nova gramatica do portugues brasileiro introduc o

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INTRODUÇÃO Há mais de quinhentos anos a língua portuguesa foi trazida ao Brasil. Nos séculos XVI a XVIII foi rotulada como o português no Brasil, pois era inteiramente lusitana, e não tinha superado as línguas indígenas. A partir do século XIX, a língua portuguesa tornou-se majoritária, começou a distanciar-se do português europeu, sendo então denominada português do Brasil. A partir dos anos 80 do sé- culo XX, suprime-se a preposição do, e começamos a falar em português brasileiro. Sinaliza-se com isso que novos distanciamentos tinham ocorrido, servindo a expressão para designar a identidade linguística dos brasileiros. Esta Nova Gramática do português brasileiro agrega um certificado a mais à nossa identidade. Não se trata de um certificado qualquer, pois é na língua que se manifestam os traços mais profun- dos do que somos, de como pensamos o mundo, de como nos dirigimos ao outro. Faltava clarificar a gramática do português brasileiro, para dar status científico à sua percepção. É o que tento fazer neste livro, fruto de cinquenta anos de pesquisas, desenvolvidas nas três universidades oficiais pau- listas (Unesp / Marília, Unicamp, USP) e nas universidades do exterior em que realizei estágios de pós-doutorado (Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra, University of Texas at Austin, Cornell University, University of California / San Diego, Georgetown University, Université d’Aix- Marseille, Università degli Studi di Padova). Não se trata, entretanto, de uma gramática escolar usual, delas se afastando pelas seguintes características: Esta não é uma gramática-lista, cheia de classificações, em que não se vê a língua, mas uma gramática. Em lugar disso, procuro olhar o que se esconde por trás das classificações, identificando os processos criativos do português brasileiro que conduziram aos produtos listados. Esta não é uma gramática ateórica. Nada poderemos fazer em matéria de pesquisa linguística se não dispusermos de alguma teoria, pois lidamos com um objeto escondido em nossas mentes. Teorias linguísticas há muitas. Mas faz falta uma teoria que postule a língua em seu dinamismo, como um conjunto articulado de processos. Enfrento esta questão nesta gramática. Quando fala- mos ou quando escrevemos, uma intensa atividade é desencadeada em nossas mentes. Isso ocorre

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Nova Gramatica Do Portugues Brasileiro Introduc o

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  • INTRODUO

    H mais de quinhentos anos a lngua portuguesa foi trazida ao Brasil. Nos sculos xvi a xviii foi rotulada como o portugus no Brasil, pois era inteiramente lusitana, e no tinha superado as lnguas indgenas. A partir do sculo xix, a lngua portuguesa tornou-se majoritria, comeou a distanciar-sedo portugus europeu, sendo ento denominada portugus do Brasil. A partir dos anos 80 do s-culo xx, suprime-se a preposio do, e comeamos a falar em portugus brasileiro. Sinaliza-se com isso que novos distanciamentos tinham ocorrido, servindo a expresso para designar a identidade lingustica dos brasileiros.

    Esta Nova Gramtica do portugus brasileiro agrega um certificado a mais nossa identidade. No se trata de um certificado qualquer, pois na lngua que se manifestam os traos mais profun-dos do que somos, de como pensamos o mundo, de como nos dirigimos ao outro. Faltava clarificar a gramtica do portugus brasileiro, para dar status cientfico sua percepo. o que tento fazer neste livro, fruto de cinquenta anos de pesquisas, desenvolvidas nas trs universidades oficiais pau-listas (Unesp / Marlia, Unicamp, usp) e nas universidades do exterior em que realizei estgios de ps-doutorado (Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra, University of Texas at Austin, Cornell University, University of California / San Diego, Georgetown University, Universit dAix-Marseille, Universit degli Studi di Padova).

