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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO CURSO DE LICENCIATURA VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA NÓS NA CIDADE: UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE Salvador 2008

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Teatro na Educação, Identidade Social, Identidade Racial, Negros, Vida e Costumes Sociais, Salvador, Bahia, Cidadania e Criatividade

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Page 1: Nos na cidade

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO

CURSO DE LICENCIATURA

VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA

NÓS NA CIDADE: UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE

Salvador 2008

Page 2: Nos na cidade

VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA

NÓS NA CIDADE: UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao Curso de Licenciatura em Teatro na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do Grau de Licenciado em Teatro. Orientadora:Prof. Ms. Maria Eugênia Viveiros Milet.

Salvador 2008

Page 3: Nos na cidade

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Souza, Valdíria Santos de. Nós na cidade : uma interação entre teatro, educação e identidade / Valdíria Santos de Souza. - 2008. 112 f. : il. Inclui anexos.

Orientadora : Profª Ms. Maria Eugênia Viveiros Milet. Trabalho de conclusão de curso (monografia) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, Salvador, 2009.

1. Teatro na educação. 2. Identidade social. 3. Identidade racial. 4. Negros - Vida e costumes sociais - Salvador (BA). 5. Cidadania. 6. Criatividade. I. Milet, Maria Eugênia Viveiros. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. III.Título.

CDD - 372.66 CDU - 792:37

Page 4: Nos na cidade

VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA

NÓS NA CIDADE: UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em Teatro, Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

Aprovado em 18 de junho de 2008

Maria Eugênia Viveiros Milet – Orientadora____________________________________ Mestra em Teatro pela Escola de Teatro Universidade Federal da Bahia Antônia Pereira Bezerra______________________________________________ Pós-Doutora em Dramaturgia pela Université du Québec à Montréal UQAM Universidade Federal da Bahia Urânia Auxiliadora Maia- Curso de Artes Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia na área de Teatro-Educação Faculdade Social da Bahia

Page 5: Nos na cidade

Ao meu pai Nelson Ribeiro de Souza (Seu

Nelson) e a minha mãe Valdenice Santos

de Souza (D. Nice), os meus primeiros

educadores e mestres na arte de viver, os

maiores responsáveis por tudo que eu

sou hoje.

Page 6: Nos na cidade

AGRADECIMENTOS

A Deus e aos Orixás.

Aos meus pais, Nelson e D. Nice, aos meus irmãos Nilson e Nilton, as minhas

irmãs, Valdinéia, Valdirene, Valdineide, Lucineide, Marie e Maria Alice. Um

agradecimento especial a minha irmã Valquíria que colaborou com idéias para

escrita do meu TCC. Minha família que foi a minha primeira escola, que me

ensinou valores éticos e estéticos que me direcionou desde cedo ao caminho

das artes.

A Maria Eugênia, minha mestra, que não desistiu, que confiou, que me orientou,

que me deu a mão e o braço nesta jornada. Meu carinho e afeto por toda a vida.

Aos mestres com carinho, Sônia Rangel (pelos tempos de delicadeza), Luiz

Marfuz, Érico José, Iami Rebouças, Sérgio Farias, Luis Cláudio Cajaíba, Luciano

Bahia, Ana São José, Maria de Lourdes (saudosa Lurdinha), Antônia Pereira,

Urânia Maia, Ângela Reis, Héctor Briones, Fernanda Paquelet, André Rosa,

Paulo Dourado, Luciana Balbino (Escola Cid Passos), Edenice Santana de

Jesus (Centro Educacional Edgar Santos), Vanda Machado, Carlos Petrovich,

Renato da Silveira, Ordep Serra, Olímpio Serra, pela dedicação e generosidade.

Aos meus primeiros mestres na arte de representar: Équio Reis e Franklin

Costa.

Aos meus melhores amigos Tânia Soares e Rafael Morais que me ajudaram a

vir para Salvador, a permanecer e a entrar na faculdade, assim como a

permanecer nela, a lutar pelos meus sonhos e a criar meus caminhos. A eles,

minha amizade eterna.

A Carmen Paternostro, minha amiga e incentivadora.

Page 7: Nos na cidade

Aos meus colegas e amigos que me agüentaram durante 4 anos na faculdade,

que dividiram comigo momentos tão doces e intensos, nesse processo de

educação e auto-conhecimento. Gessé, Eliana, Jandiara, Bira, Roseli, Ive,

Camila, Daiane, Wellington, Eliete, Rubenval, Diana, Emiliano e Carla, meu

agradecimento e admiração, por toda a contribuição na criação do processo e

pela amizade. Sem vocês esse trabalho não existiria.

Aos que entraram conosco, mas que por algum motivo, seguiram outro caminho,

mas que com certeza deixaram suas contribuições nas músicas e textos do

espetáculo Nós na Cidade. Mabele, Mariana, Jorge, Alexandre, Eliciana,

Roberto e Roque.

Aos meus colegas, do grupo Licenciatura 2005.1, que me receberam com

carinho e afeto. Meu agradecimento especial a Gonzalez pelas fotos e músicas

do nosso espetáculo, a Francisco pelo carinho e generosidade ao responder o

questionário que contribuiu com o TCC.

A equipe de Comunicação do CRIA, nas pessoas de Tássia Batista e Scheila

Gomes, pelos materiais cedidos e ao grupo CRIAPOESIA, pela companhia.

Ao ator e diretor Ângelo Flávio.

Ao Terreiro da Casa Branca.

A Doutora Tereza Cristina.

A todos os meus amigos e incentivadores, que estavam perto, ou mesmo os que

estavam longe, mas que torceram por mim. Meu muito obrigada!

Page 8: Nos na cidade

Um povo sem conhecimento do seu passado

histórico, origem e cultura é como uma árvore

sem raízes.

(Bob Marley)

Page 9: Nos na cidade

Foto: Eliana Andrade de Souza

Page 10: Nos na cidade

SOUZA, Valdíria Santos de. Nós na Cidade: uma interação entre teatro, educação e identidade. 112f. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Curso de Licenciatura em Teatro, Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.

RESUMO

Estão descritos neste trabalho os processos metodológicos de construção do espetáculo Nós na Cidade - espetáculo proveniente de um processo colaborativo desenvolvido pela turma de Licenciatura em Teatro de 2004 – que possibilitaram minha busca de auto-conhecimento, a formação de um grupo artístico e sua identidade como grupo. Através da arte educação, os alunos/atores desse processo se encontraram com a história da cidade de Salvador e com a história dos afro-brasileiros, possibilitando assim, um pensamento crítico sobre a Educação Étnico-Racial e a Lei 10.639/2003, através dos diálogos que realizaram com várias instâncias da cidade. O trabalho, que inclui depoimentos dos integrantes e o texto resultante do processo criativo, apresenta uma prática artística, política e pedagógica de teatro-educação baseado em jogos e improvisação. Aponta para possibilidades de educação para cidadania, através do exercício da criatividade, na dimensão cultural das cidades, valorizando as pessoas como sujeitos históricos da sociedade a qual pertencem. Palavras Chave: teatro, identidade, educação étnico-racial, cidadania e criatividade.

Page 11: Nos na cidade

APRESENTAÇÃO

Este trabalho é um relato da minha experiência como artista/educadora envolvida

no processo criativo de construção do espetáculo Nós na Cidade, desenvolvido pela

turma de Licenciatura 2004 a partir componente curricular Improvisação e Jogos

Dramáticos. Esta experiência foi vivenciada por mim e minha turma nos três primeiros

semestres (referentes aos Módulos I, II e III) no curso de Licenciatura da Escola de

Teatro da Universidade Federal da Bahia.

A partir da metodologia desenvolvida no componente curricular Improvisação e

Jogos Dramáticos, orientado pela professora Maria Eugênia Milet, pesquisamos a

cidade de Salvador e nesse processo de pesquisa chegamos ao primeiro Candomblé

de Keto da Bahia e a sua primeira Mãe de Santo Iyá Nassô, o que nos levou a refletir

sobre a formação da sociedade brasileira através das matrizes estéticas culturais e

sobre a importância do teatro na educação, na formação do educando como cidadão

crítico e participante ativo da sociedade a qual ele pertence.

Neste trabalho apresentamos uma proposta de arte-educação voltada para o

exercício da criatividade e cidadania, através do conhecimento e valorização da história

e expressão do povo negro, no contexto da construção de um currículo aberto às

manifestações culturais da cidade. Sendo assim tivemos como aspiração, inspirar e

revelar processos educacionais sensíveis e libertários de transformação social,

referendando lutas e conquistas, dentre as quais, a lei 10.639/2003, que obriga o

ensino da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de ensino

fundamental e médio.

A pesquisa sobre a cidade se deu através de um processo interdisciplinar e trans-

disciplinar proporcionado pelo novo modelo do currículo implantado na Escola de

Teatro, o que possibilitou o diálogo entre diversas áreas do conhecimento dentro e fora

da sala de aula. Foi realizada também uma pesquisa de auto-conhecimento – na

descoberta do Quem Sou Eu – e de conhecimento coletivo através do diálogo dos

alunos/atores uns com os outros e com a cidade. Uma experiência artística-política e

Page 12: Nos na cidade

pedagógica, na qual o exercício da criatividade e de construção coletiva pôde fomentar

ricos processos de aprendizagem ligados à história do Brasil, da África, de Salvador e

dos Orixás.

Este trabalho é um estudo de caráter histórico, descritivo, analítico e poético. A

poesia é trazida nas falas dos componentes do grupo que foram entrevistados e nas

citações de Paulo Freire sobre educação e as Cidades Educativas que permearam este

estudo sobre esse processo de formação individual e coletiva, através da prática

educativa de ensino/aprendizagem com o teatro. Queremos aqui destacar o processo

criativo “experenciado” e a “cidade educativa” que foi emergindo na construção desta

cidadania, e também na construção do espetáculo que espelhava uma Salvador feita

com lutas e expressões dos povos negros, com a sua espiritualidade. Aqui,

pretendemos refazer as dobraduras pelas quais fomos desvelando os cenários e as

personagens ocultadas da cidade, inclusive Nós na Cidade, alunos, aprendizes de um

novo tempo, Sujeitos criativos de nossa história.

Este trabalho de conclusão de curso traz à tona meu processo pessoal de auto-

conhecimento, meu crescimento, minha consciência de pertencimento étnico cultural e

meu envolvimento e responsabilidade com a cidade e seus personagens. Está repleto

de gratidão e lembranças. Por exemplo, da professora Edenice Santana de Jesus

coordenadora pedagógica do Centro Educacional Edgard Santos, e também ex-aluna

da escola, - que esteve em nossa sala pedindo ajuda para sua luta diária de tentar

envolver a comunidade, os professores e os alunos na revitalização de sua Escola – no

início da sua palestra disse: “Sempre que eu vou começar qualquer atividade, peço

licença aos meus ancestrais”.

Com esta gratidão, também peço licença a todos os nossos ancestrais e aos

Orixás para começar essa saudosa narrativa.

Agô!

Page 13: Nos na cidade

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – A pesquisa do figurino..................................................................................36

Figura 02 – O grupo e a professora no Pelourinho.........................................................43

Figura 03 – A Bahia Negra nos nossos traços e gestos.................................................45

Figura 04 – Francisco André em seu momento: Quem Sou Eu?....................................46

Figura 05 – Apresentação na frente de Câmara de Vereadores.....................................47

Figura 06 – Cantando Reconvexo...................................................................................49

Figura 07 – Ensaio na sala de aula.................................................................................49

Figura 08 – Arrumação da cena......................................................................................50

Figura 09 – Arrumação da cena......................................................................................51

Figura 10 – Torre de Babel..............................................................................................52

Figura 11 – Rubenval Meneses – o locutor.....................................................................54

Figura 12 – Cidade em festa em ritmo de xaxado...........................................................56

Figura 13 – Procissão de Doentes..................................................................................57

Figura 14 – Momento ônibus – processo em sala...........................................................58

Figura 15 – Vendedor e cliente – processo em sala.......................................................60

Figura 16 – Bira Azevedo – representando o padre da procissão..................................63

Figura 17 – Eliana Andrade em seu momento: Quem Sou Eu?.....................................63

Figura 18 – Apresentação em frente a Câmara de Vereadores......................................67

Figura 19 – Apresentação em frente a Câmara..............................................................69

Figura 20 – Mãe Tatá e outros membros do Terreiro assistindo ao espetáculo.............72

Figura 21 – Recebendo os aplausos do público.............................................................73

Figura 22 – O grupo na sala de aula...............................................................................75

Figura 23 – Momento de descontração...........................................................................86

Page 14: Nos na cidade

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................13

2 EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE: PROCESSOS EM RESULTADOS...............16

2.1 A CHEGADA...........................................................................................................17

2.2 A DESCOBERTA DO QUEM SOU EU...................................................................18

2.3 A FORMAÇÃO DO GRUPO...................................................................................27

2.4 NOSSA PRODUÇÃO..............................................................................................32

3 RESULTADOS EM PROCESSOS.........................................................................40

3.1 NÓS NA CIDADE....................................................................................................41

3.1.1 Sobre a encenação...............................................................................................41

3.1.2 O Texto..................................................................................................................47

3.2 MOBILIZAÇÃO SOCIAL, UMA QUESTÃO DE ATITUDE......................................64

3.3 UM OUTRO OLHAR SOBRE SALVADOR.............................................................76

4 PERSPECTIVAS PARA A CIDADE.......................................................................86

4.1 EDUCAÇÃO ÉTNICO- RACIAL, A LEI 10.639/2003..............................................87

4.2 REPERCUSSÕES NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA.............................96

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................99

REFERÊNCIAS....................................................................................................101

ANEXOS...............................................................................................................104

Page 15: Nos na cidade

13

1 INTRODUÇÃO

Axé é para os nagôs a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação

e a expansão da vida, tornando tudo mais profundo mágico e forte. Nesta força nos

encontramos com nossa ancestralidade - com o povo africano - encontramos a energia

que nos move criativamente e fomos “desocultar” uma realidade existente, sentida e

vivida no passado, pensando criticamente o presente através do teatro, que “ainda tem

a fama de ser a casa do saber, um guardião do patrimônio artístico de várias culturas”

(FARIAS, 2002), inclusive da nossa, que estava sendo ocultada, portanto, pensando o

teatro como instrumento de educação inclusive política, sem deixar de viver o intenso

prazer estético e emocional proporcionado por ele, procuramos dá um novo sentido a

nossa educação.

Com o Axé, perpassando nossos inconscientes coletivos criamos um espetáculo

chamado Nós na Cidade – engendrando a criação e expansão da vida – e junto com

outros atores sociais, começou com uma luta da qual decidimos fazer parte. Esta luta

se travava para a mudança de nome de um centro cultural localizado na antiga Igreja

da Barroquinha, “berço dos guerreiros nagôs”, que fundaram o primeiro Candomblé de

Keto da Bahia. Neste passo a passo de investigação sobre essa história, fomos

instigados a nos conhecer melhor e mais ainda a cidade, seus lugares, suas histórias e

seus protagonistas. E logo chegamos a uma grande mulher, Iyá Nassô, personagem

importante na construção da cidade, a partir da criação do Terreiro da Casa Branca que

se desdobra em vários outros terreiros de Candomblé nagô, na nossa cidade negra de

São Salvador.

Com a construção coletiva do espetáculo Nós na Cidade, nos reconhecemos

como cidadãos críticos pertencentes a um grupo social, entendemos nossas múltiplas

identidades e nos reconhecemos como negros e brasileiros. Entendemos o processo de

formação de nossa sociedade baiana, reconhecendo as marcas deixadas pelos nossos

ancestrais - os negros trazidos do Continente Africano - nos contornos da cidade.

Page 16: Nos na cidade

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Com um processo de auto-conhecimento e integração social – uma mescla entre

singularidades individuais e unidade social - vivenciamos questões sociais e poéticas,

nesta experiência artístico-política e pedagógica, na qual o exercício da criatividade

pode fomentar processos de aprendizagem ligados à história do Brasil, da África e de

Salvador.

Éramos 25 alunos muito diferentes, de outras cidades do estado da Bahia e de

outros estados do Brasil. Alguns já trabalhavam com teatro, davam aulas, eram atores,

outros, estavam apenas começando a sua jornada na educação e no teatro. A

construção daquele currículo levava em consideração cada um de nós, inclusive os

professores dos outros componentes, pois a filosofia da proposta curricular em módulo,

adotada justamente naquele ano na Escola de Teatro, era baseada na

interdisciplinaridade, que pressupõe a participação e a integração.

Das improvisações e jogos foram nascendo o texto, as imagens e as músicas.

Falamos de nós dentro desta cidade de Salvador, de seus doentes e loucos, de seus

monumentos e encantos. Tivemos aulas e fizemos apresentações do nosso processo

na Barroquinha, em praças, em escolas como no Centro Educacional Edgar Santos, na

Casa Branca, no Pelourinho, na Câmara de Vereadores e na Escola de Teatro, sempre

acompanhados do grupo CRIAPoesia um grupo de arte e educação do Centro de

Referencia Integral do Adolescente1, que tem como coordenadora nossa professora

Maria Eugênia Milet.

Com a obrigação do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino

fundamental e médio (públicas e particulares), pela Lei 10.639/2003, o nosso estudo

pode contribuir com formas de inserir a história da África e afro-brasileira no currículo,

sem preconceito, de uma forma lúdica e séria, possibilitando ao estudante uma visão

completa e crítica da formação da sociedade brasileira e das três matrizes que a

compõem.

1 O CRIA – Centro de Referencia Integral de Adolescentes foi estruturado como ONG em fevereiro de 1994 com o projeto Educação- Um Exercício de Cidadania, que visava a implantação de educação sexual e de outras questões ligadas a cidadania, nos currículos escolares da 5ª a 8ª séries das escolas da rede municipal, bem como a implementação de ações voltadas para a saúde dos adolescentes a partir dos centros de saúde e da formação de educadores e adolescentes multiplicadores. Os temas trabalhados, ligados a formação integral do adolescente são prioritários no desenvolvimento das ações e projetos do CRIA visando a dimensão de cidadania: educação, sexualidade e etnia.

Page 17: Nos na cidade

15

Acreditamos que este trabalho possa contribuir para a discussão sobre a

qualificação da escola a partir de uma compreensão mais significativa de valores étnico-

culturais dos quais todos os brasileiros fazem parte. Corroborando com os esforços de

muitos educadores em desenvolver a consciência crítica e os valores civilizatórios da

população para que os preconceitos não prevaleçam, acirrando assim, o racismo e a

violência contra o povo negro. Nossa intenção, com este trabalho, é destacar as

experiências significativas de educadores e educandos com referências palpáveis de

valorização de suas origens para ampliar sua auto-estima.

Neste sentido, afirmamos e confirmamos a importância da arte dentro da sala de

aula, como também, os conceitos sobre teatro de improvisação de Viola Spolin; a

metodologia de educação-através-da-arte com Dourado e Milet e o pensamento de

Paulo Freire, através dos livros A importância do ato de ler, Pedagogia do Oprimido

Pedagogia da Autonomia e Política e Educação.

Pensamos como Paulo Freire, em construir uma Cidade Educativa, que considere

o Axé e toda nossa ancestralidade, assim como diz o próprio autor uma “Cidade

Educativa”:

As Cidades Educativas devem ensinar aos seus filhos e aos filhos das outras cidades que as visitam que não precisamos esconder a nossa condição de judeus, de árabes, (...) de brasileiros, de africanos, de latino-americanos de origem hispânica, de indígenas não importa de onde, de negros, de louros, de homossexuais, de crentes, de ateus, de progressistas e conservadores para gozar de respeito e de atenção (2001, p. 25).

Uma “Cidade Educativa” que nos possibilite respeitar os que existiram antes e os

que virão, pensando uma educação mais justa, que contemple a todos independente de

sua cor, classe, sexo ou religião, tornando o mundo “menos feio”, deixando nas ruas,

nas praças, “as marcas do nosso tempo”, conservando também “os selos de certas

épocas”, capazes de mostrar, quem fomos, quem somos e quem podemos ser,

pensando o passado para construir nosso futuro.

Page 18: Nos na cidade

16

2 EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE: PROCESSOS EM RESULTADOS

Sou pequena

Sou menina

Desejosa de crescer

Quando grande

Menina

Vou querer voltar a ser

Para andar livre pelos sonhos

Inventando

novas

formas

de viver.

Valdíria Souza

Page 19: Nos na cidade

17

2.1 A CHEGADA

O curso de Licenciatura em Teatro da UFBA, no ano de 2004, começou com uma

novidade: o currículo da escola adotou o sistema de módulos que consiste em sete

módulos interdisciplinares obrigatórios, seqüenciais, com componentes curriculares

(antigas disciplinas) bem definidos e integrados com ênfase na prática. Cada módulo é

pré-requisito para o seguinte e é composto de 25 horas semanais, em um único turno.

No caso do curso de licenciatura, é desenvolvido de segunda à sexta-feira, das 13 às

18 horas.

O Componente Curricular, Improvisação e Jogos Dramáticos, carro chefe do 1º

semestre é, segundo a minha compreensão, norteador de toda filosofia do novo

sistema, pois consiste em abordar teoria e prática das diversas técnicas de

improvisação e jogos dramáticos utilizados em teatro, visando tanto a livre criação de

textos e personagens, quanto à formação de um grupo que irá participar ativamente da

construção de seu processo de ensino-aprendizagem, e, por conseguinte, no

aperfeiçoamento da proposta curricular do Curso da Licenciatura.

Este componente era coordenado pela professora Maria Eugênia Milet, que

também coordenava o módulo, e nesta função tinha a responsabilidade de articular os

componentes, provocando a integração entre os professores para a construção de uma

proposta interdisciplinar e para avaliação dos alunos.

A estruturação dos módulos do curso tem um caráter temático e progressivo

contendo definições genéricas para garantir a flexibilidade do processo. O módulo I, por

exemplo, tem o tema Eu e a Cidade, responsável pela primeira experiência criativa do

grupo de alunos calouros. No nosso caso, a experiência resultou no espetáculo Nós na

Cidade, que foi apresentado e aprimorado durante os módulos II e III. Através deste

tema as disciplinas práticas e teóricas se integravam para construção deste espetáculo.

Vinte e seis alunos tiveram a oportunidade de serem os primeiros a participarem

do novo sistema, ingressando na universidade através do vestibular, e eu fui uma das

contempladas a participar da primeira turma de licenciatura em teatro que inaugurava

Page 20: Nos na cidade

18

este novo currículo, que integrava os nossos saberes com os nossos contextos, uma

busca de referenciais culturais e auto-conhecimento através dos jogos, das

improvisações, dos trabalhos teóricos e das rodas de conversa.

