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Márcio Sérgio Costa Barbosa NOVO ESTADO MARCELISTA (1929-1974) Tese de Doutoramento em Altos Estudos em História, ramo de Época Contemporânea, orientada pelo Professor Doutor Rui Cunha Martins, apresentada ao Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Julho de 2015

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Mrcio Srgio Costa Barbosa

NOVO ESTADO MARCELISTA (1929-1974)

Tese de Doutoramento em Altos Estudos em Histria, ramo de poca Contempornea, orientada pelo Professor Doutor Rui Cunha Martins, apresentada ao Departamento de Histria, Estudos Europeus,

Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Julho de 2015

Faculdade de Letras

NOVO ESTADO MARCELISTA

(1929-1974)

Ficha Tcnica:

Tipo de trabalho Tese de Doutoramento

Ttulo Novo Estado Marcelista (1929-1974)

Autor/a Mrcio Srgio Costa Barbosa

Orientador/a Professor Doutor Rui Cunha Martins

Identificao do Curso 3 Ciclo em Altos Estudos em Histria

rea cientfica Histria

Especialidade/Ramo poca Contempornea

Data 2015

2

3

Para minhas mulher e filha. Para Yeshua.

4

5

NDICE

RESUMO/ABSTRACT 13

AGRADECIMENTOS 17

TBUA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 19

INTRODUO 25

PARTE I

ANTES DO CONFLITO E DO PODER: 1929-1939

I CAPTULO Antes de 1929: nos auspcios da Ordem Nova 35

II CAPTULO 1929-1933: a Conversa ser em Famlia 39

2.1. Sede de Ordem: da ditadura Constituio de 1933 41

2.2. Equilbrio Oramental: o crdito no se mendiga, conquista-se 44

2.3. Momento Econmico e Financeiro: otimismo? 47

2.3.1. preciso no exacerbar o nacionalismo 48

2.3.2. A alarmante participao do Estado na economia 49

2.3.3. Diplomacia econmica: a importncia das pequenas coisas 51

2.3.4. Ministeriais interesses: tecnocracia, agricultura e reforma agrria 52

2.3.5. A Conferncia de Londres 54

2.4. A Hora do Povo na Crise: desemprego e emigrao 55

2.4.1. A soluo americana 56

2.4.2. A soluo portuguesa 57

2.5. Impresses Corporativas: a caminho da sistematizao 59

2.5.1. Viso social 60

2.5.2. A defesa do corporativismo: Nacional-sindicalismo 61

2.5.3. O Subsecretariado das Corporaes e a Constituio 62

2.6. Europa, Brasil e os Novos Brasis 63

2.6.1. Violoncelo de Briand 63

2.6.2. Da Progressiva autonomia das colnias aos Novos Brasis 64

6

III CAPTULO 1934-1939: poca de Transio 67

3.1. O Cdigo da crtica 67

3.1.1. O Pas o le provisoire est roi 67

3.1.2. Renascimento Jurdico e revisionismo inconstitucional 70

3.2. Um regime de negao 72

3.3. frica: a queda no mundo 73

3.3.1. A primeira viagem no tem regresso? 73

3.3.2. Por onde comear? 75

3.4. Organizao de Todos os Interesses 77

3.4.1. Condicionamento Industrial: novo pombalismo-colbertista 78

3.4.2. Interesse Nacional 79

3.4.3. A Misso do Estado 82

3.5. Viver (n)o Mundo: Alemanha, Espanha e Itlia 85

IV CAPTULO O erro corporativo:

o poder tende sempre a alargar a sua esfera de domnio 89

PARTE II

A PORTA ESTREITA PARA O PODER: CONDICIONANTES

I CAPTULO O exlio de Maquiavel 97

1.1. Poder governar 97

1.1.1. Fazer poltica 97

1.1.2. Universos (in) compatveis 99

1.2. Caminhos de Roma 103

1.2.1. A Santa S e a tentao do deserto 103

1.2.2. Ordem mundial segundo os desejos do papa 107

1.3. Do sistema virtude 114

1.3.1. Sistema perfeito e prncipe perfeito 114

1.3.2. Universidade Nova: povo, estado, educao, liberdade e virtude 119

1.4. Mocidade Portuguesa 123

7

1.4.1. Iluso e realidade 123

1.4.2. Ao servio do Imprio 127

1.4.3. Poderes 131

II CAPTULO Transmisso de poderes de corrupo 137

2.1. Poderes de corrupo 137

2.1.1. Perceo do fenmeno 137

2.1.2. Orientao contra o fenmeno 141

2.2. Eixo de toda a corrupo organizada? 143

2.2.1. A organizao 143

2.2.2. O eixo 146

2.3. Corrupo do Poder Poltico pelo Poder Econmico 154

2.3.1. Grupos de presso 154

2.3.2. Transversalidade sistmico-ideolgica do fenmeno 156

2.4. Aquela Transio 159

2.4.1. Assim foi mais uma experincia 1947 160

2.4.2. Outro processo de trabalho 1958 164

2.4.3. Infelizmente, o Marcello imprescindvel 168

III CAPTULO Poltica ultramarina: (des) integrado 1958-68 175

3.1. Daqui que o sigamos e esperamos 175

3.1.1. Irrevogvel 175

3.1.2. Uma voz crtica 180

3.2. O milagre da frica e o esprito da ONU 185

3.2.1. Contradies 185

3.2.2. Situao colonial 187

3.2.3. Oportunismo semntico (inter) nacional 191

3.2.4. O maior esforo militar da sua histria 199

3.2.4.1. Antecipao da crise 199

3.2.4.2. Chamados ao governo 201

3.2.4.3. Eventual autonomia administrativa 207

3.2.5. Compor anamneses: antes do tempo tarde demais 213

8

3.2.5.1. Guin 214

3.2.5.2. Plebiscito da poltica ultramarina 219

3.2.5.3. Novas formas polticas 221

IV CAPTULO Regresso: a mecnica daquele tempo 1958-68 227

4.1. Tempos modernos: poder(es) e massas 227

4.1.1. Mtodos obliterativos 227

4.1.1.1. Senhor de Trville 229

4.1.1.2. Desculpe a demora 231

4.1.1.3. Do silncio 234

4.1.2. Da Liberdade e do liberalismo 237

4.1.2.1. O meu liberalismo: autoridade, renovao e continuidade 238

4.1.2.2. A hora das massas estudantis: democratizao do ensino 242

4.2. Os Ventos e a Rosa 247

4.2.1. Justa Censura em Bruxelas 247

4.2.2. Luta pelo poder: Leste Oeste 250

4.2.3. Os irresponsveis americanos killing them softly 253

4.2.4. Tempo, transio e boa vizinhana: a aliana mpia 260

4.2.5. Os fiis (fora) da balana 265

4.2.6. Il modello italiano 270

PARTE III

NO PODER

I CAPTULO Gerao Estado Social: a primeira eleio 1969 275

1.1. Refoluo marcelista? 275

1.1.1. Situao revolucionria, revoluo, reforma e transio 275

1.1.2. O verdadeiro artista poltico 282

1.1.3. Aliana do mdio prazo 287

1.1.4. Entre (o)posies: o temor de republicanos e situacionistas 291

1.1.5. Conscincia nacional 298

1.1.6. O sentido das pequenas coisas: dirio do governo 306

9

1.2. Ganh-las bem 314

1.2.1. Realidade compsita 314

1.2.2. A solido de Marcello e os cancros sociais (PIDE, Censura, Legio) 316

1.2.3. Mquinas de campanha 324

1.2.3.1. Informa: a encomenda oficiosa 324

1.2.3.2. Desmantelada: a velha UN 326

1.2.3.3. Golpe de Estado: o homem a abater direita e esquerda? 330

1.2.4. Renovao de pessoal poltico:

a formar para altas responsabilidades 332

1.2.4.1. Critrios: eliminar a corrupo? 332

1.2.4.2. Dosagem: para um regime progressivo? 335

1.2.4.3. Algo novo: fazer (in) amigos? 338

1.2.4.4. A Lista de Caetano:

tese de uma forma democrtica de governo? 345

1.2.5. Sobre a campanha 351

1.2.5.1. Recomendaes: o futuro 351

1.2.5.2. Questo de Coimbra e maioria silenciosa 354

1.2.5.3. Estratgia da tenso 358

1.3. At parecia um pas habituado a votar 364

1.3.1. Falncia estrondosa 364

1.3.2. Recenseamento e absteno 366

1.3.3. Ecos da vitria: constituio e corporativismo 371

1.3.4. O teste da primeira mudana? 374

II CAPTULO Ministrio das Colnias: 1944/45 379

2.1. A forma concreta da ideia 379

2.1.1. Um magnfico ps-guerra? 380

2.1.2. Realidade corporativa 393

2.1.2.1. A ideia corporativa e a virtude dos homens 393

2.1.2.2. Organismos de Coordenao Econmica:

sementes de corrupo 395

2.1.2.3. Simplificar e organizar: reao s primeiras medidas 400

2.1.2.4. A caminho de frica: ao e objetivos 403

10

2.1.2.5. Coordenao Econmica em frica:

exploradores e explorados 404

2.1.2.5.1. A corrupo do sistema produtivo 404

2.1.2.5.2. A situao do indgena: verdadeira escravatura 408

2.1.2.5.3. Comparao com o Congo belga 414

2.1.2.5.4. Confirmao oficial: Angola 416

2.1.2.6. Contra a corrupo do sistema: dirio do governo 418

2.1.3. Viagem de Marcello a frica 1945 423

2.1.3.1. Enquadramento 423

2.1.3.2. O problema missionrio a anttese 425

2.1.3.2.1. Misses catlicas: decadentes 426

2.1.3.2.2. Misses protestantes/evanglicas: as melhores 429

2.1.3.3. Anlise comparativa da primeira impresso:

Angola e Moambique 431

2.1.3.4. Administrao colonial 432

2.1.3.4.1. Organizao, servios, equipamentos 432

2.1.3.4.2. Sade e educao 435

2.1.3.5. Unidades produtivas: resistncias e indigenato 439

2.1.3.6. A origem (anti) sistmica do mal: cultura e carcter 442

III CAPTULO Do Ministrio das Colnias para o Governo: 1946/47 1970/74 445

3.1. Confrontos estruturais 445

3.1.1. A mentira do pas catlico 445

3.1.1.1. Acordo Missionrio: nem nacional, nem missionrio? 445

3.1.1.2. Da boa vontade ao confronto 447

3.1.1.3. Treino enorme de hipocrisia 451

3.1.1.4. Do ecumenismo reviso constitucional 457

3.1.1.4.1. Quem no por ns 457

3.1.1.4.2. De Machava a Genve: a ecumenizao do interesse? 464

3.1.2. A mentira da Nao Corporativa 469

3.1.2.1. Conflito interministerial 469

3.1.2.2. Se todas as sociedades fossem bem administradas 472

3.1.2.3. O lugar do indgena nos modelos econmico-sociais europeus 475

11

3.1.2.4. Obsesso ideolgica e secundarizao econmica:

o problema dos quadros 483

3.1.2.5. Axioma de poltica colonial: Futuro e Plano de Fomento 486

3.1.2.6. Do condicionamento reviso constitucional 488

3.1.2.6.1. Ao ataque 488

3.1.2.6.2. O cimento da rutura 493

3.1.3. A mentira do pas uno 504

3.1.3.1. Confronto militar: ao psicolgica e regionalizao da tropa 504

3.1.3.2. Imperialismo ou cooperao? 511

3.1.3.3. Caminho poltico da ndia 513

3.1.3.4. No sentido da independncia de Angola e Moambique 518

3.1.3.5. O erro fatal: caso malaio 524

3.1.3.6. Do integracionismo reviso constitucional 529

3.1.3.6.1. O argumento econmico 529

3.1.3.6.2. A integrao de todas crticas 538

3.1.3.6.2.1. Medos 538

3.1.3.6.2.2. (Im)possibilidade(s) 551

3.1.3.6.2.3. Apego ao poder 558

IV CAPTULO Novo Estado Social 575

4.1. Nova Ordem 575

4.1.1. (In)governabilidade global:

