notações e cartesianismo - musica...

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Notações e cartesianismo Flavio Silva [email protected] Resumo As notações musicais foram criadas em ambientes eruditos que praticavam a escrita literária e sistemas teó- ricos e especulativos objetivados em manuscritos. As extra-europeias cuidaram de sugerir movimentos me- lódicos mediante signos alinhados e paralelos a textos literários; elas serviam sobretudo como lembretes para memorizar monodias de vastos repertórios sacros. Na Europa, a ideia de que sons mais agudos e mais graves podem ser representados por signos des- contínuos e ondulados acompanhando o texto literário levou aos neumas. Para tornar sua leitura mais segu- ra, algum monge teve a ideia de traçar sobre essas ondulações uma linha horizontal identificada com a nota fá. Do momento que uma linha é traçada pode-se traçar outra, paralela à primeira, chamada de dó, o que aumenta a precisão da leitura, e assim sucessivamente. A diversidade de signos inscritos em pautas foi unifi- cada pelo desenvolvimento da impressão musical. A notação pautada europeia marca a fronteira, construída durante séculos, entre músicas eruditas nesse continente e nos demais. Sua montagem prefigura o método cartesiano ao dividir a dificuldade de gra- far os dois parâmetros básicos do som, cuidando antes das alturas, depois das durações. Essa notação cria um objeto bem separado do observador: a escrita objetiva o som e possibilita a construção de obras tradu- zindo um pensamento individual, passível de críticas e de aperfeiçoamentos, prefigurando o aparecimento da ciência moderna. As coordenadas cartesianas podem ser vistas como uma transliteração da pauta: as ab- cissas representam as alturas e as ordenadas as durações. A partir do sec. XIII europeu, a notação pautada possibilitou um tipo específico de polifonia que conduziu à harmonia tonal e à supressão dos vários modos eclesiásticos. É permitido supor que a visão de signos dispostos entre e sobre linhas paralelas tenha contri- buído para definir a escala temperada. Cabe lembrar que a primeira obra de Descartes é um Compendium musicae. Não sou especialista em paleografia musical. As ideias a seguir expostas resultam de confluências de estra- nhezas envolvendo: − as diferenças entre as músicas eruditas na Europa e em outras partes do mundo; − as diferenças entre as músicas eruditas consolidadas na Europa a partir da Renascença e as outras músicas lá praticadas; − as diferenças entre músicas eruditas e folclórico/populares em outras partes do mundo; − a intervenção de um músico marroquino em ciclo realizado em Paris, por volta de 1970, sobre as origens do flamenco na música do Irã. Esse músico criticou a exaltação, por compositores europeus, da improvisa- ção na música árabe: “Nós estamos improvisando a mesma música há quinhentos anos, enquanto a de vo- cês, nesse mesmo período, experimentou enormes mudanças.” − o tipo de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e, mais geralmente, cultural que a Europa foi a única região do mundo a experimentar Creio ver no sistema de notação musical pautada desenvolvido na Europa medieval uma raiz dessas diferen- ças e um germe do cartesianismo. Obs.: as fontes das ilustrações são indicadas entre parênteses e remetem à bibliografia. Notações extra-europeias O enorme esforço de abstração exigido pela invenção da escrita resultou de questões práticas e objetivas: ao que tudo indica, foram exigências de viajantes comerciando em diferentes regiões que suscitaram necessidade de fixar informações em signos e em suportes variáveis de acordo com as diferentes culturas e objetivos visados. Signos indicando quantidades podem ter sido concebidos antes da grafia de palavras; os chamados números ará- bicos foram inventados na Índia. A escrita de narrativas épicas justificando crenças político-religiosas parece ter sido posterior, e precedeu a de textos profanos de caráter ficcional. Notações musicais só aparecem em civilizações onde a escrita literária já adquirira grande desenvol- vimento e que conheciam sistemas teóricos, inclusive musicais, formalmente constituídos em textos escritos. Elas são, portanto, ligados a músicas cultas, e não a práticas musicais de populações iletradas, cujos sistemas

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NotaçõesecartesianismoFlavioSilva

[email protected]

ResumoAsnotaçõesmusicaisforamcriadasemambienteseruditosquepraticavamaescritaliteráriaesistemasteó-ricoseespeculativosobjetivadosemmanuscritos.Asextra-europeiascuidaramdesugerirmovimentosme-lódicosmediante signos alinhados e paralelos a textos literários; elas serviam sobretudo como lembretesparamemorizarmonodiasdevastosrepertóriossacros.

NaEuropa,aideiadequesonsmaisagudosemaisgravespodemserrepresentadosporsignosdes-contínuoseonduladosacompanhandootextoliteráriolevouaosneumas.Paratornarsualeituramaissegu-ra,algummongeteveaideiadetraçarsobreessasondulaçõesumalinhahorizontalidentificadacomanotafá.Domomentoqueuma linhaé traçadapode-se traçaroutra, paralela àprimeira, chamadadedó, oqueaumentaaprecisãodaleitura,eassimsucessivamente.Adiversidadedesignosinscritosempautasfoiunifi-cadapelodesenvolvimentodaimpressãomusical.

Anotaçãopautada europeiamarca a fronteira, construídadurante séculos, entremúsicas eruditasnessecontinenteenosdemais.Suamontagemprefiguraométodocartesianoaodividiradificuldadedegra-farosdoisparâmetrosbásicosdosom,cuidandoantesdasalturas,depoisdasdurações.Essanotaçãocriaumobjetobemseparadodoobservador:aescritaobjetivaosomepossibilitaaconstruçãodeobrastradu-zindoumpensamento individual,passíveldecríticasedeaperfeiçoamentos,prefigurandooaparecimentodaciênciamoderna.Ascoordenadascartesianaspodemservistascomoumatransliteraçãodapauta:asab-cissasrepresentamasalturaseasordenadasasdurações.Apartirdosec.XIIIeuropeu,anotaçãopautadapossibilitouumtipoespecíficodepolifoniaqueconduziuàharmoniatonaleàsupressãodosváriosmodoseclesiásticos.Épermitidosuporqueavisãodesignosdispostosentreesobrelinhasparalelastenhacontri-buídoparadefiniraescala temperada.Cabe lembrarqueaprimeiraobradeDescarteséumCompendiummusicae.Nãosouespecialistaempaleografiamusical.Asideiasaseguirexpostasresultamdeconfluênciasdeestra-nhezasenvolvendo:−asdiferençasentreasmúsicaseruditasnaEuropaeemoutraspartesdomundo;−asdiferençasentreasmúsicaseruditasconsolidadasnaEuropaapartirdaRenascençaeasoutrasmúsicaslápraticadas;