2.2 A DESCOBERTA DO QUEM SOU EU

O procedimento Quem Sou Eu-Quem Somos Nós? foi criado pela professora

Maria Eugênia Milet e é desenvolvido no teatro do CRIA. Está relatado em sua

Dissertação de Mestrado: Uma Tribo Mais de Mil - O Teatro do Cria e foi utilizado nas

aulas do curso de licenciatura, como parte integrante do componente curricular

Improvisação e Jogos Dramáticos. Segundo a professora Maria Eugênia, este

procedimento propõe aos sujeitos do processo, a busca do auto-conhecimento, e de

exercício poético-corporal e musical para que se instaure um ambiente de

desnudamento e o jogo se estabeleça, no mergulho de cada um em sua história (e na

imaginação e espontaneidade), bem como na construção de uma composição coletiva

integrando nomes, idéias, imagens, e memórias. “Através de um percurso íntimo e

coletivo que vai delineando uma estética e uma ética – uma pedagogia gerada na

sensibilidade e no exercício da participação” (MILET, 2005 p. 73).

O sonho comum encontra-se no sentir, no pensar e no fazer de um teatro com dança, música e poesia – arte que se cria na maneira de educar, para ampliar a consciência do pertencimento ao País e ao mundo, a medida que enaltece a presença das pessoas, a partir dos processos de auto-conhecimento e de construção criativa- interativa, que se processa com o corpo todo: mente, sensação, carne, emoção, memória e intuição (MILET, 2005, p. 74).

Além deste procedimento a metodologia integrava um processo de educação

estética, baseada em jogos infantis e teatrais, referenciava a prática em paralelo a

experimentação de um repertório diversificado de técnicas de improvisação. Esta

proposta estava ancorada, tanto no sistema de jogos teatrais concebido por Viola

Spolin, através de seu livro Improvisação para o Teatro (1992), quanto na proposta por

Page 21: Nos na cidade

19

Dourado e Milet, apresentada no Manual de Criatividades (1998), onde são

apresentadas considerações práticas, filosóficas, metodológicas e 257 atividades para

auxiliar professores de arte-educação.

É preciso se descobrir, se conhecer, ter consciência das formas que definem esse alguém. Esse alguém... Quem? Sou eu? Quem Sou eu? Vim das cavernas, vou para naves e estou nessa cidade de urbanóides.

Camila Bonifácio – integrante do grupo nas improvisações “Quem sou eu”.

A pesquisa do Quem sou eu - Quem Somos nós? Foi muito importante para a

turma. Íamos descobrindo o nosso eu poético em contato direto uns com os outros - um

constante diálogo. O eu era construído e desvelado, e uma partitura ia sendo composta

e ao mesmo tempo que nos mostrávamos nos jogos, dialogávamos com o eu do outro,

em constante criação e transformação. Trazemos então Paulo Freire para ressaltar a

importância do diálogo no processo de transformação do Eu, para a transformação

também do mundo. O autor diz:

O eu dialógico, sabe que é exatamente o tu que o constitui (...) esse tu que o constitui, se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu. (...) sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo para a sua transformação (1987, p. 165-166).

O diálogo que se instaurava no jogo era mais amplo do que o que se dava

simplesmente na conversa, como troca de idéias. Apesar da metodologia também

valorizar as rodas de conversa, ao final de cada aula, era proposta uma “reflexão-ação”,

assim como propõe Paulo Freire, o diálogo “como encontro, onde há homens que em

comunhão buscam saber mais” (1987 p. 80-81), aprendendo a importância de ouvir e

confiar no outro, sem querer impor a sua palavra e entendendo aquele encontro como

importante para a busca de auto-conhecimento e amadurecimento pessoal e coletivo.

Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse esse clima de confiança entre sujeitos. (1987, p. 81).

Page 22: Nos na cidade

20

Enquanto aprendíamos a fazer teatro, também estávamos aprendendo a dialogar.

Com muita escuta e com muita indagação, tanto com a professora, quanto para com

nós mesmos – alunos sujeitos daquele processo – desenvolvemos uma espécie de

crítica ao nosso papel de ser e estar no mundo, em nossa cidade, nos retratando,

enquanto jovens cidadãos. Com esse objetivo de trocas de nossos saberes estávamos

aprendendo novas maneiras de ensinar assim como ensina Paulo Freire:

(...) o educador já não é o que apenas educa, mas o que enquanto educa é

educado, em diálogo com o educando que ao ser educado, também educa.

Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos (...) Já

agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo:

os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (1987, p. 68-

69).

O tema do Módulo era Eu e a Cidade, então toda esta criação recuperava

fortemente, também, a dimensão do lugar, o pertencimento a nossa cidade natal. Como

nós alunos (nesta etapa já pertencendo a um grupo!) tínhamos origens diferentes, as

cidades, lugares, eram acolhidos e integrados às cenas. E Salvador nos esperava nas

ruas e nos acolhia também, ali dentro da sala da Universidade. Ali, a cidade se

expressava em nós, cidade expandida nos vários ecos de cada um, era o que

estávamos vivendo, como podemos ver neste depoimento:

Oxente quem sou Eu? Vou carregar esta pergunta sempre comigo. Me perguntei isto no primeiro semestre e a cada vez que me perguntava tentava me responder. Hoje continuo me perguntando e sempre descobrindo novas respostas, novos Biras que é resultado de todos os Biras que fui e que ainda sou, porque o sou. A grande contribuição na minha vida neste processo da busca de identidade é o fato de que agora eu entro na sala de aula, ou numa reunião de educadores ou num congresso (...) e eu sei o que eu quero, meus anseios, meus gostos, minhas escolhas. Ou pelo menos tenho pistas, perspectivas pra não ficar parecendo que estou dizendo que sou um ser decidido e sem conflitos internos. (...)

Tivemos a chance de nos conhecermos mais. Nunca vou esquecer que Valdíria é de Ilhéus e que Santa Inês é a cidade de Gessé, por exemplo. (Bira Azevedo – Integrante do grupo)

Pensar a cidade era pensar a estrutura política, geográfica, econômica e

educacional e como estávamos inseridos nela. Assim, nas rodas de conversa, a idéia

Page 23: Nos na cidade

21

de cada integrante era trazida, e a cena se ampliava, na dimensão de nossos gestos,

palavras e nossa cultura, um exercício de criatividade impulsionado pelas

improvisações sobre temas ligados à realidade, improvisações de músicas e poesias já

existentes ou criadas pelo grupo.

Um teatro mais amoroso e denso com meninos de Salvador – que chamariam é claro, muitos outros para entrarem na roda de brincar de mudar o mundo: de pensar, ser e estar na cidade, fazendo arte, e por que não Educação? (MILET, 2002, p. 24)

Cada aula era única, com começo, meio e fim, com 04 etapas seqüenciadas:

aquecimento; relaxamento-concentração; elaboração e avaliação, sempre levando em

consideração as nossas necessidades e expectativas (DOURADO & MILET, 1998, p.

31).

Inicialmente desenvolvemos vários jogos tendo como objetivo alcançar uma

fluência expressiva e minimizar as barreiras individuais e grupais. Estávamos na fase

liberação, 1ª fase do método de trabalho desenvolvido no Manual de Criatividades. A

fase liberação “contém atividades que caracterizam principalmente, por solicitar uma

grande participação física: mobilidade, agilidade, reflexos, coordenação, desinibição”

(DOURADO & MILET 1998, p. 17).

O Jogo é uma forma natural de trabalho de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessária para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda estimulação que o jogo tem para oferecer. (SPOLIM,1992, p. 4)

Sem nenhuma preocupação com resultados estéticos cênicos pré-concebidos ou

artisticamente planejados e ensaiados a primeira finalidade a ser alcançada é

crescimento pessoal dos jogadores através do domínio e uso da linguagem teatral.

Trabalhar com improvisação pressupõe a idéia de que todas as pessoas são criativas,

podíamos exercitar nossa criatividade e contribuir com o processo que estava

nascendo, sem medo, sem vergonha.

Qualquer juízo de valor como feio/bonito, bom/mal, certo/errado, mesmo que não seja colocado como correção avaliação, pode projetar modelos de conduta,

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22

aos quais o aluno vai tentar adaptar-se, fugindo assim à expressão genuína do seu verdadeiro universo, o que constituiria justamente o oposto dos principais objetivos da Educação através da Arte: o auto-conhecimeto e a livre expressão do indivíduo. (DOURADO & MILET, 1998, p.19).

Os jogos e brincadeiras possibilitaram a criação individual e grupal de movimentos

e sons, contato entre os componentes do grupo buscando uma cumplicidade e

segurança de um para com o outro. O objetivo era claro, entrar em contato com outro,

podendo observar e perceber as diferenças de cada um, respeitando tempo e

presença, descobrindo que é essencial trabalhar em grupo, pois completamos o nosso

trabalho com o do colega para ter o resultado de um todo.

Buscamos uma consciência corporal capaz de superar limites físicos, com

movimentos repetitivos seguindo uma seqüência elaborada nas improvisações grupal e

individual. Nessas improvisações cada um criou um texto para dizer quem sou eu, de

onde vim e para onde vou e esse texto era dito junto com as partituras corporais. Este

foi o ponto de partida para construirmos um ritual, que só foi possível porque houve um

respeito do momento de cada um, em suas improvisações de sons e movimentos, de

sua experiência criativa. Partimos então para responder criativamente a pergunta que

não queria calar: Quem sou eu?

O gesto nasceu da loucura e do movimento repetitivo e quente A loucura, a dança e a luta imperam O corpo precisa de movimento. A consciência é esquecida E corpo se movimenta loucamente Loucura, loucura, Ilhéus, cacau, loucura, Ilhéus... Valdíria Souza

A loucura descrita no verso acima era o espelho daquele novo momento que

estávamos vivendo. Expondo-nos uns aos outros, sem constrangimento, fazendo sons

e movimentos aparentemente desconexos. Com o texto que estava nascendo

intuitivamente, desenhávamos no espaço uma metáfora do nosso eu, revelando-o para

os outros, no texto-palavra, e no texto mostrado no corpo-físico. Estávamos livres para

jogar, e podíamos sentir essa liberdade proporcionada pelo momento. Segundo Spolin,

“a liberdade pessoal nos ajuda a ter autoconsciência (auto- identidade) e auto-

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23

expressão” e essa sede de auto-identidade enquanto básica para todos nós, “é também

necessária para expressão teatral”. (1992, p. 6).

O jogo é psicologicamente diferente em grau, mas não em categoria, da atuação dramática. A capacidade de criar uma situação imaginativamente e de fazer um papel, é uma experiência maravilhosa, é como uma espécie de descanso do cotidiano que damos ao nosso eu, ou as férias da rotina de todo dia. Observamos que essa liberdade psicológica cria uma condição, na qual tensão e conflito são dissolvidos e as potencialidades são liberadas no esforço espontâneo de satisfazer as demandas da situação. BOYD (apud SPOLIN,1992, p. 5)

A experiência em grupo, centrada nos jogos e improvisações, enfatizava o

exercício da criatividade do ator, possibilitando que atuássemos com o nosso corpo

todo.

(...) um corpo, um coletivo disposto a se envolver em processo contínuo de criação e educação(...) Um corpo com propósito comum de trazer o verbo para ação de (i) ver(s) cidade, um ato poético de ser, sendo parte integrante da multiculturalidade da cidade e do Brasil, para promover novos olhares e assim fomentar processos de mudanças. (MILET, 2002, p. 52)

Transformando em energia nossa vontade para o ato do jogo éramos desafiados a

estar sempre atentos a nós mesmos, e aos demais. Concentrados, e deixando o

racional de lado, nos permitíamos e, assim, as energias circulavam, preenchendo todos

os espaços, liberando em nós toda nossa espontaneidade, causando uma grande

explosão dos nossos eus.

Através da espontaneidade somos re-formamos em nós mesmos. A espontaneidade cria uma explosão que por um momento nos liberta de quadros de referência estáticos, da memória sufocada por velhos fatos e informações, de teorias não digeridas e técnicas que são na realidade descobertas de outros. A espontaneidade é um momento de liberdade pessoal quando estamos frente a frente com a realidade e a vemos, a exploramos e agimos em conformidade com ela. Nessa realidade as nossas mínimas partes funcionam como um todo orgânico. É o momento de descoberta, de experiência de expressão criativa. (SPOLIM, 1992, p. 4)

Para gerar nossa expressão criativa/coletiva, começávamos a desenhar com

nossas improvisações, relações sensíveis de contatos, quebrando as barreiras que

ainda existiam entre nós e construindo novas formas de dizer e estar no mundo e de

Page 26: Nos na cidade

24

construir nosso conhecimento, se apropriando da palavra do outro, observando como o

outro tomava emprestada a nossa palavra, dando nova forma, com novos movimentos,

com novas formas de arquitetar as palavras e os versos a estrutura poética que estava

nascendo.

Reconhecer-me no outro na tentativa de me auto-conhecer. Vim de Santa Inês...Vieram da África e estão no céu dessa cidade, no chão dessa cidade, no povo dessa cidade. Gessé Araújo – Integrante do grupo

Começamos a segunda fase do processo, e esta correspondia à segunda fase

descrita no Manual de Criatividades - a fase de sensibilização “que tem como objetivo

desenvolver a percepção sensorial do aluno e faze-lo vivenciar diversas formas de

contato com o seu corpo, com o corpo do outro e o ambiente” (DOURADO & MILET

1998, p. 17).

Na festa intensa do jogo da criação, na busca do nosso eu poético - uma busca

coletiva de vários eus - nos encontramos na infância, nas brincadeiras e jogos que nos

possibilitavam recuperar e transmutar a nossa história de vida: com lembranças e

emoções do passado, valorizávamos o momento presente – o jogo, a cena, e

projetávamos o futuro. Estávamos nos re-descobrindo, nos re-conhecendo mutuamente

e principalmente re-descobrindo o prazer de ser criança, dispostos a jogar e aprender.

Como diz o ator Rubens Corrêa, “essa é a lei e a sabedoria dos meninos, sou útil

ainda brincando” (1994). E esse sentido da brincadeira como algo valoroso para o

nosso trabalho como ator e professor de teatro nos caminhos que estávamos

percorrendo era como uma volta à infância, um trabalho sensível de memória corporal.

Que apesar das responsabilidades da vida adulta ter chegado até nós, ainda

lembrávamos das brincadeiras no quintal da casa, das rodas de verso e das nossas

mães ou avôs cantando cantigas para dormir.

Ser criança nesse sentido era relembrar a espontaneidade e a liberdade do

brincar, a inocência e a sinceridade ao criticar a realidade, subvertendo a ordem

estabelecida, mostrando uma outra possibilidade de apreensão do mundo, através da

capacidade de sonhar e de ter esperança. Trazíamos para a cena a nossa criança

Page 27: Nos na cidade

25

interna, infância-memória e presença, através dos meninos e meninas que fomos e que

ainda podíamos ser, não só com os jogos e brincadeiras lúdicas, mas com a criança

que preservamos dentro de nós, que podíamos libertar no teatro através dos

personagens que nos faziam reviver nossa criança interna. Como diz a professora Lydia

Hortélio “e tenhamos as Crianças como nossas mestras, elas que são tão próximas à

Vida e artífices naturais do futuro” (1998)2.

Tanto para o trabalho do ator, como para a prática do arte-educador (que

estávamos buscando conhecer), o contato com o universo infantil, trazido pela

professora Milet, através dos jogos, brincadeiras, e através dos textos, pudemos

perceber o que diz Rubens Corrêa:

(...) A criança é uma fonte incrível de informação artística, e a criança que nós fomos recuperada, através do nosso lado lúdico, tão atrofiado pelo correr dos anos – pode nos servir de guia, mas um guia muito especial – que caminha alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano, intuitivamente. (CORRÊA, 1994)

A professora Lydia Hortélio propõe a infância como plano sobre qual a educação e

a arte devem se voltar. Nós futuros arte- educadores, estávamos recuperando a

espontaneidade e a inocência perdida através dos anos e “buscamos ler no verdadeiro

livro: a criança ela mesma, em seu movimento próprio – o brinquedo o brincar, onde ela

se mostra em sua graça e poder, em sua inteireza e espontaneidade”(1998)3.

É através da arte que podemos ser o que quisermos, deixando fluir na criação os

sentidos que os textos, poemas, músicas, danças e brincadeiras expressam em nosso

corpo, podendo ser criança, “ser humano e ser divino” assim como propõe Fernando

Pessoa no poema O Guardador de Rebanhos, por Alberto Caiero, “despindo o ser” e

“desconstruindo” as verdades pregadas pela sociedade.

“(...) E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre comigo que sou poeta sempre E que o meu mínimo olhar me enche de sensação E o mais pequeno som, seja do que for Parece falar comigo.

2 Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Análises e Sugestões. 20 de março de 1998. 3 idem.

Page 28: Nos na cidade

26

A criança nova que habita onde eu vivo Dá-me uma mão a mim E a outra a tudo que existe (...) E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de noite E brinca com os meus sonhos. (...) Sou um guardador de rebanhos O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. (...) Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz”.

O procedimento quem sou eu pautado nesta busca de auto-conhecimento e de

construção de conhecimentos da criação coletiva, estabeleceu uma nova forma de ver

e pensar a educação através dos seus próprios fazedores, os alunos atores que

desenvolviam uma maneira sensível de falar com o corpo, com os sentimentos, os

pensamentos e emoções. Íamos assim descobrindo novas formas de educação. Uma

Educação através da arte, que leva em consideração o conhecimento trazido pelo aluno

e não o trata como mero receptor de informação, assim como destaca Francisco um

dos integrantes do grupo, nunca ter imaginado que suas vivências iriam ser valorizadas

como conhecimento.

(...) em nenhum momento previa que as minhas vivências particulares e peculiares iriam ser valorizadas como “conhecimento de mundo” e científico. Essa grande e positiva surpresa ajudou bastante a desenvolver a minha visão afetiva e poética da arte/educação. E principalmente valorizou sobre medida a minha auto-estima de pessoa do interior, negro, pobre, egresso de um sistema de ensino público com inúmeras deficiências. Ter valorizado a nossa identidade nos primeiros contatos com a universidade contribuiu significativamente para a formação de um novo perfil de professor de teatro, mais sensível ao contexto social e valorizando a história de vida de nossos futuros alunos. (Francisco André Souza Lima)

Page 29: Nos na cidade

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A poeta Adélia Prado atribuiu uma importância essencial à arte na educação, pois

a “arte sendo pura expressão” é capaz de trabalhar sentimentos, emoções, criatividade,

essência, alma, fé, sensibilidade e poesia:

A escola, no seu conjunto padece de uma defasagem acadêmica, pior do que isso de uma decadência nas áreas das humanidades. (...) Para onde foi a poesia? A literatura? (...) Tudo isso tem a ver com a minha felicidade pessoal que foi colocada em segundo plano nas escolas, por causa da mentalidade utilitária da educação. (...) A arte na escola é que vai dá sentido. A mudança deve partir de quem está na escola. O professor (...). (2002/2003)

A escola que vivencia a arte no seu dia a dia torna-se capaz também de construir

indivíduos mais felizes, mais humanos e com a auto-estima elevada. E essa mudança

tem que partir de quem está na sala de aula, nós professores.

2.3 A FORMAÇÃO DO GRUPO

O teatro fala por si e a educação celebra a arte do

encontro, fazendo-se na interação com as pessoas.

Maria Eugênia Milet

Todos os dias, de segunda à sexta-feira, das 13 as 18 horas, estávamos juntos na

faculdade freqüentando as aulas do módulo I. Entendíamos que como alunos, tínhamos

o compromisso de estarmos juntos. Alguns estavam se relacionando afetivamente

porque encontraram afinidades, outros estavam se relacionando intelectualmente para

realizarem trabalhos acadêmicos.

Começamos a ser sensibilizados desde o início pela proposta coletiva, baseada

no teatro improvisacional - sistema de jogos teatrais - um método de

ensino/aprendizagem que só poderia acontecer com uma interação de grupo. Essa

relação grupal surgia naturalmente, pois a metodologia exige dos participantes um

Page 30: Nos na cidade

28

amplo relacionamento, com total participação e contribuição pessoal, trabalhando juntos

para completar o projeto.

Assim como o jogo, o teatro é uma atividade artística que exige a participação de

muitas pessoas, e o teatro improvisacional que estávamos trabalhando requeria “um

relacionamento de grupo muito intenso, pois é a partir do acordo e da atuação em

grupo que emerge o material para cenas e peças” (SPOLIM,1992, p. 9).

Foi através desses acordos, que começamos a imprimir em nosso relacionamento

o respeito, a compreensão as diferenças, a atitude sincera ao criticar na avaliação, a

participação de algum colega que chegou atrasado na sala e não ter participado da

atividade desde o início, ou de outros que faltaram e não realizaram a cena coletiva

ensaiada anteriormente com todos os presentes.

Através do respeito entendíamos os problemas pessoais que alguns tinham e

faltavam ou chegavam tarde na aula, e nesse processo de respeito mútuo, todos foram

entendendo que apesar dos problemas, para essa ação de ensino/aprendizagem

acontecer, dependia da participação real de todos. Tanto a participação física, quanto a

intelectual. Mente aberta para jogar e responder os problemas que estavam sendo

propostos para realizar a cena.

Com a dominação de cada problema caminhamos para uma compreensão mais ampla, pois uma vez solucionado o problema, ele se dissolve como algodão doce. Quando já dominamos o engatinhar, nos pomos em pé, e quando nos levantamos começamos a andar. Esse aparecimento e dissolvição infinitos de fenômenos desenvolve uma visão (percepção) cada vez maior com cada novo conjunto de circunstâncias. (SPOLIM, 1992, p. 10).

Os problemas pessoais eram colocados nas improvisações e as diferenças entre

cada componente eram trazidas como símbolo de respeito.

O processo de reconhecimento de grupo trabalhado nas improvisações do Quem

Sou Eu, foi gerando uma afetividade mútua, na troca de olhares, no tocar as mãos nos

círculos, nos jogos de confiança e principalmente no processo de revelar-se para o

outro, nos mostrando que apesar das diferenças podíamos acrescentar nossos saberes

para um objetivo comum e crescimento de todos. Para comprovar esse

amadurecimento de grupo, importante para nosso trabalho como arte-educadores

Page 31: Nos na cidade

29

trazemos os depoimentos dos integrantes do grupo que destacam a importância do

processo não só para a criação do espetáculo, mas também na construção de um novo

olhar sobre a educação, gerando na turma um reconhecimento de grupo. E a identidade

do educador que somos hoje também é pautada nesse reconhecimento.