crise, austeridade, economia e democracia 575

4.1.2. Dualidades: duas liberdades, dois partidos, duas eleies 584

4.1.3. Estado Social: trabalho, assistncia, SNS(S) 600

4.1.4. O capital da frustrao: transio poltica e regulao econmica 610

4.1.5. Curso: planeamento, integrao, energia, TAP e Sines 621

CONCLUSO 639

DOCUMENTAO E BIBLIOGRAFIA 647

12

13

RESUMO

A presente tese de doutoramento tem como objeto de estudo Marcello Caetano (MC) e

o Novo Estado marcelista, enquanto reproduo do regime institudo com a Constituio de

1933 distinta do Estado Novo salazarista. Um vasto leque de questes, tais como saber porque

pode falhar uma experincia de restaurao de funcionalidade num sistema at a

disfuncional, mas bem-sucedido, bem como saber porque que o agente poltico central

se arruinou face a foras, grupos e poderes dspares ou mesmo contraditrios, justificam

uma anlise historiogrfica contextualizada quer por uma interpretao do projeto socio-

poltico-econmico marcelista e da relao entre MC, os itinerrios do Estado Novo, os

problemas fundamentais do seu tempo histrico, os poderes ou grupos de poder e a anlise

crtica da evoluo do contexto internacional, quer por uma abordagem (obrigatria e

necessariamente crtica) interior, a partir do prprio MC e do marcelismo, nas suas mltiplas

vertentes e vicissitudes.

Focamos a nossa anlise em trs pontos. Primeiramente contextualiza-se o perodo da

juventude, at 1929, quando MC comeou a colaborar com o chefe da Situao. De

seguida, procuramos decompor o pensamento de MC segundo a sua mundividncia e no

tanto reconstruir uma verso precoce e sistematizada do seu pensamento. Examinamos, com

particular detalhe, as suas posies e pontos de vista sobre a construo e evoluo do regime,

bem em relao ao seu tempo. Procura-se tambm enquadrar o seu pensamento no contexto

internacional, avaliando-se o impacto dos principais acontecimentos na formao poltica e

intelectual de MC at 1939. Uma vez que a experincia do poder, aliada ao acontecimento

mais relevante do sculo XX, constituem um fator de transformao que desaconselha a

mobilizao apressada de posies de fases temporalmente muito distantes.

Em seguida, examina-se detalhadamente a forma como MC se foi posicionando no

seio do regime at 1968, convocando-se todas as abordagens, alm da poltica, que a

documentao permita. Descodificam-se todos os elementos de conflitualidade entre MC e as

individualidades, instituies, grupos ou estruturas de poder permeabilizados pelo regime.

Averigua-se em que medida a passagem pela Mocidade Portuguesa (MP) determinou as

relaes para o futuro. Aprofunda-se a noo de poder no pensamento de MC e, sobretudo,

como se caracterizou o primeiro contacto com os poderes e como se processou a sada de

MC das pastas das Colnias (1947) e da Presidncia (1958). Decompe-se tambm a chamada

travessia do deserto (1958-68), indagando as suas causas e consequncias, com destaque

14

para a complexa questo ultramarina. Aprofunda-se o seu posicionamento em relao

configurao internacional e s principais potncias e s problemticas centrais desse perodo

no mundo ocidental, o futuro do liberalismo e do conceito de liberdade, bem como os

processos de instrumentalizao destes e doutros conceitos nucleares.

Finalmente caracterizam-se, de forma problematizante, detalhada e integrada as

passagens de MC pelo Governo, com destaque para o Ministrio das Colnias (1944-47) e a

Presidncia do Conselho (1968-74). Mobiliza-se, para tal, o referencial terico liberal que

marcou esse perodo e analisa-se a interao de MC com a evoluo do sistema poltico-

econmico corporativo. Procurando levantar uma leitura alternativa, discutimos a corporativa

organizao de todos os interesses e a sua implicao na construo do novo estado

marcelista. Avalia-se em que medida a nova praxis acrescentou instabilidade e provocou

desequilbrios no seio do regime, bem como a forma como a preparao das eleies de

Outubro de 1969 desenhou o futuro de MC e da nova gerao estado social. Procede-se, de

seguida ao estudo aprofundado do Ministrio das Colnias: quer o contato direto com a

realidade corporativa, os organismos de coordenao econmica e o conhecimento profundo

da realidade africana, quer a origem dos confrontos decisivos de MC e da sua viso sobre o

pas com os poderes estruturantes. Avalia-se a ligao entre esses confrontos e as

principais medidas do governo de MC nos diversos campos de ao, em particular a reviso

constitucional de 1971. Por fim, conclui-se com um inqurito e avaliao s propostas de MC

no quadro complexo das crises, lutas, dificuldades, reflexes e contradies que marcaram o

espao ocidental naquele perodo.

PALAVRAS-CHAVE: Marcello Caetano; marcelismo; Estado Novo; corporativismo; Estado

Social; Ultramar; poderes.

ABSTRACT

The present doctoral thesis has as object of study Marcello Caetano (MC) and his form

of Novo Estado, as a reproduction of the regime implemented with the 1933 Constitution

but distinct from Salazars type of Estado Novo. A wide range of issues, such as knowing

why an experimental restoration of functionality in a system that had been, until then,

15

dysfunctional but successful, as well as knowing why the central political agent

collapsed when faced with opposing, and even contradictory forces, groups and powers,

justify a contextualized historiographic analysis, one being an interpretation of the marcelist

social, political and economical project and the relationship between MC, the itineraries of

the Novo Estado, the fundamental problems of its historic time, the powers or groups of

powers and the critical analysis of the of the evolution of the international context, and the

other from internal viewpoint (obligatory and necessarily critical), by MC himself and by

marcelism - in all its multiple aspects and vicissitudes.

The analysis is based on three points. The first one contextualizes the early period,

until 1929, when MC began collaborating with the head of the "Situation". Then, we seek to

break down the thoughts of MC according to his world view rather than rebuild an early and

systematized version of his thought. We examined, in detail, his positions and views on the

construction and evolution of the regime, as well as its relationship with the period it is set in.

His views on the international context were also an aim of this study, assessing the impact of

the main events in the political and intellectual formation of MC until 1939. The experience

of power, together with the most important event of the twentieth century, constitute a factor

of transformation that advises against the hasty taking up of positions temporarily too far

apart.

The next point examines in depth, and where documentation allowed, from many

perspectives not just political, how MC began positioning himself within the center of the

regime until 1968. All elements of conflict between MC and individuals, institutions, groups

or power structures infiltrated by the regime were decoded. The extent to which his

experience in the Mocidade Portuguesa (MP) determined future actions is studied. The

notion of "power" in the thought of MC and, above all, how the first contact with the

"powers" is deepened, and how MCs exit from the Colonies section (1947) and the

Presidency (1958) were arranged. The so called "crossing of the desert" (1958-68), is

analyzed in depth, looking at its causes and consequences, highlighting the complex issue

overseas. His positioning in relation to the international setting and the major powers and the

central issues of this period in the Western world, the future of liberalism and of the concept

of freedom are analyzed in detail, as well as the processes of exploitation of these and other

concepts.

Finally, MCs various times in Government, with special emphasis on the Ministry of

the Colonies (1944-47) and the Presidency of the Council (1968-74) periods are described

with all their complexities. To this end, the theoretical liberal reference that marked this

16

period is taken into consideration and MCs interaction with the evolution of the political-

economic system is analyzed. Seeking an alternative viewpoint, the corporate organization of

all interests" and their implication in the construction of the "Novo Estado of MC is also

discussed. The extent of instability created by the new praxis and imbalances caused within

the regime is assessed, as well as the preparation of the "elections" of October 1969 mapped

out MCs future and the new "social State" generation. The in-depth study of the Ministry of

the colonies is then described: its direct contact with corporate reality, the mechanisms of

economic coordination and deep knowledge of African reality, the origin of the "decisive"

confrontation of MC and their vision for the country with the "structural" powers. The

connection between these "clashes" and the main decisions taken by MCs government in the

various fields of action, particularly the constitutional amendment of 1971 are also discussed

in detail. Lastly, it concludes with a survey and evaluation of MCs proposals within the

complex framework of crises, struggles, hardships, reflections and contradictions that marked

the Western world at that time.

KEYWORDS: Marcello Caetano; marcelism; Estado Novo; corporatism; Welfare State;

Overseas; powers.

17

AGRADECIMENTOS

Gostaria de deixar registado o meu agradecimento s pessoas e instituies que

contriburam diretamente para a realizao do presente trabalho. Ao meu orientador, Prof.

Doutor Rui Cunha Martins, pela disponibilidade e exigncia contnua. Fundao para a

Cincia e Tecnologia, pela bolsa concedida para a preparao desta tese de doutoramento.

Aos sucessores de Marcello Caetano, pelas autorizaes, segundo os critrios legalmente

estabelecidos, para a consulta massiva e sistemtica do Arquivo Marcello Caetano (AMC).

Relembro, alm disso, a valiosa colaborao do Prof. Doutor Adriano Moreira, dos

familiares de Jos Miguel Queirs de Barros e do Dr. Miguel de Barros Alves Caetano, pelas

entrevistas, documentao indita e impressa gentilmente disponibilizadas.

Saliento o auxlio prestado pelas entidades onde desenvolvi a investigao subjacente

a esta tese: Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Centro de Documentao 25 de Abril;

Arquivos das Cmaras Municipais de Guarda e Celorico da Beira; Biblioteca Nacional;

Bibliotecas da Faculdade de Direito e da Reitoria da Universidade de Lisboa; Biblioteca Geral

da Universidade de Coimbra; Bibliotecas da Faculdade de Letras e da Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra; Biblioteca Municipal Eduardo Loureno e Biblioteca do Instituto

Politcnico da Guarda. O meu reconhecimento a todos os profissionais com quem contactei

em cada uma destas entidades.

