“nós fizemos isso para vocês, brancos, saberem que nós...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES - CEART MESTRADO EM TEATRO LÍGIA MARINA DE ALMEIDA “Nós fizemos isso para vocês, brancos, saberem que nós existimos!”: imagens de luta dos povos originários do Brasil (2013-2015) Florianópolis, SC 2016

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE ARTES - CEART

    MESTRADO EM TEATRO

    LGIA MARINA DE ALMEIDA

    Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns

    existimos!: imagens de luta dos povos originrios do Brasil

    (2013-2015)

    Florianpolis, SC

    2016

  • LGIA MARINA DE ALMEIDA

    Ns fizemos isso, para vocs, brancos, saberem que ns existimos!: imagens de luta dos

    povos originrios do Brasil (2013-2015)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Teatro, da Universidade do

    Estado de Santa Catarina, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de Mestre em

    Teatro, na linha de pesquisa Linguagens

    Cnicas, Corpo e Subjetividade.

    Orientadora: Prof. Dra. Ftima Costa de Lima

    FLORIANPOLIS, SC

    Agosto de 2016

  • Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

    A447n

    Almeida, Lgia Marina de

    Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns existimos!: imagens de luta dos povos originrios do Brasil (2013-2015) / Lgia Marina de Almeida. - 2016.

    182 p. il.; 21 cm

    Orientadora: Ftima Costa de Lima Bibliografia: p. 175-182 Dissertao (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro

    de Artes, Programa de Ps-Graduao em Teatro, Florianpolis, 2016.

    1. ndios. 2. Povos latinos da Amrica Latina. I. Lima, Ftima Costa de. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Teatro. III. Ttulo.

    CDD: 306.08 - 20.ed.

  • LGIA MARINA DE ALMEIDA

    Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns existimos!: imagens de luta dos

    povos originrios do Brasil (2013-2015)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Teatro, da Universidade do

    Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teatro,

    na linha de pesquisa Linguagens Cnicas, Corpo e Subjetividade.

    Banca Examinadora

    Orientadora:

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Ftima Costa de Lima

    Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

    Membro:

    Externo

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Jos Ferreira dos Santos (nome indgena: Cas Angat)

    Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)

    Membro:

    Interno

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Tereza Mara Franzoni

    Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

    Florianpolis, 15 de agosto de 2016.

  • Dedico este trabalho a todxs que tombaram na luta pela terra e aos que lutam e ensinam

    para uma existncia sobre/com a terra com mais dignidade e amor.

    Dedico este trabalho a todxs as guerreiras e guerreiros que aparecem nas fotos deste

    trabalho, que eu no conheo mas que lutam por nossa sobrevivncia, mesmo sem nos

    conhecer.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo profundamente (e brevemente aqui, porque tem gesto que s no vivo de

    um abrao mesmo) e com todo meu corao os parceiros de jornada:

    Ana, Luis, Caio, Letcia, Anna Julia, Lucas, Patrcia, Luiz, Cida, Alicnio, Manoel;

    Ftima, Tereza, Cas, Brgida, Tonico, Alexandre, Cnthia, Tiago;

    CAPES, Grupo Imagens Polticas, Mila, Thony, Rodrigo, todxs xs funcionrios da

    UDESC, todxs meus colegas do PPGT e colegas do grupo Democratizao do PPGT;

    La Pocha Nostra, Coletivo Coiote, ERRO grupo, II Trupe de Choque;

    Todxs xs envolvidxs no curso de Indstria Cultural e Cultura de Massas do LECERA

    (MST-UFSC) e dos projetos Arte no Campo e Residncia Agrria Jovem (MST-UDESC);

    Estudantes, professores e funcionrios da Escola Estadual Indgena de Ensino Mdio

    Pascoal Leite Dias e amigxs moradores da Terra Indgena Limo Verde;

    Valdelice, Jatali, Amncio, Ernesto, Srgio, Ldio, Natanael, Kellen, Talita, Arami

    Marcos, Joo, Rodrigo, Tom, Rony, Arami A., Tai, Wilson, Roberta, Fabiane;

    Everton, Mirela, Cau, Mrcia, Jnata, Leonardo, Lola, Jlia, Helosa, Gurcius;

    I-San, Omar;

    Ruth, Ioanna, Jenny, Bruno;

    Gustavo, Lia, Luiz, Patrcia, Andr, Marcel, Hector, Pedro, Eduardo, Felipe, Carla,

    Francine;

    Bruna, Marcela, Lucas, Maria Luiza, Ana, Thiago, Felipe, Lo, Nilo, Benjamin, Dani;

    Ivan, Juliana, Christiane, Luciana, Gabriela, Stlio, Nizael, Eduardo, Ctia, Michelly,

    Lucilene;

    Bel, Anas, Tiago, Marizilda;

    Naiara, Ins, Jos, Alai, Leonardo, Luana, Alice, Leila.