Como artista e arte-educador a busca pela afirmação de uma identidade de grupo e individual foi de extrema importância não apenas para minha formação acadêmica, como também pra construção de um novo olhar sobre a educação superior.(...) Esse processo criativo, portanto, foi importante não só para a criação do espetáculo “Nós da cidade”, mas principalmente porque gerou na turma o reconhecimento de uma identidade de grupo. A partir desse momento nos tornamos solidários na busca pelo conhecimento, derrubando os limites entre o ser professor e ser aluno. (Francisco André Sousa Lima)

(...)A minha identidade enquanto professora de teatro, logo arte-educadora, só foi possível devido colaboração de todo o grupo. Paralelo a minha formação acadêmica, participei de outras formações profissionais, pessoais e espirituais que de maneira simples e bela, me ajudou a entender melhor a identidade grupal. Hoje mais do que nunca, preservo e incentivo, a necessidade de entendimento de grupo junto aos meus educandos.(...) Com esta metodologia foi possível perceber claramente o quanto nós, homens e mulheres precisamos nos educar para viver em grupo. (Camila Bonifácio) Quando começo um trabalho com uma turma nova ou quando quero aprofundar questões em grupos já formados, procuro criar e utilizar caminhos de criação e fortalecimento dos vínculos entre as pessoas. Aprendi a fazer, a conduzir este processo com o nosso grupo e a prática de Eugênia.(...)Havia respeito entre o grupo. Sabíamos das limitações uns dos outros, tivemos brigas, mas sabíamos nos tolerar, ficamos juntos ate o final(...). (Bira Azevedo)

As características pessoais acabaram servindo como elementos formadores da

força desse grupo. Com cada um apresentando características pessoais que sozinhas

poderiam não surtir efeito, mas unidas agregavam valores que ajudavam na coesão do

grupo, tornando-o forte, para entrar em cena.

(...) quando atua com o grupo, experienciando coisas junto, o aluno-ator se integra e se descobre dentro da atividade. Tanto as diferenças como as similaridades dentro do grupo são aceitas. Um grupo nunca deveria ser usado para induzir conformidade, mas como num jogo deveria ser elemento propulsor da ação (SPOLIM, 1992, p. 9).

O trabalho com os jogos teatrais e as brincadeiras, fortaleceu o grupo como célula

operativa de regras. Se unir para realizar a atividade proposta era importante para o

coletivo e com essa união, nos re-conhecíamos, conhecíamos nossas afinidades e

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30

diferenças e nos uníamos cada vez mais, traçando através da arte nossos caminhos

pessoais e profissionais, pensando a educação democrática que estávamos

vivenciando.

Não há crescimento democrático fora da tolerância que, significando, substantivamente, a convivência entre dessemelhantes, não lhes nega contudo o direto de brigar por seus sonhos. O importante é que a pura diferença não seja razão de ser decisiva, para que se rompa, ou nem se quer se inicie um diálogo através do qual pensares diversos, sonhos opostos, não possam concorrer para o crescimento dos diferentes, para o acrescentamento de saberes. Saberes do corpo inteiro dos dessemelhantes, saberes resultantes da aproximação metódica (...) Saberes de suas experiências feitos, saberes “molhados” de sentimentos, de emoção de medos, de desejos (FREIRE, 2001, p. 17).

Assim o grupo foi formado, porque pactuavam de um intenso processo criativo-

educativo, processos psico-sócio-culturais de formação de identidade. Esse processo

foi resultado de um convívio intenso, resultado de muitos conflitos, mas principalmente

de extrema confiança, condição básica que nos permitiu criarmos juntos, um processo

de educação estética e ética, capaz de gerar um espetáculo, que falava de nós e da

nossa Cidade, como diz Paulo Freire, estávamos vivendo a autenticidade exigida pela

prática de ensinar-aprender:

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política e ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade. (1996, p. 24)

A beleza apresentava-se na dimensão humana trazida em corpo e alma por nós

integrantes do grupo, através de uma relação sensível e afetuosa que estabelecemos

durante o processo criativo, como também em cena nas apresentações públicas. Daine

integrante do grupo afirma essa beleza intrínseca ao processo:

A beleza com que cada cena ia sendo tecida pessoa por pessoa e transformando-se em único e uníssono. Além de poder construir textos, poesias e partituras corporais mais verdadeiras e significativas (Daiane Gama).

O trabalho nos deixou próximos uns dos outros e atentos para nossa cidade.

Vivemos e compartilhamos nossa crise de identidade, nos ajudando a conhecer o

Page 33: Nos na cidade

31

nosso mundo e pensando profundamente o sentido: Quem Sou Eu? Gessé Araújo

destaca a visão mais politizada da educação provocada por esse processo, enquanto

Daiane Gama reflete a sua mudança, pautada na leitura do mundo antes da leitura da

palavra assim como Paulo Freire nos ensinou no livro A Importância do Ato de Ler

(1983) que nos acompanhou desde o início do nosso processo de formação.

Temos hoje, de uma maneira geral, uma visão mais ampliada de arte e do próprio teatro que nos propomos fazer. Isso é pra mim uma coisa bastante agregadora neste sentido de grupo. Outra coisa, temos uma visão muito mais politizada de nossa arte, de maneira mais geral, de nossas maneiras de intervir no mundo como educadores (Gessé Araújo). Uma transformação no meu jeito de ver a vida e as minhas possibilidades. Tudo se ampliou. Não só o meu campo de visão, como o meio de alcançar os meus objetivos. Agora faço escolhas baseadas nos anseios descobertos nesse processo. (...) Enquanto arte-educadora, utilizo com mais segurança essas descobertas e tento contagiar os alunos para que eles não só acreditem no que eu estou falando, como possa buscar suas próprias verdades e crenças. Assim como Paulo Freire acreditava que “a leitura do mundo antecedia a leitura da palavra” eu precisei ler esse mundo que estava bem a minha frente e isso só foi possível graças a esse processo de identificação individual e grupal. (Daiane Gama).

A professora nos guiava por caminhos muito intensos pela arte-educação, sempre

atenta, acompanhando o processo, promovendo mudança de rumos e nosso

crescimento educacional. Ela também fazia parte do grupo e exercia seu papel de

autoridade que lhe cabia, mas a todo tempo nos deixava livres para “alçar vôos”, nos

estimulando a pergunta e a reflexão crítica, sobre o nosso papel como futuro arte-

educador, autenticando o caráter formador do espaço pedagógico como confirma Paulo

Freire quando diz que esse espaço nasce do respeito mútuo entre professores e

alunos. “O clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes e

generosas, em que autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem

eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico” (1996, p. 92).

Page 34: Nos na cidade

32

2.4 A NOSSA PRODUÇÃO

A partir do momento que nos afirmamos enquanto grupo, criando coisas juntos

para serem levadas à cena, já começava a terceira fase do processo criativo, descrita

no Manual de Criatividades como Fase de Produção “que tem como objetivo propiciar

os meios para que o aluno elabore e organize a sua expressão individual e

coletivamente”. (DOURADO & MILET,1998, p. 18).

Essas fases descritas no Manual de Criatividades não são fixas. Estas demarcam

o processo, onde participamos de jogos e improvisações e atividades onde nos

expressamos artisticamente. De alguma forma, durante todo tempo estávamos

vivenciando liberação, sensibilização e produção. O Manual propõe estas divisões do

processo criativo, mas explica que cada fase “caracteriza-se pela predominância, de

uma dessas referências” (1998 p.18), determinada muitas vezes pelos exercícios e

jogos e seus objetivos, ou seja, objetivos que devem ser condizentes com a fase que

estamos trabalhando.

Nas aulas sempre repetíamos o que havíamos criado, mas chegava o momento

que os textos, poesias e músicas, ou textos que nos foram entregues durante as aulas,

fossem “costurados” de forma coerente com as nossas improvisações corporais e

textuais. Então estávamos sempre “indo e voltando”, aperfeiçoando nosso trabalho.

Incluindo nas cenas coisas novas, ou novas formas de dizer as mesmas coisas que

havíamos criado, novas alternativas de resolver o problema proposto.

A primeira apresentação aconteceu no dia 08 de julho de 2004 na sala de aula da

Escola de Teatro. Recebemos como convidados, alunos das Escolas de Dança, nossos

colegas e professores da Escola de Teatro, que falaram principalmente da idéia de

grupo artístico, possibilitada pelo novo currículo, que integrava o conhecimento prático

ao teórico, e possibilitava uma seqüência de atividades.

(...) Somente através do sequenciamento de atividades interdisciplinares, organizadas em função da complexidade técnica e com crescentes demandas de autonomia e produtividade criativa, pode-se desenvolver um processo de ensino/aprendizagem na área de artes. E mais que isso pode-se coordenar a

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33

participação e avaliar o crescimento do aluno rumo a sua formação profissional. (DOURADO, 1998, p. 79)

Defendemos assim o Novo Currículo como um elemento motivador para a

formação do nosso grupo e principalmente a possibilidade de continuidade das nossas

atividades criativas capazes de gerar processos criativos4 tão ricos como o Nós na

Cidade – espetáculo gerado no componente Improvisação e Jogos Dramáticos.

Nesta primeira apresentação mostramos como podíamos ser musicais, dançando

e cantando as canções que criamos nas improvisações, destacando a capacidade que

as letras tinham de falar de teatro e educação. Uma educação de esperança, liberdade

e principalmente autonomia do sujeito.

A arte de ser ator É mais que uma paixão É como pai: Educar Dando asas a criação! Conquistar a independência É viver com liberdade É educar! Felicidade! O Teatro da minha vida É o trabalho com liberdade Com energia pra criar meus filhos E ser resolvido no teatro (Criação Coletiva)

Nesta fase do processo já tínhamos vivenciado esses conceitos de educação para

a liberdade, para a autonomia e da importância do teatro na educação, ligados a nossa

prática como educadores. E os textos refletiam este nosso conhecimento, pois

nasceram dos nossos desejos e experimentação, e eram trazidos segundo nosso

constante crescimento. Já tínhamos algum conhecimento da filosofia de Paulo Freire, e

assim, tudo que dizíamos em cena ligava-se aos estudos que estávamos realizando

4 Um outro processo criativo desenvolvido pelo grupo foi o espetáculo Ciranda de Estórias, gerado no componente curricular Teatro de Formas Animadas I, II, e III. Esteve em cartaz na Sala 5 da Escola de Teatro e no Teatro do Liceu no Pelourinho no ano de 2007, ministrado pela professora Sônia Rangel, com elenco formado por nós alunos, atores-educadores do curso de licenciatura em teatro 2004.1.

Page 36: Nos na cidade

34

sobre a Pedagogia da Autonomia, A Importância do Ato de ler e outros livros do mestre

que nos estavam sendo apresentado.

Como diz o próprio Paulo Freire, não é possível estar no mundo, sem cantar, sem

musicar, sem politizar e isso é fazer história, é deixar nossa presença no mundo.

Estar no mundo sem fazer história, sem por ele ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar”, sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar, não é possível. (1996, p. 58).

Cantando e dançando em nossas improvisações aos poucos fazíamos anotações

elaboração do texto dramático. As questões trazidas nas cenas eram retomadas nas

avaliações finais, e nos debates com o público após as apresentações. O diálogo

provocava a re-escrita do texto, envolvendo-nos como criadores num processo crítico

de avaliação e reconstrução que o trabalho de educação exige. Esse procedimento

acentuava a dimensão pedagógica e estética desse teatro, envolvendo no seu fazer, o

re-fazer constante com as pessoas da cidade.

Ainda no Módulo I, nos encontramos com a história da Igreja da Barroquinha da

cidade de Salvador, que iria se transformar em um centro cultural chamado Coliseu das

Artes. Fomos convidados pela professora Maria Eugênia Milet para participar de uma

aula nas escadarias em frente desta Igreja e descobrimos, através da história contada

pelo professor Renato da Silveira, que atrás daquela igreja havia sido criado a primeira

“roda” de candomblé de Keto da Bahia.

Conduzimos nossa produção textual para falar sobre o nome que as autoridades

baianas queriam colocar em um centro cultural que tinha na sua história do passado,

um símbolo religioso tão importante para a cidade negra de Salvador. Bira Azevedo,

integrante do grupo, destaca como esse envolvimento com a cidade tornou-se uma luta

política e que pessoalmente mudou sua maneira de ver o candomblé.

Nós na Cidade me fez questionar quem eu sou e o que eu vim fazer aqui neste mundo. Juntou-se a isso uma luta política, uma mudança concreta, uma reparação. Foi uma obra artística que contribuiu com a mudança do nome de um espaço, de uma idéia, de um ideal. Ainda mais, mudou completamente a minha visão em relação ao candomblé (que até então era estranho e temeroso

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35

para mim) e conseqüentemente me aproximou mais da cultura afro e, logo, de Salvador, minha cidade. É impossível eu não tratar mais de questões ligadas a esta temática agora na minha prática. Faz parte da minha busca de transformação e contribuição para este mundo ficar mais bonito. (Bira Azevedo)

Essa inserção poética se deu primeiramente nas improvisações, depois daquela

aula na Barroquinha, aquela história, passou a fazer parte do nosso processo criativo

através das nossas impressões pessoais e curiosidades que trazíamos sobre o

processo de construção daquele terreiro de candomblé.

Fomos instigados a investigar os personagens de nossa cidade. Começamos a

olhar mais para as pessoas, para os vendedores, transeuntes, mendigos, turistas.

Observar o andar, a forma de falar e de se comportar como um todo. Passamos a criar

personagens a partir dessas observações e a partir delas fomos dando formas às

cenas, pensando elementos, construindo novas músicas, novos textos.

Já no módulo II no componente curricular Fundamentos do Teatro na Educação

ministrado pela professora Maria Eugênia Milet, continuamos o nosso processo de

investigação sobre a cidade para a construção do nosso espetáculo.

Esse foi o momento que nos assumíamos verdadeiramente como dramaturgos,

pois começamos um processo de criação do texto, saímos do campo da improvisação e

assumíamos ensaios com textos trabalhados, como por exemplo, os textos do professor

Renato da Silveira5 que nos chegou através das aulas que ele aceitou ministrar para o

grupo, sobre a história de constituição do primeiro terreiro de candomblé de Keto da

Bahia.

Para a construção do espetáculo a nossa pesquisa ficou dividida da seguinte

forma:

Pesquisa Pessoal: Quem Sou Eu;

Pesquisa da Cidade: Observação das ruas, pessoas da cidade, etc;

Pesquisa Histórica: Barroquinha – Constituição do primeiro terreiro de Candomblé

de Keto da Bahia;

5 O professor Silveira aceitou o convite do grupo para ministrar uma aula, mas acabou se encontrando conosco 3 vezes, incluindo aulas sobre história da África e dos Orixás neste itinerário. Ele é professor da Faculdade de Comunicação da UFBa.

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36

Processo de Produção: Textos do professor Renato, diálogos com outros

educadores e com as pessoas da cidade, elementos e figurino.

Figura 1 – a pesquisa do figurino. Foto: Eliana Andrade de Souza Integrante do Grupo.

Além do professor Renato da Silveira, tiveram em nossa sala educadores que

vieram contribuir com a formação do espetáculo, pois como nossa própria professora

Maria Eugênia Milet dizia que o Nós na Cidade era um espetáculo aberto que poderia

se modificar a cada apresentação e a cada contribuição6. Neste contexto, recebemos

na sala a professora Vanda Machado (historiadora envolvida com a religião do

candomblé e a história da África), o professor e diretor teatral Carlos Petrovich, o

antropólogo e Ogã da Casa Branca Olimpio Serra, o antropólogo Ordep Serra, e o Ogã

Leo prefeito do Terreiro da Casa Branca (Ereelson Conceição Chagas), além dos

próprios professores do módulo I. Contribuíram com textos, com músicas e com a

mudança de ordem dos fatos que ocorriam no espetáculo, como foi o caso do professor

Petrovich que sugeriu que invertêssemos a ordem do que estávamos falando, “para já

chegarmos com força”.

Destacamos então como estávamos envolvidos na fase de produção no processo

criativo, proposto pelo Manual de Criatividades.

É a fase em que o ato criador toma corpo. É o exercício de visão do todo, onde o aluno vai se sentir capaz de expressar, através de símbolos, uma idéia e solucionar o problema da escolha e seleção de recursos apropriados a essa

6 Anotações pessoais das aulas.

Page 39: Nos na cidade

37

expressão. O foco de atenção recai sobre a capacidade de realização e a consciência crítica. (DOURADO & MILET, 1998, p. 18)

Nesta fase elaboramos um roteiro e uma estrutura fixa para o espetáculo.

Aprofundamos a pesquisa com as histórias trazidas por Vanda Machado sobre o povo

africano e sua relação de irmandade criada no Navio Negreiro. Sobre essa fase,

caracterizadas por muitas mudanças, Daiane Gama, integrante do grupo, destaca o

enriquecimento do processo e melhora de resultados.

Um dos maiores aprendizados que tive foi de que nada está pronto ou acabado. Tudo é passível de mudança e essas mudanças são fundamentais para o enriquecimento do processo e melhora do resultado. Além de respeitar a opinião dos outros e tentar compilar vários pontos de vistas. E o maior de todos é o meu interesse pela cidade e pela cultura africana. (Daiane Gama)

Esse período provocou grandes debates entre nós, inclusive uma série de crises e

crítica ao processo.

A primeira crise foi provocada por nosso apego a alguma cena que havíamos

criado e que não queríamos que fosse retirada. A segunda foi porque o espetáculo

sempre estava sendo modificado, provocando em alguns participantes certa inércia,

resistência ou ausência, sem preocupação com a realização do trabalho. Essa

modificação provocada no texto e na estrutura do espetáculo foi interpretada por alguns

como se o processo fosse um “oba oba”, causando muitas vezes discussões calorosas,

em torno do processo, do papel do educador ao interferir, e em torno da

responsabilidade dos alunos/ atores com o espetáculo.

Até que ponto o grupo estava maduro, e seguro, para continuar este processo

criativo? Para ouvir, se tocar, se olhar de acordo com esse processo de livre

expressão? Para aceitar a orientação do professor?

Como propõe Roseli dos Santos, uma das integrantes do grupo, citando Viganó na

sua prática pedagógica, confrontando nossas personalidades individuais e as

interpretações que elaborávamos sobre a realidade, podíamos começar a libertar

nossas mentes, pois o jogo requer ao mesmo tempo esforço e liberdade.

Page 40: Nos na cidade

38

Mediante a educação pelo jogo, que requer ao mesmo tempo esforço e liberdade, foi proposta a caminhada em direção ao amadurecimento pessoal e coletivo dos nossos alunos. Ao mesmo tempo, por meio da experiência estética e produção de uma linguagem artística, eles confrontaram suas personalidades individuais e a interpretações que elaboravam sobre a realidade na qual viviam. E assim eles começaram a libertar suas mentes, a dialogar com os outros e dar forma a novas possibilidades de se construir o mundo VIGANÓ (apud SANTOS, 2007, p. 43).

A professora Maria Eugênia Milet dizia que para compreender a proposta era

preciso estar envolvido no processo criativo. E nos perguntávamos que envolvimento

era esse que ela falava se as nossas cenas estavam sendo retiradas a serviço do

espetáculo? Mas não é a serviço do espetáculo que estamos trabalhando? Não é o

espetáculo que nos ajuda a dizer o que queremos? Não é com o teatro que podemos

dizer quem somos de onde viemos e o que queremos para nossa educação, para

nossa cidade e porque não, para o nosso país?

A todo o momento, a professora Maria Eugênia Milet lembrava que éramos

artistas sim, que estávamos preocupados com o que criamos, mas antes de tudo

éramos futuros arte-educadores, e como tal deveríamos considerar nossa experiência

artística como um ato formador, refletindo a cada momento sobre o processo, inclusive

sobre os problemas que encontrávamos naquele ato de criar e modificar a serviço do

espetáculo. Sobre isso trazemos uma análise sobre o amadurecimento pessoal e social

relacionado ao aprendizado artístico:

Considero que o aprendizado artístico pode estar diretamente relacionado ao amadurecimento pessoal e social. Os resultados obtidos em cada encontro dependem, então, diretamente da qualidade do ambiente criado em cada momento e de uma reflexão constante dos participantes sobre o processo de trabalho e sobre sua atitude pessoal em relação a este. A conjunção desses fatores nos permite avançar no envolvimento com o processo e na superação dos nossos limites. O constante confronto com os nossos problemas e limitações, em cada etapa, faz com que o processo seja sempre composto de avanços e retrocessos. Isso não compromete, no entanto, a conquista de um maior alargamento dos horizontes pessoais e coletivos e de um novo nível de amadurecimento ao final do processo como um todo VIGANO (apud SANTOS, 2007, p.45).

Começamos a entender que nada estava sendo imposto, nem transplantado.

Estávamos sim atuando na criação do nosso próprio currículo, decidindo o que

Page 41: Nos na cidade

39

queríamos aprender e reinventando formas de dizer o aprendido, para que pudéssemos

ensinar. A receptividade do público foi muito importante para esse amadurecimento. E

nesse processo de ensino/aprendizagem nos entendemos como atores, criadores da

nossa própria história, eliminando as barreiras que encontrávamos, fortalecendo o

grupo, desenvolvendo nossa personalidade, estabelecendo um acordo de grupo e

caminhando em direção à participação coletiva que ia além do espetáculo, e que agora

chamávamos também de Nós na Cidade.

Page 42: Nos na cidade

40

3 RESULTADOS EM PROCESSOS

Subimos e descemos ladeiras

E entre um buraco e outro das ruas

Choramos com a cidade

Deitamos crianças desejosas de crescer

Nos levantamos heróis de um novo mundo

Acordamos guerreiros nagôs

Que a cor dão

Tiramos os nós que amarravam

nossas histórias

Reinventando a realidade

Nos desafiando a construção

De uma nova educação

Com o Nós na Cidade

Valdíria Souza

Page 43: Nos na cidade

41

3.1 NÓS NA CIDADE

O texto cênico ou espetacular pode ser entendido como “a relação de todos os

sistemas significantes usados na representação e cujo arranjo e interação formam a

encenação” (PAVIS, 2005 p. 409).