−asdiferençasentremúsicaseruditasefolclórico/popularesemoutraspartesdomundo;−aintervençãodeummúsicomarroquinoemciclorealizadoemParis,porvoltade1970,sobreasorigensdoflamenconamúsicadoIrã.Essemúsicocriticouaexaltação,porcompositoreseuropeus,daimprovisa-çãonamúsicaárabe:“Nósestamosimprovisandoamesmamúsicaháquinhentosanos,enquantoadevo-cês,nessemesmoperíodo,experimentouenormesmudanças.”

−otipodedesenvolvimentosocial,econômico,tecnológicoe,maisgeralmente,culturalqueaEuropafoiaúnicaregiãodomundoaexperimentar

CreiovernosistemadenotaçãomusicalpautadadesenvolvidonaEuropamedievalumaraizdessasdiferen-çaseumgermedocartesianismo.

Obs.:asfontesdasilustraçõessãoindicadasentreparênteseseremetemàbibliografia.

Notaçõesextra-europeias

Oenormeesforçodeabstraçãoexigidopelainvençãodaescritaresultoudequestõespráticaseobjetivas:aoquetudo indica, foram exigências de viajantes comerciando em diferentes regiões que suscitaram necessidade defixar informaçõesem signoseem suportes variáveisdeacordo comasdiferentes culturaseobjetivos visados.Signosindicandoquantidadespodemtersidoconcebidosantesdagrafiadepalavras;oschamadosnúmerosará-bicosforaminventadosnaÍndia.Aescritadenarrativasépicas justificandocrençaspolítico-religiosasparecetersidoposterior,eprecedeuadetextosprofanosdecaráterficcional.

Notaçõesmusicaissóaparecememcivilizaçõesondeaescritaliteráriajáadquiriragrandedesenvol-vimentoequeconheciamsistemasteóricos,inclusivemusicais,formalmenteconstituídosemtextosescritos.Elassão,portanto,ligadosamúsicascultas,enãoapráticasmusicaisdepopulaçõesiletradas,cujossistemas

musicaisnãoconheciamaformalizaçãopossibilitadapelaescrita,emborativessempelomenosumateoriaimplícita.

Asdiferençasentremúsicaerudita,folclóricaepopularnãosãoinvençãodeeliteseuropeiasoueu-ropeizadas;elasaparecememoutrasculturas.Otermojaponêsgagakuécompostodedoisideogramas:gasignificarefinado,nobre,justo,egakudesignamúsica;gagakuéamúsicarefinada,nobreeculta,poroposi-çãoàmúsicafolclórica,consideradacomovulgareprimitiva(TAMBA:82).NoTibet,amúsica“comportatrêsaspectos:amúsicafolclórica–talcomoaencontramosnavidacorrentedopovotibetano;umaartemusical−cultivadasobretudopormenestréisprofissionais;ocantosagradoeamúsicainstrumentaldaliturgiabu-distaedeoutrosritos−centradaemvoltadosmosteiros” (CROSSLEY-HOLLAND).NaChina, “aexpressãomusical apela aqualidadesdeapreciaçãoqueadistinguemdas artesordinárias, e fala-sedeuma ‘músicavirtuosa’,deyin,quenãopodeserpercebidanemrealizadapelaspessoascomuns:énecessárioumaeduca-çãoparaamarecompreenderamúsica[...].Apartirdessanoçãodemúsicaelevada,yayue,reflexodaordemuniversal,éoperadaumadiferenciaçãocomamúsica‘vulgar’,suyue[...].[...]eraperigosorealizarumamúsi-caelevadaperantequemnãotinhaavirtudenecessáriaparaouvi-la”(RAULT:77).“Nasprincipaisregiõesislâmicas,haviaumaampladistinçãoentreaculturadacorteeaculturapopular.Acorteeraolardapoesiaescrita,damúsicaedadançaclássicas[...].Entreopovo,asartesmantiveramumatradiçãocontínua,rara-menteperturbadapelaspráticasvolúveisdaselites.”(GOODY:2011,p.144)Asconcepçõesligandodetermi-nadosmodosouintervalosmusicais,melodiasemesmoinstrumentosadeterminadossentimentos,horasdodia,estaçõesdoano,deuses,statussocialsãocomunsàmaioriadessasculturaseestavampresentesnaGré-ciaantiga,ondePlatãocriticavaosemolientesmodoscromáticoseexaltavaosdiatônicos.Oprof.TranVanKhêensinavaquenaIndiaapaixãoeraexpressapelosmodoscromáticoseaserenidadepelosdiatônicos.Aexistênciadecorpusrespeitáveisdetextosreligiosos,quetambémdeviamsercantadoseexigiamgrandeesfor-çodememorização,podeoudevetersugerido,poranalogiaaotextoliterário,aconveniênciaounecessidadedealgumtipodefixaçãográficadeentonaçõesoudemelodias.Assimcomotextossacroscostumavamserditadospordivindades,tambémasmelodiascomqueeleseramentoadostinhamessaorigem;ambos,portanto,deveri-amserpreservadosdaformacomoforamrecebidos.Asnotaçõesdessasmelodiasaparecememgeralsobformadesignosdescontínuosinscritosparalelamenteaostextosdeextensosrepertóriossacros,escritosverticalouhorizontalmente,eindicamapenasalturasaproximadas;elasajudamalembrarmovimentosmelódicosen-tonadosoucantadosesão lembretesouaide-mémoires sempreocupaçãomaiorcomprecisão.Asnotaçõespuramente instrumentais,mediantetablaturas,parecemsurgirapenasemculturasquedesenvolveramconcep-çõesmenosdependentesdosagrado.

