de Sampaio desvirginou o moleque, jogou-se no rio, virou ingazeira, pariu trs macacos. Viajando de rede vieram trs macacos parar na madorna, o ar [duro, gordo, oleoso. Eis a trs cirurgies cosendo retrs, a bela adormecida no sculo vindouro que esquecer por certo a magia contra tudo que no for loucura ou poesia.

ANCILA

NEGRA

H ainda muita coisa a recalcar, Celidnia, linda moleca ioruba que embalou minha rede, me acompanhou para a escola, me contou histrias de bichos quando eu era pequeno, muito pequeno mesmo. H mais coisa ainda a recalcar: As tuas mos negras me alisando, os teus lbios roxos me bubuiando, quando eu era pequeno, muito pequeno mesmo. H muita coisa ainda a recalcar linda mucama negra, carne perdida, noite estancada, rosa trigueira, maga primeira. H muita coisa a recalcar e esquecer: o dia em que te afogaste, sem me avisar que ias morrer, negra fugida na morte, contadeira de histrias do teu reino, anjo negro degradado para sempre Celidnia, Celidnia, Celidnia!

Depois: nunca mais os signos do regresso. Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando. E eu parado em pequeno, mandingando e dormindo, muito dormindo mesmo.

O

BANHO DAS NEGRAS

(Incio de A mulher obscura,) Em casa de Lacio no havia lbuns. A famlia de meu companheiro de infncia parecia no ter tradio nem histria. Lembro-me que um dia, perguntando-lhe como se chamava seu av, ele me disse: Morreu h muito tempo. No me lembro como era, mas papai deve saber. Um dia pergunto. Recordo, porm, que era, de todos os meus amigos, o que mais me atraa. Talvez no fosse o companheiro em si, em quem, j por aquele tempo, percebia uma capacidade de mentir maior que a de todos os meus outros camaradas, e uma grande habilidade de surripiar nossos objetos escolares, selos, estampas e brinquedos. Talvez o que me atraa para Lacio fosse a sua chcara, a sua grande chcara onde devia existir a Arvore do Bem e do Mal, chcara to tentadora para mim. Os fundos davam para o rio. Um dia, Lacio me chamou para assistir o banho de umas negras. O espetculo que se me oferecia no me deixou nenhuma impresso menos pura. As negras estavam ali tomando banho, negras novas do Cape que se lavavam debaixo dos ramos das ingazeiras arriadas sobre as guas. Abriam bands com os cacos de pente de chifre, e como no dispunham de espelhos, ajudavam-se na tualete. As molecas eram bonitas, geis e puras. Eu estava, apenas, encantado de ver corpos negros, to diferentes dos brancos, embelezando-se ligeiros, antes de entrar ngua. Reparava que aquele banho era diferente do banho de umas

parentas, que me deixaram uma vez esperando por elas, na beira do rio. As brancarronas se penteavam depois do banho, cuidadosas, com a toalha sobre os ombros, debaixo dos cabelos soltos. Mas as molecas podiam, com uma ligeireza espantosa, se coar, espenujar, separar com os cacos de pente o cabelo lanzudo, mergulhar na gua transparente e sair outra vez sem que o cabelo se desmanchasse; a gua no lhes alterava a beleza. O contraste daqueles corpos pretos e luzidios sobre a areia das margens ou sob a espuma do sabo me impressionou bastante. Nunca tinha visto espuma sobressair tanto, correndo ligeira nas costas escuras ou descendo entre os seios espigados pelo ventre abaixo. Mais ligeiros que a espuma, eram os seus braos harmoniosos. Algumas com a cara ensaboada, sem abrir os olhos para evitar a espuma, aparavam-na antes que ela se perdesse no cho. A espuma grossa voltava outra vez para debaixo das axilas ou dos ombros, esmagada de novo pelas esguias mos. Outras se ajudavam no ensaboamento esfregando as costas das companheiras ou os lugares que os braos no atingiam. Achei lindas as negras. Achei-as geis, diferentes. Mas Lacio me advertira que era proibido v-las assim nuas; e se elas soubessem que ns as espreitvamos no banho, contariam a nossos pais e estes ralhariam conosco e seramos castigados.