Nossa encenação foi resultante de uma criação coletiva orientada pela professora

Maria Eugênia Milet e apresentava um discurso ritualístico e espetacular, com intenção

de expor uma força que vinha da proximidade do grupo com a expressão e o

sentimento religioso do candomblé e com a espetacularização do cotidiano, uma

estética que mostra o espetáculo como experiência vivida, assim como diz Rita de

Cássia Silva:

A estética contemporânea demonstra com maior clareza o aspecto da arte como experiência vivida, sendo esta, a vida, a experiência transformada em matéria de fruição estética. É este aspecto que atribui aos espetáculos um forte caráter ritualístico, conferindo-lhes mesmo uma certa solenidade e um poder agregador, característicos do Ritual. (2004, p. 339)

O espetáculo tinha um caráter critico e reflexivo que mostrava em cena toda a

pesquisa sobre a cidade e o nascimento do Terreiro de Candomblé, falava sobre a

intervenção na luta pela mudança de nome do centro cultural da Barroquinha, tinha

também a intenção de envolver outras pessoas nesta causa e apesar dessa

característica didática e narrativa, não perdia a função de entretenimento.

3.1.1 Sobre a Encenação

Foi “juntando pedaços de nossos eus”, das histórias das pessoas, das histórias da

cidade, dos ensinamentos de vários mestres, inclusive Paulo Freire, que construímos o

nosso espetáculo. Criando cenas a partir de improvisações, partituras corporais,

Page 44: Nos na cidade

42

inventávamos a cidade e a educação que desejamos e nos mostrávamos ao público,

nos desnudando em um processo de auto-conhecimento e de busca de um

conhecimento coletivo. Os integrantes do grupo a partir dos depoimentos destacam o

que foi o espetáculo Nós na Cidade, para eles nesse processo de auto-conhecimento:

O Nós na cidade foi a materialização dessa metodologia. Claro que é um terreno bem arriscado de educação. Mas a educação que não pretende correr riscos não faz nada mais que entregar ao mundo uma mão de obra alienada para deleite dos que estão no poder. Quando eu digo que é um método arriscado de educação é porque esse tipo de metodologia propõe um desnudamento das pessoas envolvidas. E esse desnudamento é trazido ao palco em forma de espetacularização. O caminho percorrido por “Nós na cidade” pretendia a busca profunda de um auto-conhecimento. “Quem sou eu?” era a pergunta- chave. E isso se torna arriscado porque pra algumas pessoas é muito difícil esse processo de busca de si mesmo. Mas se isso é difícil, se torna muito gratificante quando conseguimos. (Francisco André Sousa Lima)

O Nós na Cidade foi a nossa porta de entrada na UFBA e dou o credito ao processo de construção deste espetáculo toda a forma como se seguiu a nossa graduação. (...) Ele nos marcou e nos acompanhará por muito tempo. Nos marcou desta forma, acredito, por conta do trabalho do quem sou eu? Que gerou a formação do nosso grupo. (...) É um espetáculo amplo e rico em informações. Tem Paulo Freire, tem poesias, tem Iyá Nassô, tem cada um de nós, tem o meu tamanho que é maior que o tamanho de minha altura, tem muitas cidades juntas, tem reconvexo, tem, tem e tem. (Bira Azevedo)

Momentos individuais e construções coletivas foram agrupadas. Nossas histórias, sonhos, conceitos e preconceitos, nossas diferenças. (...) Nós na Cidade foi a prova de que uma metodologia baseada em jogos e improvisações, se bem direcionada, traz resultados(...). (Jandiara Barreto)

Um teatro onde o cenário era desenhado por nossas palavras, construído com o

nosso corpo e imaginado por quem nos assistia. Um teatro fora dos padrões do teatro

convencional, feito em palco Italiano, mais próximo do teatro de rua e da performance,

caracterizado por uma arrumação/desarrumação do espaço da cena, provocando uma

multiplicidade e simultaneidade de forma e de olhares. Sobre essa característica do

espetáculo trazemos também as opiniões dos integrantes do grupo, que destacam o

próprio crescimento, e o crescimento do espetáculo e também o aprendizado do

público, que pode recriar o espetáculo a partir da sua visão de mundo:

Page 45: Nos na cidade

43

Foi prazeroso e refletia bem o que tratávamos: Diversidade. Em cada lugar um público diferente, um olhar diferente, um jeito de fazer diferente. Se adaptar ao local, as pessoas e a causa do momento só enriqueciam o processo. (Daiane Gama) A sensação de teatro itinerante mostrou-me a importância de cada lugar, públicos distintos e energias diversas. São aprendizados para quem faz, para o resultado cênico, consequentemente e para o público. (Jandiara Barreto) Me trouxe ainda outras possibilidades de estética para um espetáculo teatral. Tava acostumado com o teatrão realista de sempre. Nós na Cidade ultrapassa isto. (...) (Bira Azevedo) (...) uma coisa que ficou latente em mim depois do Nós na Cidade foi o provérbio de domínio publico “o artista deve ir onde o povo está”. (...) Muitos de nós estão presos ao palco elisabetano destituindo o valor artístico de qualquer outra linguagem que não esteja preso a essa estrutura. Como não considerar arte (ou atribuir uma menor valia) ao teatro feito nas feiras, nos bairros de periferia, ou os feitos com propósitos educativos? (Francisco André Sousa Lima)

Figura 2 – O grupo e a professora no Pelourinho. Foto: Acervo do Centro Integral da Criança e do Adolescente - CRIA.

O espetáculo tinha um caráter didático e para a professora isso era tão importante

para nós alunos/atores como para o público que nos enxergava também como

aprendizes que éramos daquele processo. Na opinião de Camila Bonifácio integrante

do grupo, não só foi aprendizado, foram muitos aprendizados em um processo

descobridor:

(...) O espetáculo foi o ápice de um processo descobridor. Aprendizado? Foram muitos, aprendi o que fazer e o que não fazer e isso é bom, mas deste todos

Page 46: Nos na cidade

44

destacarei uma frase do texto dramático que para mim até hoje é uma provocação para a vida: “... SALVADOR com quem eu caso? Com SALVAR ou com a DOR?”. Acredito que cabe a cada um de nós, homens e mulheres, em nossas vidas escolher uma das duas opções. Apesar da DOR eu prefiro SALVAR! (Camila Bonifácio).

Um espetáculo de imagens onde a moldura era dada pelos atores, autores dos

textos em que os sentidos eram expressos pelo corpo, pela palavra, por sentimentos e

sensações, assim como destaca em depoimento uma das integrantes:

“Nós na cidade” foi certeza de que a cidade é formada não só da parte física geográfica, mas também e principalmente, de uma história que esta impregnada nas nossas falas, no nosso corpo, nos nossos pensamentos e sentimentos. Mas que precisa ser desvelada a muitos (Eliana Andrade).

Estávamos buscando uma espécie de cidadania crítica, onde nos retratávamos

como cidadãos, artistas e educadores e reafirmávamos a forma de ser da cidade de

Salvador, com sua capacidade de juntar coisas diferentes, segundo a professora Maria

Eugênia Milet “uma forma Barroca” (2002, p. 22) e como disse em seu depoimento

Gessé Araújo, integrante do grupo, o espetáculo era uma busca constante também de

natureza estética:

Mais do que um espetáculo feito com a linguagem da rua, uma busca por uma estética de natureza política, como já disse. Nós na Cidade é um "jeito" de dizer, de fazer, até mesmo no tema que abordamos, que demonstra essa busca de natureza estética (Gessé Araújo).

O processo criativo tinha uma dinâmica própria, com sons, ritmos, palavras,

músicas, perguntas, mostrando uma complexidade que apresentava um teatro em

movimento, em constante mudança.

As formas cênicas emergidas dos nossos corpos em transformação traziam à tona

a nossa realidade de vida, para conhecendo-a, transforma-la. Com isso nos revelando

sujeitos da nossa história.

Page 47: Nos na cidade

45

Figura 3 – A Bahia negra nos traços e gestos dos atores em cena. Foto: Acervo do CRIA.

Uma Bahia negra e de resistência aflorava no gestual, nas falas e nas músicas,

expressando um espírito místico e satírico dos alunos/atores, como podemos perceber

na música Cidade In-festa criada como forma de crítica ao carnaval e as festas que hoje

apenas são feitas para os turistas e que deveria ser feita para o povo:

Cidade festa que infesta na lavagem, Na lavagem cerebral, na lavagem do Bonfim. Cidade presta na farsa do carnaval Carnaval que é de poucos Nem do povo nem de mim.

Trazíamos à tona temas mais freqüentes, como racismo, violência, sensualidade,

desigualdade, resistência, religiosidades, carnaval, futebol. Falávamos das crianças

(que habitava em nós), do candomblé, das ruas da cidade, das suas ladeiras, dos seus

loucos e doentes, como podemos perceber claramente no depoimento de Francisco um

dos integrantes do grupo, que ressalta também a criação do espetáculo e seu diálogo

constante com a cidade, com sua história, com a história do candomblé e de Iyá Nassô:

Com o “Nós na cidade” demonstramos a importância de um teatro feito para e pela cidade. Um teatro que serve de espelho para uma sociedade que faz questão de maquiar os seus problemas pra não espantar os turistas ou prejudicar os objetivos econômicos (...) Foi importante principalmente pelo diálogo que realizamos com a cidade (...) Foi importante pelo contato empírico que tivemos com uma realidade que nos será companheira por toda a vida pós-acadêmica. O espetáculo foi a intersecção

Page 48: Nos na cidade

46

entre ensino, pesquisa e extensão a tríade essencial que se pretende a nossa universidade. Mais ainda: o espetáculo se tornou importante por defender a causa de “Iyá Nassô”, uma princesa africana escravizada no Brasil que contribuiu decisivamente para a criação do Candomblé, expressão maior da resistência negra no cenário inóspito que foi a escravidão colonial. (Francisco André de Sousa Lima)

Esses signos traduziam nossas buscas poéticas, que eram potencializadas

através das aprendizagens em grupo a partir de nossas experiências com a cidade,

criando formas e sentidos, trazendo a pessoa do ator que se transformava enquanto

dava forma, através da sua presença, aproximando-se cada vez mais da realidade

humana, de personagens e situações que representava, ou seja, da própria realidade,

contando uma história nossa.

Figura 4 – Francisco André em seu momento: Quem sou Eu? Foto: Acervo CRIA

Nesse sentido nos inserimos criticamente na realidade para transformá-la,

pensamos e agimos criticamente como cidadãos e futuros professores.

Page 49: Nos na cidade

47

3.1.1 O Texto

Um ator e um músico entram em cena.

MÚSICO: toca no violão a entrada da música Reconvexo7

Figura 5 – Apresentação na frente da Câmara de Vereadores. Foto: Acervo CRIA

ATOR: A Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de aprender, de

ensinar, de conhecer, de criar de sonhar, de imaginar de que todos nós, mulheres e

homens, impregnamos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios,

impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus edifícios, deixando

em tudo o selo de certo tempo, (...) A Cidade somos nós e nós somos a Cidade. Mas

não podemos esquecer de que o que somos guarda algo que foi e que nos chega pela

continuidade histórica de que não podemos escapar, mas sobre que podemos

trabalhar8.

Aos poucos outros atores vão entrando em cena, se colocando em determinadas

posições e falando frases sobre educação.

7 Caetano Veloso. 8 Paulo Freire.

Page 50: Nos na cidade

48

ATOR 1 – A leitura do mundo antecede a leitura da palavra.

ATOR 2 – A arte é a fenda na rocha da vida por onde a educação deve passar

ATOR 3 – A vida é como uma peça de teatro e não permite ensaios por isso

cante, dance, ria! Viva intensamente! Antes quê as cortinas se fechem e a peça termine

sem aplausos!

ATOR 4 – Acreditar nas massas populares, já não mais fale a elas, ou sobre elas,

mas as ouça, para poder falar com elas.

ATOR 5 – Educação é antes de tudo, respeitar a identidade do educando.

ATOR 6 – Essência é aquilo que faz com que uma coisa seja ela mesma.

ATOR 7 – E já que estamos falando de essência. Vamos falar da nossa própria essência

e da essência da nossa cidade. Lá na Barroquinha há um espaço cultural que está sendo

revitalizado, mas está sendo destruído em nossa essência. Lá os governantes entendem

que deve se chamar Coliseu das Artes. A gente não concorda com isso porque nada tem

a ver com a nossa identidade. Agente acredita que lá deve se chamar Centro Cultural...

TODOS – Iyá Nassô!

ATOR 8 – Porque eu sou do tamanho do que vejo!

TODOS – E não do tamanho da minha altura!

O músico canta a música Reconvexo acompanhado ao violão e os outros atores

acompanham com palmas e pandeiro

Eu sou a chuva que lança a areia do Saara Sobre os automóveis de Roma Eu sou a sereia que dança A destemida Iara Água e folha da Amazônia Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra Você não me pega Você nem chega a me ver Meu som te cega, careta, quem é você? Que não sentiu o suingue de Henri Salvador Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô E que não riu com a risada de Andy Warhol Que não, que não e nem disse que não Eu sou um preto norte-americano forte Com um brinco de ouro na orelha

Page 51: Nos na cidade

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Eu sou a flor da primeira música A mais velha A mais nova espada e seu corte Sou o cheiro dos livros desesperados Sou Gitá Gogóia Seu olho me olha mas não me pode alcançar Não tenho escolha, careta, vou descartar Quem não rezou a novena de Dona Canô Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor Quem não amou a elegância sutil de Bobô Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo

Figura 6- Cantando Reconvexo. Foto: Acervo CRIA

Os atores vão dançando e se colocando em um semi-círculo. Acabando a música

todos estão com os troncos pra frente, olhando firme para a platéia. Andam em

direção a platéia em postura de intimidação.

TODOS – Guerreiros Nagôs!

Figura 7 – Ensaio na sala. Módulo I. Foto: Fábio Gonzalez, integrante do grupo.

Page 52: Nos na cidade

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Vão se afastando da platéia, fazendo som com os pés e um movimento que parece socando pilão, se colocando em um grande semi-círculo, enquanto isso, um ator ou atriz se destaca, e os outros cantam ao fundo.

Figura 8 – Arrumação da cena. Foto: Acervo CRIA

ATOR 1 – Na procura do sentido de nossa educação, descobrimos mais uma história

ocultada! A luta trazida pelos bantos de angola que em momentos de glória geraram

tantas verdades.

Todos cantam.

Maracatu, maracatu, mara camara camara catu. Maracatu, maracatu, mara camara camara catu. Foi de Luanda que me trouxeram pra cá Vim moer cana pra sinhô branco e sinhá (2x) Bangüê no lombo meu banzo cantou fiz lundu No meu lamento cantei o maracatu (2x) Maracatu, maracatu, mara camara camara catu. Maracatu, maracatu, mara camara camara catu. Finalizando a música um ator se destaca. Enquanto ele diz seu texto, outros vão

criando uma espécie de reconhecimento tribal, fazendo sons e movimentos ao

fundo.

ATOR 2 – Viva a Zumbí dos Palmares!

TODOS – Viva!

Page 53: Nos na cidade

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ATOR 2 – Segundo as tradições orais dos terreiros de keto, o primeiro candomblé

baiano da sua linhagem foi fundado em um terreno situado lá nos fundos da igreja de

Nossa Senhora da Barroquinha, que depois de muito tempo abandonada, ta sendo

reformada e eles querem transformar num tal de: Coliseu das Artes. Mas pra quem não

sabe originalmente esse terreiro foi fundado por uma comunidade de escravos e

libertos nagô-iorubás filiados a Irmandade do Bom Jesus dos Martírios, estabelecida

nessa igreja. E foi aí que surgiu o candomblé que se chama hoje Ilê Axé Iyá Nassô Oká

e é popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação.

Figura 9 – Arrumação da cena. Foto: Acervo CRIA.

Dois atores se destacam ao centro. Os outros se aproximam desses que estão um

de frente para o outro em posição de ataque. Esses dois são colocados nos

ombros dividindo o grupo de atores em dois rivais. Eles fazem uma espécie de

preparação para guerra, cada um em uma extremidade do espaço, depois se

enfrentam, provocando uma grande confusão com gritos e sons. Se espalham

pelo palco cada um em um nível, médio, alto, ou baixo. Nesse momento os atores

começam a dizer quem são e de onde vieram. Vão levantando ou abaixando e se

acumulando em uma espécie de torre de corpos no centro, enquanto isso, dizem

seus textos do Quem Sou Eu.

Jandiara – Eu sou a criança que ressurge em mim de raridade da inocência...

Page 54: Nos na cidade

52

Carla – Quem sou eu?Não sei quem sou!Vim do interior Chapada Diamantina, Capão,

cachoeiras...

Eliete – Eu sou feliz! Luto pelos meus objetivos. Nasci para vencer. Vim da célula de

minha mãe, dos meus ancestrais e vão para os meus filhos, não morrerá jamais..

Daiane – A imensidão do mar... A magia da lua...Tudo isso me deixa protegida e

renovada...

Emiliano – Eu vim das entranhas da minha mãe...Eu vou voltar para as entranhas da

minha mãe...

Roseli – Diante do desejo do meu coração o mar é uma gota. Eu quero...Eu quero a

comunhão do meu corpo com a minha alma.

Bira – Oxente quem sou eu? Oxente quem sou eu? Oxente quem sou eu?

Rubenval – Eu! Pessoa! Cidadão! Pessoa humana, cidadão do mundo. Objeto de

estudo, uma mancha no fundo do quadro, parte de toda a obra.

Eliana – Eu? Quem sou? Onde estou? Encontrei minhas barreiras, agora posso

começar a te ajudar a encontrar a sua.

Diana – Não é mentira, é verdade. A minha verdade não é uma mentira! Eu sou tudo

isso!

Uma atriz se destaca no centro da torre. Todos vão saindo da torre falando ao

mesmo tempo a fala dos outros, provocando uma confusão de palavras. Esse

movimento chamamos de torre de babel. Cada um vai caminhando ao fundo

dando as costas para a platéia.

Figura 10 – Torre de Babel. Foto: Acervo CRIA.

Page 55: Nos na cidade

53

ATRIZ 1 – É a falta de conhecimento sobre nós mesmos que causa toda loucura, toda

lavagem cerebral.

ATRIZ 2 – Antes de entrarmos nos navios que nos trouxeram para cá. Fomos obrigados

a dar várias voltas entorno da árvore do esquecimento. Separam nossas famílias,

trocaram nossos nomes. Mas quando chegamos ao navio soubemos nos reafirmar

malungos! Irmãos! Filhos da nossa mãe África!

As atrizes se dirigem ao centro com as outras do grupo. Os atores continuam de

costas para a platéia, até que elas começam um ritual de banho, primeiro

entoando o canto baixo enquanto uma outra atriz fala o texto. Ao terminar o texto

todas cantam.

ATRIZ 3 – Os Ijexás, habitantes da região centro oriental do país ioruba trouxeram o

culto da sua divindade mais afamada: Oxum. Várias Oxuns foram trazidas dessa região

para a Bahia, entre elas: Oxum Apará, Oxum Ofimi, Oxum Ijimu, Oxum Ipondá, esta

última proveniente da cidade do mesmo nome.

Todas cantam

Oro minlá O mamãe Oro minlá O mamãe Talá dê talá dô miô Como mamãe iyá xêô É odi Obá Ogúm Obêricojô

No meio desse ritual, onde as atrizes fazem menção de jogar água umas nas

outras, outros vem brincando com bolas e malabares. O ritual passa a ser uma

brincadeira unindo muitas crianças. Os atores que estavam mais ao fundo entram

na brincadeira, enquanto no palco se formam três grupos de atores

representando crianças brincando de várias coisas. Sendo que um desses grupos

canta.

Page 56: Nos na cidade

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Vinde, vinde Moços e velhos Vinde todos Admirai Como isso é bom Como isso é belo Como isso é bom é bom demais

No meio desta euforia das brincadeiras, os atores vão transformando aos poucos,

suas atitudes corporais, até passam a andar de um lado para outro, como adultos,

como se estivessem em uma rua movimentada. Um ator em um elevado fala como

um locutor de rádio.

Figura 11 – Rubenval Meneses o Locutor – Foto: Acervo CRIA.

LOCUTOR de RÁDIO - Salvador informa: A cidade hoje amanhece muito quente, e

atenção falta transporte na cidade e as crianças têm que caminhar para ir a escola e

seus pais tem que caminhar, caminhar, caminhar para ir ao trabalho.E atenção: Hoje a

grande inauguração da praça do Campo Grande, mas olha o espaço só está aberto até

as dez horas da noite.E atenção criança morre por falta de abrigo em frente ao teatro

Castro Alves e já está previsto a reinauguração do Elevador Lacerda todo de granito

por dentro e com um sistema on line. E atenção turista acaba de ser assaltado tentando

acessar o plano inclinado.E agora atenção à cidade negra mais antiga do hemisfério sul

vai ganhar um Coliseu...

TODOS – Um Coliseu?

Page 57: Nos na cidade

55

LOCUTOR – Isso mesmo caros ouvintes, mas artistas e religiosos da cultura negra já

tomaram providências. Voltamos agora a nossa programação normal... (cantando

saindo do ar) A cidade está bonita... isso todo mundo ver, mais esse povo quer mais,

quer bem mais (as últimas palavras quase são inaudíveis, apenas um chiado).

Enquanto o rádio vai saindo do ar, as pessoas vão ficando mais eufóricas falando

interpretando vários personagens das ruas, todos falam ao mesmo tempo, até se

dividirem em duas fileiras cantando uma música, onde representam as brigas de

tribos urbanas dançando nos bailes.

ATRIZ 1 – Guerreiros Nagôs...

TODOS – Acordam

A cor dão

Acordam

A cor dão.

ATOR 1 – Guerreiros Nagôs...

ATORES – He-te-ro-ingenuidade (2x)

ATRIZES:

FILEIRA 1 – Entre ladeiras e buracos

FILEIRA 2 – A cidade chora (5x)

TODOS (essa parte é cantada em vários rítmos. Uma vez pelos homens, outras

por mulheres. Xaxado, axé, etc, sendo que de um lado os homens mostram a

violência e as mulheres sensualidade).

Cidade festa que infesta na lavagem,

Na lavagem cerebral, na lavagem do Bonfim.

Cidade presta na farsa do carnaval

Carnaval que é de poucos

Nem do povo nem de mim.

Page 58: Nos na cidade

56

Figura 12 – Cidade Infesta em ritmo de xaxado. Apresentação no Terreiro da Casa Branca. Foto: Fábio

Gonzalez.