Destaco o apoio do Centro de Estudos Interdisciplinares do Sculo XX (CEIS20) da

Universidade de Coimbra e da Seco de Histria da Faculdade de Letras, em especial do

Instituto de Histria e Teoria das Ideias. Realo, para alm do meu orientador, a Prof.

Doutora Maria Manuela Tavares Ribeiro e o Prof. Doutor Fernando Catroga, referncias

acadmicas de todo o percurso, bem como os colegas do grupo de Histria e Memria do

CEIS20.

Agradeo tambm a disponibilidade, ajuda e interesse manifestados pela Prof.

Doutora Ftima Moura Ferreira, Dr. Paulo Tremoceiro, Eng. Jos Monteiro, Dr. Olga Farias,

Sr. Beatriz Prazeres e Sr. Mercedes Ramos.

s pessoas, amigos e familiares, com quem partilhamos toda a vida, no se agradece.

Em especial o indizvel. Ainda assim, destaco as pessoas a quem dedico este trabalho: mulher,

filha, Yeshua.

18

19

TBUA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

(?) palavra ou expresso ilegvel (na documentao)

[] palavra(s) omitida(s) numa transcrio

[ ] introduo de palavras numa transcrio; adequao de tempos

verbais

AAC Associao Acadmica de Coimbra

AC Ao Catlica

ACAP Associao Central da Agricultura Portuguesa

ADS Ao Democrata-Social

ADSE Assistncia na Doena aos Servidores Civis do Estado

AEF frica Equatorial Francesa

AEP Aliana Evanglica Portuguesa

AGU Agncia-geral do Ultramar

AM Acordo Missionrio

AN Assembleia Nacional

ANI Agncia Nacional de Informao

ANP Ao Nacional Popular

ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

ANZUS Australia, New Zeeland and United States

AP Ao Popular

ASP Ao Socialista Portuguesa

BI Batalho de Infantaria

BM Banco Mundial

BNU Banco Nacional Ultramarino

BPA Banco Portugus do Atlntico

CA Cdigo Administrativo

CADC Centro Acadmico de Democracia Crist

CC Cmara Corporativa

CDE Comisso Democrtica Eleitoral

CM Conselho de Ministros

CDU Christlich Demokratische Union Deutschlands (Unio Democrata-

crist alem)

20

CECA Comunidade Econmica do Carvo e do Ao

CEIS20 Centro de Estudos Interdisciplinares do Sculo XX da Universidade

de Coimbra

CEMGFA Chefe de Estado-maior General das Foras Armadas

CEN Conceito Estratgico Nacional

CEUD Comisso Eleitoral de Unidade Democrtica

CGD Caixa Geral de Depsitos (Crdito e Previdncia)

CGT Confdration gnrale du travail

CIA Central Intelligence Agency

CIC Conselho do Imprio Colonial

CM Cmara(s) Municipal (ais)

CMPAE Conselho de Ministros para os Assuntos Econmicos

CNP Centro Nacional de Produtividade

coord. coordenao

CPLP Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa

CPN Conselho Poltico Nacional

CSE Conselho Superior de Economia

CSU Christlich-Soziale Union (Unio Social-crist alem)

CTI Cdigo do Trabalho Indgena

cts contos (unidades de milhar de escudos)

CU Conselho Ultramarino

CUF Companhia Unio Fabril

CVI Cruz Vermelha Internacional

DC Democracia Crist

Diamang Companhia de Diamantes de Angola

dir. direo

EFTA European Free Trade Association

ELRM Exrcito de Libertao das Raas Malaias

EMGFA Estado-maior General das Foras Armadas

ENAE Empresa Nacional de Aparelhagem Eltrica

ETN Estatuto do Trabalho Nacional

EUA Estados Unidos da Amrica

FA Foras Armadas

FBI Federal Bureau of Investigation

21

FDUL Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

FLUC Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

FMI Fundo Monetrio Internacional

FNLA Frente Nacional para a Libertao de Angola

FRELIMO Frente de Libertao de Moambique

GAS Gabinete da rea de Sines

GNR Guarda Nacional Republicana

HCL Hospitais Centrais de Lisboa

IAC Instituto de Alta Cultura

IAEM Instituto de Altos Estudos Militares

IDE Investimento Direto Estrangeiro

INCIDI Instituto Internacional de Civilizaes Diferentes

INII Instituto Nacional de Investigao do Ultramar

INTP Instituto Nacional do Trabalho e Previdncia

ISEU Instituto Superior de Estudos Ultramarinos

ISS Instituto de Servio Social

JAC Juventude Agrria Catlica

JCI Junta de Colonizao Interna

JMP Juventude Musical Portuguesa

JOC Juventude Operria Catlica

JUC Juventude Universitria Catlica

LAC Liga Agrria Catlica

LOC Liga Operria Catlica

LP Legio Portuguesa

MA Ministrio da Agricultura

MC Marcello Caetano

MCIA Ministrio do Comrcio, Indstria e Agricultura

MdC Ministrio das Colnias

MdD Ministrio da Defesa

MdE Ministrio da Economia

MdF Ministrio das Finanas

MdG Ministrio da Guerra

MdI Ministrio do Interior

MdJ Ministrio da Justia

22

MdP Ministrio da Presidncia

MdOP Ministrio das Obras Pblicas

MdOPC Ministrio das Obras Pblicas e Comunicaes

MdU Ministrio do Ultramar

MFA Movimento das Foras Armadas

MFE Ministrio das Finanas e Economia

MIE Ministrio da Indstria e Energia

MIT Massachusetts Institute of Technology

MNE Ministrio dos Negcios Estrangeiros

MAS Ministrio da Sade e Assistncia

MOFA Movimento dos Oficiais das Foras Armadas

MSI Movimento Social Italiano

MUD Movimento de Unidade Democrtica

MUNAF Movimento de Unidade Nacional Antifascista

n nmero

NSDAP Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nazi)

NATO North Atlantic Treat Organization

OECE Organizao Europeia de Cooperao Econmica

OIT Organizao Internacional do Trabalho

ONU Organizao das Naes Unidas

OPEP Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo

org. organizao

p./pp. pgina(s)

PAIGC Partido Africano para a Independncia da Guin-Bissau e Cabo Verde

PCF Parti Communiste Franais

PCI Partido Comunista Italiano

PCM Presidncia do Conselho de Ministros

PCP Partido Comunista Portugus

PdR Presidncia da Repblica

PF Plano de Fomento

PIDE/DGS Polcia Internacional de Defesa do Estado/Direo Geral de Segurana

PRI Partido Republicano Italiano

PS Partido Socialista

PSDI Partido Social-democrata Italiano

23

PSI Partido Socialista Italiano

PSP Polcia de Segurana Pblica

RUC Reitoria da Universidade de Coimbra

RUL Reitoria da Universidade de Lisboa

s.d. sem data

s.e. sem editora

s.l. sem local

SACOR Sociedade Annima Concessionria de Refinao de Petrleos de

Portugal

SCPS Subsecretariado das Corporaes e Previdncia Social

SEATO The Southeast Asia Treaty Organization

SEDES Associao para o Desenvolvimento Econmico e Social

SEIT Secretaria de Estado da Informao e Turismo

SNI Secretaria Nacional de Informao, Cultura Popular e Turismo

SONAP Sociedade Nacional de Petrleos

SONAREP Sociedade Nacional de Refinao de Petrleos

SPD Sozialdemokratische Partei Deutschlands (Partido Social-democrata

alemo)

SPN Secretariado da Propaganda Nacional

SS Santa S

TO Teatro de Operaes

trad. traduo

UC Universidade de Coimbra

UE/CEE Unio Europeia/Comunidade Econmica Europeia

UI Unio Indiana

UL Universidade de Lisboa

UN Unio Nacional

UNESCO United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization

UP Universidade do Porto

URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

Vol. volume(s)

24

25

INTRODUO

A presente tese de doutoramento visa constituir uma tentativa objetivante de

interpretao do Novo Estado Marcelista enquanto objeto de estudo autnomo dentro do

amplo quadro da Ditadura Militar/Estado Novo. No sentido de que ter constitudo uma

reproduo do regime institudo com a Constituio de 1933 distinta do Estado Novo

salazarista. F-lo a partir do estudo sistemtico do quadro decisrio de MC possvel atravs

da anlise exaustiva, contextualizada e cruzada do seu arquivo pessoal (AMC)1 para que

desta forma se reduza o risco calculado inerente ao processo base da produo cientfica.

Designadamente, no que refere ao exerccio indutivo que possibilita a formulao de

hipteses de compreenso global acerca de um ou mais objetos ou fenmenos a partir da

investigao de uma realidade particular.

Foram vrias as motivaes subjacentes escolha deste objeto de estudo, em parte j

examinado na nossa dissertao de mestrado (2009).2 A anlise do discurso marcelista o que

ele assumiu pretender fazer e no tanto o que ele no fez e poderia ter feito e da relao

com o seu antecessor no governo do Estado Novo, num registo de dilogo com algumas das

principais linhas interpretativas do objeto historiogrfico, constituiu-se assim uma base para a

projeo deste estudo. Mantm-se, no essencial, o que a se disse, embora a questo

permanea operante. Sem pretenses de originalidade3, prope-se uma linha

problematizante alternativa. Desde logo porque o natural trabalho de explicao lgica e

consequente de processos de rutura poltica no esgotou todas as questes. Ser forosamente

lgico que os agentes de rutura consubstanciem uma efetiva e integrada aspirao de

mudana? A criao de condies de rutura por parte dos poderes estruturais de uma

sociedade denuncia necessariamente um desejo de novo ou poder tambm comportar, por

outro lado, uma reao formal (imediata e aparente) a mudanas reais (lentas e efetivas)

que ameacem as relaes de poder estabelecidas?

Por conseguinte, houve tambm um esforo no sentido de constituir a interpretao do

projeto socio-poltico-econmico marcelista e da relao entre MC, os itinerrios do Estado

1 Arquivo Marcello Caetano: catlogo, Vol. I e II, autoria de Antnio Frazo e Maria do Cu Barata Filipe,

colaborao especial de Miguel de Barros Alves Caetano, Ministrio da Cultura/Torre do Tombo, 2005. 2 BARBOSA, Mrcio, Marcello e Spnola: a misso do fim, Almedina, Coimbra, 2011.

3 As pretenses de originalidade, tendo em vista a importncia da cincia e das suas misses, so sempre

ridculas. EUCKEN, Walter, Fundamentos da Economia Poltica, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa,

1998, p.377.