Osexemplosaseguirsãodadossemmaiorpreocupaçãocronológica,visandosobretudomostrargra-fiasmusicaisdesenvolvidasemváriospaísesouregiões.AsprimeirasescritasteriamsidoregistradasnaSu-méria/Iraque,hácercade4000anos;érazoávelque2000 anos depois tenham lá surgido inscrições cu-neiformesquepoderiamindicarnotasmusicais(ex.1).

Ex.1:Mesopotâmia:possívelnotaçãodosec.IXa.c.,

segundoGalpin(MACHABEYp.11)

Desde1500a.c.hásalmodiasnotadascomacentos,cifraseneumasnaÍndia.NaChina,ondeoconfucionismoexibiaumafacetaquepodeservistacomoprofanaoulaica,háinscriçõesmencionandoescalasetransposi-çõesdesde433 a.c.. Composiçõesmusicais instrumentais surgememmaisde3300 tablaturasnadinastiaMing(1360-1644).

Os casos de tablaturas parecemmuitomaisligadosamúsicaspro-fanas do que a músicas sacras;eles podem ser mais precisos nainformaçãodasalturas,emfunçãode afinações instrumentais. NaÁsia,apenasaCoréia teriaconhe-cido um sistema de notação defi-nindo durações, organizado pelorei Sejong (1397-1451), que tam-bém teria melhor ordenado a es-

crita literária e inventado tiposmóveis para impressão, 215 anosantes de Guttenberg; Jack Goodyrefereaimpressãodeumtextoemummilhãodeexemplaresporesseprocesso coreano, durante nossaIdadeMédia.Osdoisexemplosaolado sãode tablaturaspara cítaranaCoréia(ex.2)enoJapão(ex.3);a tablatura japonesa para biwa ébemanterioràcoreana.

Ex.2:Coréia–tablaturadecítara(JASCHINSKI,p.279)

Ex.3:Japão−tablaturabiwa,747d.c.(TAMBA,p.74)

Na tablaturadoex. 3, os ideogra-masalinhadosverticalmenteindi-cam alturas com bastante preci-são, mas o Japão também conhe-ceunotaçõesonduladasindicandomovimentações vocais na músicasacra shomyo (ex. 4), necessaria-mentemais imprecisas doque asinstrumentais;ambassãolidasdadireitaparaaesquerda.

Ex.4:Japão1240-1321notaçãovocalparashomyo

(JASCHINSKI,p.271)

Outros exemplos de notações on-duladassãoencontradosnoTibet.Assim como no caso japonês, aextensão das linhas onduladastalvez corresponda à duração daemissãovocaloudosopro,sejanocaso da notação instrumental,onde algumas linhas terminamemformadepavilhão(ex.5),sejano caso da música vocal (ex. 6).Esses exemplos tibetanos sãolidosdaesquerdaparaadireita.

Ex.5:Tibet–notaçãoinstrumental(JASCHINSKI,p.281)

Ex.6:Tibet−notaçãovocal(JASCHINSKI,p.280)

Arroleianotaçãodoex.7,daGré-cia do sec. I, entre as extra-europeias.Aprimeira linha sobreotextoindicaalturas,easegundaas durações. Não referi outrasnotações praticadas na Gréciaantigaequesóseocupamdealtu-ras,ameuconhecimento.

Ex.7:Grécia,sec.I(MACHABEY,p.18)

Asúnicasnotaçõesencontradasdesignadascomonão-europeiasequeinformamalturaseduraçõescomboamargemdeprecisãosãoasdosexemplos2paramúsicaprofanae7paramúsicasacra.

Asnotaçõeshorizontalouverticalmentealinhadas,paralelasatextossacros,lidasdadireitaparaaesquerdaouvice-versaequeutilizamsignosdescontínuossãobemmaisnumerosasdoqueasonduladas.Opredomí-niopareceserodesignosdeentonaçãoindicandomovimentaçõesdavozetendomuitomaisfunçãodelem-bretesdoquedeinformaçãoexatadealturas,comonostrêsexemplosaseguir:

Ex.8:AlKindi

(JASCHINSKI,p.230)

Ex.9:CânticodosCânticos,CódigodeAleppo,ca.100d.c.

Ex.10:Etiópia(JASCHINSKI,p.86)

Haveriaalgumaligaçãoentreosexemplos11e12?Processosmusicaisanálogosocorremnasmaisdiferen-tesregiõessemquehajaqualquerindíciodeinfluênciasmútuas.Emmeadosdosec.XVIII,ojesuítafrancêsAmyotpublicouumtratadosobremúsicachinesaemmaisde150páginas,cominformaçõessobresuahistó-ria,teorias,teóricosepráticas,alémdedetalhadasilustraçõesdeinstrumentosmusicais.Eletambémreferiuumapossível origem indiana para as teorias de Pitágoras e diferenças entre concepções chinesas e as deRameau.Observe-sequenoex.11osdedostrazemmenosinformaçõesdoquenoex.12.