    No se trata, entretanto, de uma gramtica escolar usual, delas se afastando pelas seguintes caractersticas:

    Esta no uma gramtica-lista, cheia de classificaes, em que no se v a lngua, mas uma gramtica. Em lugar disso, procuro olhar o que se esconde por trs das classificaes, identificando os

    processos criativos do portugus brasileiro que conduziram aos produtos listados. Esta no uma gramtica aterica. Nada poderemos fazer em matria de pesquisa lingustica

    se no dispusermos de alguma teoria, pois lidamos com um objeto escondido em nossas mentes. Teorias lingusticas h muitas. Mas faz falta uma teoria que postule a lngua em seu dinamismo,

    como um conjunto articulado de processos. Enfrento esta questo nesta gramtica. Quando fala-mos ou quando escrevemos, uma intensa atividade desencadeada em nossas mentes. Isso ocorre

  • 32 n ova g r a m t i c a d o p o rt u g u s b r a s i l e i r o

    com enorme rapidez, acionando quatro sistemas lingusticos, cada um deles configurado por um elenco de categorias: o lxico, a semntica, o discurso e a gramtica. Esses sistemas so articulados pelos princpios sociocognitivos que regem a conversao, a mais bsica das atividades lingusticas.

    A teoria multissistmica aqui exposta tem um forte contedo funcionalista-cognitivista. Re-conheo que ainda impossvel descrever todos os movimentos mentais envolvidos na atividade lingustica. Mas no h dvida de que em cada som emitido, em cada sinal grfico lanado ao papel, toma corpo um enorme conhecimento lingustico que foi ativado, permitindo o milagre da compreenso mtua por meio de to poucos sons e letras, e de to escassas palavras e construes. Para visualizar esse conhecimento, precisaremos valorizar os indcios da maquinaria lingustica. O objetivo das boas gramticas desvelar o conhecimento lingustico armazenado na mente dos falantes, desde o cidado analfabeto at o escritor laureado.

    As gramticas resultam habitualmente do trabalho individual, fundamentando-se na lngua literria. Tambm aqui esta gramtica tomou outro rumo.

    Para comeo de conversa, no acho que os escritores trabalham para nos abastecer de regras gramaticais. Eles exploram ao mximo as potencialidades da lngua, segundo um projeto esttico prprio. Ora, as regularidades que as gramticas identificam devem fundamentar-se no uso comum da lngua, quando conversamos, quando lemos jornais, como cidados de uma democracia. Isso no exclui a fruio das obras literrias, mas uma completa inverso de propsitos fundamentar-nos nelas para descrever uma lngua.

    Por outro lado, as lnguas so to complexas, que impossvel trabalhar solitariamente em sua anlise. Levando isso em conta, os linguistas brasileiros conceberam a partir da dcada de 1970 grandes projetos coletivos, produzindo textos multiautorais. Basta lembra o mais ambicioso e o mais produtivos dentre eles, o Projeto de Gramtica do Portugus Falado, cuja realizao propus em 1988. Atuaram nele 32 pesquisadores experientes, recrutados em 12 universidades brasileiras, e divididos em 5 grupos de trabalho. Inicialmente, foram publicados os ensaios produzidos por esses grupos, em oito volumes: Castilho (org. 1990, 1993), Castilho / Baslio (orgs. 1996), Ilari (org. 1992), Kato (org. 1996), Koch (org. 1996), Neves (org. 1999), Abaurre e Rodrigues (orgs. 2002). A partir de 2003, teve incio a consolidao dos ensaios nos cinco volumes da Gramtica do Portugus Culto Falado no Brasil: Jubran e Koch (orgs. 2006), Ilari e Neves (orgs. 2008), Kato e Nascimento (orgs., 2009), Rodrigues e Alves (orgs., no prelo), Abaurre (org., no prelo).

    A presente gramtica se insere nesse quadro de preocupaes. Filtrei aqui as pesquisas das l-timas trs dcadas a partir de uma tica prpria, propondo seguidamente ao leitor que se envolva nas pesquisas, transformando-se no linguista-gramtico dele mesmo. Seguindo esse impulso, esta gramtica d voz a muitos desses pesquisadores, tanto quanto s aulas que fui ministrando ao longo de 47 anos de magistrio. Meus alunos me ajudaram muito, com sua curiosidade e com sua recusa a explicaes no convincentes. Havia tambm uns poucos tomados de um grande tdio. Esses tambm me ajudaram, pois me mostravam que a aula estava um bocado chata. Ora, no temos o direito de dar aulas chatas.

    O ritmo expositivo de nossas gramticas adota o que se poderia chamar de estilo revelao. O gramtico se transforma numa espcie de Moiss que desce dos altos montes e revela aos povos estupefatos... o que est certo e o que est errado em sua linguagem! Tambm aqui me distanciei disso.