26

Novo, os problemas fundamentais do seu tempo histrico, os poderes ou grupos de poder e a

anlise crtica da evoluo do contexto internacional como tentativa concreta de resposta

questo de saber porque pode falhar uma experincia de correo, purificao ou

restaurao de funcionalidade num sistema at a anquilosado, corrompido e/ou

disfuncional, mas bem-sucedido, bem como saber porque que o agente poltico central

(tratar-se- aqui de MC) se arruinou face a foras, grupos e poderes dspares ou mesmo

contraditrios. Seja na perspetiva da continuidade ou da evoluo, do confronto com as

oposies ou das tenses internas do regime, consensualizou-se a ideia nuclear de que

MC falhou, acomodada a uma certa inevitabilidade. No entanto, a conjugao de ambos

os elementos levanta algumas dificuldades. Dado que do questionar que tudo depende4,

mais do que justificar porque tinha de falhar, formulao que induz o princpio de que

todos os sistemas tm inevitavelmente de falhar, o quesito mobilizador consistiu em

inquirir porque falhou, dado que, na realidade e por princpio, todos os sistemas so

concebidos para durar.5

Alm disso, assumiu-se a demarcao entre fim e mbil. Quer dizer,

historicamente um fim desejvel no tem de acontecer pelas mais desejveis razes. E vice-

versa. Ou seja, no se reconhece nenhuma lei universal ou verdade axiomtica, recorrendo-

se expresso de J. S. Mill, que determine que os motivos tm de ser necessariamente

concordantes com os fins. Esta circunstncia ou enquadramento permitiu alargar o espectro de

interrogaes, equacionando-se temas e discusses de maior complexidade e dimenso para a

compreenso da figura histrica de MC e do seu pensamento, percurso e interveno poltica

no contexto do Estado Novo. Em permanente dilogo com a sua circunstncia e contraditrio,

quer no quadro do regime, quer na sua multifacetada e abrangente mundividncia, numa viso

integrada da realidade.

Em funo da excecional dimenso polemista do objeto de estudo, procurou-se

contribuir para o enriquecimento da produo historiogrfica, segundo uma orientao

alternativa e complementar da vertente na anteocupao da definio6 em relao

4 EUCKEN, Walter, ob.cit., p.358.

5 Linha desenvolvida, em profundidade, para o salazarismo: ROSAS, Fernando, Salazar e o Poder: a arte de

saber durar, Lisboa, Tinta-da-china, 2012. 6 Ver, entre outros, REIS, Antnio, Marcelismo, in ROSAS, Fernando, BRITO, J. M. Brando de, Dicionrio de

Histria do Estado Novo, Lisboa, Crculo de Leitores, 1996, Vol. II, pp.546-548; RATO, Vasco, Marcelismo, in

BARRETO, Antnio, MNICA, Maria Filomena (coord.), Dicionrio de Histria de Portugal. Suplemento,

Vol. III, Lisboa Porto, Figueirinhas, 1999, pp.421-427. No mesmo sentido, embora noutro registro, ver PINTO,

Jaime Nogueira, Portugal, os anos do fim: o fim do Estado Novo e as origens do 25 de Abril, Lisboa, Difel,

1995; MESQUITA, Mrio, Eduardo Loureno. Cultura e poltica na poca Marcelista entrevista a Eduardo

Loureno, Lisboa, Ed. Cosmos, 1996; TORGAL, Lus Reis, Estado Novo em Portugal: ensaio de reflexo

sobre o seu significado, Estudos Ibero-Americanos, XXIII, n1, Porto Alegre, Junho de 1997, pp.5-32; NUNES,

27

interpretao7, e esta, por sua vez, embora no de uma forma rgida

8, anlise

sistemtica de acervos documentais/arquivos.9 Apesar da tendncia, obras recentes de grande

dimenso apresentam evidente desproporo entre a natural ambio historiogrfica, expressa

at na dimenso fsica, e a base documental/arquivstica que a sustenta.10

Justifica-se,

portanto, uma abordagem (obrigatria e necessariamente crtica) interior, a partir do prprio

MC e do marcelismo, nos seus mltiplos ngulos e vicissitudes.

Em relao s balizas cronolgicas adotadas, reduziu-se sobremaneira a caracterstica

artificialidade subjacente a essa opo, j que resultam da seleo de dois momentos bvios

do percurso poltico de MC: o incio da colaborao com o seu antecessor, em 1929, e o 25 de

Abril de 1974. Embora no primeiro captulo se faa uma breve, mas necessria, incurso no

Joo Paulo Avels, Tipologias de regimes polticos. Para uma leitura neomoderna do Estado Novo e do Nuevo

Estado, Populao e Sociedade, n8, Porto, CEPESE, 2002, pp.73-101. 7 Ver, entre outros, BERNARDO, Manuel A., Marcello e Spnola: a rutura. As Foras Armadas e a Imprensa na

queda do Estado Novo, Lisboa, Estampa, 1996; BRITO, J. M. Brando de, Do marcelismo ao fim do Imprio,

Lisboa, Crculo de Leitores, 1999; VALENTE, Vasco Pulido, Marcello Caetano: as desventuras da razo,

Lisboa, Gtica, 2002; VIEIRA, Joaquim, Marcello Caetano. Fotobiografias do sculo XX, Lisboa, Crculo de

Leitores, 2002; ROSAS, Fernando, OLIVEIRA, Pedro Aires (coord.), A transio falhada. O marcelismo e o fim

do Estado Novo (1968-74), Lisboa, Editorial Notcias, 2004; TORGAL, Lus Reis, Marcello Caetano,

Marcelismo e Estado Social: uma interpretao, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013 republicao,

com alteraes de pormenor, de artigo inicialmente publicado em 2006 (Marcello Caetano antes do Marcelismo,

Cadernos do CEIS20, Coimbra, CEIS20, 2007) e em 2009 (Estados Novos, Estado Novo, 2 ed., Coimbra,

Imprensa da Universidade, 2009); ROSAS, Fernando, GARRIDO, lvaro (coord.), Corporativismo, Fascismos,

Estado Novo, Coimbra, Almedina, 2012; LEMOS, Mrio Matos, TORGAL, Lus Reis (coord.), Oposio e

eleies no Estado Novo, Lisboa, Assembleia da Repblica, 2012. 8 Entre as excees cronolgicas destacam-se (sobretudo o primeiro): LUCENA, Manuel, A evoluo do

sistema corporativo portugus: Vol. I O Salazarismo, Vol. II O Marcelismo, Lisboa, Perspectivas e

Realidades, 1976; ANTUNES, Jos Freire, Nixon e Caetano: promessas e abandono, Lisboa, Difuso Cultural,

1992. 9 Ver, entre outros, CASTILHO, Jos Manuel Tavares, A ideia de Europa no Marcelismo, Lisboa Porto,

Assembleia da Repblica Afrontamento, 2000; MARTINS, Fernando, Diplomacia e guerra: poltica externa e

poltica de defesa em Portugal do final da Monarquia ao Marcelismo, Lisboa, Colibri, 2001; CABRERA, Ana,

Marcello Caetano: poder e imprensa, Lisboa, Livros Horizonte, 2006; FERNANDES, Tiago, Nem Ditadura

nem Revoluo: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-74), Lisboa, D. Quixote, 2006; SOUTO, Amlia Neves de,

Caetano e o ocaso do Imprio: administrao e guerra colonial em Moambique durante o Marcelismo

(1968-74), Porto, Afrontamento, 2007; CARDINA, Miguel, A tradio da contestao: resistncia estudantil em

Coimbra no Marcelismo, Coimbra, Angelus Novus, 2008; SOARES, Manuela Goucha, Marcello Caetano: o

homem que perdeu a f, Lisboa, Esfera dos Livros, 2009; REIS, Joana, A transio impossvel: a rutura de

Francisco S Carneiro com Marcello Caetano, Alfragide, Casa das Letras, 2010; BARROSO, Lus, Salazar,

Caetano e o reduto branco: a manobra poltico-diplomtica de Portugal na frica Austral (1951-74), Lisboa,

Fronteira do Caos, 2013; MARTINS, Pedro Miguel, Cartas entre Marcello Caetano e Laureano Lpez Rod,

Aletheia, Lisboa, 2014. Excetua-se a publicao de parte da correspondncia de e para MC: ANTUNES, Jos

Freire, Cartas particulares a Marcello Caetano, II Volumes, Lisboa, D. Quixote, 1985; Salazar Caetano:

cartas secretas (1932 1968), Lisboa, Crculo de Leitores, 1993. 10

Nas suas memrias, um dos coordenadores da obra Marcelo Caetano tempos de transio, no s se

dispensou de consulta arquivstica, como parece desvaloriz-la. RAMOS, Rui, e CRUZ, Manuel Braga de,

Marcelo Caetano: tempos de transio (depoimentos sobre Marcelo Caetano e o seu governo 1968-74), Porto,

Porto Editora, 2012, pp.465-506. A biografia de Tavares Castilho, apesar das quase 1000 pginas que compem

a sua publicao, apresenta evidente desproporo entre fontes impressas (j repetidamente estudadas, no caso

da bibliografia de MC) e documentao arquivstica. Numa altura em que, apesar de alguns condicionalismos,

seria j possvel consultar, seno todos, praticamente todos os arquivos relativos a MC de forma sistemtica.

CASTILHO, Jos Manuel Tavares, Marcello Caetano: uma biografia poltica, Coimbra, Almedina, 2012.

28

perodo imediatamente anterior a 1929. Quanto organizao temtico-cronolgica do

estudo, construiu-se em funo do poder: antes de MC ser chamado para um cargo poltico

(at 1939); as condicionantes de acesso ao poder geradas por e para MC desde 1940 at 1968,

quando assumiu a chefia do governo; a ao governativa propriamente dita, segundo as

articulaes, determinadas pelas fontes e pelos fatos, entre as experincias ministeriais dos

anos 40/50 (Ministrio das Colnias e Ministrio da Presidncia) e o governo de 1968-74. A

viso sobre a complexidade da realidade resultante do cruzamento das vrias fontes conduziu

ao caminho porventura mais difcil, mas tambm mais estimulante: o compromisso de

equilbrio entre a cronologia dos acontecimentos e a articulao coerente das problemticas. A

sobreposio de uma sobre a outra significaria sempre uma perda.