CACHIMBO

DO SERTO

Aqui assim mesmo. No se empresta mulher, no se empresta quartau mas se empresta cachimbo para se maginar. Cachimbo de barro massado com as mos, canudo comprido, que bom! Me d uma fumaada! Que coisa gostosa s maginar! Serto vira brejo, a seca fartura, desgraa nem h! Que coisa gostosa s cachimbar. De dia e de noite, tem lua, tem viola. As coisas de longe vm logo pra perto. O rio da gente vai, corre outra vez. Se ouvem de novo histrias bonitas. E a vida da gente menina outra vez ciranda, ciranda debaixo do luar. Se quer cachimbar, cachimbe so moo, mas tenha cuidado! O cachimbo de barro se pode quebrar.

OBAMB

BATIZADO

Pela f de Zambi te digo: Obamb batizado, confirmado, cruzado e coroado. D licena meu pai? Licena venha para os alufs de babalau. Licena tem o Bab de Olub. Licena tem. Licena tm cacuriqus, cacurics. Licena tm. Licena tem babala, babala. Licena tem. Na f de Zambi te digo: Obamb batizado, confirmado e coroado. Oxssi est reinando: d pra ele. D pra o pai-de-sala, d pra ele. ocaia d pra ele. Na f de Zambi te digo: Te vira em meu sangue. Obamb batizado, confirmado e coroado. D licena meu pai? Licena venha para outros bacuros. ocaia d pra ele.

D licena meu pai? ocaia, me deixa s com meu santo, me deixa s, me deixa s, d pra ele que Obamb batizado, confirmado, cruzado e coroado. Oxssi est reinando: d pra ele.

POEMA

DE ENCANTAO

Arraial dAngola de Paracatu, Arraial de Mossmedes de Gois, Arraial de Santo Antnio do Bambe, vos ofereo quibeb, quiabo, quitanda, quitute, quingomb. Tirai-me essa murrinha, esse ggo, esse uruf, que eu quero viver molecando, farreando, tocando meus ganzs! Arroio dos Quilombos de Palmares, Arroio do Desemboque do Quizongo, Arroio do Exu do Bodoc, vos ofereo maconha de pito, quitunde, quibembe, quingomb. Assim, sim! Arraial dAngola de Paracatu, Arraial do Campo de Gois, Arraial do Exu do Auss, vos ofereo quisama, quinanga, quilengue, quingomb. Tomai aca, abar, aberm, aba! Assim, sim! Tirai-me essa murrinha, esse ggo, esse uruf! Vos ofereo quitunde, quitumba, quelembe, quingomb.

REI

OXAL,

RAINHA IEMANJ

Rei Oxal que nasceu sem se criar. Rainha Iemanj que pariu Oxal sem se manchar. Grande santo Ogum em seu cavalo encantado. Eu cumba vos dou curau. Dai-me licena angana. Porque a vs respeito, e a vs peo vingana contra os demais alegus e capiangos brancos. Ag! que nos escravizam, que nos exploram, a ns operrios africanos, servos do mundo, servos dos outros servos. Oxal! Iemanj! Ogum! H mais de dois mil anos o meu grito nasceu!

FOI

MUDANDO, MUDANDO

Tempos e tempos passaram por sobre teu ser. Da era crist de 1500 at estes tempos severos de hoje, quem foi que formou de novo teu ventre, teus olhos, tua alma? Te vendo, medito: foi negro, foi ndio ou foi cristo? Os modos de rir, o jeito de andar, pele, gozo, corao... Negro, ndio ou cristo? Quem foi que te deu esta sabedoria, mais dengo e alvura, cabelo escorrido, tristeza do mundo, desgosto da vida, orgulho de branco, algemas, resgates, alforrias? Foi negro, foi ndio ou foi cristo? Quem foi que mudou teu leite, teu sangue, teus ps, teu modo de amar, teus santos, teus dios, teu fogo, teu suor, tua espuma, tua saliva, teus abraos, teus suspiros, tuas comidas,

tua lngua? Te vendo, medito: foi negro, foi ndio ou foi cristo?

JANANAJanana vive no rio, vive no aude, vive no mar. Lembrou-se de vir passear: nas ndias passou dend. As ndias se acomodaram. Cavalo-marinho veio para ela se amontar. No cavalo se amontou galopando descuidada, acordando os afogados, dando adeus mar grande. Botando nome nos peixes, ouvindo a fala dos bzios. No ventre de Janana as escamas esto brilhando. Nos olhos de Janana, na cauda de Janana tem cem doninhas pulando. Nos peitos de Janana tem dois langanhos babando. Se Janana sorri as ndias ficam banzeiras. Se Janana est triste. o mar comea a espumar, a pegar gente na praia pra Janana afundar. Janana d licena

que eu me afogue no seu mar?