ATRIZ 2 – Salvador com quem eu caso?

ATOR 2 – Com o Salvar ou com a Dor!

Os atores começam a sentir dores por todo corpo

ATRIZ 3 – Dor! Dor em mim. Em você também? O que falta nesta cidade?

TODOS – Verdade!

ATRIZ 4 – O que falta nesta cidade?

TODOS – Verdade!

ATRIZ 5 – Salvador! Nas tuas ruas ecoam o nosso grito. Explodem do corpo feridas!

Salve Salvador!

ATRIZ 6 – É tanta dor, é tanto sofrimento, é tanta loucura nessa cidade. Mas a fé, a fé

pode curar. Leva povo seus doentes. Leva esse povo pra igreja.

Page 59: Nos na cidade

57

Figura 13 – Procissão de doentes. Foto: Acervo CRIA

Nessa parte começam as manifestações religiosas e culturais da cidade de

Salvador. Primeiro é formado uma procissão, onde os atores vão andando uns

atrás dos outros, com as músicas “a nós descei divina luz” e “cálice bento”. A

procissão se transforma um samba de caruru de Santa Bárbara com a música

“relampeia”. Uma atriz dança no meio da roda e os outros batem palmas,

sentados no chão. Desse mesmo caruru um dos atores começa a dizer “Aleluia!”

em uma das laterais do palco, todos se voltam pra ele e começa um culto

protestante, onde uma das atrizes vai até esse ator e dá seu testemunho. Todos

os atores levantam as mãos para os céus dando vivas a Jesus vão se levantando.

Este culto se transforma em um ônibus lotado em dia de jogo BA-VI. Os atores e

atrizes de um lado cantam os hinos de seus times, o Bahia e o Vitória. Saindo do

ônibus todos se organizam como uma festa de carnaval com a música “poeira”.

Dançam, pulam, até que uma briga de dois atores representando a violência no

carnaval de Salvador, faz com que todos parem a brincadeira. Falam para o

público:

ATOR 1 – Debaixo dessa poeira, muitos nós são ocultados, mas nós que estamos

atentos chamamos atenção neste ato.

ATOR 2 – Aqui é a Barroquinha, berço dos Guerreiros nagôs!

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Figura 14 – Momento ônibus, processo em sala de aula. Foto: Fábio Gonzalez.

Os atores passam a interpretar vendedores ambulantes de sandálias de couro, de

batas, cartões telefônicos na escadaria da Igreja da Barroquinha, chamando

atenção da freguesia. Se organizam em grupos e começam dialogar. Enquanto

um grupo fala os outros estão congelados, e para a troca de um outro grupo,

todos falam ao mesmo tempo.

VENDEDOR 1 – Olha o cartão!

CLIENTE – O que está acontecendo aqui na frente da igreja?

VENDEDOR 1 – Rapaz são uns estudantes reclamando aí por causa da reforma da

igreja da Barroquinha.

CLIENTE – Mas não é bom reformar a igreja?

VENDEDOR 1 – Ah! Mas aí é que tá! Não é por causa da reforma que eles estão

reclamando, é por causa de um nome que o governo ta querendo dá?

CLIENTE – E qual o nome que o governo ta querendo dá?

VENDEDOR 1 – O nome do governo eu não sei, mas o que os estudantes tão

querendo é... Casa de Cultura

TODOS – Iyá Nassô

CLIENTE – Mas quem é Iyá Nassô?...

VENDEDOR 2 – Olha a cocada! Olha a cocada!

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CLIENTE – Ei quanto é a cocada?

VENDEDOR 2 – A cocada é um real, vai querer?

CLIENTE – Oh cocadinha cara heim? Mas me diz aí quem essa Iyá Nassô que esses

estudantes estão falando aqui na porta da igreja?

VENDEDOR 2 – Iyá Nassô foi uma sacerdotisa africana que veio organizar o

candomblé aqui na Barroquinha e dizem que ela era uma pessoa muito importante

dedicada a Xangô?

VENDEDOR 3 – Olha a sarça caroba janaúba! Pomada poderosa cura tudo, só no tem

jeito pra morte.

CLIENTE – Moço o que é isso?

Vendedor –É a sarça caroba janaúba.

CLIENTE – não criatura, isso aí eu sei, eu to dizendo isso aqui na porta da igreja.

VENDEDOR 3 – Ah são os estudantes reclamando que o governo tá querendo fazer

uma tal de uma reforma, pra os tal dos gringo vê! Vai comprar a sarça caroba?

CLIENTE – (sorrindo) Oi lá moço um gringo vai vender pra ele.

VENDEDOR – (saindo) Olha a sarça caroba janaúba! Pomada...

CLIENTE – Quanto é a sandália?

VENDEDOR 4 – Quinze

CLIENTE – Quinze reais? Moço a semana passada tava de doze?

VENDEDOR 4 – É aumentou o salário não aumenta, posso fazer o que? Vai querer?

CLIENTE – Moço eu não sou turista não, sou daqui de Salvador.

VENDEDOR 4 – Eu cobro esse preço que é pra qualquer pessoa, ta dizendo que eu

sou desonesto? Tá me chamando de ladrão?...

Surgem dois pedintes:

PEDINTE – Onde come um come dois. Boa tarde meus amigos eu queria que vocês me

arrumassem algum dinheiro pra eu comprar uma caixa de picolé

VENDEDOR 4 – Sai daqui rapaz, não ta vendo que tô trabalhando?

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PEDINTE (saindo) – Eh grosso! Eu também já tive uma barraca aqui, mas me tiraram

por causa dessa maldita reforma.

VENDEDOR 5 – Olha a batinha! Oi oi a batinha!

CLIENTE – Quanto é a batinha?

VENDEDOR 5 – Prá tu toda animada assim é trintinha...

CLIENTE – E pras outras

VENDEDOR 5 – Aí é quarenta, cinqüenta, se for mais arrumada que tu pode chegar até

sessenta.

CLIENTE (sorrindo) Ah abaixa vai!

VENDEDOR 5 – Não posso baixar, esse é o preço que eu vendo. Mais barata que essa

que te garanto que tu não vai achá. Oi aí, nessa estampa aqui, nessa cor? Não não

tem.

CLIENTE – Olha aqui eu sou pseudo.

VENDEDOR 5 – (leva um susto) Mas que diabo é pseudo?

CLIENTE – Pseudo-turista, tô aqui quase todo ano, já tô ficando negona.

VENDEDOR 5 – Tô vendo, tô vendo. Vai querer ou não vai querer levar a batinha?

Cliente – Abaixa vai você está vendendo na frente da igreja.

VENDEDOR 5 – Lá vem tu botando religião na história. O que que tem haver igreja com

a batinha que eu to vendendo?

CLIENTE – (com ironia) Deus ta vendo...

VENDEDOR 5 – (incisivo) Olha minha senhora, eu vou lhe

dizer uma coisa: Deus não quer me ver pobre não!

Figura 15 – Vendedor e cliente, processo em sala de aula

Todos os atores congelam. Um dos atores que ficava sentado representando os

manifestantes na Barroquinha se levanta.

Page 63: Nos na cidade

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ATOR 1 – A expulsão do povo africano da Barroquinha, fez parte da política cruel de

Martins Gonçalves, mais conhecido como Visconde de São Lourenço, foi então

Governador da Província entre 1848 a 1852. Agora mais precisamente em 1851, o

progresso dá as caras a Bahia de forma espetacular com a urbanização de toda área, a

pavimentação da Baixa dos Sapateiros e também da Barroquinha.

Os atores vão formando duas fileiras atrás, viradas uma de frente para outra.

Onde uma representará a elite branca e a outra a elite negra dos fundadores do

Terreiro da Barroqouinha. Um ator entra com uma espada e entre essas duas

fileiras entoa um canto em iorubá a Ogum, que é respondido pelas atrizes que

ficam na fileira dos negros.

Ogún Onirê Acoro Onirê Oreguedê Xalarê Ogun Onirê Oreguedê Ogún Onirê Acoro Onirê Oreguedê Alakôro léri Alakôro lérió Aê Aê Aê Alakôro lérió Aê Aê Aê Alakôro lérió

Durante o canto as atores que representam os brancos, com os punhos erguidos,

vão em direção aos atores que representam os negros para intimidá-los. Abafa-se

o canto, representando a expulsão do Terreiro de candomblé da Barroquinha.

Quando o conto é abafado, os atores representando os brancos vão comemorar a

política do progresso, dizendo frases racistas com relação aos negros africanos e

brasileiros. Enquanto do outro lado os atores que representam os negros se

reorganizam, e de forma intercalada com as falas dos brancos, falam de mostrar a

cara na rua, mostrar a cultura, as roupas e festas e fazer tudo na paz.

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ATOR (Elite branca) – (tom de discurso) Eu como representante maior da cultura de

Salvador, afirmo que o Coliseu foi um dos maiores empreendimentos Baianos. (Elite

Branca aplaude)

ATRIZ (Elite negra) – Vamos abrir nossos terreiros, chamar o povo e dá uma grande

festa! (Eles também aplaudem e cantam a mesma música anterior baixa)

ATOR (Elite branca) – (intolerante) Chega de quizumba, chega de bozó, de cheiro de

couro, todo mundo agora vai conhecer o Coliseu das Artes.

ATRIZ (Elite branca) – Nem se preocupem com o povo aí reclamando, logo, logo o

carnaval ta aí e o povo esquece...

ATRIZ (Elite negra) – Vamos mostrar nossas roupas, vamos mostrar nossa cultura,

vamos dançar nas ruas, vamos mostrar nossa cultura e que somos brasileiros.

(continuam cantando baixo: Alakôro léri, Aê Aê Aê Alakôro léri)

ATOR (Elite branca) – É uma coisa para turista vê. Não reclamavam do desemprego?

As pessoas tem que trabalhar não? Então com o turismo tem trabalho, se não podem

trabalhar aqui, vão ter trabalho em outro lugar com por causa dos turistas.

ATRIZ (Elite negra) – Gente, com a gente é tudo na paz, violência é do outro lado.

ATRIZ (Elite negra) – É isso aí, e é preciso convocar o povo porque o povo está do

nosso lado.

ATOR (Elite branca) – Proponho mais uma coisa, cobrir toda a escadaria de granito, é

perfeito para o progresso.

ATRIZ (Elite branca) – Proponho um brinde ao Coliseu das Artes.

As vozes dos atores que representam os negros, sufocam com o canto o brinde

ao coliseu. Nessa cena os representantes dos negros, tiram seus panos coloridos

e vestem uma das atrizes que vem personificar a presença de Iyá Nassô, depois

pegam folhas e retornam a cantar a música de Ogum, dessa vez conseguindo

contagiar todos os atores representantes dos brancos que também caem na

dança.

Quando todos estão dançando, começa-se um samba de roda com a seguinte

música. Os atores formam um semi-círculo, enquanto que alguns vão sambar na

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roda. Após o samba, com os ombros pra frente voltados a platéia chamam

novamente os Guerreiros nagôs. Nesse momento começam a desfazer a postura

de intimidação e cantam a música “periquito maracanã” bem perto da platéia,

tocando nas pessoas, abraçando-as e envolvendo na festa do espetáculo.

O Teatro da minha vida

É o trabalho com liberdade

Com energia pra criar meus filhos

E ser resolvido no teatro

Periquito maracanã

Cadê a sua aia

Faz um ano, faz um dia

Que eu não vejo ela passar.

Figura 16 – Bira Azevedo, representando padre na procissão. Foto: Acervo CRIA.

Figura 17 – Eliana Andrade em seu momento: Quem sou Eu. Foto: Acervo CRIA.

Page 66: Nos na cidade

64

3.2 MOBILIZAÇÃO SOCIAL, UMA QUESTÃO DE ATITUDE

Ainda no Módulo I, fomos convidados pela professora Maria Eugênia Milet para

participar de uma aula nas escadarias na frente da igreja da Barroquinha, que estava

sendo reformada para se transformar em um centro cultural chamado Coliseu das

Artes. Nos encontramos com a história da Igreja da Barroquinha e descobrimos, através

da história contada pelo professor Renato da Silveira, que atrás daquela igreja havia

sido criado a primeira roda de candomblé de Keto da Bahia.

Após aquela aula pública, a professora Maria Eugênia começou a instigar nossa

curiosidade sobre a importância histórica e religiosa que aquela igreja tinha para a

história e constituição da sociedade soteropolitana, e que, portanto, não poderia se

chamar Coliseu das Artes. Aceitamos então o convite da professora para fazer parte da

mobilização para a mudança do nome daquele centro cultural e fomos apresentar

nosso processo criativo, que estava em processo de construção, nas escadarias da

igreja, para o povo da Barroquinha e de Salvador.

Mas por que aceitar aquela nova empreitada? Que tipo de Educação que

estávamos fazendo? Por que assumir aquela luta? Ir para rua com um processo criativo

ainda em construção não ia nos expor? Nosso trabalho de teatro já estava pronto para

uma experiência na rua? Era esse tipo de teatro que queríamos fazer?

Todos esses questionamentos foram colocados por nós e respondidos por nós

mesmos, numa roda de conversa proposta pela professora Maria Eugênia. Depois de

nos chamar para conhecer esta causa, e apresentar fortes argumentos que nos

possibilitavam enfrentar uma realidade fora da sala de aula, e aprender com o contexto

da rua, tanto a fazer teatro como aprender com a capacidade educativa da cidade, a

professora Maria Eugênia nos deixou debatendo sozinhos, para que decidíssemos. Mas

não estávamos sozinhos porque estávamos em grupo, discutindo uma proposta bem

desafiadora.

Deste modo, o educador problematizador, re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscitividade dos educandos. Estes em lugar de serem

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recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico também. (FREIRE, 1987 p. 69)

E juntos, sem a autoridade do professor mediando o diálogo, aprendemos a nos

ouvir, a sermos autônomos, a apresentar nossos argumentos, contra ou a favor da ida a

rua. Sabíamos que ir para a Barroquinha era integrar e permanecer a luta pela

mudança do nome do Centro Cultural, e “permanecer é buscar ser com os outros”

(FREIRE,1987). Aceitarmos este desafio era ir para um caminho sem volta, pois

estávamos tomando uma posição política, nos fazendo sujeitos do nosso processo, e

sujeitos de uma luta coletiva.

(...) somente na comunicação tem sentido a vida humana. O pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto na intercomunicação. Por isto, o pensar daquele, não pode ser um pensar para estes, nem a estes imposto. (...) mas na e pela comunicação, em torno de uma realidade. (...) se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo, o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a superposição dos homens aos homens. (FREIRE, 1987, p. 64)

E por que fazer política? Porque sabíamos que como educadores críticos que

estávamos nos propondo ser, entendíamos a educação como Paulo Freire nos

ensinava: uma educação crítica e política que assumia um compromisso com Salvador.

Denunciando o que o nome Coliseu das Artes ocultava, anunciávamos novas

possibilidades de educação com o novo nome – Casa de Cultura Iyá Nassô. Quem

seria Iyá Nassô? As pessoas se perguntariam. Este já seria o primeiro ato de uma nova

história, aquela de revelação da memória da cidade. Desde aquele momento na sala,

uma educação problematizadora estava sendo experenciada por nós, alunos da

licenciatura em teatro.

A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda a condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. (FREIRE, 1987, p. 73)

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Nossas vontades foram convocadas. Através do diálogo entramos em consenso

para fazermos parte. Com o grupo CRIAPOESIA9, ficamos um ano envolvidos com a

questão expandindo a mobilização através da arte. Gesse Araújo, integrante do grupo,

disse em depoimento: “ainda lembro que em momento nenhum essa luta nos foi

imposta, entendemos que esse é nosso papel e adotamos essa atitude de mobilização”.

(...) a mobilização é considerada um processo de convocação de voluntários para uma mudança de realidade, por meio, de propósitos comuns estabelecidos em consensos, uma vez que as pessoas precisam sentir-se como parte do movimento e abraçar verdadeiramente a sua causa. Sendo a participação uma condição intrínseca e essencial para a mobilização HENRIQUES (apud SANTOS, 2007, p. 29).

Bira Azevedo, também integrante do grupo, reforça que com os consensos

estabelecidos fomos capazes de abraçar verdadeiramente a causa:

Com a criação de vínculos, de uma idéia de grupo fomos capazes de lutar por uma causa que se tornou única, estávamos lutando pela mesma coisa, juntos, com a mesma obra, com arte. Havia coesão. Todos nós gostávamos muito de fazer o Nós na Cidade.

Mesmo com os medos e com dúvidas, fomos aprendendo a exprimir nossos

sentimentos, emoções e anseios criativamente em grupo, no contexto do próprio

trabalho teatral que estávamos construindo. Mostrávamos nossos pontos de vista,

nossa maneira de falar sobre a cidade. Através do fazer e do refletir concomitantes,

cada vez mais sonhadores e esperançosos, íamos revelando uma cidade ocultada.

Tudo era muito rico, pois também compartilhávamos uma dimensão nossa

desconhecida, àquela que só aparece com o conhecimento. Sobre este processo, como

diz Dourado e Milet, “se procura construir algo que não é visível: uma atitude”. (1998,

p.9) ou então como diz Paulo Freire: “os atores fazendo da realidade objetivo de sua

análise crítica, jamais dicotomizada da ação, se vão inserindo no processo histórico

como sujeitos” (FREIRE, 1987, p.181).

Apresentando a peça Nós na Cidade em vários outros lugares, além da

Barroquinha. Convocamos outras pessoas, outras vontades para participarem da

9 Grupo de poesia formado por jovens integrantes do Centro de Referencia Integral de Adolescentes – CRIA.

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mobilização conosco por uma causa histórica e educacional. Através do diálogo que

promovíamos, após as apresentações íamos sensibilizando alunos e educadores de

escolas públicas e outras instituições.

Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe pelo caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. (...) e se ele é – o diálogo – o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias, de um sujeito no outro, nem tão-pouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1987, p. 79).

A professora Maria Eugênia destacava a importância daquele espetáculo, como

um direito que tínhamos como cidadãos. Estávamos aprendendo e ensinando a nossa

cidade. Era um exercício de cidadania, podíamos lutar por nossos direitos! Esta

consciência era extremamente importante nesta fase de nossas vidas, éramos muito

jovens e muito mais deveríamos fazer. A nossa decisão política, como afirma Paulo

Freire, pode interferir em diversas áreas, seja ela educacional, cultural, da saúde, dos

transportes, do lazer, e na política dos gastos públicos, para tornar a Cidade cada vez

mais educativa onde “a própria política em torno de como sublinhar este ou aquele

conjunto de memórias da Cidade, através de cuja só existência a Cidade exerce seu

papel educativo. Até aí a decisão política nossa pode interferir” (2001, p. 23).

Aprendemos - e ensinamos - que educação e arte não se fazem apenas entre

quatro paredes, mas que podem ser feitas na rua, com o povo.

Figura 18 – Apresentação em frente a Câmara de Vereadores. Foto: Acervo CRIA.

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O fato de estarmos construindo nossa peça com apresentações na rua, trouxe

para sua estética um caráter festivo, além do seu caráter ritualístico, o que nos

aproximava cada vez mais do público.

(...) a improvisação genuína, que leva ao verdadeiro encontro com a platéia, ocorre apenas quando os espectadores sentem que são amados pelos atores e que o teatro improvisacional deve ir onde as pessoas vivem. BROOK (apud MILET, 2002, p. 25).

Francisco, colega de turma afirma que esta possibilidade de apresentações em

vários lugares fortalecia a capacidade política da educação e a militância que ele

acredita:

Participar de várias apresentações, “na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê” ressoou em mim várias coisas. A primeira delas foi fortalecer uma militância e identidade política que sempre acreditei, mas que nunca tinha assumido. Senti orgulho de estar defendendo o que acreditava, e principalmente porque todos assumiam aquela militância como processo educativo. (Francisco André Sousa Lima)

No componente curricular Fundamentos do Teatro na Educação, ministrado pela

professora Maria Eugênia Milet, no modulo II, com uma metodologia, aula-espetáculo,

apresentamos o Nós na Cidade diversas vezes na Escola de Teatro, tanto para os

alunos da Escola, quanto para instituições que vieram nos visitar através das propostas

de intercâmbio com a comunidade, proposta essa que trouxe para nossa escola, o

Colégio Estadual Manoel Novais e o grupo Poder Grisalho10, onde todos assistiam e

apresentavam suas propostas educacionais e criativas para a transformação da

realidade.

Nos apresentamos no Terreiro de Jesus no 02 de Julho, na Calourada da UFBa,

no Centro Educacional Edgard Santos no Garcia, no Colégio Estadual Clériston

Andrade no Pau da Lima diversas vezes na Barroquinha, passando um abaixo

assinado, convocando a população à participar. Convidados pelo poeta José Carlos

Capinan nos apresentamos na Praça Tomé de Souza, em frente a Câmara de

10 Fundado a mais de 20 anos pela professora Maria de Lourdes Costa Pinto, esse grupo é composto por senhoras e geralmente se apresenta nos meses de setembro no Shoping Piedade, promovendo o evento Semana do Idoso, também fundado por eles.

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Vereadores. Nessa apresentação o Centro de Referência Integral do Adolescente -

CRIA, elaborou um release, uma faixa, um cortejo e uma carta a ser entregue ao

prefeito junto com as assinaturas da população que estávamos recolhendo.

Figura 19 – Apresentação em frente a Câmara de Vereadores. Foto Acervo CRIA.

Sobre essa apresentação o colega Gessé Araújo comenta:

A apresentação mais marcante de Nós na Cidade foi para mim, aquela na frente da câmara de vereadores de Salvador. Por dois motivos: primeiro porque representou uma proximidade com o poder público que era, afinal, quem poderia tomar alguma atitude prática com relação a história que contávamos, e depois porque foi o dia em que introduzimos a apresentação um prólogo de Paulo Freire que era muito importante de ser dito e que tinha tudo a ver com o tema que tratávamos.

O prólogo do espetáculo era o seguinte texto de Freire:

A Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de aprender, de ensinar, de conhecer, de criar de sonhar, de imaginar de que todos nós, mulheres e homens, impregnamos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios, impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus edifícios, deixando em tudo o selo de certo tempo, (...) A Cidade somos nós e nós somos a Cidade. Mas não podemos esquecer de que o que somos guarda algo que foi e que nos chega pela continuidade histórica de que não podemos escapar, mas sobre que podemos trabalhar. (2001, p. 22-23)

E reconhecendo em nós a Cidade Educativa, também reconhecemos aquilo que

somos e o que fomos, que não podíamos escapar, mas que podíamos trabalhar, nos

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tornando sujeitos de uma prática, política, estética e ética, capaz de resgatar a memória

esquecida de nossa cidade, como sinal de respeito aos traços que herdamos dos

nossos antepassados. Tomamos a causa como nossa, “arregaçamos as mangas” e

fomos estudar a Cidade Educativa.