Quanto aos princpios epistemolgicos que orientaram o nosso trabalho, importar

operar uma clarificao. Para responder ao extenso e complexo leque de questes que o

estruturam procurou-se ascender da experincia quotidiana (no sentido de complicada,

contraditria e pontual) experincia cientfica (no sentido da aplicao da razo ao estudo

dos fatos at se alcanar uma estrutura de conhecimento). Isso imps a necessidade de

avanar profundamente (com os limites inerentes natureza do projeto) na observao da

realidade concreta, sem relativizar ou empobrecer documentos, fatos e acontecimentos

antes duma efetiva estruturao. Deste modo, a opo metodolgica inicial no recaiu sobre a

seleo de determinados documentos ou conjuntos de documentos, que se adequassem

logicamente ao(s) tema(s) proposto(s), mas sobre a anlise integral de arquivos e fontes

impressas. Que, por sua vez, mobilizaram nessora a consulta mais ou menos pontual e seletiva

de outros acervos documentais, em funo dos problemas levantados no decurso daquela

primeira etapa. No fundo, procurou-se dar espao ao inesperado, sem se limitar a pesquisa

ao inicialmente predeterminado. A definio e interpretao no ficaram deste modo

reservadas para o incio ou fim do estudo, mas encontraram espao no centro do prprio

processo de conhecimento. Nesse sentido, indagaram-se relaes necessrias e unidade onde,

por exemplo, um pensamento exclusivamente conceptual poderia somente antever

contingncia e inconciliao.

Por conseguinte, percebe-se a opo por uma abordagem estrutural e interpretativa,

apoiada numa slida fundamentao documental. O eixo estruturante de todo estudo consistiu

na anlise integral do colossal Arquivo Marcello Caetano (AMC), depositado na Casa Forte

do ANTT, do qual somente uma reduzidssima parte foi publicada, e o Dirio do Governo (I

Srie). Desta forma evitou-se agregar previamente uma orientao sistematizadora, no sentido

da articulao e ordenao uniforme e coerente, aos fatos. Pelo contrrio, deparmo-nos ali

29

com ela. A partir daqui, por um processo crtico de permanente problematizao e

confrontao, procedeu-se anlise de outras fontes impressas e documentais, das quais se

destacam: a bibliografia integral de MC e a revista O Direito (1932-1974), da qual MC foi

coproprietrio e redator; a documentao relativa Comisso Central e Comisso Executiva

da UN/ANP, entre 1947-48 e, particularmente, entre 1968-74; o arquivo da Presidncia do

Conselho de Ministros (secretaria-geral), entre 1968-74; o Dirio das Sesses, sobretudo

entre 1968-74; e a revista Ultramar, entre 1962-74. De forma mais pontual e em funo das

solicitaes dos prprios problemas, recorreu-se ao Arquivo Oliveira Salazar (AOS), II Srie

do Dirio do Governo, atas da Cmara Corporativa (CC) e outras publicaes peridicas, tais

como a revista O Tempo e o Modo e os jornais Dirio de Lisboa e Expresso.

Optou-se pela excluso da memorialstica como fonte por dois motivos fundamentais.

Primeiro, porque esta rejeita, em absoluto, a autocrtica. Segundo, decorrente deste,

considerou-se que as memrias, incluindo as de MC, valem como fonte sobretudo para o

conhecimento dos seus autores no momento histrico em que as reproduzem. As excees a

esta opo de fundo so as entrevistas da nossa autoria ao Dr. Miguel Caetano e ao Prof.

Doutor Adriano Moreira, que permitem dois olhares bastante distintos, para no se dizer

contrrios, sobre MC. Por sua vez, a preocupao com o contexto, sobretudo internacional,

estar presente como marca dgua. Com o objetivo de confrontar criticamente a

documentao a partir dos principais eixos de reflexo dos momentos mais decisivos do(s)

tempo(s) de MC, em detrimento duma contextualizao da crtica. No mesmo sentido,

procurou-se estabelecer o necessrio contraponto em relao obra de MC, recorrendo, em

funo do perodo e da problemtica, a um ou alguns dos seus principais crticos.

So trs as partes em que se estrutura o nosso trabalho. Cada qual subdividida, por sua

vez, em quatro captulos. Na primeira parte do trabalho, comear-se- por sintetizar e

contextualizar o perodo da juventude, at 1929, quando MC comeou a colaborar com o

chefe da Situao. De seguida, procurou-se compreender e decompor o pensamento de MC

segundo a sua mundividncia e no tanto reconstruir uma verso precoce e sistematizada do

seu pensamento. Que estar, evidentemente, em formao e ter j os seus fundamentos

estabelecidos, mas nem existe suficiente obra intelectual que o sustente nem ao poltica que

o comprove. Alm disso, a experincia do poder aliada ao acontecimento mais relevante do

sculo XX, constituiu um fator de transformao poderosssimo, que desaconselha a

mobilizao apressada de posies ou excertos de textos/documentos de fases temporalmente

muito distantes. Manifesta-se aqui com especial relevo o perigo de iniciar o raciocnio a partir

de teses estabelecidas para fases posteriores.

30

Na segunda parte examinar-se- detalhadamente a forma como MC se foi

posicionando no seio do regime at 1968, convocando-se todas as abordagens, alm da

poltica, que a documentao permita. Pretende-se descodificar todos os elementos de

conflitualidade entre MC e as individualidades, instituies, grupos ou estruturas de poder

permeabilizados pelo regime. Ou seja, em que medida a passagem pela Mocidade Portuguesa

(MP) determinou relaes de confiana e desconfiana para o futuro? Como se definiu a

noo de poder no pensamento de MC e, sobretudo, como se caracterizou o primeiro

contacto com os poderes? De que forma condicionou a sua permanncia no Ministrio das

Colnias? Que circunstncias contriburam efetivamente para a sada de MC das pastas das

Colnias (1947) e da Presidncia (1958)? Com que intensidade essas circunstncias

determinaram as condicionantes de acesso ao poder em 1968?

Nos ltimos captulos da segunda parte decompor-se- a chamada travessia do

deserto. Perodo at aqui, como muitos aspetos relativos a MC, demasiado desvalorizado

para ser compreendido. Como se processou esse afastamento e em que medida foi recproco?

De seguida, abordar-se- a complexa questo ultramarina. Desde logo, qual a perceo da

realidade africana, antes e depois de iniciado o conflito, transmitida a MC e construda por

este? A velocidade dos acontecimentos entre 1958 e 1968 no teve paralelo nas dcadas

anteriores. MC, ao contrrio doutras figuras do regime, envolvidas nessa altura nas lides

governativas, teve tempo para viajar, conhecer e refletir livre de constrangimentos. Tomando-

se o seu particularismo como ponto de fuga, em que medida o que se passou nesse perodo

contaminou a resoluo do problema a partir de 1968? Qual o posicionamento terico-

discursivo e pessoal de MC em relao aos principais rivais e crticos, nomeadamente

Franco Nogueira e Adriano Moreira? Como evoluiu a relao de fora, ou de fragilidade, em

relao a essas figuras e s estruturas do regime? Quanto se definiu nesse perodo para o

futuro? Do mesmo modo, aprofundar-se- o seu posicionamento em relao s problemticas

centrais do mundo ocidental, tais como a massificao dos aparelhos sociais, o futuro do

liberalismo e do conceito de liberdade, a instrumentalizao destes e doutros conceitos

nucleares, bem como a definio do seu campo de viso em relao configurao

internacional e s principais potncias, segundo a realidade portuguesa.

Na terceira e ltima parte, abordar-se- diretamente a ao governativa de MC.

Procurando-se estruturar, crtica e fundamentadamente, uma leitura problematizante

alternativa, capaz de responder ao nossos problemas centrais. Desde logo pela mobilizao

dum enquadramento terico liberal, nomeadamente a partir da reflexo produzida, sob o

recorrente espectro de crise, nas democracias liberais ocidentais. Quer se coloque a hiptese

31

de evoluo quer de continuidade, faz todo o sentido estabelecer esse dilogo. Comear-

se- o primeiro captulo precisamente por a e, para completar o quadro, tambm o derradeiro.

Transversalmente, analisar-se- a interao de MC com a evoluo do sistema poltico-

econmico corporativo, segundo a frmula algo enigmtica definida pelo fundador do regime:

tendemos organizao de todos os interesses para sua defesa e valorizao (sublinhado

nosso). Quais eram esses interesses? Como que o sistema operava essa organizao?

Como que os prprios interesses se organizavam e determinavam a estrutura

organizacional? Podem eliminar-se todos os antagonismos entre interesses? De que forma?

Se no se pode, que interesses eram defendidos e valorizados? Num prisma positivo, quais

eram os mecanismos funcionais subjacentes ao sistema corporativo? Numa perspetiva

negativa, quais seriam os mecanismos de introduo de disfuncionalidade no sistema? Qual

o papel desempenhado nos e pelos diversos elementos do sistema, desde a produo

legislativa at ao planeamento, no quadro da experincia quotidiana dos agentes poltico-

econmico-sociais?

O primeiro captulo comportar a avaliao da nova praxis e em que medida esta

acrescentou instabilidade e provocou desequilbrios no seio do regime. At que ponto a

preparao das eleies de Outubro de 1969, mais do que o acontecimento em si mesmo,

fortaleceu ou fragilizou MC? Quais os ndices de novidade? Como preparou MC a

emergncia da nova gerao estado social? Como se processou a avaliao de riscos por

cada um dos atores? Qual a medida de reciprocidade entre os intervenientes? O que se

perdeu e o que se ganhou nesse primeiro ano? Quais as medidas de risco e

prudncia experimentadas pelos principais atores na e em relao a MC?

O segundo e o terceiro captulos surgem diretamente ligados pelo estudo aprofundado

do Ministrio das Colnias (MdC). Perodo crucial e at agora praticamente por estudar. No

segundo analisar-se- detalhadamente a ao de MC na primeira fase do tempo que esteve

frente das Colnias. Por um lado, o contato direto com a realidade corporativa, os organismos

de coordenao econmica e o conhecimento profundo da realidade africana. Por exemplo, o

que determinava, segundo o prisma marcelista, a irregular pulso entre a tendncia estatizante

e a tendncia descentralizadora? Por outro lado, a avaliao dos problemas e as respostas para

os solucionar, a estruturao aplicada de um pensamento sobre e para o pas, especialmente

para o Ultramar. No terceiro captulo procurar-se- a raiz dos confrontos decisivos de MC

com os poderes estruturantes, no exatamente do regime, mas, numa tica mais abrangente,

da sociedade portuguesa. Examinar-se- a sua origem, evoluo, caractersticas e relevncia,

sempre no quadro crtico de relao com MC, desde 1944-47 at 1974. Proceder-se-

32

avaliao da ligao entre esses confrontos e as principais medidas do governo de MC nos

diversos campos de ao, em particular a reviso constitucional de 1971. Como e em que

medida MC interferiu na relao de poder entre as principais estruturas e o regime, por um

lado, e entre estas e o prpro pas por outro? Qual a influncia desses confrontos na

abordagem de MC aos problemas fundamentais do seu governo? De que forma os

interesses ou grupos de interesses determinavam e passaram a determinar ou no o

processo legislativo, o funcionamento das corporaes e a deciso poltica? Em que medida

concorreram para o fim?

Finalmente, no quarto e ltimo captulo, concluir-se- com um inqurito e avaliao s

propostas de MC no quadro complexo das crises, lutas, dificuldades, reflexes e contradies

que marcaram o espao ocidental naquele perodo. Que novidade ou nova ordem era

consentida pelos eixos de tenso internacional? Qual o nvel de convergncia ou divergncia

das medidas de MC com as tendncias poltico-econmicas dominantes no mundo

capitalista? A relao entre transio poltica e regulao econmica seria decisiva?