Ex.11:mãoharmônicachinesa,sec.XVIII

(AMYOT,p.semnúmero)

Ex.12:mãoharmônicadeGuidod’Arezzo

(GOLDRON,p.38) Notaçõesneumáticaseuropeias

Nosexemplos8a10,asnotaçõesaparecemhorizontaleparalelamenteaostextosaqueservemeutilizamsignosdescontínuos,diferentementedoqueocorrenosexemplos5a7,emlinhasonduladascontínuas.Co-moantessugerido,oprimeirocasoéomaiscomumnasnotaçõesextra-europeiasligadasacânticossacros,dosquaisdãoumanoçãoaproximadadamovimentaçãovocal.Comoúnicaexceçãonoscasosdetextossa-cros,temosanotaçãogregadoex.7,quetambémseocupadedurações,masemduaslinhasparalelasàdotexto,numprocessoderacionalizaçãoqueé,deoutraforma,refletidonanotaçãocoreanaparamúsicapro-fana.Asnotações em linhas onduladas,contínuas ou descontínuas, par-tem de uma ideia de representa-ção espacial da movimentaçãosonora,comossonsgraveseagu-dos aparecem grafados em posi-çõesdiferentes.NaAsia,sóencon-treinotaçõesonduladasemlinhascontínuas, diferentemente dasnotações onduladas na Europa,emlinhasdescontínuas.Creioquenenhuma notação extra-europeia,horizontal, vertical ou ondulada,sobre textos sacros ou em tabla-turas instrumentais, em signoscontínuosoudescontínuos,possi-bilitoudesenvolvimentosouaper-feiçoamentos ou modificaçõescomo os que puderam ser propi-ciados pelos neumas em linhasonduladas descontínuas pratica-dosnaEuropasobretextossacrosapartirdosec.IX.

Os neumas eram signosquerepresentavamsonsouagru-pamentos de sons. O ex. 13mos-tra neumas isolados, não inseri-dosnumamelodia.

Ex.13:signosneumáticosdeSaint-Gall(BEGUERMONT,p.121)

A Europa conheceu vários siste-mas neumáticos, que apareceminteiramente constituídos porvoltado sec. IX, semquedeles seconheça experimentos prévios. Écerto que essa constituição deveterpassadopormuitastentativas,possivelmenteelaboradasapartirde acentos bizantinos. A febreneumáticasealastrouemdiferen-tes grafias pelos mais diversoscentrosmusicaiseuropeus.Noex.14,denotaçõessobretudofrance-sas,pode-senotarumaquaseho-rizontalidade nos casos de Char-treseMont-Renaud,contrastandocom os voos em Saint-Yrieix eBénévent. Merece destaque oexemplo de Montpellier, onde otexto sacro é encimado por uma

notaçãoalfabéticahorizontaleporumanotaçãoneumáticaondulada.Diferentemente das notações em linhas asiáticas onduladas e

contínuasdosex.4a6, foramessessignosonduladosedescontínuosacrescentadosatextossacrosqueforneceramabaseparaarevoluçãonotacional quemodificou radicalmente amaneirade fazermúsicanaEuropa.

Ex.14:notaçõesneumáticassobreummesmotextosacro(BEGUERMONT,p.108-109)

Notaçõespautadas

Os tratados Musica enchiriadis e Scolica enchiriadis, do sec. IX, trazem proposta de notação musicalradicalmente diferente da neumática, onde os espaços entre linhas paralelas são atribuídos às diferentesnotasdeumsistematetracordal,cadaumacomsuaprópriarepresentação,ouseja:acadaespaçoéatribuídooquedepoisseriachamadodeclave.Nessesistema,assílabasdotextosacroasercantadosãografadasnosespaçosrespectivos,deacordocomsuaaltura.Omais importante,porém,équeessesistemaabre,aoquetudo indicapelaprimeiraveznahistóriadamúsica,apossibilidadedarepresentaçãodeduase,portanto,maismelodiasnummesmosistemadelinhasparalelas.OexemplomaisemblemáticodessanotaçãopareceseroRexCoelidomine,queJacquesChailleydesignoucomooequivalenteaossermentsdeStrasbourgparaamúsicaeuropeiaequeprofessorcampineiroYuloBrandãoviacomoaorigemdessamúsica.Oex.15dáoprimeiroversodesseorganum,comagrafiadaspalavrasatualizadamastrazendoossignos/clavesoriginaisatribuídosacadaespaço;osdoisversossãodadosemtanscriçãonoex.16,queindicaavoxprincipaliseavozorganalis.

Ex.15:Rexcoelidomine(primeiroverso)

Ex.16:Rexcoelidomine(osdoisversos)

Práticas tradicionaispolifônicasouheterofônicas, instrumentaise/ouvocais, sãomaisdoquevezeirasemtodasaspartesdomundo,emmúsicasligadasounãoasistemasteóricosformalmenteconstituídos.Émais

doquepossívelquetaispráticastambémocorressemapartirdarealizaçãovocale/ouinstrumentaldemelodiasnotadas, em culturas que conheceram notações musicais; é certo que elas ocorreram na Europa medieval.Pretende-sequeaorigemdasnotaçõespolifônicaseuropeiastenharaiznessaspráticas.Ora,emnenhumaoutrapartedomundotaispráticaslevaramanotaçõespolifônicas.Nãocreioviávelqueapolifoniatrazidapelosdoisexemplosacima,comaregularidadedeseusmovimentosoblíquos,paraleloseopostos,possaserentendidacomoumatranscriçãodepolifoniasorais,vocaise/ouinstrumentais,quecertamenteexistiamnaEuropa,mesmoqueessaspolifoniastambémseservissemdemovimentosoblíquos,paraleloseopostos.

Osegundoversodesseorganum,Tehumilesfamili,éparticularmenterepresentativodoquesugiro.Começandodamesma formaqueoprimeiroverso,avoxorganalisusao intervalode terçapara fazerumnotávelmalabarismomelódico que evita o triton na sílaba “li” e conduz ao uníssono na sílaba “mo”; essautilizaçãodaterçanadatemavercomaencontradanasilaba“li”doprimeiroverso.Eéapósouníssonoem“mo” que pela primeira vez aparece no organum o intervalo de quinta para depois tudo continuar comodantes,emquartaseemuníssonos,comonofinaldoprimeiroverso.Vejonessanotaçãopioneiraumsistemaeminentementeteóricoecomplexo,composicionalmenteorganizadoporumamãocriadoraemaisacessíveladoutosmusicusdoqueaumsimplescantor.Mais,ainda:nela,vejoumprimeiroexemplodeobjetomusicalbemseparadodoobservador,quepassaaexercerumcontrolevisualsobreoqueescreve,emvezdelimitar-se a transcrever o que pensa. É em função desse controle visual sobre o textomusical objetivado que oobservadorpodecorrigiroqueseriaumacontinuaçãonaturalnalinhamelódicadavozorganalequelevariainevitavelmenteaointervalodiabólico.