    Imaginei para tanto a seguinte estratgia: compus dois textos articulados, um expositivo, e outro indagativo. Na exposio, falo eu, interpretando os achados da cincia atual. Nas indagaes, falam os leitores, por meio das perguntas que imagino que eles estejam formulando. Nossos dilogos imaginrios vo em itlico, intercalados no texto expositivo.

  • 33i n t r o d u o

    O objetivo dessa estratgia transformar os leitores numa espcie de coautores, recusando que entre eles e a lngua que praticam seja obrigatria a interposio de um intrprete, de uma espcie de despachante para problemas gramaticais. Para dar conta desse lance meio calvinista, apresentei perguntas e mais perguntas nestas pginas, ao lado de informaes sobre o conhecimento disponvel e o fornecimento de pistas sobre como achar novas respostas. Para evitar uma aborrecida listagem de opinies, que poderia obscurecer o objeto, optei por interpretar os resultados obtidos luz da j mencionada teoria multissistmica da lngua.

    Depois disso, apresento algumas generalizaes sobre o retrato do portugus brasileiro assim obtido. Novas perguntas conducentes reflexo gramatical foram formuladas no captulo 15.

    As lnguas naturais so o ponto mais alto de nossa identidade como indivduos e como parti-cipantes de uma sociedade. Que o digam os quinhentos mil visitantes anuais do Museu da Lngua Portuguesa localizado em So Paulo! Tem sido proveitoso testemunhar a emoo desses visitantes por se verem ali representados, por toparem ali com sua identidade. De certa forma, todo mundo sai meio linguista daquelas instalaes.

    Por fim, pretendo com esta gramtica acrescentar um elo a mais na longa tradio das gra-mticas de referncia, mesmo quando delas me afasto. Esta uma atividade duas vezes milenar na civilizao ocidental, velha de quase meio milnio no domnio da lngua portuguesa, quando Ferno de Oliveira publicou, em 1536, nossa primeira gramtica. Deixando de lado uma bisonha repulsa aos achados da Gramtica tradicional, este livro mostra como as pesquisas lingusticas, na verdade, aprofundaram e enriqueceram esses achados, operando a partir de princpios e aplicando uma metodologia segura. Ou seja, a oposio linguista versus gramtico, bastante cultivada nas dcadas de 1960 e 1970, fase em que a Lingustica moderna se implantou no Brasil, foi superada pela pesquisa cientfica. Gramticos aprimoraram sua formao. Linguistas passaram a ocupar-se com a redao de gramticas. E todos viveram felizes para sempre.

    O pblico-alvo desta gramtica so os professores do ensino mdio, os alunos do curso supe-rior, os professores universitrios de Lingustica Geral e de Lingustica do Portugus Brasileiro, e as pessoas que se sintam atradas pelo mistrio das lnguas naturais.

    Devo muito s agncias de fomento, que me deram condies para a realizao deste trabalho, financiando pesquisas no Brasil, e de ps-doutoramento em Portugal (1969), Estados Unidos (1981, 1995, 2000, 2004, 2007), Frana (1990) e Itlia (1997). de justia que as enumere: Fundao Ca-louste Gulbenkian, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp), Comisso Fulbright, Coordenadoria de Aperfeioamento do Pessoal de Ensino Superior (Capes) e Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Mas devo destacar a Fapesp, que financiou os projetos cujos resul-tados desguam nestas pginas: Projeto da Norma Urbana Lingustica Culta de So Paulo, Projeto de Gramtica do Portugus Falado, Projeto de Histria do Portugus de So Paulo.

    Manifesto igualmente minha gratido aos colegas que leram e criticaram diferentes captulos, ajudando-me a melhor-los com seu conhecimento: Carlos Mioto, Leda Bisol, Maria Eugnia Lamoglia Duarte, Maria Luiza Braga, Mary A. Kato, Mlton do Nascimento, Roberto Gomes Camacho, Verena Kewitz. Um agradecimento muito especial a Rodolfo Ilari, que leu todos os captulos e me ajudou a errar menos. Reconheo tambm o trabalho atento da preparadora Daniela Marini Iwa-moto, entre outros profissionais da Editora Contexto, que me foram de grande ajuda. Desnecessrio dizer que os erros remanescentes so de minha inteira responsabilidade.

    Campinas/SP, dezembro de 2009.