Porqu? O planeamento seria apenas um instrumento de desenvolvimento e um mecanismo de

normalizao do sistema ou seria mais do que isso? O que estaria em curso e o que se

frustrou?

Optou-se, na redao da presente tese, pela atualizao da ortografia dos textos

citados, embora se mantivesse a gramtica e os particularismos de cada transcrio, como

sublinhados, aspas ou travesses. Decidiu-se, independentemente da dimenso ( qual no se

imps limite formal), incorporar os excertos transcritos no corpo do texto, sem diferenciao

no tamanho da fonte, recorrendo-se utilizao de aspas para sua diferenciao. Limitou-se a

utilizao do itlico aos casos em que a fonte assim o indicava ou para distinguir citao, no

documento, de terceiros. Considerou-se prefervel manter, nas notas de rodap, para uma

maior clareza, a forma completa para a documentao arquivstica e para os diplomas legais.

No caso particular da correspondncia consultada no AMC, incluiu-se, entre parntesis,

pequenas notas biogrficas para facilitar a identificao do autor. Apenas se abreviam, a partir

da segunda meno, as referncias relativas a documentao impressa e bibliografia. Nesta

inclui-se tambm partes de livros e artigos cientficos em publicaes peridicas e revistas

acadmicas. Esclarece-se tambm que, na listagem final de documentao e bibliografia,

apenas surgem indicadas as espcies citadas e/ou referenciadas ao longo do texto. Ou seja,

no compreende todo o universo de leituras e consultas documentais e bibliogrficas

33

subjacentes ao presente trabalho. Por ltimo, um esclarecimento sobre a imagem utilizada na

capa. Trata-se da litografia Relativity, de M. C. Escher (1898-1972), datada de 1953.11

11

ESCHER, M. C., Gravuras e desenhos, Taschen, Kln, 2004, fig.67.

34

35

PARTE I

ANTES DO CONFLITO E DO PODER: 1929-1939

I CAPTULO Antes de 1929: nos auspcios da Ordem Nova

A expresso vulgarizar-se-ia, por toda a Europa, para designar de forma muito

abrangente a(s) terceira(s) via(s) ou corporativismo(s); particularmente durante a dcada

de 1930. inteligvel como tais expresses tendem a servir n conceitos, mais ou menos

prximos, mas diferentes. A amplitude da expresso patente, com a singularidade da

simplicidade, numa frase do fillogo belga Flix Peeters, que escreveria em Dezembro de

1938 a MC pedindo-lhe apoio para estudar o corporativismo em Portugal, que dizia ter une

forme trs intressant de ce quon est convenue de nommer lordre nouveau.12

At que

ponto a conveno produzir o conceito?

A postura afirmativa das precoces participaes poltico-jornalsticas de MC, na

Nao Portuguesa e na revista dos antis Ordem Nova, bastante clara: rejeio integral

da realidade poltico-ideolgica e institucional que conhecera desde a sua infncia. Em

Novembro de 1925, no rescaldo da absolvio judicial dos responsveis pelo movimento

militar de 18 de Abril de 1925 (e quanto este simples fato permite compreender o fim da I

Repblica), Pedro Teotnio Pereira13

, que apoiaria a tentativa, disse para MC: que

comoo no me invadiu quando aqui longe li nos jornais as palavras do Raul Esteves e dos

outros: O Parlamento? Sim, tnhamos teno de acabar com ele! Em 1920, em 21 e 22

eramos ns s que o dizamos em Portugal, apedrejados de todos os lados como animais raros

e nocivos! Hoje a ideia alastrou e dita pelo chefe duma revoluo que vencido na rua,

triunfa no tribunal ante todos os poderes do Estado!14

clareza negativa (anti) no corresponde uma sistematizao positiva. Estaria l o

essencial do que vir a fazer dele um homem do Estado Novo. No menos importante do que

isso, at aos 19-20 anos de idade sobressair, sem dvida, a vontade de interveno pblica.

Estabelecer mecanicamente um vnculo entre as posies de juventude e as posies/aes

12

AMC, cx.42, Correspondncia/Peeters, Flix (fillogo, professor universitrio belga): n1 (13/12/38). 13

MARTINS, Fernando Manuel Santos, Pedro Theotnio Pereira: uma biografia (1902-1972), Tese de

Doutoramento apresentada no Departamento de Histria da Universidade de vora, vora, 2004. 14

AMC, cx.44, Correspondncia/Pereira, Pedro Teotnio, n9 (03/10/25).

36

das fases posteriores, em especial quando no poder, a partir de 1940, parece ser partida uma

linha argumentativa frgil. Qual o fundamento subjacente a uma mobilizao indiferenciada

de posies poltico-ideolgicas de fases to distintas da vida? O significado do que escrito

em 1926, mesmo como indcio, no tem paralelo com o que escrito em 1935 (quando se

inicia a sistematizao do pensamento corporativo) e muito menos com o que produzido

depois de 1940, quando assume um cargo poltico relevante. A partir da, sim, ter outro

fundamento a adoo de uma perspetiva sistematizadora. Veja-se, como simples exemplo, um

percurso poltico oposto: Mrio Soares. Da essencial rejeio/oposio ditadura na

juventude, que levou aproximao do Partido Comunista Portugus (PCP) e de lvaro

Cunhal, at constituio do Partido Socialista (PS) e luta poltica contra aquele mesmo

partido, existe uma complexa e diferenciada realidade.15

Pelo que, a validade da sntese ser

sempre proporcional ao conhecimento particularizado da realidade.

Alis, logo no incio, a seriedade das posies poltico-ideolgicas relativizada

perante a audcia e capacidade de iniciativa. Algo constatvel nos comentrios humorsticos

dos mais prximos. O que expressivo. Joaquim Augusto lvares de Almeida16

, em Maro

de 1925, em resposta a um pedido de colaborao de MC, ironizava: creio, porm, que em

breve no haver pblico nem escritores integralistas para tantas revistas.17

Nove meses

depois: No, no me assuste com a sua revista.18

No j distante ano de 1941, Teotnio

Pereira e MC ainda brincavam com a publicao. Dizia o primeiro para o segundo: Tenho

constantes noticias suas pelos papeis (lembra-se dos nossos ataques daquela revista cheia de

antis?).19

O mesmo processo evolutivo se verificaria em relao ao Integralismo e a Antnio

Sardinha.20

MC nunca renegou a admirao pelo mestre da juventude. Em Janeiro de 1973, a

esposa de Sardinha agradecia sentidamente a MC a sua adeso homenagem que a Cmara

Municipal de Elvas prestava por ocasio do 48 aniversrio da sua morte.21

Mas logo em

1944, Teotnio partilhava com MC: O que lhe digo que o nosso Sardinha foi perfeito na

interpretao de muitos fenmenos histricos. Mas quanto ao resto, acertou menos. Como

poltico seria apenas, neste captulo peninsular, um poeta enamorado de temas perigosos.22

15

Ver, entre outros, AVILLEZ, Maria Joo, Soares: Ditadura e Revoluo, Pblico, 1996. 16

De pseudnimo Nuno Montemor: padre, escritor, jornalista e padrinho de Ana Maria de Barros Caetano. 17

AMC, cx.39, Montemor, Nuno de: n1 (07/03/25). 18

AMC, cx.39, Montemor, Nuno de: n2 (13/01/26). 19

AMC, cx.44, Correspondncia/Pereira, Pedro Teotnio, n44 (25/11/41). 20

Ver, entre outros, CRUZ, Manuel Braga da, O integralismo lusitano nas origens do salazarismo, Anlise

Social, 18 (70), 1982, pp.138-182; Monrquicos e republicanos no Estado Novo, Lisboa, Dom Quixote, 1986. 21

AMC, cx.50, Correspondncia/Sardinha, Ana Jlia Nunes da Silva, n1 e n2. 22

AMC, cx.44, Correspondncia/Pereira, Pedro Teotnio, n50 (21/10/44).

37

Estas excecionais incurses posteriores ao perodo estabelecido neste captulo

evidenciam as limitaes das posies poltico-ideolgicas de juventude para a compreenso

dos perodos subsequentes. Mesmo em relao nova ordem que comeava a estabelecer-se.

Nos finais de 1926, a desconfiana por parte dos integralistas seria realmente muito profunda.

Na reunio do grupo de Abril de 1927, onde, tendo considerado a situao atual do pas e o

esforo integralista, decidem apoiar o ministro das finanas, apenas Teotnio mostrou

verdadeiro entusiamo na consagrao do professor de Coimbra como o Chefe.23

Em Maro

de 1929, o encerramento do recm-criado Instituto Antnio Sardinha (juntamente com todos

os centros polticos), por alegadamente ser um um foco de propaganda iberista, foi um

dolorosssimo incidente24

. Dez anos depois, ainda dizia o mesmo Nuno de Montemor: no

temos o direito de pedir ou esperar o que ele nos no pode dar, porque no da nossa raa, e

para mais tem a olmpica iluso de que foi ele, sozinho, que criou o ambiente que lhe permite

viver.25

As opinies sobre os militares no poder eram bem mais expressivas e menos

simpticas. O j citado integralista Joaquim A. lvares Almeida, no crepsculo de 1926,

compartilhava com MC: Que profundos idiotas so estes novos governantes! Nem, ao

menos, do seu ofcio sabem!26

O segundo semestre de 1928 parece ter sido, a todos os nveis, um perodo de

profunda angstia pessoal e incerteza poltica. As primeiras impresses do novo governo no

eram positivas. A violncia do aparelho de censura e represso causava apreenses no crculo

de relaes de MC. Um amigo comum do seu futuro sogro, Joo de Barros, o poeta Afonso

Duarte, provavelmente no rescaldo da Revolta do Castelo (20/07/28), queixava-se da

perseguio poltica de que era vtima ele e seu irmo: as minhas cartas e as que recebo tm

sido violadas.27

MC ajud-lo-ia sem reservas, o que manifesto pelo poeta no profundo

reconhecimento por tudo o que tem feito por mim!.28

Violncia, alis, que se generalizava

em todos os sentidos: verdade: os pobres campnios l vo a caminho de frica!

Violncias que nada educam antes pelo contrrio como todas as violncias.29

O que no

deixa de ser uma simblica imagem do sentido do Imprio para o governo de ento.

23

PT/TT/PS/AMC/03, AMC, cx. 1, integralismo lusitano, n1. 24

Idem, n4. 25

AMC, cx.39, Montemor, Nuno de: n10. O documento na realidade de 1936. 26

Idem: n9. 27

AMC, cx.25, Correspondncia/Duarte, Afonso, n1 a n4 (Outubro de 1928). 28

Idem, n6. No documento n7 refora o agradecimento. 29

Idem, n6.