Vejonessanotação,porém,muitomaisumaprofeciadoquepoderiaviraserumanotaçãomusicalobjetiva do que omotor da construção dessa objetividade. A notação que vai realmente criar um objetomusical bem separado do observador será construída passo a passo, não a partir de grandes edifíciosteóricos,masdeumartifíciocujasimplicidadeinicialnãopermitiriaprenunciarafantásticarevoluçãoquepossibilitaria.Lembro,agora,meuprofessorJacquesChailleyparareferiranotaçãomostradonosex.17e18comoaquelançaasbasesdoqueviriaaseramúsicaeuropeia–enãosóaerudita.Foiapartirdanotaçãoneumáticaonduladaemsignosdescontínuossobretextosacroquealgummongeemalgummosteiro–emSaintGall?−teveaideiadesobreporaessaondulaçãoumalinhahorizontalquereceberiaonomeeosignodeumanota–anotafá,nocaso−,deformatalqueossignosindicandosonscoincidentescomaessalinhahorizontal corresponderiam à nota fá e os signos acima e abaixo dessa linha corresponderiam,respectivamente,aossonsacimaeabaixodofá.

Ex.17:neumassobreumalinha(JASCHINSKI,p.94)

Ex.18:Nevers,sec.XII(p.51)

Ex.19:Bruxelas,1398(BEGUERMONT,p.139)

A partir do traçado de uma linha horizontal sobre neumas ondulados e descontínuos, fica inteiramentelógico e consequente traçar outra linha, que será atribuída à nota dó, o que contribuirá para tornarmaisprecisooentendimentodaalturadosneumasacimadalinhadofá(ex.19e20).Maislinhastornarãoaindamaislocalizáveislasemissõesvocaisdosdiferentesneumas,semoacréscimodeoutrasclaves.

A expansão dessa invenção não modificou, alterou ou eliminou, de saída, os vários sistemasneumáticos em vigor na Europa, que continuaram a existir e a se modificar, nem determinou evoluções

lineares, cronologicamente ordenadas. Assim, no ex. 19, de 1398, os signos neumáticos não aparentamhaversofridograndemodificaçãopelasuperposiçãodasquatrolinhascomsuasduasclaves,masoex.20,de1200,jáapontaparaumatendênciacadavezmaisexplícita,detransformarosarabescosneumáticosempunctusbemdeterminados,tendênciaqueseencontrabemmaisafirmadanoex.21.

Ex.20:quatrolinhaseduasclavesem1200

(GOLDRON,p.164)

Ex.21,Limoges:quatrolinhaseumaclave,entre1304-1342(BEGUERMONT,p.175)

Noex.15eraatribuídaumanota–umaclave−acadaentrelinha;osexemplos19e20trazemapenas

duas claves que ordenam a distribuição das alturas nas quatro linhas e nas três entrelinhas, mas essadualidade é cancelada no ex. 21, com apenas uma clave: a prática da leitura tornou a segunda clavesupérflua, inútil – bastava uma para sinalizar as alturas relativas de todos os sons representados pelossignosdispostossobreaslinhasparalelasenosespaçosentreelascompreendidos.

Se o compositor dos ex. 15 e 16podia,jánosec.IX,superporduaslinhas melódicas para seremcantadas simultaneamente, comseus movimentos oblíquos, pa-ralelosecontrários,omesmonãoocorreu com os que, posterior-mente,tateavamumsistemaparaclarificar a grafia neumáticasuperpondo aos neumas uma,depois duas e depois três emaislinhas paralelas. Só quando essastentativasalcançaramumarelati-va precisão, no que concerne ànotaçãodealturasededurações,é que foi possível notar duas emais melodias numa mesmapauta(ex.22)edepois,empautasdiferentes(ex.23e24).

Ex.22:Perotin,Alleluianativitas,sec.XII

Ex.23:Motetoatrêsvozes,sec.XIII.Assuperioresocupamas

duascolunas;otenorapareceaopédapágina.(LEMOS,p.168)

Ex.24:partituradePierredelaRueimpressaporPetrucci(internet)

Os signos pautados passaram por uma gradual e constante simplificação e homogeneização relativas eacabamincorporandoprocedimentosjádesenvolvidosnanotaçãoneumáticatradicional,medianteosquaisera possível aliar a notação das alturas à das durações. Essas transformações não ocorreram de formasimétrica ou linear em toda a Europa; notações neumáticas sem a superposição de uma ou mais linhascontinuaram a ser utilizadas até as vésperas da Renascença. As diferentes notações, porém, acabaramconfluindo para representações comuns que serão tornadas obrigatórias com o desenvolvimento dosprocessosdeimpressãodepartituras,adaptadosàediçãomusicalapartirdainvençãodeGuttenberg.Tantoa edição de livros como a de partituras passou a exigir mercados cada vez mais amplos para assegurarmenorescustosetiragensmaioresaseusprodutos,facilitandosuaaquisiçãoporclassesmédiasemergentes.É essa industrialização que operará uma simplificação e homogeneização final nos signos notacionais,ampliando,inclusivesuaspossibilidadesderepresentação.

A meu conhecimen-to, a Europa só pas-souausartablaturasapós uma crescenteautonomia da músi-ca instrumental comrelaçãoàvocal, rela-cionada a uma vidacada vez mais secu-larizada. As tablatu-ras para diversosinstrumentos(ex.25e 26) tiveram, po-rém, uma vida rela-tivamente breve:elas foram elimina-daspelaexpansãodapartituraimpressa.