Estudamos fatos históricos, ampliando a percepção das pessoas, das ruas.

Estudamos com nossos olhos sensíveis as próprias curvas das ruas, buscando formas

de dizer com o corpo e com as palavras, no espetáculo, o inteligível, que não era

percebido aos olhos nus, mas com um novo olhar, aquele que busca saber mais. Como

diz ainda o colega Gessé: “Busca. Num sentido mais otimista corresponde a alcance.

Só alcança quem busca” e ou também como diz Paulo Freire, uma busca permanente,

com um olhar curioso e indagador:

(...) por isso mesmo em permanente busca, indagador, curioso em torno de si no e com o mundo e com os outros; porque histórico, preocupado sempre com o amanhã, não se achasse como condição necessária para estar sendo, inserido, ingênua ou criticamente, num incessante processo de formação. De formação de educação. (FREIRE, 2001, p.19).

Com essas apresentações o espetáculo estava conquistando espaço, ganhando

visibilidade e cada vez mais pessoas estavam assistindo-o. Todos os eventos públicos

que participávamos denunciávamos o que estava acontecendo e convocávamos outras

pessoas para abraçarem a causa. A Cia de Teatro Abdias do Nascimento (chamava-se

naquela época Coletivo de Atores Negros), pela pessoa do seu fundador o ator e diretor

Ângelo Flávio, esteve conosco em algumas oportunidades destacando a importância da

“desocultação” da história dos negros em Salvador.

Este movimento é a prova de que existe uma juventude capaz de tomar as rédeas da História e dar uma possível continuidade à luta de várias pessoas que sonharam com um movimento lindo como este. Os alunos de licenciatura da Escola de Teatro são, o grande exemplo da inquietação pró- "ordem e progresso" em nosso país, e fico feliz em testemunhar, em minha existência, à atitude da professora Maria Eugenia Milet e destes futuros educadores. O que esta geração grita, não só a Salvador e ao país, mas ao mundo: é que temos uma IDENTIDADE. Identidade hibrida e não somente anglo-saxônica ou luso brasileira. Identidade que se exige em registro por todo histórico que teve a Barroquinha desde 1764 com a associação dos escravos negros libertos aos nossos atuais vendedores de mercadorias de couro. Este é o exemplo, de que podemos sonhar com um futuro cada vez mais Brasileiro. (Ângelo Flávio)

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O espetáculo era a nossa porta de entrada para a cidade. Na apresentação no

Centro Educacional Edgar Santos, dialogando com os alunos sobre a importância

histórica da Barroquinha, e principalmente sobre a falta de conhecimento histórico que

temos de nós mesmos, dos nossos ancestrais e da formação do nosso povo com a

matriz africana e indígena, a coordenadora pedagógica Edenice Santana de Jesus,

destacou nossa iniciativa como uma ação que poderia abrir discussões sobre a Lei

10.639/2003, tanto para a implementação dessa lei nas escolas, como para a

preparação, que ainda não existia, dos professores, para lidar com as questões étnicas

e raciais da formação do povo brasileiro.

Em uma conversa informal com a coordenadora - que é engajada através da

educação e dos movimentos políticos nas questões étnico-raciais, perguntamos a ela

sobre a implantação da lei no Centro Educacional Edgar Santos. Ela afirmou

categoricamente que a lei não funciona, porque os professores não estão preparados

para ministrar aulas sobre história da África e cultura afro-brasileira. Nas palavras da

educadora “não basta ter livros sobre o assunto, os professores precisam ser

preparados”.

Ainda falaremos deste assunto mais adiante no capítulo Perspectivas para a

Cidade onde tratamos mais a fundo questões e possibilidades de implantação da Lei

10.639/2003 nas escolas públicas e particulares de Salvador.

Nesses ciclos de apresentações e diálogos com a Cidade nos encontramos com o

povo descendente de Iyá Nassô, com o Terreiro da Casa Branca. Fomos convidados a

abrir o ano litúrgico deste Terreiro com nossa peça Nós na Cidade. Foi uma

apresentação muito intimista, onde a Mãe de Santo - Mãe Tatá - e demais autoridades

daquela comunidade estavam reunidas para nos ouvir falar delas mesmas. Por que

delas? Porque o Candomblé foi fundado por Iyá Nassô (as pesquisas dizem que foi

esta sacerdotisa que organizou a primeira roda com todos os orixás). E como

estávamos falando do Candomblé da Barroquinha que hoje é o Terreiro da Casa

Branca no Engenho Velho da Federação, também contávamos a história de sua

fundadora Iyá Nassô.

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Figura 20 – Mãe Tatá e outras pessoas do Terreiro assistindo ao espetáculo. Foto: Fábio Gonzalez.

Naquela apresentação aprendemos um significado essencial da educação e a

arte: elas se aprimoram e tomam sentido no próprio fazer. Na Casa Branca nossas

palavras e gestos tornaram-se mais nítidos, transformando a nossa criação em ato

pulsante e transformador. Estávamos em um ambiente religioso, vivenciando um

momento muito especial – ritualístico também, pois estávamos trazendo ali a memória,

a figura, a energia de Iyá Nassô, a primeira matriarca do candomblé de Keto. O nosso

espetáculo que tinha vários rituais ganhava um cenário muito significativo. Estava tudo

vivo. Foi um presente para todos nós sentir tanta presença, e gratidão do povo do

Terreiro.

Podemos confirmar estas emoções, com os depoimentos dos integrantes do

nosso grupo, nas entrevistas concedidas para este trabalho, onde eles destacam a

ressonância na platéia, a emoção de conhecer o candomblé e a superação dos medos

provocados pelo preconceito que carregamos dessa religião.

De todas as edições, a que mais me sensibilizou foi a apresentação no Terreiro da Casa Branca que abriga os herdeiros e simpatizantes de nossa princesa, a Iyá Nassó. Ali senti que cada palavra dita por nós encontrava ressonância na

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platéia que atentamente assistia. E a energia gerada pelos santos que também nos observavam imprimiu uma magia e energia nunca antes sentida com o espetáculo. (Francisco André de Sousa Lima) O local mais marcante foi aquela apresentação no Terreiro da Casa Branca. Pois agreguei um outro conceito para minha formação enquanto pessoa sobre a tradição do Candomblé. Nascida "dentro do Espiritismo", nunca senti muita curiosidade para investigar outras religiões, trazia comigo algumas informações muito superficiais. O convite me chegou com um mar da fascinação, (...) tão espírita quanto antes, mas agora com uma outra compreensão desta parte da cultura africana que me faz parte. (Eliana Sousa Andrade) A 1ª que mais me marcou foi a da Casa Branca. Aquela foi a primeira vez que eu tinha entrado num terreiro de Candomblé, carregando comigo todos os medos e dúvidas possíveis. (...) Foi magnífica e experiência, me senti vivo e foi passo importante na superação de tantos medos, dos quais muitos, ainda hoje carrego dentro de mim. Nem tudo que a cabeça entende o coração sente. (Bira Azevedo).

Figura 21 – recebendo os aplausos do público do Terreiro. Foto: Fábio Gonzalez

Como deixar que um Centro Cultural responsável em educar, oculte uma história

que aconteceu ali mesmo? Deixar de ressaltar a memória da nossa cidade, ocultando

verdades, nossa cultura, as nossas tradições, que nos faz e nos refaz, assim como nos

ensina Freire, “perfilamos a cidade e por ela somos perfilados”:

No fundo, a tarefa educativa das Cidades se realiza também através do tratamento de sua memória, e sua memória não apenas guarda, mas reproduz, estende, comunica-se as gerações que chegam. Seus museus, seus centros de cultura, de arte, são a alma viva do ímpeto criador, dos sinais de aventura do espírito. (2001, p. 24)

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Depois de muitas apresentações11, depois de gritarmos que Coliseu é Colisão com

a Cultura Afro- Baiana12, olhávamos para a Cidade com olhos abertos e mesmo que

não falássemos, sentíamos orgulho do traço que riscamos na história de Salvador. O

traço saía de nossos corpos, nossos sentimentos e emoções. O barulho que fizemos

surtiu efeito: conseguimos mudar o nome do futuro centro cultural. De Coliseu das Artes

passou a ser chamado Espaço Cultural da Barroquinha. Não era o que queríamos, mas

conseguimos mostrar que a educação e a arte têm força para pressionar os

governantes.

Deixar que o nome fosse Coliseu das Artes era negar a identidade negra daquele

local, passar uma borracha na história de construção de Salvador. Não. Incendiamos a

Roma que estavam nos impondo, preferimos os fatos verdadeiros a uma metáfora

mentirosa da história implantada no meio do nosso Centro Histórico. Decidimos assim e

resolvemos dizer basta.

Neste trabalho registro minha indignação e volto a dizer: basta de falsos heróis. É

preciso tirar o manto da mentira que cobre a nossa história e ensinar aos nossos

meninos e meninas que foi com o sangue de nossos antepassados que nossa cidade

foi construída, foi com o sangue e suor de negros e índios escravizados. A cidade

continua a ser violentada. Então é preciso dizer. Basta de mudar os nomes de nossos

aeroportos, de nossas casas de cultura, de nossas escolas e hospitais em nome de

pessoas que na realidade não merecem tal reconhecimento. Através da arte e da

educação pudemos dar nosso testemunho crítico, e com isso nos tornamos mais fortes

para mostrar o que queremos para nossa cidade e para o nosso país.

Somos educadores, responsáveis pelo futuro da educação desse país, temos que

ser realistas e possuidores da força que move nossa gente para enfrentar a realidade

educacional brasileira. É o exercício da cidadania que vamos precisar desenvolver cada

vez mais para poder exercer a nossa profissão de educadores com políticas educativas,

11 A última apresentação do espetáculo Nós na Cidade, foi no grande espetáculo chamado Cidades Invisíveis, realizado pelo grupo italiano Potlach na gratuitamente, durante três dias, na Escola de Belas Artes UFBa, uma proposta de intercâmbio que reuniu mais de 100 artistas baianos. O espetáculo era baseado na obra do escritor italiano Ítalo Calvino Cidades Invisíveis, explorava como tema a memória das cidades. 12 Foram distribuídos panfletos com esse grito de guerra criado pelo CRIAPOESIA nas apresentações que fazíamos juntos.

Page 77: Nos na cidade

75

que ainda pode ser um sonho, mas como dizia o poeta Raul Seixas: “Sonho que se

sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”

e como diz Paulo Freire:

(...) é o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminações de raça, de sexo, de classe, sejam sinais de vergonha e não de afirmação orgulhosa, ou de lamentação puramente cavilosa.(...) Um outro sonho fundamental que se deveria incorporar aos ensinamentos das Cidades Educativas, é o direito que temos, numa verdadeira democracia, de ser diferentes e, por isso mesmo que um direito, o seu alongamento ao direito de ser respeitados na diferença. (FREIRE, 2001, p. 25).

A negação da história dificulta a evolução da sociedade, confunde nossos jovens,

mantendo-os numa submissão e/ou revoltas destrutivas, impedindo o acesso ao direito

de dizer a nossa palavra, de andar livre pelas ruas da cidade. Uma sociedade pautada

nesta ocultação tira a vocação dos jovens de “ser mais”, como afirma Paulo Freire na

Pedagogia do Oprimido “negam-lhe uma vocação nata que é a humanidade” (1987).

Figura 22 – O grupo na aula de História do Teatro em momento de descontração com a professora

Ângela Reis. Foto: Eliana Andrade de Souza

Page 78: Nos na cidade

76

3.3 UM OUTRO OLHAR SOBRE SALVADOR

Das muitas histórias pesquisadas e aprendidas durante o processo com Nós na

Cidade, nos encontramos com a criação do primeiro Terreiro de Candomblé de Keto da

Bahia, localizado na Barroquinha e a primeira fundadora da roda de todos os Orixás – o

xirê – a Iyá Nassô Oká ou apenas Iyá Nassô. Para tal feito, fomos apresentados ao

artista plástico, designer gráfico, antropólogo e professor Renato da Silveira, o autor do

livro O Candomblé da Barroquinha – Processo de constituição do primeiro terreiro

baiano de ketu.

Na época este livro ainda não havia sido lançado, estava em preparação, e o

professor nos apresentou os diversos dos seus estudos antropológicos sobre o

assunto, através de vários artigos, publicados e outros ainda não publicados, e também

esteve conosco nas aulas das escadarias da Barroquinha nos dias 16 e 30 de

novembro de 2004, correspondente ao nosso Módulo I na Escola de Teatro, e também

em mais dois ou três encontros na nossa sala de aula, para contar um pouco da história

da África e dos Orixás.

O projeto de pesquisa do professor Renato da Silveira está incluído no livro

supracitado, que segundo ele é resultado de 30 anos de pesquisa sobre a cultura afro-

brasileira. Foi lançado, pelas edições Maianga, em dezembro de 2006, com 647

páginas, com ilustrações do próprio autor e uma rica pesquisa iconográfica. É um

estudo sobre a história da sociedade brasileira colonial, dos antecedentes do

candomblé no Brasil, várias histórias dos reinos africanos, - guerras e acordos

comerciais com os colonizadores - recheadas de fantásticas histórias dos Orixás.

O livro traça um panorama da criação e desenvolvimento do espaço político

europeu, africano e brasileiro, sem o qual, segundo o próprio autor, não se teria uma

pesquisa satisfatória na compreensão do processo de constituição do Candomblé da

Barroquinha, atual Ilê Axé Iyá Nassô Oká – a Casa Branca do Engenho Velho da

Federação.

Page 79: Nos na cidade

77

Mas como de fato se constituiu atrás de uma Igreja Católica um Terreiro de

Candomblé, em uma época tão tirana contra as manifestações africanas? Quem foram

os principais protagonistas desta história que conseguiram tal intento? Quem era Iyá

Nassô que hoje dá o nome ao Terreiro da Casa Branca? Por que ela foi tão importante

na história do candomblé de keto e por que nós alunos/ atores nos encantamos com a

sua história transformando esse personagem central, no nosso espetáculo Nós na

Cidade?

Entender o processo de constituição desse Terreiro de Candomblé também foi

entrar em contato com os nossos ancestrais, foi dar visibilidade a nossa sociedade

ocultada de afro-descendentes, foi viver uma história nova sobre a sociedade baiana e

brasileira e enxergar Salvador – a segunda maior cidade negra fora da África - com

outros olhos, e perceber porque é considerada a capital mundial da diáspora africana.

Perceber a divisão preconceituosa e racista da cidade e “bater de frente” com nossos

próprios preconceitos, ao assumir um papel de pesquisador entrando num Terreiro de

Candomblé (no caso da maioria dos alunos) pela primeira vez.

Segundo Renato da Silveira, o Candomblé da Barroquinha foi a tentativa

empreendida mais espetacular e mais bem sucedida de constituição de um culto

africano em terras brasileiras. Entendemos então que para este Terreiro se constituir

atrás de uma igreja os seus fundadores teriam que ser estrategistas políticos e/ou até

ligados a própria Igreja da Barroquinha. Mas como e quando isso aconteceu?

Procurando de forma resumida, mas coerente com a história, vamos neste

trabalho também apresentar dados sobre a pesquisa do professor Renato da Silveira e

entender como se constituiu o primeiro candomblé de keto da Bahia e qual a

importância dessa grande personagem da história afro baiana: Iyá Nassô.

A Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha foi inaugurada em 1726, por um grupo

de homens brancos “de modesta condição”, moradores da proximidade, organizados

em uma confraria religiosa. Uma lenda conta que, em tempos antigos, durante uma

terrível tempestade que se abateu sobre a cidade, os soteropolitanos rogaram a

piedade de Nossa Senhora e, tendo conseguido a graça, construíram um oratório

naquele local, justamente para preservar aquele culto.

Page 80: Nos na cidade

78

O termo “confraria” designava as associações mais modestas, mantidas pelos

cristãos mais pobres. Os mais ricos se organizavam em associações chamadas

irmandades. Essas irmandades eram associações importantes na sociedade colonial,

organizadas para a manutenção da estabilidade política, agrupavam ou separavam as

populações segundo status social, ocupação territorial, cor da pele, sexo, atividade

profissional e origem étnica ou nacional.

A participação ordenada dos vários segmentos da população na religião oficial era o modo de assegurar uma certa homogeneidade imaginária e ideológica em populações heterogêneas. Mas a escolha da associação preferida era deixada à escolha e a critério de cada um (...) Pertencer a uma irmandade era ter acesso aos rituais coletivos, mídia de massa por excelência, antes da invenção do jornal diário (...) As procissões e festas das irmandades regulamentadas eram parte integrante da liturgia católica, o ciclo das festas públicas da religião oficial. O grande desfile urbano era uma narrativa um show da comunidade, sua constituição viva. O engajamento em uma irmandade era, portanto, parte fundamental da identidade cívica do homem colonial. (SILVEIRA, 2006, p. 142-143).

Para serem reconhecidas, as irmandades elaboravam um estatuto, um documento

chamado de “compromisso”, segundo modelos fixados nos cânones da Igreja e

transmitidos pelos especialistas em direito canônico, o qual seria em seguida

encaminhado às instâncias superiores da Igreja e do estado para ser sancionado.

Formalmente as irmandades leigas podem ser caracterizadas como organizações voluntárias, monetarizadas, com “jóias” e anuidades, nas quais os próprios participantes, sob supervisão oficial encarregavam-se da seleção dos integrantes, da direção e manutenção do culto, podendo assumir além das funções devocionais e festivas, funções políticas sindicais, assistenciais, funerárias e financeiras. Todas as classes, corporações, segmentos, de alto a baixo da escala social, tinham sua ou suas irmandades. (...) pertencer a uma irmandade, era na sociedade colonial, a principal chave de acesso à cidadania. (2006, p. 143)

Essas irmandades também funcionavam como estabelecimentos financeiros e

empresariais, mobilizavam boa parte do comércio de metais precisos indispensáveis às

decorações das igrejas e aos rituais. Era uma produtora de eventos piedosos e

enquanto tal promovia as artes visuais, a música, as artes performáticas. Esses eventos

eram financiados por seus irmãos honorários.

Esses irmãos honorários poderosos investiam nas solenidades, nos banquetes, na construção e reparo de capelas, alguns eram funcionários do Estado com

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79

formação jurídica, vez por outra, membros da Câmara de vereadores que podiam interceder em favor dos “irmãos” junto aos poderes públicos em caso de necessidade. (...) aquela pequena massa de clientes, assim assistida, ficava com um vínculo, uma dívida com o seu patrono. Em troca devia-lhe teoricamente deferência e lealdade política. (SILVEIRA, 2006, p. 149)

A irmandade negra maior e mais prestigiosa na Bahia (SILVEIRA, 2006), durante

toda a era colonial, foi a do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, atual Pelourinho,

uma das mais antigas da cidade. Essa irmandade atraía muitos irmãos de outras etnias,

ou novas confrarias para os altares laterais da sua capela, tornando-se com o tempo

uma frente que abrigava grande diversidade humana, gente de todos os cantos da

cidade, congregando em grande número, africanos provenientes da África Ocidental.

Com muito prestígio e patrimônio, esta irmandade era considerada a elite negra da

cidade da Bahia, “donde sua ambição de representar politicamente toda a população

afro-baiana” (2006, p.151).

Em um desses altares laterais da Igreja do Rosário dos Pretos, foi fundada

também a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios. Um grupo de crioulos,

provavelmente descendentes de africanos da Costa da Mina, instalou-se inicialmente

com seu santo patrono em um altar lateral daquela igreja em meados do século XVIII,

transferindo-se, em 1764, para a Igreja Nossa Senhora da Barroquinha (SILVEIRA,

2006).

O Candomblé da Barroquinha, fundado por destacados confrades pertencentes à

Irmandade dos Martírios, foi indiretamente protegido, na década de 1810, por irmãos

honorários brancos e de grande prestígio social que haviam aderido à instituição.

Provavelmente por influência do Conde dos Arcos – governador da cidade da Bahia –

representante de uma política colonial moderada que tolerava cultos africanos, “desde

que não desrespeitassem o estado e não desafiassem a ordem pública, e admitissem a

supremacia da Igreja, ostentando figuras de santos católicos em seus barracões” (2006,

p. 153).

Renato da Silveira fez pesquisas em documentos policiais, do senso, nos jornais

da época e além desses, vários outros, inclusive de outras irmandades, pois os da

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80

Irmandade da Nossa Senhora da Barroquinha e dos Irmãos dos Martírios, foram

destruídas com um incêndio em 1983.

Muitas Irmandades de pretos inclusive a fundadora do Candomblé da Barroquinha

sofreu várias vezes ataques dos políticos tiranos, os senhores despóticos, como por

exemplo, o sexto Conde da Ponte o senhor governador colonial Torres Guedes de

Brito, que chegou aqui em 1805.

Em um relatório endereçado ao Conselho Ultramarino Português, datado de 7 de abril de 1807, ele escreveu que, ao investigar para onde iam os numerosos escravos fugidos, descobriu que a cidade era cercada por pequenos quilombos e terreiros clandestinos (...) A vida cotidiana, normalmente dura para a plebe afro-baiana, tornou-se um verdadeiro inferno e esta conjuntura repressiva marcou justamente o período em que os irmãos africanos dos Martírios tinham arrendado um terreno atrás da igreja da Barroquinha e estavam se preparando para ampliar seu candomblé. Mas muita água ainda passaria por baixo do Conde da Ponte. Em 1809, acometido de mal súbito, o governador morreu ainda jovem, aos trinta e seis anos de idade, antes de completar seu mandato. Dizem as más línguas que um “feiticeiro” africano muito poderoso... (SILVEIRA, 2006, p. 253- 254).

Com a morte do Conde da Ponte tomou posse Dom Marcos de Noronha e Brito, o

Conde dos Arcos, governador e capitão geral da Bahia entre 1810 e 1818. “talvez tenha

sido o representante mais ilustre da corrente de opinião moderada em ação no Brasil”

(2006, p. 255).