38

Como por demais conhecido, no final de 1928, o contexto econmico-social do pas

estava em ebulio.30

Isso no impede que se aborde um aspeto psicolgico relevante, quer

pela constante referncia, quer at pela explicitao documental: o significado de comear a

vida do nada. A mitologia em torno do salvador da ptria fundar-se-ia sobremaneira

nisso.31

MC tambm se identificaria com o seu antecessor neste aspeto. Sem se contribuir para

a diminuio ou exaltao do fundamento, no caso do percurso de MC de fato no existiram

quaisquer poderes de apoio: nem padrinhos, nem igreja. Para alm do suporte familiar,

materialmente muito limitado, sempre pareceu depender exclusivamente de si prprio e do

seu trabalho. No se considera aqui a dimenso sensvel ou romanesca, mas no que isso

contribuiria para formar um carcter e um esprito verdadeiramente independentes. A resposta

(17/09/28) do amigo e jornalista lvaro Amadeu Pereira Maia, depois de MC o ter ajudado

monetariamente, evidencia-o. Como tambm o mostrar a vivncia por MC daquele semestre

a um ano, entre 1928 e 1929: A sua carta, to bondosa para comigo e deixando perceber uma

tal ou qual tristeza atravs das suas linhas, deixou-me dolorosamente impressionado. E dois

foram os motivos: primeiro, o ver que os seus bem ganhos dezoito valores em Direito para

nada lhe tm servido e que oxal eu me engane, meu queridssimo amigo e camarada!

provavelmente voc ter de pr de parte as leis se quiser escapar morte por falta de

alimento.32

O cenrio pessimista no se verificaria. MC iria prosseguir a sua carreira acadmica. A

par dessa prioridade, emerge o cronista e o economista poltico, no que seria a sua primeira

preferncia acadmica. A vocao e as circunstncias conduzi-lo-iam mais tarde por outro

caminho o administrativo. O que parece certo que estas duas dimenses, em especial a

primeira, juntamente com a base ideolgica, balizariam a sua relao com o poderoso ministro

das Finanas e com o regime na dcada seguinte. Especialmente nos primeiros anos, quando a

nova ordem nas contas pblicas venceria quaisquer reticncias iniciais.

30

Ver, entre outros, ROSAS, Fernando (coord.), O Estado Novo (1926-19749), MATTOSO, Jos (dir.), Histria

de Portugal, vol.7, Lisboa, Crculo de Leitores, 1994, pp.141-200. 31

Ver, entre outros, MATOS, Helena, Salazar a construo do mito 1928-1933, Lisboa, Temas e Debates,

2010; REBELO, Jos, Formas de Legitimao do poder no salazarismo, Lisboa, Livros e Leituras, 1998. 32

AMC, cx.35, Correspondncia/Maia, lvaro Amadeu Pereira, n1.

39

II CAPTULO 1929-1933: a Conversa ser em Famlia

Desde muito novo que MC cultivou a crnica jornalstica. Num artigo publicado em 3

de Janeiro de 1933, exprimia a afetividade e tentativa de empatia com o pblico numa

expresso que haveria dar tanto que falar: porque a conversa ser em famlia, []

poderemos dizer as verdades.33

Em 1932 passaria a colaborar regularmente no Jornal do

Comrcio e das Colnias, atravs da coluna Notas Econmicas e Financeiras. A predileo

pelos temas econmicos era notria. Mas talvez a sua mxima expresso seja a primeira obra

de MC, a tese de doutoramento A depreciao da moeda depois da Guerra , defendida em

Junho de 1931 e publicada (parte) pela Coimbra Editora ainda no mesmo ano. Cujo contedo

bem mais relevante do que as peripcias que rodearam a prova e o jovial intervencionismo

integralista.

Sobre o primeiro e forte impacto mundial da crise financeira despoletada com o Crash

de 1929, um dos problemas centrais da cincia econmica, to caro ao autor da tese como ao

chefe do novo regime, consistia na estabilizao do valor da moeda.34

Adotando um mtodo

positivo de investigao (segundo o prprio, a objetividade fria e serena da pesquisa e do

clculo nas cincias exatas), criticava moderadamente os clssicos, sobretudo Adam Smith

(1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) por exemplo, as suas concees otimistas em

relao convertibilidade do papel-moeda e analisava a teoria quantitativa (particularmente

no caso portugus, que desmentiu mais uma vez a teoria quantitativa sob qualquer das suas

formas):

Pelo impulso da alta dos preos, sucedeu que o aumento das despesas pblicas

forava o Estado a estampar mais notas, vindo assim a inverter-se os termos da teoria: eram os

preos que determinavam o aumento da circulao, em lugar de serem o nico elemento

passivo da equao fisheriana.35

A observao no d lugar a qualquer ensaio pelas tentativas de reestruturao da

teoria quantitativa, como a que havia feito Knut Wicksell (1851-1926) na obra de 1898,

33

AMC, cx.1, artigos de imprensa, n22. 34

CAETANO, Marcelo, A Depreciao da moeda depois da guerra, Coimbra Editora, 1931, nota prvia. A

operao passou, em grande medida, pela indexao do escudo libra e no ao dlar, em 1931. MC faria eco do

sucesso noutros locais durante os anos seguintes: AMC, cx.1, artigos de imprensa, n35. 35

CAETANO, Marcelo, A Depreciao da moeda depois da guerra, p.363.

40

Interest and Prices36

, mas no deixa de ser interessante pela sua heterodoxia. Reflexo da

tentativa por parte de MC de se posicionar no complexo quadro dos debates econmicos do

perodo entre guerras.37

Diria em 1935: j ningum duvida, segundo cremos, da alta

importncia que a cultura econmica reveste para o jurista que o seja verdadeiramente.38

Mais importante do que isso, revela um ecletismo terico que talvez explique a frieza no

agradecimento por parte do ministro das Finanas quando MC lhe ofereceu a tese. Sobretudo

se a compararmos com a obra daquele, datada de 1916 O gio do ouro, sua natureza e suas

causas (1891-1915), visivelmente marcada por uma perspetiva e agenda poltica.39

Em

sentido oposto, a obra marcelista foca o debate econmico em curso, ainda que de forma

limitada: notaremos apenas que a tendncia moderna para substituir a uma teoria rgida e,

portanto, unilateral, a explicao fundada numa srie de causas variadas, e agindo com

intensidades diferentes conforme as circunstncias de tempo e de lugar.40

Destaca a teoria

psicolgica defendida por Albert Aftalion (1874-1956)41

e a teoria da paridade do poder

aquisitivo das moedas propugnada por Gustav Cassel (1866-1945)42

, um dos pioneiros,

juntamente com o prprio K. Wicksell, da chamada Escola de Estocolmo, como eixos tericos

do seu estudo, em contraponto com a teoria da balana econmica.

Alis, as concluses a que chega sobre o problema em questo, para alm do elogio ao

ministro das Finanas43

, oferecem um esboo do quadro poltico-econmico que balizar a

sua ateno nos primeiros passos do regime. Veja-se:

Quanto ao cmbio, a sua depresso deve-se ao desequilbrio da balana econmica

que o aumento das importaes em alguns anos, a diminuio do valor das remessas do

36

WICKSELL, Knut, Interest and Prices: a study of the causes regulating the value of Money, New York,

Sentry Press, s.d.. Republicao da primeira traduo para lngua inglesa de 1936. Do mesmo autor ver,

Lecciones de economia poltica, Madrid, M. Aguilar Editor, 1947; Value, capital and rent, London, George

Allen & Unwin, 1954. 37

HEILBRONER, Robert L., The worldly philosophers: the lives, times, and ideas of the great economic

thinkers, 7th

ed., London, Penguin Books, 2000. 38

O Direito, Ano 67, 1935, p.36. 39

A este propsito, ver, entre outros: TELO, Antnio Jos, A Obra financeira de Salazar: a ditadura

financeira como caminho para a unidade poltica 1928-1932, in Anlise Social, Vol. XXIX, 128, 1994, 4,

pp. 779-800. 40

CAETANO, Marcelo, A Depreciao da moeda depois da guerra,, p.27. 41

Ver, AFTALION, Albert, Les crises priodiques de surproduction, 2 volumes, Paris, 1913. Ver tambm

AFTALION, Marcell, Des libralits entre poux de leur imputation et des conflits de lois quelles soulvent,

Paris, 1932. 42

Ver, CASSEL, Gustav, Trait dconomie politique, 2 volumes, Laval, 1929 ; Economia social terica, 3 ed.,

Madrid, M. Aguilar, 1946. 43

A depreciao, quer interna, quer externa, quer considerada sob o aspeto da alta dos preos, quer sob a forma

da baixa cambial, um efeito de vrias causas concorrentes, que no de um s fator seja ele a quantidade da

moeda, a balana econmica, a paridade do poder aquisitivo ou outro qualquer. Foi de resto o que viu j em

1916, ao estudar o nosso cmbio durante o perodo de 1891 at essa data, o Prof. Oliveira Salazar, a cujo talento

de economista nos apraz aqui prestar homenagem. Idem, p.369.

41

Brasil, e a sada de ouro para despesas improdutivas, explicam; fuga mrbida dos capitais e

reteno no estrangeiro dos seus rendimentos; especulao, por jogo nas divisas estranhas

ou at nas prprias oscilaes do escudo; s previses pessimistas sobre o futuro, que o

incessante aumento da circulao fiduciria, a constncia do deficit oramental, a situao da

tesouraria imprudentemente revelada nos seus momentos difceis, a desordenada interveno

do Estado na vida econmica, as declaraes alarmantes dos governantes, a ausncia de claras

contas pblicas e de estatsticas, as violncias inteis exercidas contra o capital por atos ou

ameaas, os exageros da paixo poltica, a instabilidade ministerial e as perturbaes sociais,

justificavam plenamente. Do conjunto destes fatores, de ordem econmica uns, de carcter

psicolgico os outros, resultou a depreciao sustida em 1924.44

A Crise nos Estados Unidos45

merecer-lhe-ia especial ateno. MC partilhava da

crtica generalizada, responsabilizando a administrao Hoover (Herbert, 1874-1964;

mandato: 1929-1933) e a sua quase-religio da prosperidade indefinida, o abuso do

crdito e do consumo, tal como o sistema bancrio americano, o mais sensvel aos perodos

de desconfiana e depresso psicolgica. No entanto, para alm da desvalorizao do

impacto internacional da crise, no concorda com o plano rooseveltiano de recuperao

econmica, incluindo o apoio financeiro aos bancos:

Os Estados Unidos foram agora vtimas, mais uma vez, de uma comoo coletiva,

cuja justificao dificilmente se poder achar neste ou naquele facto concreto: na publicidade

do relatrio da Reconstruction Finance Corporation (dois bilies de dlares empregados no

combate crise, seiscentos milhes dos quais entregues a Bancos falidos!) ou na campanha

pr-inflao.