Ex.25:tablaturaparaórgão(JASCHINSKI,p.191)

Ex.26:tablaturaparateclado

(JASCHINSKI,p.188)Conclusões,ouilaçõesRetomo,agora,ideiasjáesboçadasparanelasverumaoutraobjetivação:adadefiniçãodealturasdosom,nãonosentidodesuagrafia,masdaprópriaentonação,vocalouinstrumental,dosomgrafado.Tudoparecetersepassadocomoseaquelessignoscadavezmaisclaramenteidentificadosetãosimetricamentedispos-tos em linhas paralelas indicassem, também, que suas entonações poderiam ou deveriam corresponder àclarezacomquepassaramasergrafados.Asinfindáveisdiscussõessobreafinaçõespitagóricas,zarlinianaseoutrasmaisforamdandolugaràideiasegundoaqualeramuitomaisrazoávelterumaescaladesonsigno-randodiferençasentresustenidosebemóis,istoé:quefossetemperada.Evitava-se,assim,acomplexidadeexigida,emespecial,pelafabricaçãodeinstrumentosdeteclado,comteclasdiferentesparaessescromatis-mos.Otemperamento,porém,éumaconvençãotornadaessencialparaamúsicaeuropeia,semoqualosis-tematonaléimpensável,equevaleparaautilizaçãotradicionaldeinstrumentosdesonsfixos;oscantoresnaturalmentecantarãonotasmaisparaoagudooumaisparaogravedeacordocomamovimentaçãomeló-dica,eomesmofarãooscordistas.

Semotemperamento,nãoteríamososistematonal,decujaformulaçãoDescartespodeservistocomoumdosprecursores,pelostatusqueconferiuaoacordeperfeitomaior:“Pourlapremièrefois[noTraitédel’homme],l’accordparfaits’ytrouvelégitimerparlasciencephysique.Descartesouvreainsilathéorieàdesperspectives nouvelles: l’acord parfaitmajeur est perçu comme une unité, et est justifié par des donnéesacoustiques.[...]Descartesestlepremieràdonnerunelégitimationnaturelleàl’accordparfaitmajeur,lequelfondenotresystèmetonal.Iln’ahélaspascrubond’exploiterdavantagecetteintuition,commeleferaRa-meauplustard”(WYMEERSCH,128,130).

Aracionalizaçãonaentonaçãodasalturas–enãoapenasnasuagrafia−tevecomoconsequênciaumadrás-ticareduçãonavariedadedeinstrumentosmusicais:asnumerosasfamíliasdeflautas,alaúdes,oboésetc.,larga-

mentepraticadasna IdadeMédiaenaRenascença, foramreduzidasaumoudoismodelos,quandonãoforamesquecidas.Asentonações‘imprecisas’perderamespaço,oupassaramanãosertoleradas,oquelevouamodifi-caçõesnafatura instrumental,possibilitadasporaperfeiçoamentostecnológicostantonafabricaçãodosmetaiscomonoaperfeiçoamentodechavesenacriaçãodeválvulasparaossopros.Ascordas,emparticular, ficaramreduzidasaoquartetocujaartesaniaalcançoupatamaresinsuspeitados.Asmodificaçõesquelevaramdocravoaopianofortecorresponderamàsexigênciasdemaiorvolumemusicaledemaiorflexibilidadeentreosffeospp.Aessadiminuiçãonaquantidadedossonsenavariedadedosinstrumentosmusicaiscorrespondeuumaintensifica-çãonaconcepçãodeprocedimentosformaisquelevouàformasonataeaumanovaprofundidadeparaopen-samentomusical,nummovimentoanálogoaoverificávelnopensamentofilosóficoenocientífico.

Seaspartesdassuítestinhamnomesdedanças,comasonataeasinfoniaessaspartespassaramaserdesignadasportermosabstratos−allegro,adagio,vivace.Aformaçãodosconjuntosmusicais ficoumuitomaisdefinida,comsuaassociaçãoemconjuntosbemestabelecidos–jáforamassinaladosparalelismosentreacriaçãodasorquestraseadefábricas.Todasessasmodificaçõesnapráticaenaconcepçãodecomofazermúsica,opera-dasnumaccelerandomoltoapartirdaRenascençaequemotivaramocomentáriodomúsicomarroquinocitadono iníciodesse texto,podemservistas,emúltimaanálise,comotributáriasdaquelegestosolitáriodoobscuromongemedievalqueinventoutraçarumalinhaparamelhoridentificarossonscomquedeveriamsercantadasasmelodiassacras.Pode-seestimarqueessaprocuradeexatidão,nummaterialtãoabstratocomoosom,estánaorigemdodesenvolvimentodeumracionalismo inéditonahistóriadahumanidade,oué, talvez,umaprimeiramanifestação‘concreta’dodesenvolvimentodessanovaracionalidade.