Essas opiniões divergentes das autoridades faziam com que ora o culto africano

fosse tolerado como fator de estabilidade política e produtividade econômica, como

recurso médico e sanitário indispensável, ora proibido, perseguido, arrastando

novamente os candomblezeiros e curandeiros a clandestinidade, voltando, entretanto

pouco a pouco à ativa. Contando com a força de uma comunidade fiel e o apoio de

brancos aliados, infiltrados até mesmo no aparelho do Estado (SILVEIRA, 2006).

A criação de um consistente corpo de irmãos honorários na Barroquinha pode ser por isso considerada não apenas uma iniciativa do Conde dos Arcos, mas também uma iniciativa dos estrategistas da Barroquinha, que logo perceberam a importância da coisa, e devem ter se mobilizado para conseguir tantas adesões ilustres.(...) Nesse contexto, qualquer membro da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios – e do Candomblé da Barroquinha – perseguido poderia ter a proteção pelo menos de um desses “irmãos” poderosos, suprimindo ou pelo menos atenuando a perseguição. Em parte isso pode explicar porque o Candomblé da Barroquinha pode funcionar em um bairro tão central durante cerca de setenta anos. (2006, p.372)

Page 83: Nos na cidade

81

Nos últimos anos do século XVIII, os africanos da Barroquinha, fundaram um

pequeno culto a Odé (hoje este Orixá chama-se Oxóssi), propiciado pela alforria da

linhagem real Arô de Ketu, na residência de uma Mãe de Santo que morava no bairro

chamada Iyá Adetá. Este culto doméstico implantou na Bahia a tradição de Keto (nação

do Candomblé afro baiano) em um terreno situado nas cercanias da igreja (SILVEIRA,

2006).

Segundo Renato da Silveira (2006), com o crescimento da comunidade nagô,

algumas de suas figuras de maior destaque se filiaram a Irmandade dos Martírios,

passando a gozar de influência na instituição. A etnia dessa irmandade não está

documentada devido o incêndio que carregou nas cinzas tais dados, mas

possivelmente essa Irmandade era eclética, organizava alianças inter-étnicas e

exclusividade no exercício do poder. Portanto, era composta por uma parte de crioulos

descendentes da Costa da Mina os nagôs de Ketu (reino de Ketu na África) e

provavelmente de outras cidades iorubanas.

Com a ampliação da comunidade nagô, cresceu o desejo de fundar uma casa

própria do culto, e para tanto foi arrendado um terreno atrás da Igreja, entre 1804 e

1807, assim explica Renato da Silveira sobre este terreno:

Documentos que se encontram na Cúria Metropolitana informam que, em 1804, o casal Brígida Maria do Espírito Santo e João Vaz Silva, brancos filiados à Confraria de Nossa Senhora da Barroquinha, encaminharam petição a Cúria, visando colocar a disposição da instituição a renda anual de 20 mil réis proveniente do arrendamento de uma “sorte de terras livres sita por detrás da capela N. S. da Barroquinha com sua morada de casas grandes de taipa”, para colocar um Sacrário com o Santíssimo Sacramento (...) (2006, p. 378)

Nessas primeiras décadas do século XIX, a Barroquinha foi se tornando, um bairro

de população predominantemente negro-mestiça. Além de abrigar o candomblé nagô,

contava com uma pequena mesquita e um clube malê, naquela época foi considerada

um reduto cultural africano na cidade da Bahia (SILVEIRA, 2006).

Com o reforço do Conde dos Arcos em 1811, construíram um salão nobre para a

reunião da irmandade na rua da Barroquinha. Favorecendo a implantação de um

verdadeiro terreiro, consagrado a Airá Intile (este Orixá aqui no Brasil chama-se Xangô

e Airá é uma qualidade do Orixá, um Xangô mais velho), dirigido por Iyá Akalá. Odé

Page 84: Nos na cidade

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(Oxóssi) pelos seus direitos de primeiro ocupante, tornou-se o onilé, o senhor da terra

do novo candomblé enquanto Airá Intile é o dono da casa. (SILVEIRA, 2006).

Com o crescimento dos adeptos ao Candomblé da Barroquinha, após a

independência do Brasil, havendo um aumento galopante da população nagô-iorubá na

Bahia, vinda de todas as partes do território iorubano, vários outros Orixás foram sendo

assentados no mesmo espaço, principalmente os das tradições de Oyó, Shabé, Efan,

Ijexá, Ijebu e Egbá, na sua maioria regiões iorubanas saqueadas a partir da segunda

metade da década 1820. Chegaram à Bahia os cultos de Ibualama, Oxalá,

Oxalá/Obatalá, Oxum, Iemanjá e Ogum, dentre outros, que foram assentados no

Terreiro da Barroquinha (SILVEIRA, 2006).

Renato da Silveira (2006) conta que Iyá Nassô veio organizar o culto de Xangô

segundo os preceitos do reino de Oyó e tendo o apoio de Babá Assiká, Êssa, ministro

do Estado, veio ajudar a plantar os fundamentos da casa, estruturando a cúpula da

organização civil dos nagôs – iorubas sediadas na Barroquinha, combinando padrões

de vários dos altos conselhos de Oyó, Ketu e provavelmente também de outras cidades

iorubanas, contribuindo na estruturação de um ritual unificado. Pela primeira vez na

história, foi criado o xirê – a roda de todos os orixás.

Em 1981 foi publicado o segundo depoimento de um intelectual orgânico do universo afro baiano sobre as fundadoras do Candomblé da Barroquinha, o de Antônio Agnelo Pereira, elemaxó de Oxaguiã do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a pessoa então mais versada na tradição oral da Casa Branca: as fundadoras teriam sido então “as três Marias Júlias, tia Iyadetá, tia Iyakalá e tia Iyanassô” (2006, p. 392).

Iyá Nassô é um título conferido a pessoa que se encarrega do culto de Xangô.

Então, sabe-se que seu nome de batismo era Maria Julia, mas paira várias dúvidas

referentes à sua origem étnica. Conta-se que teria sido alforriada, outros dizem que sua

mãe escrava liberta teria viajado para África tendo ficado grávida dela lá, segundo esse

título o autor cita:

O título corresponde a funções religiosas mais específicas e da maior significação na cultura dos iorubás. É a Iyá Nassô quem, em Oyó, a capital da nação política dos iorubas se encarrega do culto de Xangô a principal divindade dos iorubás e o orixá pessoal do rei. Cabe a Iyá Nassô cuidar do santuário

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privado do Alafin; realizar todas as cerimônias propiciatórias do culto, os sacrifícios, as oferendas, zelar, enfim pelo santo do rei (...) Na Bahia do século XIX, povoada de iorubás de vária origem, inclusive de Oyó, ninguém usaria o título de Iyá Nassô se não estivesse autorizado a fazê-lo. Não seria possível uma usurpação do título, ou uma atribuição do nome por um mero processo de reinterpretarão lingüística. (...) Se alguém se chamava na Bahia do começo do século passado Iyá Nassô, essa pessoa certamente teria sido uma sacerdotisa de Xangô, na antiga cidade de Oyó. LIMA (apud SILVEIRA, 2006, p. 400-401).

Maria Julia Iyá Nassô trouxe para a Bahia o culto de vários reis de Oyó

divinizados, que aqui na Bahia se tornaram várias qualidades de Xangô, sendo muito

pouco provável que tenha trazido o de uma outra tradição, inclusive o culto a Ogodô,

um dos principais Orixás da Casa Branca, todos eles Orixás de uma outra tradição que

foram assimilados aqui a Airá, o qual se tornou qualidade especial de Xangô

(SILVEIRA, 2006).

Segundo registros de Pierre Verger o Candomblé da Barroquinha chamava-se Íyá

Omi Ase Àirá Intilè (Iyá Omi Axé Airá Intile), mas não há registros sobre a veracidade

deste nome. Os iorubás no Brasil fazem estudos das palavras e suas procedências,

esse nome acaba sendo aceito, pois Airá Intile é Xangô, o dono da casa (SILVEIRA,

2006).

O Candomblé da Barroquinha foi invadido e expulso do bairro na década de 1850,

quando a política de modernização e rejeição ao passado colonial chegou a Bahia por

intermédio do chefe dos conservadores na Bahia Gonçalves Martins, depois Marques

de Barbacena, que arquitetou um golpe cruel aos africanos proibindo-os de exercitar a

profissão de saveirista. “Da noite para o dia, setecentos e cinqüenta africanos ficaram

desempregados” (2006, p. 535), e autor continua explicando a situação dos negros na

época:

Ora, a urbanização da Barroquinha por Gonçalves Martins pode ser encarada como um movimento audacioso e espetacular de sua política de perseguição aos africanos da Bahia: uma operação de “limpeza étnica”, a destruição de uma respeitável casa do culto africano, no centro da cidade, vista como uma mancha na paisagem. O despotismo brasileiro, do alto de sua inesgotável boçalidade, acreditava que essa era a melhor maneira de “civilizar” o país. (2006, p. 536).

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Segundo o autor Renato da Silveira (2006) Iyá Nassô Oká e o Bamboxê, o Êssa

Obitikô, foram grandes nomes que lideraram os nagôs da Barroquinha. Foram eles que

após terem passado por vários lugares, após a expulsão, encontraram um novo espaço

para o culto e plantaram o Axé no novo terreiro localizado no Engenho Velho da

Federação – a Casa Branca – Mãe de todas as casas de Keto da Bahia.

Durante séculos, os cultos afro-brasileiros viveram na semi-clandestinidade,

eternamente ocultos nas matas ou disfarçados atrás de fachadas convenientes.

Quando ficou claro que o candomblé era indestrutível, que sua visibilidade era

inevitável, prevaleceu uma política de tolerância, no qual, alguns candomblés maiores e

mais prestigiosos, contando com proteção de personalidades importantes do mundo

oficial, tanto política, quanto policial, recebiam licenças para fazer suas festas. A

fundação do Terreiro da Barroquinha foi uma tentativa primeira de buscar a visibilidade

e reconhecimento oficial (SILVEIRA, 2006).

Perseguido até 1976, quando foi suspensa a tutela da polícia, o candomblé foi

considerado uma religião como as demais.

Esse breve histórico foi seguindo uma linha de pensamento e de memória,

baseadas nas aulas que tivemos com o professor Renato da Silveira, re-lendo as

histórias contadas uma vez por ele, nos sendo tão familiares, a ponto de parecer que

estávamos ouvindo-o falar novamente.

Esse outro olhar à Salvador passou a fazer parte de nossas vidas como um outro

olhar à educação, muito além dos sentidos, a educação étnica tantas vezes negada por

um modelo de currículo, que não leva em consideração o nosso passado histórico, nos

negando muitas vezes a possibilidade crítica de olhar a forma com que nossa

sociedade foi constituída. E sobre a importância desse conhecimento sobre a história

da nossa cidade, tanto para nosso conhecimento pessoal como para a educação,

Gessé, nosso colega de turma comenta:

Primeiramente o entendimento de que só se constrói o futuro pensando criticamente o passado. Depois, que viver em uma cidade como Salvador sem entender como ela se formou e se configurou como a que conhecemos agora não faz muito sentido, muito menos para quem trabalha com arte numa cidade, por natureza, artística. O significado de tudo isso é, olhando desse momento de nossas vidas, se construir uma outra maneira de ver a cidade, pautada em

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visões mais críticas da realidade, do debate sobre uma arte crítica e conectada com a realidade que a cidade nos mostra. (Gessé Araújo).

Esse outro olhar só foi possível porque entendemos que a constituição da nossa

sociedade foi determinada também pela constituição do candomblé, uma sociedade

civil organizada e complexa, que carrega em suas raízes mais profundas a preservação

de mitos, histórias e lendas capazes de fomentar ricos processos culturais de estética e

ética.

Uma religião como o candomblé que preserva e perpetua os mitos da nossa

sociedade, capaz de alimentar os sonhos de vida de muitos negros escravos e nossos,

seus descendentes. Este aprendizado nos faz pensar no futuro criticamente, pois se

conhecedores do passado, não concordamos que o futuro seja algo preestabelecido,

sendo assim, podendo agir e refletir sobre ele, para uma transformação.

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4 PERSPECTIVAS PARA A CIDADE

Figura 23: Momento de descontração em dia de espetáculo. Foto: Eliana Andrade de Souza

Áfricabaianidade

Sou africano no sangue

Na nacionalidade

No sentimento Na força

Na nostalgia

Na luta

Na liberdade No amor a terra

Na amizade No grito

Na humildade

No canto

Eu sou Ilê Sou Oludum

Maculelê E o Candomblé

Eu sou africano De raça e de cor

Sou simples humano Que falo de amor

Valdíria Souza

Page 89: Nos na cidade

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4.1 EDUCAÇÃO ÉTNICO- RACIAL, A LEI 10.639/2003

A história do Brasil é marcada pela opressão, discriminação e racismo. A partir de

1850, período já citado no capítulo anterior, começou na Bahia uma política de

modernização. Com o intuito de apagar o passado colonial, muitos negros africanos

que aqui viviam, foram forçados pelos governantes a voltarem para a África.

Desde o final do século XIX, a construção da identidade de nação brasileira esteve

associada ao desejo da elite, de branqueamento da população. Conforme diversos

estudiosos, a ideologia do branqueamento diz respeito à criação de um mecanismo

que, filiado a pressupostos deterministas, apoiava a idéia da necessidade de clarear a

população, viabilizando aos poucos o surgimento de um novo tipo racial mais próximo

do europeu, de pele mais clara, sem o que seria impossível pensar no progresso e no

desenvolvimento da nação.

Entender esse racismo histórico mostra-se importante para compreender como e

porque estes valores “civilizatórios” querem ocultar a história e a herança dos africanos

e afro-brasileiros tão desvalorizados ou negados pela escola, que ainda tem seus

currículos apoiados na visão européia de mundo.

Um outro aspecto importante a ser lembrado é o mito da democracia racial forjado

depois da proliferação de pesquisas sociológicas e antropológicas, nos anos de 1930 a

1940, onde ocorre uma valorização da mestiçagem na construção do Brasil. Por essa

perspectiva da democracia racial negam-se os conflitos e as tensões, afirmando-se que

na mistura das raças todos são iguais. Celebra-se então uma espécie de “folclorização”,

largamente difundida e assumida, por grande parte da população branca e negra,

construindo um imaginário poderoso. Ao desconsiderar a história de dominação do

Brasil e negar o racismo, oculta as desigualdades e as assimetrias entre negros e

brancos, construindo assim o mito da democracia racial.

Em 1980, muitos estudos foram desenvolvidos, fortalecendo novas concepções

para a análise das desigualdades raciais, reforçando a necessidade de considerar o

pertencimento racial como fator decisivo para analisar, entre outros aspectos, as

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88

trajetórias de escolarização pelas quais passam os diferentes grupos. O uso da

categoria “raça” ganhou mais espaço, focalizando as dimensões sociais e políticas do

racismo, afirmando sua existência que discrimina e hierarquizam grupos de acordo com

suas características físicas, e seus legados culturais e religiosos.

As reivindicações históricas da comunidade afro-brasileira implicam na efetivação

de direitos, civis, culturais e econômicos, bem como a valorização da diversidade. O

reconhecimento da nossa história e cultura, fonte de nossa ancestralidade, colabora

efetivamente para desconstrução de mitos, crenças negativas e discriminatórias.

O debate sobre promoção da igualdade das relações étnico-raciais das escolas

ganha intensidade a partir de janeiro de 2003, quando foi sancionada a Lei

10.639/2003. Como política pública de educação, a lei surge em resposta as

reivindicações históricas de pessoas e grupos do movimento social negro que de

diferentes maneiras, têm-se empenhado em prol de ações concretas contra o racismo,

o preconceito e as discriminações raciais na sociedade e na educação.

A promulgação da Lei 10.639/2003 altera a LDB, incluindo o artigo 26-A, o qual

torna obrigatória a temática história e cultura afro-brasileira, no currículo oficial da rede

de ensino pública e particular e ainda o artigo 79-B, que estabelece para o calendário

escolar, o dia 20 de novembro como o dia Nacional da Consciência Negra.

A Lei trata de uma ampliação da estrutura dos currículos escolares para a

diversidade cultural, racial e social do Brasil, incitando a elaboração de novas relações

entre as pessoas, principalmente entre adultos e crianças nos ambientes escolares e no

dia a dia das atividades pedagógicas oferecidas pelas escolas. Essa nova

compreensão exige uma escola que promova conhecimentos sem a violência de negar

a si próprio, seu gênero sua raça, sua orientação sexual, sua religiosidade, suas

deficiências, ou o pertencimento a uma determinada área geográfica.

Em março de 2004, o Conselho Nacional de Educação referendou o dispositivo

legal, aprovando as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações

Étnico- Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”,

identificadas como resolução CNE/CP, 1/2004. Essas diretrizes explicitam aspectos e

Page 91: Nos na cidade

89

princípios fundamentais para a produção de sentidos que contribuem para a criação de

uma nova gramática das relações étnico-raciais, como preconiza a lei.

Aqui destacamos os parágrafos 1º e 2º do artigo 2º da Resolução do Conselho

Nacional de Educação nº 1 de 17 de junho de 2004.

§ 1º: A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e

produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem

cidadãos quanto a pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de

negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e

valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira.

§ 2º: O ensino e História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo o

reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem

como a garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da

nação brasileira, ao lado das indígenas, européias e asiáticas.

Como a Lei 10.639/2003 está sendo trabalhada nas escolas? Como essa

mudança no currículo está acontecendo de fato?

Salvador é uma cidade marcada pela diversidade étnico-cultural, onde os negros

perfazem cerca de 81% da população (IBGE apud SMEC, 2005). A Secretaria Municipal

de Educação e Cultura de Salvador (SMEC), em 1999, publica sua proposta curricular

denominada Escola, Arte e Alegria – sintonizando o ensino municipal com a vocação do

povo da cidade, com o propósito de subsidiar professores e professoras e demais

educadores da rede para por em prática, as orientações emanadas dos PCN que

propõem:

Temas transversais – Ética; Saúde; Meio Ambiente; Orientação Sexual; Trabalho; Pluralidade Cultural – reconhecendo a existência da discriminação, racial e do preconceito no interior da Escola e conclamando os educadores e educadoras a trabalharem conteúdos e metodologias para superar atitudes preconceituosas e racistas em relação aos diversos grupos sociais, sobretudo em relação aos negros e negras. (SMEC, 2005, p. 16)

Esta proposta curricular traça diretrizes para construção de uma escola cidadã,

visando a formação crítica de crianças e jovens, tendo como eixo curricular a identidade

sócio-cultural e artística de Salvador.

Page 92: Nos na cidade

90

Salvador vem produzindo e expandindo significativamente uma educação pautada

na inclusão cultural e consolidando a presença afro-brasileira, através da luta histórica

de participação, mas principalmente pela exposição na literatura, e de toda a indústria

cultural, da riqueza litúrgica, ao longo dos anos. Mais recentemente, essa presença foi

amplificada pelo trabalho desenvolvido por grupos/blocos negros de música afro-baiana

como a pioneira Associação Cultural Carnavalesca Ilê Aiyê, além de outros como Grupo

Cultural Ara Ketu, Grupo Cultural Olodum e Associação Pracatum. Os próprios

Terreiros de Candomblé abrem suas portas hoje para ensinar cultura-afro brasileira que

não se restringe a religião do Candomblé.

Muitas instituições educacionais funcionam dentro dos terreiros de candomblé,

como é o caso, da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos localizada no Terreiro Ilê

Axé Opó Afonjá, onde as crianças estudam e aprendem com base na mitologia

africana. Lá é desenvolvido o projeto Político-Pedagógico Irê Aiyó, criado pela

historiadora Vanda Machado, da qual destacamos a seguinte reflexão sobre o ensino

da cultura-afro brasileira:

No exercício de educar para a vida, o pensamento africano mantém como tradição as histórias míticas, que podem ser consideradas como práticas educacionais que chamam a atenção para princípios e valores que vão inserir a criança ou o jovem na história da comunidade e na grande história da vida. No pensamento africano, a fala ganha força, forma e sentido, significado e orientação para a vida. A palavra é vida, é ação, é jeito de aprender e de ensinar. Assim nasceram os mitos. Contar mitos, em muitos lugares na África, faz parte do jeito de educar a criança que, mesmo antes de ir para escola, aprende as histórias da sua comunidade, os acontecimentos passados, valorizando-os como novidade (MACHADO, [1999-?], p. 3-4).

Em 2005 a SMEC, publicou as Diretrizes Curriculares para inclusão da História e

Cultura Afro-brasileira e Africana para o Sistema Municipal de Ensino de Salvador,

visando a implementação da Lei 10.639/2003 nas escolas, definindo pressupostos

teórico-metodológicos e orientações didáticas, para que educadores do sistema

municipal possam desenvolver seu planejamento pedagógico para a aplicabilidade da

lei.

Sua elaboração é resultado da formação continuada de professores, realizadas

através do Projeto Escola Plural: A Diversidade está na Sala, uma parceria da SMEC

Page 93: Nos na cidade

91

com o CEAO/CEAFRO (Centro de Estudos Afro Orientais UFBA), com apoio da Ford

Fundation e do UNICEF.

Este documento apresenta uma perspectiva crítica da educação, evidenciando a

necessidade de se repensar o Currículo em relação à História e Cultura Afro-Brasileira

e Africanas nas áreas do conhecimento, prevendo abordagens a serem priorizadas nas

práticas pedagógicas embasada nesta perspectiva, trazendo contribuições didáticas

para incorporação do tema, nas diversas áreas do conhecimento: ciências, matemática

história, língua portuguesa, Geografia, Artes e língua estrangeira.

No que se refere à disciplina artes dentro da escola a Secretaria Municipal de

Educação e Cultura destaca que:

Uma educação, com foco na Arte Negra, está ancorada nos princípios e valores de patrimônio milenar africano, expresso no mítico e no lúdico, pelo corpo. Dessa maneira, em uma perspectiva teórica e vivencial, o ensino da Arte aqui proposto tem como prerrogativa a valorização da potencialidades, do próprio corpo e do corpo do outro, enquanto espaço de criação, considerando que na Arte Negra, o corpo é esse espaço de criação. Na arte africana, o corpo tem uma dimensão ancestral, mítica, estética e múltipla. É no corpo que estão reunidas as possibilidades de criar e recriar, o tempo, o espaço, interferindo no real, através de suas produções. Nesse sentido, trabalhar o corpo em artes é resgatar um conhecimento ancestral revivido no cotidiano estético, negro materializado em um corpo que se adorna, com trançados, penteados, torsos tatuagens, miçangas, colares e outros. Fazer Arte Negra na Escola, é portanto, valorizar o corpo enquanto espaço de concepção, produção recriação da vida, um saber mítico mantido pela tradição africana e que no Brasil resulta de um processo de resistência política e cultural liderado pelas comunidades de terreiros, blocos afros, capoeira, dentre outros. (SALVADOR, 2005, p. 68)

Mas qual a abordagem metodológica, uma vez que cada área artística tem suas

especificidades? Quais os conteúdos que um arte-educador vai utilizar para trabalhar

Arte Negra em sua sala de aula considerando aspectos relacionados à dança, a

música, ao teatro e as artes visuais? Segundo a Secretaria Municipal de Educação e

Cultura (SMEC), o trabalho pedagógico em Artes Negras engloba diversos tipos de

expressões, possibilitando a valorização da cultura e também o trabalho com diferentes

linguagens artísticas. Isso é possível inclusive com as metodologias que muitos

professores já trabalham em sala, com brincadeiras e jogos conhecidos, que já

carregam em si muitas referências da matriz africana.