Por outro lado, destacava a importncia da cooperao dos grandes Bancos emissores

da Europa para uma resposta eficaz crise.

2.1. Sede de Ordem: da ditadura Constituio de 1933

Num dos primeiros artigos aps a defesa e publicao da tese, MC exprimiu a sua

apreenso perante os abusos da palavra ordem. Sentiu por isso necessidade de clarificar, em

44

Idem, pp.370-371. 45

AMC, cx.1, artigos de imprensa, n38.

42

22 de Dezembro de 1931, a generalizada sede de ordem.46

Criticou os que achavam tratar-

se apenas de ordem pblica, porque isso significaria que manter a ordem seria um mero

episdio policial. Para ele, no so os indivduos a causa, mas os princpios que os guiam,

porque, dizia, as doutrinas, por pssimas que sejam, se no vencem a tiro. Expresso

dramtica que teria uma origem concreta. Enquadrada, naturalmente, num perodo de quatro

anos de tentativas reviralhistas, a que a Situao sempre respondeu com mais violncia.47

No dia 3 desse ms, MC seria convidado a participar no almoo de inaugurao da

Liga do 28 de Maio em vora. Contudo no foi. Dias depois, talvez quando escreveu o

artigo, anotava mo, no canto superior direito do convite, o seguinte: no fui porque em

12/12/31 nasceu o meu filho Joo. No dia 13 realizou-se em vora a reunio durante a qual

foi assassinado o Dr. Joaquim Maria da Silva Dias, signatrio desta carta.48

No difcil

perceber como vivera esses dias, justificando o apelo ao bom-senso da razo e ao

equilbrio: conquistemo-la [a ordem] custa de um indispensvel autodomnio, de uma

imprescindvel perfeio moral. Propaguemo-la pelo exemplo, pela palavra, pela escrita,

batendo os erros dos adversrios, disputando sistema contra sistema, opondo organizao

organizao, porque o caminho da fora doloroso e intil.

Apesar da preferncia pelos temas econmicos, no deixava de viver intensamente a

realidade poltica, porque, conforme afirmava, no pode haver boas finanas onde houver

pssima poltica.49

Integrou o Conselho Poltico Nacional (CPN) e foi auditor do Ministrio

das Finanas (MdF). Conheceu de perto o infalvel mtodo do ministro, aplicado nas reunies

do Conselho onde se trabalhou o texto final da Constituio do Estado Novo50

: sugerir

dissimuladamente a inconvenincia do que no queria. O jbilo entre os juristas do Campo de

Santana, onde emergia o jovem MC, pelo estabelecimento da legalidade especialmente

destacado nas pginas da revista O Direito.51

Publicao, alis, to cara a MC. 52

46

AMC, cx.1, artigos de imprensa, n5. 47

Ver, entre outros, FARINHA, Lus, O Reviralho: revoltas republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo

1926-1940, Lisboa, Editorial Estampa, 1998. 48

AMC, cx.25, Correspondncia/Dias, Joaquim Maria da Silva, n1. 49

AMC, cx.1, artigos de imprensa, n7. 50

PT/TT/PS/AMC/CPN/01, n1, livro 1; PT/TT/PS/AMC/CPN/02, n2 a 4. 51

Em 1931, MC tornou-se scio e redator da revista jurdica O Direito. Deve-se aqui um esclarecimento

importante. Algumas das citaes que sero reproduzidas encontram-se na seco da revista denominada

Crnica Legislativa. S a partir de Janeiro de 1936 que aquela seco passa a surgir assinada. A primeira, de

Janeiro, surge inclusive assinada por M.C. e P.C. (Marcelo usou sempre as iniciais; a outra assinatura tudo

indica ser de Paulo Cunha). A partir daqui e at a rubrica ser eliminada no final de 1939 facto s por si

intrigante, dado o tom habitual da mesma , MC o nico autor. Este facto, aliado ao cruzamento dos

comentrios da rbrica com os artigos de jornal, e tendo em conta a evidente coerncia no estilo e substncia da

escrita, permite com grande segurana atribuir a (co-) autoria das Crnicas posteriores a 1933 a MC. Na

considerao da hiptese contrria, uma coisa parece certa: a extrema dificuldade em no se verificar uma

regular concordncia entre o reduzido grupo de redatores.

43

A crtica excessiva produo legislativa durante a Ditadura Militar e Nacional no

desapareceu na hora de inaugurao do novo regime de legalidade. Em finais de Abril de

1933, registava com ironia: a penria de leis que jubilosamente registmos em Maro foi de

sobejo compensada pela abundncia de Abril. Eflorescncia precoce, pois se no nos

esquecemos ainda do calendrio inconstitucional, Maio o tempo prprio dos suplementos

e das flores legislativas53

Para alm da anlise da nova Constituio, ganharam especial destaque os Decretos-lei

n22 468 (que regulava o direito de reunio) e n22 469 (que regulamentava a censura prvia

imprensa), ambos de 11 de Abril de 1933. O primeiro, que continha as proibies e limitaes

que so conhecidas, propiciou alguns comentrios. Estes diziam respeito omisso na lei de

referncia s reunies eleitorais, e, sobretudo, na comparao que estabelecida com o II

Imprio francs:

interessante a aproximao desta lei e da de 6 de Junho de 1863, pela qual

Napoleo 3 entrando na fase do imprio liberal regulamentou em Frana o direito de

reunio: a semelhana estreita, salvo que a nossa mais larga, no consentindo como o art.

13 da lei francesa que a autoridade adie ou proba qualquer reunio que lhe parea de

natureza a perturbar a ordem ou a comprometer a segurana pblica. Concluindo de seguida:

de resto, o paralelo entre o Estado Novo e o segundo imprio francs no ofereceria s essa

curiosidade.54

Em relao ao segundo decreto, considerou ter introduzido no regime anterior

considerveis atenuaes, como a proibio s comisses de censura de alterarem os textos

ou a possibilidade de recurso das suas decises. Inaugurada com os seis Decretos publicados

52

Em 28 de Maio de 1979, MC responderia a Lopo Cancela de Abreu, que intermediava o primo Joo Paulo

Cancela dAbreu, sobre uma proposta de compra da parte de MC na revista. Este aproveita para mostrar o quanto

se interessava pela publicao:

Mas O Direito para mim nunca foi um negcio. [] Eu paguei, em 1931, dez contos (de ento) para

poder trabalhar na sua redao. Durante mais de quarenta anos, como redator e diretor, organizei pontualmente

os seus nmeros, coligindo colaborao e escrevendo em todos eles, sendo eu prprio a rever as provas

tipogrficas. E tudo isso sem outra remunerao que no fossem os eventuais lucros do exerccio, sempre muito

escassos e partilhados com os restantes scios. [] Para mim, o velho Direito, depois de interrompida a

publicao por cinco anos, acabou. E se a Universidade Nova quer fazer sair uma revista com o mesmo nome,

que faa a partir do n1. E acrescenta: Mas no acha que comprar por 10 contos de 1979 a cota de 10 contos de

1931 que valorizei com o trabalho de mais de 40 anos seria uma expropriao digna do Mrio Soares? Feita,

demais a mais, a quem est banido do seu Pas? AMC, cx.14, Correspondncia/Abreu, Lopo de Carvalho

Cancela de, n25. 53

Revista O Direito, Ano 65, 1933, p.135. 54

Idem, p.136. Em 13 de Julho de 1932, MC j afirmava, num comentrio sobre a poltica econmica e

oramental da segunda metade do sculo XIX portugus: Entretanto a Europa acolhia com entusiasmo os novos

inventos que iam dar vida um ritmo indito. O segundo imprio despontava em Frana. A um perodo de lutas

polticas e sociais, sucedia-se uma era de trabalho e de paz. O lema era lucrar, enriquecer. E este foi o esprito

que animou o fontismo. Em AMC, cx.1, artigos de imprensa, n16.

44

em 23 de Setembro de 193355

, o incio da nova ordem corporativa era assinalada com

ambivalncia. A somar expectativa, uma certa apreenso. A crtica era dirigida sobretudo ao

Estatuto do Trabalho Nacional (ETN):

uma declarao de princpios, uma espcie de programa da ao do Governo no

campo que agora comea a desbravar. No se encontram nele quaisquer sanes, nem mesmo

preceitos imediatamente executrios: os governos ditatoriais, em perodos revolucionrios,

gostam muito desta espcie de proclamaes legislativas que convertem os textos de direito

em artigos de catecismo, disseminando as doutrinas novas.56

No mesmo sentido depreciava a constituio das Casas do Povo, que na verdade

seriam um pouco as delegaes paroquiais do INTP e portanto instituies de direito

pblico.57

Instalava-se uma certa desconfiana em relao ambiguidade na conduo

poltico-jurdica do novo presidente do Conselho. Corporaes? A questo gravitaria, em

grande parte, em torno do Cdigo Administrativo (CA), cujo processo seria, segundo se ver,

clarificador.

2.2. Equilbrio oramental: o crdito no se mendiga, conquista-se

Para MC, a conduo das finanas pblicas continuava a compensar as

indeterminaes polticas. Em termos oramentais, sublinhava, em 1932, o grave problema

do pessoal, que absorvia quase metade do oramento: Temos um funcionalismo

numerosssimo, de competncia desigual, mal escolhido, mal pago e em geral de fraco

rendimento do trabalho. Sugeria uma reforma radical. Por outro lado, elogiava imenso a

converso e abatimento da dvida: em quatro anos econmicos abateram 100.000 contos os

juros da dvida o que constitui indubitavelmente um resultado brilhante de poltica

econmica.58

O elogio era oferecido em contraponto com a crtica durssima poltica

financeira do reinado de D. Lus, quando o recurso ao crdito domina toda a nossa atividade

55

23.048: Estatuto do Trabalho Nacional; 23.049: Grmios; 23.050: Sindicatos Nacionais; 23.051: Casas do

Povo; 23.052: Casas Econmicas; e 23.053: Instituto Nacional do Trabalho e Previdncia. 56

Revista O Direito, Ano 65, 1933, pp.234-235. 57

Ibidem. No artigo publicado nas pp.34-41 do n2 do Ano 66 da mesma revista Corporaes administrativas

Notas sobre o seu conceito e regime jurdico , M.C. repete, formal e elaboradamente, a crtica feita na

Crnica Legislativa. Um dos vrios exemplos que demonstra a mais do que provvel autoria dessa coluna crtica. 58

AMC, cx.1, artigos de imprensa, n15.

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financeira, considerando que a nossa estrutura social podia pois definir se assim pela sua

expresso financeira: primeiro a usura em cujos braos se lanara a nossa estouvada e

imprevidente dissipao; depois o maquinismo constitucional (rei, parlamento) as classes

inativas e o fisco; seguidamente a multido mal armada, mal instruda, parasitria, da tropa; e

aps o caciquismo cozinhador [sic] da