QUANDO

ELE VEM

Quando ele vem, vem zunindo como o vento, como mangang, como capeta, como bango-balango, como marimbondo. Donde que que ele vem? Vem de Oxal, vem de Oxal, vem do oco do mundo, vem do assopro de Oxal, vem do oco do mundo. Quer comer. Quer caruru de peixe, quer ef de inhame, quer ogued de banana, quer olub de macaxeira, quer pimenta malagueta. Quando ele chega, tudo fica banzando toa, esbodegado, enquizilado, enguiado, enfezado. Quando ele entra, d vontade na gente de embrenhar-se no mato, de esparramar-se no cho, de encalombar o rosto com as mos, de amunhecar no cansano, de esbanguelar os dentes nas pedras, virar p-de-vento, sumir no assopro de Oxal. E dentro do assopro de Oxal virar cochicho nos ouvidos dela, xodozar todo o santo dia,

catar cafuns invisveis, rolar dentro das suas anguas, bambeando o corpo dela, babatando sem rumo, amuxilado, acuado diante das suas mungangas, engambelado, tatambeado, fumado.

XANG** Segunda verso.

Na noite, aziaga, na noite sem fim, quibundos, cafuzos, cabindas mazombos mandingam xang. Oxum! Oxal. ! ! Dois feios calungas Tai e Oxal rodeados de contas, contas, contas, contas, contas. No centro o Oxum! Oxum! Oxal. ! ! Na noite aziaga, na noite sem fim cabindas, mulatos, quibundos, cafuzos, aos tombos, gemendo, cantando, rodando. Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim! Oxum! Oxal. ! ! Sinh e Sinh num mis ou dois ms se h de cas! Mano e Mana! Credo manco! No centro o Oxum Que dois bonequinhos na rede to bamba Ioi e Iai! Minhas almas santas benditas aquelas so do mesmo Senhor; todas duas todas trs

todas seis e todas nove! Santo Onofre, So Gurdim, So Pago, Anjo Custdio, Monserrate, Amm, Oxum! Na noite aziaga, na noite sem fim recende o fartum. Recende o fartum. Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim! Oxum! ! ! Redobram o tant, incensam maconha! Sorri Oxal! E a preta mais nova com as pernas tremendo, no crnio um zunzum, no ventre um chamego de cabra no cio... ! ! Meu So Mangang Caculo Pitomba Gamb-marundu Gurdim Santo Onofre Custdio Ogum. Minhas almas

santas benditas aquelas so do mesmo Senhor todas duas todas trs todas nove o mal seja nela casado com ele. So Marcos, S. Manos com o signo-de-salomo com Ogum-Chila na mo com trs cruzes no surro S. Cosme! S. Damio! Credo Oxum-Nila Amm.

PRA

DONDE QUE VOC ME LEVA

Julio se apoderou da melodia s 10 horas da noite em pleno jazz. O tema s pretexto porque o mgico Julio transformou o saxofone e est transformando a gente. Tudo ritmo binrio como as pernas, os braos, os olhos, os dois coraes de Julio. Ento o ritmo e a melodia principiaram deveras organizando um chulear de batuque e canto rotundo de cortar corao. No cume da voz est Gge filha de Ogum deitada se balanando; nas outras partes sonoras h outros deuses aquentando uns aos outros. Nisso o canto esguincha do saxofone como um repuxo vermelho. Julio dobra o saxofone na pana confundindo-o com o esfago, os olhos esbugalhados, a alma inocente subindo a Escada de Jac para dentro de Deus. Julio treme recebendo intuies, amolengando entre uma nota e outra o feitio pendurado no pescoo. Pulam de dentro do escuro do saxofone mucamas lindssimas para cada um dos fulanos, porm o poder da msica to lavado e to branco, to estrela-dalva que as ditas nem se atrevem a se amulherar com eles. Julio est reluzente que nem esfregado com leo de andiroba, cada vez mais requebrado, mais impoluto e transparente, as teclas fechando as vlvulas de seu corpo banzeiro, o canto se espraiando unnime, parece que tem carajuru na face, o funil do aparelho est espraiado como sua boca branca, um estenderete s. Ciscar no murundu! Chupar caxund! Farrambambear por esse mundo! Mulatear pelas senzalas brancas! Mocar com a ocaia dos outros!