Page 94: Nos na cidade

92

O trabalho pedagógico de um professor de arte vai fazer a diferença quanto a

abordagem metodológica, quando nesses jogos e brincadeiras que já são usados em

sala de aula for percebido que esses carregam em si uma metodologia de troca de

saberes, baseada no prazer do diálogo, característica muito própria da cultura africana

e das linguagens artísticas.

A Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador (SMEC) através das

Diretrizes Curriculares para inclusão da cultura Afro-Brasileira e Africana no sistema

municipal de ensino de Salvador propõe que:

A experimentação é a base da arte matriz africana. Na sala de aula, o fazer não se propõe a formar artistas, mas a desenvolver potencialidades que contribuirão para um ser integral. Dessa forma, mais importante do que o resultado é a possibilidade de experimentar, vivenciar no coletivo e individualmente a reinvenção da vida. Isso significa criar situações em que as alunas alunos construam e reconstruam, signifiquem e ressignifiquem, seu espaço, seu tempo, suas relações e sua história, a partir da utilização de vastos materiais. Neste caso, a professora ou professor pode liberar-se para compartilhar com suas/seus alunas/os, aprendendo a fazer, a ser e a sentir-se parte de um processo de transformação, que começa na resistência do seu corpo e se expande pela História. (SALVADOR, 2005, p. 72)

Para verificar como essas diretrizes estão sendo trabalhadas nas escolas

municipais, entrevistamos a professora Luciana Balbino, ex-aluna da Escola de Teatro,

que trabalha como arte-educadora, no Centro Municipal de Educação Infantil Cid

Passos. Inaugurado pela Prefeitura Municipal de Salvador em parceria com o SESI em

12 de fevereiro de 2003, o Centro Educacional Cid Passos tem como proposta

metodológica a arte como norteadora de toda a filosofia pedagógica. Segundo a

professora Luciana, a escola foi criada para ser um centro de referência da Secretaria

Municipal de Educação e Cultura e para isso precisava de um profissional de teatro,

apesar de já ter professores de diversas expressões artísticas.

Segundo a professora Luciana, esses professores não conseguiam articular as

propostas das diversas áreas:

O Projeto Político Pedagógico centrado na arte-educação já existia, existiam professores de diversas linguagens artísticas, mas eles não conseguiam se articular em uma proposta consistente. Entender e implementar projetos curriculares em arte-educação sempre foi um desafio para a Cid Passos.

Page 95: Nos na cidade

93

Perguntamos sobre sua prática educativa, e em seu discurso percebemos uma

prática com ações afirmativas que trabalham a identidade do educando, valorizando o

seu pertencimento ao bairro, e o trabalho com a cultura popular.

Acredito que sim, porque a cultura da infância está imersa na cultura popular, nas matrizes africanas, indígenas e européias e na fusão destas culturas. Quando trago para a sala de aula, por exemplo, a proposta curricular do ensino do teatro, as matrizes africanas, através da dramatização de mitos, histórias, canções, capoeira angola valorizamos, afirmamos e reconhecemos a cultura afro-brasileira como essencial para a formação da identidade do povo brasileiro tão negada no universo escolar. (Luciana Balbino)

Neste contexto percebemos que sua metodologia corrobora com as atitudes

metodológicas previstas pelas Diretrizes Curriculares propostas pela SMEC, porém ao

ser perguntada sobre a Lei 10.639/2003, a professora Luciana Balbino afirma que e

escola como um todo, ainda não sabe o que é a Lei. Vemos então, que este é um longo

caminho que depende de iniciativas pessoais e políticas públicas para a formação de

professores.

Quisemos saber mais sobre o movimento pessoal desta professora de teatro,

envolvida com uma educação libertária. Em suas respostas às perguntas que fizemos,

podemos observar sua disposição e envolvimento:

Em que medida seu trabalho de teatro trabalha a identidade?

Na medida em que me proponho a conhecer e aproximar-me da realidade cultural da comunidade onde o meu aluno vive. Valorizando seu bairro, a sua história particular, conhecendo melhor a história da cidade de Salvador, criando coletivamente novas representações destas realidades, outros significados através do teatro. Procuro proporcionar as crianças experiências artísticas onde elas possam estar em contato com elementos da cultura popular, que elas possam apropriar-se da cultura de seus ancestrais que lhes foram negadas sistematicamente na escola, porque o modelo curricular é eurocêntrico e propor outras possibilidades desestrutura estereótipos de diversas naturezas construídos secularmente. (Luciana Balbino)

Com relação à Lei 10.639/2003 dentro da escola?

Percebo que a escola ainda não compreende o que realmente é a lei 10.639/2003, apesar das crianças praticarem capoeira na escola e existirem alguns projetos que trabalhem as contribuições de negros, indígenas na construção da identidade cultural do povo brasileiro. Falta aprofundarmos as questões de identidade no currículo. Prometi a mim mesmo que vou começar colecionar os cartazes dos dias das mães. São todas representadas, ano após

Page 96: Nos na cidade

94

ano, por mulheres brancas de cabelos lisos. Sendo que a maioria da clientela da escola é composta por mulheres/mães/professoras/funcionárias negras. Como explicar que ao assistir "Kirikou” e a “feiteiceira” nas aulas de Teatro, as crianças pensam que a TV está com defeito por assistirem no desenho animado personagens negros e não conseguirem se identificar com os mesmos? Como explicar as lágrimas de uma criança ao se perceber negra em leitura de uma história? Ou a repulsa da criança por si mesma ao ver a própria imagem nas gravações de vídeo de nossas próprias experiências educacionais? (Luciana Balbino)

A professora Luciana Balbino, trabalha com recursos audiovisuais, textos, e livros

didáticos propostos pela SMEC. Porém ressalta a pouca formação e preparo do

professor para lidar com questões sensíveis do aluno, no que se refere aos argumentos

dentro da própria atividade pedagógica que sustente a auto-estima do educando, sendo

capaz de responder a criança que ela é negra e que não deve se sentir inferior por isso,

buscando nas próprias atividades, o reconhecimento e pertencimento étnico e cultural.

Não seria o caso das faculdades de pedagogia estarem mais atentas à estas

deficiências?

A Ação Educativa, o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e

Desigualdades) e o CEAFRO (Educação e Profissionalização para Educação Racial e

de Gênero), em parceria com o MIEIB (Movimento Inter-fóruns de Educação Infantil do

Brasil) e Núcleo de Relações Étnico-Raciais e de Gênero da Secretaria Municipal de

Educação de Belo Horizonte, entre agosto de 2005 e julho de 2006, realizaram uma

consulta em escolas públicas que pudesse assinalar as possibilidades e os desafios

para a implementação da referida lei.

A consulta foi realizada em São Paulo, Belo Horizonte e Salvador, em 15 escolas

de educação infantil e ensino fundamental I e II, da rede municipal de ensino.

Destacamos alguns desses desafios e possibilidades:

A partir de informações extraídas da consulta, destacamos dentre os vários

desafios e possibilidades os seguintes: o conteúdo e a qualidade das formações são as

primeiras condições destacadas para implementação da Lei 10.639/2003, se refere ao

uso dos materiais de apóio, de forma que estes sejam de fato apropriados pela equipe

pedagógica, e demais trabalhadores da educação. Um fato importante destacado pela

consulta que deve ser difundido como possibilidade é que em Salvador, a interação e a

Page 97: Nos na cidade

95

relação com a comunidade e o entorno escolar estão sendo primordiais para a

promoção da igualdade étnico-racial da escola, podendo ser difundida, inclusive

durante os processos de formação.

Os pesquisadores chamam atenção também com relação ao interesse e o

compromisso dos professores, que são as pessoas mais responsáveis pela

implementação da lei na realidade da escola, devendo realizar o seu projeto

pedagógico dentro desta perspectiva.

Isso remete à importância de se garantir que a abordagem com relação a implementação da lei seja de fato institucionalizada, perpassando o projeto político-pedagógico e o conjunto de profissionais da escola, não se restringindo as boas iniciativas isoladas de professores ou grupos pontuais de professores. (CEAFRO, 2007, p. 60)

É destacado também, que há um consenso entre os profissionais consultados

(diretores, coordenadores pedagógicos e professores) de que a principal recomendação

ao Ministério da Educação (MEC), diz respeito ao empenho na formação e capacitação,

seguida da recomendação de empenho na elaboração e na efetiva distribuição de

materiais para todo país.

As Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, segundo os profissionais

consultados, cabem o investimento em formação e capacitação, mas também a

divulgação e a disseminação de informações na mídia, viabilizando a implementação da

lei, demonstrando o reconhecimento que ainda falta ser difundido e que o poder

executivo em suas três instâncias, deve ser mais pro-ativo e garantir que isso se

efetive, também trabalhando no campo da subjetividade, sensibilizando professores,

pois estas secretarias são mais próximas do cotidiano escolar.

Para a pesquisa, as escolas devem reorganizar o currículo e criar vínculos com a

comunidade, sendo assim estando diretamente ligada com as primeiras

recomendações, estreito diálogo com o projeto político-pedagógico.

A escola tem um papel central no processo de reeducação das relações étnico raciais e, portanto, precisa assumir seu papel transformador, pautando sistematicamente questões conflituosas, e inegavelmente de difícil abordagem, promovendo junto à sua comunidade escolar o caminho do diálogo e do debate aberto e plural. (CEAFRO, 2007, p. 71)

Page 98: Nos na cidade

96

A professora Luciana, e estas pesquisas, nos mostram que ainda temos muito a

fazer com relação a implementação da Lei 10.639/2003.

Mas caminhos estão sendo traçados, e devem ser disseminados, para todas as

áreas, para todas as instituições, para que todos os professores e escolas (sejam elas

públicas ou particulares) se movimentem para acolher seus alunos e alunas como

sujeitos de sua própria história. Cabe a nós educadores desenvolvermos nossa

capacidade agregadora de diálogo com a Cidade, e também de persistência, para

caminhar no sentido da implementação da Lei 10.639/2003 dentro das escolas públicas

e particulares.

4.2 REPERCUSSÕES NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Dentro deste “caldeirão” cultural e social pela luta de direitos, estamos nós alunos

e alunas da Escola de Teatro. Destacamos o nosso espetáculo Nós na Cidade, como

uma dessas ações afirmativas que durante o período de apresentações, nas ruas e nas

escolas de Salvador, disseminou aspectos interessantes referentes à história da África

e da cultura afro-brasileira. Para nós, alunos/atores foi importante termos vivido esta

experiência, tanto pelo conhecimento da nossa história e dos nossos antepassados,

como por ter desenvolvido um discurso político de educação para a cidadania, com

posturas libertadoras culturais e humanizadoras, pautados no reconhecimento da nossa

identidade e de pertencimento ao lugar como destaca um dos integrantes do grupo:

“Nós na cidade” foi a assunção de uma identidade política, negra, artística, pedagógica, soteropolitana e baiana da turma de licenciatura em teatro 2004. Reafirmou a identidade de grupo da turma, essencial para o seu desenvolvimento pedagógico e artístico. (Francisco André Sousa Lima)

Também realizamos diálogos com a comunidade acadêmica, que possibilitou

debates sobre ações afirmativas dentro da Universidade. Nos apresentamos inclusive

Page 99: Nos na cidade

97

na “calourada” da UFBA, repercutindo esse pensamento de educação étnico-racial aos

que estavam ingressando na nossa Universidade.

O espetáculo Nós na Cidade, também “rendeu frutos”, capaz de envolver os seus

alunos atores com as novas propostas educacionais de educação étnico-racial: duas

significativas experiências foram relatadas nos TCC - Trabalhos de Conclusão de Curso

em 2007. O trabalho de Wellington Borges (Wellington Nonato Borges Sobrinho) e Bira

Azevedo (Ubirajara Azevedo dos Santos Filho), que destacam a influência da

metodologia aplicada no espetáculo, e todo o conhecimento que adquiriram sobre,

pertencimento étnico-cultural, pautados nas pesquisas históricas que realizamos sobre

história da África e da cultura afro-brasileira.

A experiência de Wellington Borges foi uma ação experimental com adolescentes

dentro do Terreiro da Casa Branca, (relatada em seu TCC com o título O teatro e a

cultura afro-brasileira em uma proposta extracurricular), que prevê o ensino da cultura e

história da África e afro-brasileira, com a metodologia baseada no teatro improvisacional

e nos jogos teatrais, levando em consideração a história das pessoas do local, ou seja,

também pautado na busca de auto-conhecimento.

A experiência de Bira Azevedo está relatada em seu TCC com o título África Terra

– Viva Brasil: Metodologia de um processo criativo – relato de uma encenação na Casa

do Sol em Cajazeiras, Salvador, Bahia. Com ele realizamos uma entrevista sobre esta

experiência de construção desse espetáculo na Casa do Sol. Em suas respostas (que

transcrevemos abaixo) podemos ver que ele destaca a ligação da sua experiência com

o espetáculo Nós na Cidade, “sobretudo porque o tema estava ligado à África”.

Fizemos questão de incluir na integra duas de suas respostas, com o intuito de

demonstrar o envolvimento do jovem arte-educador com o seu contexto, sobretudo

valorizando as questões de pertencimento ao bairro e a cidade, destacando pontos que

já falamos nos capítulos anteriores como, por exemplo, identidade e sua visão crítica da

cidade. Bira Azevedo atribui uma importância ao teatro e arte no processo de auto-

conhecimento capaz de fazer ampliar os nossos mundos, respondendo como e porque

considera a sua experiência na ONG Casa do Sol como ação afirmativa ele responde:

Page 100: Nos na cidade

98

Minha ação na Casa do Sol pretende sempre ser Afirmativa e Formativa e Educativa e Política e Crítica e Transformadora e Sonhadora. A Casa do Sol é o lugar onde cresci e onde aprendi a olhar e ver as coisas do mundo. É o meu lugar primeiro. Sempre procuro fazer com que as pessoas que lá estão possam vivenciar algo parecido com o que eu vivi lá dentro porque considero que foi algo positivo para o mundo. Acrescento ainda que a Casa do Sol é o lugar que mais aprendi e aprendo na minha prática e busca de tornar-me educador. E isto esteve presente na construção do África Terra – Viva Brasil. O processo de construção deste espetáculo foi muito parecido com o que vivenciei na UFBA com a construção do “Nós na Cidade”, sobretudo porque o tema estava ligado à África. Falar de África hoje, partindo da perspectiva de uma África que contribui com o nosso modo de vida hoje é uma ação afirmativa ainda mais no contexto de periferia que é o caso de Cajazeiras, onde alguns preconceitos e idéias são ainda mais entranhados por conta do pouco acesso a diferentes experiências. (Bira Azevedo)

Com relação a identidade e seu trabalho na Casa do Sol Bira diz que o teatro e arte em

geral educa e principalmente cria instrumentos para que as pessoas possam se

conhecer mais e passem a se questionar e desejarem ampliar a visão que se tem do

mundo:

Na medida em que eu, Bira Azevedo, acredito e me dou cada vez mais conta que o Teatro, que a arte, educa e que educando estamos criando instrumentos para que as pessoas possam se conhecer mais, se questionarem mais e desta forma desejarem ampliar os próprios mundos. Com o teatro é possível descobrir o próprio corpo, isto é trabalhar identidade. Descobrir e escutar a própria voz, isto é trabalhar identidade. Ver e sentir e tocar e jogar com o outro, isto é trabalhar identidade. Criar personagem e situações diversas e com elas olhar para a própria vida, isto é trabalhar identidade. Produzir textos sobre si, sobre o outro e sobre o mundo, isto é trabalhar identidade. Olhar e perceber o local onde se esta isto é trabalhar identidade.Eu trabalho com Teatro, trabalho com pessoas, com cada um que esta na minha frente, com os olhos brilhando e cheios de desejo de aprenderem algo. Meus olhos também brilham e eu me sinto um apaixonado por isso. Faço isto porque desta forma encontro sentido pra minha vida e partilho muito das vidas dos outros. (Bira Azevedo)

Considerando a arte e o teatro como instrumentos próprios de educação, que

trabalha o corpo, a expressão e a fala criando possibilidades dos alunos se

conhecerem, muitos educadores assim como os já citados neste trabalho, os que

colaboraram com ele e participaram da construção do espetáculo Nós na Cidade

percebem no teatro e nas artes uma característica muito próxima da educação africana,

que é “o exercício de educar para a vida”, para inserir o educando na história da

comunidade e do mundo tornando-o sujeito crítico e “dono” da sua própria vida.

Page 101: Nos na cidade

99

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando eu era criança, sempre ouvi das pessoas que Candomblé era coisa do

diabo, que não era religião, e sim uma seita que fazia mal. Esses preconceitos me

chegaram pela escola, que só falava dos negros no folclore, ou nos temas ligados a

escravidão, tratando-os como povos inferiores, escravos apenas, sem considerar sua

humanidade, principalmente pelo fato de não serem cristãos, o que os tornava quase

bichos na visão de muitos.

Muitas vezes ao ouvir músicas ou histórias dos Orixás, ainda nesta época de

infância, me admirava com um mundo novo que me era trazido. Os sons dos tambores

de candomblés vizinhos, ou na televisão, me tocavam forte e me mostravam que as

manifestações culturais afro-brasileiras existiam perto de mim. Tinha curiosidade de

conhecer aquele universo mítico e ver as pessoas, suas roupas e suas danças, mas

isso me foi negado, tanto por meus medos, quanto por minha família, que apesar de ser

católica na época tinha esse preconceito trazido por toda a sociedade.

Já na adolescência comecei a demonstrar mais a minha curiosidade pela religião

apesar de ainda ter preconceitos. Foi nesta época que minha mãe me contou que

minha avó já tinha sido do candomblé, e que ela, minha mãe, por ser a mais velha da

casa, nos dias de festas no terreiro, tinha que ficar tomando conta sozinha de seus

quatro irmãos mais novos. Ela ouvia de longe os batuques dos tambores da festa.

Essa história me veio como um fato revelador para toda aquela minha inquietação.

Saber que minha avó também foi do candomblé talvez explicasse porque eu também

sentia aquela vontade de conhecer. Sentia-me sensibilizada com os tambores, com as

danças e as músicas dos Orixás.

Com esta história pessoal, trago um sentimento, uma imagem, que não é só

minha. É uma imagem de um Brasil com crianças que se perguntam e querem

conhecer a sua história.

Page 102: Nos na cidade

100

Atribuo ao Nós na Cidade não só a importância educacional na minha vida, mas

também uma importância de cunho religioso. Pois foi a partir do contato com a história

do povo africano e principalmente com o contato com o primeiro Terreiro de Candomblé

de keto na Bahia, que eu pude conhecer conceitos e entrar em conexão com a minha

ancestralidade, com o Axé, e assim, pude me aprofundar em mitos da construção do

mundo e conhecimento dos Orixás, passando a me aceitar verdadeiramente. O

espetáculo teve de fato um papel importante na elevação de minha auto-estima, e foi

durante esse período de descoberta de auto-conhecimento que descobri que minhas

inquietações vinham dessa necessidade de me encontrar comigo mesma, com meus

parentes ancestrais. Foi dentro desse processo que me assumi pesquisadora da

religião e me assumo hoje como filha de Santo.

Considero essa uma atitude política, pois me assumo como representante de uma

cultura tão negada pelos preconceitos trazidos de tempos atrás. Lembro aqui a fala de

minha colega Eliana Andrade “tão espírita quanto antes” de que o processo foi muito

importante, pois falar da história da África e dos afro-brasileiros é falar de uma história

que fazemos parte.

Assim aqui neste Trabalho de Conclusão de Curso me assumo como uma artista e

educadora sensível às histórias da cidade, pensando uma educação pautada no sonho,

na democracia, na autonomia e na liberdade. Uma educação pautada no direito que

temos de ser diferentes, e “por isso mesmo que um direito, o seu alongamento de ser

respeitado na diferença”, como nos diz o mestre Paulo Freire.

Page 103: Nos na cidade

101

REFERÊNCIAS

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Page 104: Nos na cidade

102

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Page 105: Nos na cidade

103

ENTREVISTAS ARAÚJO, Gessé. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 17 abr. 2008. Entrevista. AZEVEDO, Bira. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 02 jun. 2008. Entrevista. BALBINO, Luciana. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 22 mai. 2008. Entrevista. BARRETO, Jandiara. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebia por [email protected] em 17 abr. 2008. Entrevista. BONIFÁCIO, Camila. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 24 mai. 2008. Entrevista. FLÁVIO, Ângelo. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 30 mai. 2008. Entrevista. GAMA, Daiane. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em LIMA, Francisco André de Sousa. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 08 de mai. 2008. Entrevista. SOUZA, Eliana Andrade de. Publicação eletrônica [entrevista por e-mail] mensagem recebida por [email protected] em 13 mai. 2008. Entrevista.

Page 106: Nos na cidade

104

ANEXOS

Page 107: Nos na cidade

105

ANEXO A – LEI N° 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Mensagem de veto

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

§ 3o (VETADO)"

"Art. 79-A. (VETADO)"

"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como „Dia Nacional da Consciência Negra‟."

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 10.1.2003

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ANEXO B – LEI N° 11.645, DE 10 DE MARÇO DE 2008

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad

Este texto não substitui o publicado no DOU de 11.3.2008.

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ANEXO C – Panfleto da Mobilização contra o nome Coliseu das Artes Panfleto: frente

Panfleto: verso

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ANEXO D – Jornal A TARDE: Notícias sobre a Igreja da Barroquinha

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ANEXO E – DVD do Espetáculo Nós na Cidade – Apresentação na Sala 5 da Escola de

Teatro.