Surge,agoraumaperguntaquealgunsjulgarãodescabida,masquefaço,mesmoassim:qualarazãooumotivopeloqual nãoocorreu a nenhumescriba japonêsou tibetano traçar uma linhahorizontal sobre suasnotaçõesonduladasemlinhascontínuas,comofeznossomongemedieval? Umaprimeirarespostaresidenofatodequeessasnotaçõeseramonduladasemlinhascontínuasenãopoderiamdarorigemanotaçõespautadas, comoosneumasmedievaisnotadosem linhasdescontínuas.Outrarespostapossívelemaisdiscutívelpodeserencontradanadiferençaentreconcepçõesqueentendemouniversocomoumcontínuo indesmembrável,deificado;nãocaberia,portanto,atentarcontrasuaunidadeessencial, in-clusivenoqueserefereàunidadedosom.Emoposição,temosasconcepçõesqueestabelecemclarafronteiraentreoqueédivinoeoqueemanadesuacriação,deseupoder.Noprimeirocaso,temosospoliteísmos,emquedeuses,homensenaturezasemisturamnumcontínuoindissociado;nosegundo,asreligiõesabrâmicas,dodeusúnico,inicialmenteatreladoaumúnicopovo,edepoisanunciadoparaahumanidadeemgeral.Parece,mesmo,haverumalógicasegundoaqualospoliteísmossópodemserholísticosoumonistas,enquantoosmonoteísmossãodualistasporconceberemseudeuscomoseparadodoquefoiporelecriado.Observo,porém,queopretensodeusúnicoédiferentedeumareligiãoparaoutra,emesmonointeriordecadaumadelas.Algumascivilizaçõesqueconheceramaescritaelaboraramsistemasteóricoseconcepçõesmusicaisprópriasàscamadassuperioresdesuassociedades–oletramentoeraprivilégiodessascamadas–masnemtodaselabora-ramsistemasdenotaçãoparaessasmúsicas ‘elevadas’.Asconcepçõesmusicais,daChinaà Índia,aoJapãoeàGrécia,estabeleciamligaçõesentreocomportamentodouniversoeasrealizaçõesmusicais,associando,inclusi-ve,notasmusicaisaplanetaseaanimais,edesenvolveramconcepçõessegundoasquaismúsicaslicenciosaspo-deriamlevaràruínadacidadeedeimpérios.Eracorrenteaatribuiçãodequalidadesprópriasaosdiferentesmo-dos, escalas e/ou intervalos, que expressavam tanto virtudes como depravações, bem como a assimilação decertaspráticasmusicaisadeterminadasdivindades,maléficasoubenéficas.Judaísmoeislamismo,queeramreli-giõesabrâmicas,rejeitaramarepresentaçãopictóricaouescultóricadafigurahumana,deanimaisedeplantas,namedidaemqueessa representação significariauma tentativahumanadeassemelhar-seàdivindade,oudeimitá-la.AsuniõesdeificadasentreasestruturasmusicaiseasdouniversonãopodiamtergrandeacolhidanaEuropamedievalcristã,muitoemboraresquíciosdessepensamentotenhamaelachegado,atravésdeherançasdeteoriasgregas.Essesresquíciosnãochegaramaserprevalentespormuitotempo:seocriadoestáseparadodocriador,nãohácomoimaginarqueentoartalmelodiaoumodopossaameaçaroequilíbriodanatureza.Resumindo:aevoluçãonotacionaltrazidapelaadiçãodeumaemaislinhashorizontaiseparalelasàsondu-laçõesneumáticasdescontínuasexerceu-seemváriossentidos:

• progressivaunificaçãonãolinearouconcomitantenasrepresentaçõesneumáticas,tendendoaasse-gurarumalocalizaçãoclaramentedefinidaeindividualizadadossignosmusicaisnaslinhaseespaçosdapauta;odesenvolvimentodaimpressãomusicalsepultaráasdiversidadesaindaexistentes;

• maiordefiniçãonaemissãodasalturas,comoseàvisãodepunctusbemdefinidosemespaçosclara-mentedelimitadosdevessemcorrespondersonsdefrequênciaclaramentedefinida;

• maiorprecisãonadefiniçãodasdurações,porumprocessoanálogoaoacimadescrito;• maiorcomplexidadenaescritaaváriasvozes,pelarelativasimplificaçãoediversificaçãodossignos

notacionais;• reduçãodaquantidadedemodos,progressivamentelimitadosadois;• entronizaçãodafiguradocompositor,criadordemelodiasoudepolifonias,quepassaaternome;• apartirdodesenvolvimentodapolifoniaescrita,progressivadefiniçãodoqueviriaaserosistema

tonal;• eliminaçãodastablaturas;• abandonodasváriasafinações,substituídaspelotemperamento,tambémdecertaformaprefigurado

peloesquematismodapautaepelaregularidadedossignosnelainscritos;• enfim,constituiçãodeumalinguagemmusicalinteiramentenovanopanoramadamúsicamundial.

Numperíodomaisavançado,eemfunçãodedesenvolvimentostecnológicos,ocorreumaprogressivaredu-çãonavariedadedosinstrumentosmusicaiseumamaiorespecializaçãonasuafatura,artesanalouindustri-al,buscandoadefiniçãomaisprecisadossonsemitidos.Asformasegênerosmusicaistendemaseconcen-traremunspoucosmodelos;apartirdosec.XVIIInota-seumasistemáticareduçãodenomesdedançasnasdesignaçõesdemovimentosdesuítes,quepassamatercadavezmaisnomesabstratosougenéricos.Pode-severnessasreduçõesdesignos,dealturas,dedurações,degênerosumacontraçãonaextensãoeumaex-pansãonaprofundidadequeacompanhaasmutaçõesnopensamentocientíficoeno filosófico–ouqueasprenuncia?

Cartesianismos

AsreferênciasdeJ.ChailleyedeY.BrandãoaoRexcoelidomineganhamtodosentidocomrelaçãoaoversonoex.17.Omalabarismodavozorganalparaevitarotritomnasílaba“li”sófoipossívelapartirdanegaçãoteóricadesse intervaloedavisualizaçãodaescritadasduasvozes sobrepostasquecriouum“objetobemseparadodoobservador”,graçasaoqualocompositor–e jáépossívelassimdesignaroautordesseorga-num–foiconfrontadocomanecessidadedeevitarointervalodiabólicomodificandooqueseriaaconduçãonaturaldaquelavoz.Épossível, portanto, vernesseorganumapedraangulardoqueviria a ser amúsicaerudita(emaistardeapopular)naEuropa,equeatornariadiferentedapraticadaemtodososoutrosconti-nentes. Se, comoantes sugerido, a grafia adotadanosdoisEnchiriadis nãoprosperou, comsuas inúmeraslinhaseclavesecomotextocantávelescritonasentrelinhas,nemporissoeladeixoudeapontarparaumfuturoqueseriarealizado,linhaalinha,notaanota,pelagradualconstruçãodeumnovosistemaobjetivoderepresentaçãodossons,ondeopensamentocriadorpodia,cadavezmais,fazervalerseusdireitosepropósi-tos.Éapartirdessaobjetivaçãoquecomeçamasurgirosnomesdosprimeiroscompositoreseuropeus,an-tesdosfantásticosarquitetosdecatedrais.

DesdeBoecio,ateoriatradicionalatribuíaumadiferençaentreomusicus,aquelequeconheceaes-sênciadamúsica,assuasleis,eocantor,queseguiaoinstintoeonãoointelectoparafazermúsica.Nãofo-ram,porém,osgrandesteóricosesapientesmusicusqueasseguraramarevoluçãocapitalquedeuàmúsicaeruditaeuropeiaa fisionomiaqueadistinguedetodasasdemais,esimumsimpleseanônimocantorquequistrazermaiorclarezaaoentendimentodosneumasesobreelestraçoualinhapioneira.