Tudo isso eram gritos sinceros, mas sem maldade, porque tudo estava peneirado, sessado pela gua amandigada da msica. Pra donde que voc me leva, poesia-uma-s? Pra donde que voc me leva, me-dgua de uma s cacimba, Janana de um s mar, Pedra-Pemba de um s altar?

MARIA DIAMBAPara no apanhar mais falou que sabia fazer bolos: virou cozinha. Foi outras coisas para que tinha jeito. No falou mais: Viram que sabia fazer tudo, at molecas para a Casa-Grande. Depois falou s, s diante da ventania que ainda vem do Sudo; falou que queria fugir dos senhores e das judiarias deste mundo para o sumidouro.

OL! NEGROOs netos de teus mulatos e de teus cafuzos e a quarta e quinta geraes de teu sangue sofredor tentaro apagar a tua cor! E as geraes dessas geraes quando apagarem a tua tatuagem execranda, no apagaro de suas almas, a tua alma, negro! Pai-Joo, Me-negra, Ful, Zumbi, negro-fujo, negro cativo, negro rebelde negro cabinda, negro congo, negro ioruba, negro que foste para o algodo de U.S.A. para os canaviais do Brasil, para o tronco, para o colar de ferro, para a canga de todos os senhores do mundo; eu melhor compreendo agora os teus blues nesta hora triste da raa branca, negro! Ol, Negro! Ol, Negro! A raa que te enforca, enforca-se de tdio, negro! E s tu que a alegras ainda com os teus jazzes, com os teus songs, com os teus lundus! Os poetas, os libertadores, os que derramaram babosas torrentes de falsa piedade no compreendiam que tu ias rir! E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a tua bondade mudariam a alma branca cansada de todas as ferocidades! Ol, Negro!

Pai-Joo, Me-Negra, Ful, Zumbi que traste as Sinhs nas Casas-Grandes, que cantaste para o Sinh dormir, que te revoltaste tambm contra o Sinh; quantos sculos h passado e quantos passaro sobre a tua noite, sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas [alegrias! Ol, Negro! Negro que foste para o algodo de U.S.A. ou que foste para os canaviais do Brasil, quantas vezes as carapinhas ho de embranquecer para que os canaviais possam dar mais doura alma humana? Ol, Negro! Negro, antigo proletrio sem perdo, proletrio bom, proletrio bom! Blues Jazzes, songs, lundus... Apanhavas com vontade de cantar, choravas com vontade de sorrir, com vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom, para o chicote doer menos, para o dia acabar e negro dormir! No basta iluminares hoje as noites dos brancos com teus jazzes, com tuas danas, com tuas gargalhadas!

Ol, Negro! O dia est nascendo! O dia est nascendo ou ser a tua gargalhada que vem vindo? Ol, Negro! Ol, Negro!

NDICENOTAEDITORIAL POEMAS

NOVOS

Essa negra Ful Serra da barriga Comidas Maleita Inverno Madorna de Iai Diabo brasileiro Santa Rita Duro Joaquina maluca Os cavalinhos Minha sombra Domingo Flos sanctorum Louvado Poema de duas mozinhas Ms de maio Meus olhos Credo Cantigas Salmo Meu pas

POEMAS ESCOLHIDOS

Nordeste Enchente Arranha-cu Cristo Redentor do Corcovado Poema de Natal Ave Maria Balada Fim O filho prdigo Poema relativo Mulher proletria Felicidade Poema do nadador Poema irm Poema bem-amada Poema a Marcel Proust

Volta casa paterna Poema ptria

POEMAS

NEGROS

Bicho encantado Bang Histria Democracia Retreta do vinte Quichimbi sereia negra Zefa lavadeira Benedito Calunga Ladeira da Gamboa Passarinho cantando Exu comeu tarub Ancila negra O banho das negras Cachimbo do serto Obamb batizado Poema de encantao Rei Oxal, rainha Iemanj Foi mudando, mudando Janana Quando ele vem Xang Pra donde que voc me leva Maria Diamba Ol! Negro

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Este livro foi impresso na cidade de So Paulo em abril de 1997, pela OESP Grfica para a Editora Nova Aguilar. O tipo usado no texto foi Perptua no corpo 11/1 2.2. Os fotolitos de miolo e capa foram feitos pela Degraus, o papel de miolo off-set 75g g e o da capa Carto supremo 250 g.