  • 1

    Os brancos desenham suas palavras porque seu

    pensamento cheio de esquecimento. Ns

    guardamos as palavras dos nossos antepassados

    dentro de ns h muito tempo e continuamos

    passando-as para os nossos filhos. As crianas,

    que no sabem nada dos espritos, escutam os

    cantos dos xams e depois querem ver os

    espritos por sua vez. assim que, apesar de

    muito antigas, as palavras dos xapirip sempre

    voltam a ser novas. So elas que aumentam

    nossos pensamentos. So elas que nos fazem ver

    e conhecer as coisas de longe, as coisas dos

    antigos. o nosso estudo, o que nos ensina a

    sonhar. Deste modo, quem no bebe o sopro dos

    espritos tem o pensamento curto e enfumaado;

    quem no olhado pelos xapirip no sonha, s

    dorme com um machado no cho.

    David Kopenawa Yanomami2

    1 Imagem retirada do feed de notcias do Facebook. Em pesquisa no stio de busca de

    informaes Google, a autoria da frase atribuda ao poeta libans Khalil Gibran.

    2 KOPENAWA, sem ano, s/p

  • Os Guarani Kaiow sabem que a palavra dos

    no ndios, no Brasil, nada diz. Desde 1980

    denunciado que os jovens indgenas se enforcam

    em ps de rvores porque as palavras dos

    brancos nada dizem. Sem poder viver, se matam.

    Isso chamou alguma ateno, no incio do

    fenmeno, depois entrou na rotina, j no era

    notcia. Os altos ndices de desnutrio, que j

    levou crianas morte, tambm so bem

    conhecidos. Nem a conscincia de que os

    indgenas passam fome acelerou o processo de

    demarcao de suas terras

    Eliane Brum3

    Esse papel que t aqui pra ser assinado no tem

    vida, mas por causa dele nosso povo t morrendo

    l.

    Elson Guarani-Kaiow4

    3 BRUM, 2016b, s/p

    4 INSTITUTO SCIOAMBIENTAL, 2016, s/p

  • RESUMO

    ALMEIDA, Lgia Marina de. Ns fizemos isso para vocs, brancos, saberem que ns

    existimos!: imagens de luta dos povos originrios do Brasil (2013-2015). Dissertao

    (Mestrado em Teatro - Linha de pesquisa: Linguagens Cnicas, Corpo e Subjetividade) -

    Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Ps-graduao em Teatro,

    Florianpolis, 2016.

    Este trabalho visa apresentar um arquivo com imagens fotogrficas de aes

    simblicas, que envolvem algum tipo de representao, realizadas pelos povos originrios do

    Brasil em situao de luta contra a colonizao ainda vigente, expresso, especialmente, na

    Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215), do ex-deputado Almir S. Estas imagens

    foram to somente conhecidas e recolhidas por mim no espectro do ativismo virtual e sua

    seleo foi orientada pela pergunta: como os povos originrios do Brasil refuncionalizam as

    ferramentas de agitao e propaganda disponveis?

    Palavras-chave: agitprop, PEC 215, povos originrios do Brasil, ativismo virtual.

  • RESUMEN

    ALMEIDA, Lgia Marina de. Hicimos eso para que ustedes, los blancos, supieran que

    nosotros existimos!: imgenes de lucha de los pueblos originarios del Brasil (2013-2015).

    Tesis (Maestra en Teatro - Lnea de investigacin: Lenguajes Escnicas, Cuerpo y

    Subjetividad) - Universidad del Estado de Santa Catarina. Programa de Posgrado en Teatro,

    Florianpolis, 2016.

    Este trabajo pretende presentar un archivo de imgenes fotogrficas de acciones

    simblicas que involucran algn tipo de representacin realizada por los pueblos originarios

    del Brasil en situacin de lucha contra la colonizacin an vigente, expresada especialmente

    en la Propuesta de Enmienda Constitucional 215 (PEC 215), del ex diputado Almir S. Estas

    imgenes fueron conocidas y recopiladas por m en el mbito del activismo virtual y su

    seleccin estuvo orientada por la pregunta: cmo es que los pueblos originarios del Brasil

    refuncionalizan las herramientas de agitacin y propaganda disponibles?

    Palabras-clave: agitprop, PEC 215, pueblos originarios del Brasil, activismo virtual.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    APIB - Articulao dos Povos Indgenas do Brasil

    ATL Acampamento Terra Livre

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CIMI Conselho Indigenista Missionrio

    CPI Comisso Parlamentar de Inqurito

    EZLN Ejercito Zapatista de Liberacin Nacional

    FIFA Federao Internacional de Futebol

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    IELA Instituto de Estudos Latino-Americano

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    ISA Instituto Scio Ambiental

    MASP Museu de Arte de So Paulo Assis Chateaubriand

    MEC - Ministrio da Educao

    MinC Ministrio da Cultura

    PEC Proposta de Emenda Constitucional

    PPGT Programa de Ps-Graduao em Teatro

    STF Superior Tribunal Federal

    UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina

    UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

  • SUMRIO

    PREFCIO OU CARTA AO LEITOR Ins Saber e Jos Estrada ................. 15

    MANIFESTO: PORQUE FECHAMOS A BANDEIRANTES? ..................... 17

    TUPI OR NOT TUPI? ..................................................................................... 18

    INTRODUO: NO H UM DOCUMENTO DE CULTURA QUE NO

    SEJA, AO MESMO TEMPO, UM DOCUMENTO DA

    BARBRIE.........................................................................................................