Aseparaçãocorpo/almaéfundamentalparaocristianismo.Pode-seestimarqueelaéessencialparasepara-çãocartesianaentresujeitoeobjetoeparaodesenvolvimentodopensamentocientífico,quedemandaram,porém,a separaçãopréviaentreo tempodivino/cosmológicoeo tempohumano/natural.Esse tempohu-manizado,afirmadojánosec.XII,levouaumaseparaçãoentreteologiaeciência;tornou-sepossíveltrata-locomo grandezamensurável, puramente formal (BOUREAU, p. 38). A novamaneira de entender o tempotambémserefletenasregularidadesdashorasdodia,nosdesenvolvimentosdemecanismosderelojoariaenosdetalhamentosdasmediçõesnasduraçõesdossons.

Essasquestões,daformacomocolocadas,podemindicarumaespéciedecartesianismoavantlalet-trepresidindoaevoluçãodopensamentotécnico-científicoeuropeu,mastalvezsejamaisrazoávelentendero cartesianismocomoumaconsequênciaouuma formalizaçãopossívelde todaumaexperiência anterior.Elastambémparecemindicarqueumpensamentomonistanãofavoreceodesenvolvimentodopensamentocientífico.

Descartesnãoseocupadenenhumadasquestõesqueabordo.Emsuaépoca, inexistiaoconhecimentodemúsicasextra-europeias,eruditasoupopulares;oquesesabiademúsicagregaeramexcertosdeespecula-çõesfilosóficasedeteoriasfiltradasporpensadoresposteriores,pagãosecristãos.

SeuprimeirotextoéumCompendiummusicae,escritoaos22anosesóeditadoapóssuamorte.Ées-se texto que suscita as primeiras investidas teóricas do pensador, divididas com o amigo holandês IsaacBeeckman, a quem a obra foi dedicada, e que ele retomaria com Mersenne. O Compendium “reprendl’essentiel des connaissancesmusicales de l’honêtte hommede l’époque”. […]. Son intention, en rédigeantl’Abrégédemusiquepoursonami,estdeluiexposerlesystèmetraditionnelparsaméthodepropre.Commeil l’affirmedansdesécritsultérieurs,cequi l’intéressaitalors,c’étaitdereconstruire lesavoirpar laseulelogiquedesonesprit,enl’appuyantsurquelquesfondementssolides.[...]LamusiqueestlepremierdomaineoùDescartesexercesonespritcritique.[...]Ladissonancen’etplusl’ombrefaceàlalumière,l’imparfaitfaceauparfait,maisdevientunedonnéeessentielledansladynamiquemusicale[...]syncopesediminutions,quipeuventengendrerdestritonsetdesfaussesquintes,sontnécessairespourfaireavancerlediscoursmusicalversumpointcentral,etpouréveillerl’attentiondel’auditeur”(WYMEERSCH,p.9/100/120).

Umadasregrasdométodocartesianoconsisteemdividirumadificuldadeemtantaspartesquantasforemnecessáriaspararesolvê-la.Alinhasobreneumasonduladosconstituiumaprimeiratentativademe-lhorresolveradefiniçãodasalturas,parasódepoiscuidardasdurações.Essatrajetóriadecertomodorefazadenotaçõesneumáticasquelograramatingirrazoávelprecisãonadefiniçãodealturasededurações,comadesvantagem,porém,denãopossibilitaraescritasimultâneadeduasemaismelodiascomseusprópriosritmos;anotaçãodoRexcoelidomine(ex.16/17)parecianãopossibilitarritmosdiferentesnasduaslinhasmelódicas.

Nãopossodeixardereferirumaoutrapossívelfonteparaaeclosãodopensamentodoautorevoca-do.Vejonapartituraaváriaslinhasumaantecipaçãodascoordenadascartesianas,ondeasabcissasrepre-sentamas alturas e as ordenadas asdurações. Como sugereB. vanWymeersch: ”la distancenouspermetd’apprécieretdeconceptualiserdesthéoriesoudesreprésentationsmentalesquisolventen’existaientquedansl’inconscientdeleurauteur,toutenétantlasourceconstantedeleurinspiration”(p.11).

CodaEmtrechoanterior,referiodesenvolvimentodeumanovaracionalidadeocorridonaEuropa.Cabe,agora,umaexplicitação:qualquerexplicaçãooutentativadeexplicaçãodarealidade,oudoqueseentendacomotal,passapeloestabelecimentodemedidas,decritérios,etodasessasmedidasoucritériossãorazõesouracionalizaçõesquepodemserde fundamentosouorigensdiferentes.Assim, sequerodeslocarumarmáriodeum lugarparaoutro,possoverificarseessedeslocamentoépossívelapenasconfrontandocomoolharoespaçoocupadopeloarmárioeoque receberiaessemóvel.Emcasodedúvida,possousarapalmadamãocomomedida:opalmopodeserumrazãosuficienteparadeterminarseodeslocamentopretendidoépossível.Masseháalgumasuspei-tadequeessamedidanãosejaadequada,possousarumbarbanteouummetro,casosejaadeptodosistemadecimal,echegareiaumamedidabemmaisprecisa,quetambéméracional,emboramaisadequada.Supõe-sequenãosejanecessáriousarummicroscópioou telescópioparasaberseoarmáriopoderáounãocabernumnovolocal;esseusonãoseriaracional.Ouseja:asdiferentesexplicaçõesparaummesmofato,comasucessãodosdiasedasnoites,dependemdediferentesmedidasourazõesqueterãodiferentesfundamentos.Omaisna-turaléconsiderarquediasenoitessesucedempelomovimentodosolemtornodaterra.Essanaturalidade,po-rém,foicontrariadaporoutraracionalidade,oquecolocaumaquestãoética:hárazõesmelhoresdoqueoutrasrazões?

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