    19

    APNDICE ........................................................................................................... 30

    1. INCIO: QUAL O REAL DA POESIA?.................................................................................................. 31

    1.1. Margem abandonada - Paisagem com argonautas-brancos-espritos-tatus-gigantes ................................................................................................. 31

    1.2. Mbarakay medida performativa ............................................................. 36

    1.3. Teatro da resistncia novas ferramentas de luta ........................................ 41

    1.4. Xipe-totec - vestir a pele ........................................................................................................................ 49

    1.5. #SomosTodos? diferena e identidade ................................................... 54

    1.6. - A palavra que age. / Como? .................................................................. 56

    1.7. Arte versus PEC 215 ................................................................................... 63

    1.8. Fazer a arte falar ....................................................................................... 70

    2. PONTE: AGITAO E PROPAGANDA .................................................. 73

    2.1. Agitprop ....................................................................................................... 76

    2.2. Aprender a ver ....................................................................................................................... 79

    2.3. Alm da palavra .......................................................................................... 81

    2.4. Metodologia muito mais uma forma de organizar as dvidas do que estruturar as certezas ................................................................................... 83

  • 2.5. Tecido de luta .............................................................................................. 87

    3. MEIO: IMAGENS DE LUTA ............................................................. 91

    16 de abril de 2013 Abril Indgena ............................................................... 95

    09 de agosto de 2013 - T l o corpo estendido no cho ............................... 98

    23 de maro de 2013 Devir ndio .................................................................. 100

    18 de agosto de 2013 (R)existncia! .............................................................. 103

    02 de outubro de 2013 Carregar o corpo ..................................................... 106

    02 de outubro de 2013 Papel cenogrfico .................................................... 109

    04 de outubro de 2013 Fantasmagorias ....................................................... 111

    27 de maio de 2014 Corpo-manifesto ........................................................... 113

    29 de maio de 2014 Caminho entre opostos ................................................. 116

    6 de junho de 2014 Fazer a carapua servir ................................................. 119

    26 de novembro de 2014 Consequncias de olhar a terra de longe ............. 125

    04 de dezembro 2014 Arma simblica .......................................................... 129

    15 de abril de 2015 Nenhuma palavra: a imagem fala ................................ 130

    21 de maio de 2015 Acender as velas j profisso (...) a gente morre sem

    querer morrer ..................................................................................................... 133

    28 de outubro de 2015 - Cartaz-humano ......................................................... 135

    26 de novembro de 2015 Qual o real da poesia? ...................................... 139

    07 de dezembro de 2015 Colocar o corpo ..................................................... 143

    16 de dezembro de 2015 Stio especfico ......................................................... 146

    CONSIDERAES FINAIS: FIM SEM FIM ................................................. 149

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................ 169

    REFERNCIAS IMAGTICAS ...................................................................... 175

  • 15

    PREFCIO OU CARTA AO LEITOR

    Prezado leitor,

    Primeiramente (Fora Temer!) gostaramos de expressar nosso prazer em trabalhar na

    reviso desta dissertao, devido importncia de seu contedo. Lgia nos mostra um

    universo do qual pouco sabemos, trazendo histrias e perspectivas de mundo trazidas por

    pessoas que muitas vezes no tm voz, ou so desconsiderados pela sociedade moderna, ou

    como nos diz a autora, pelo povo da mercadoria.

    Lgia faz um extenso trabalho de busca na internet sobre os povos originrios do

    Brasil, historicamente maltratados, excludos e at chacinados, e o que encontra so pedaos,

    ou pistas que ela faz questo de escancarar como contribuio com a luta contra seu

    aniquilamento, incorporando, artstica e intelectualmente, a subjetividade indgena. Entre

    fotos, comentrios dispersos e muitas vezes no rastreveis na mdia (como Facebook e stios

    de notcias), Lgia, por uma srie de motivos, nos mostra a dificuldade de montar esse quebra-

    cabea no formato acadmico tradicional.

    O primeiro motivo a humildade: ao invs de analisar suas performances e aes e

    justificar a importncia de sua postura - ato bastante comum em pesquisas acadmicas de

    Artes Cnicas -, ela dedica seu tempo em evidenciar a luta dos povos originrios desta terra

    mesmo sabendo que o tempo que ela tinha para produzir um material escrito seria reduzido.

    Somando a isso, Lgia no conseguiu encontrar uma forma coerente para dispor o

    contedo: Se o objeto uma atitude revolucionria; contrariamente, o modo em que se

    apresenta no eficaz enquanto luta, por lutar do lado que no pertence j que no pretende

    ser uma terica. Dessa forma, seu texto quase uma metfora dos ndios tentando viver num

    mundo colonizado pelos no-ndios.

    Portanto, dentre os problemas com a forma, o maior deles est na sua confuso de

    papis - Lgia oscila entre os dois mundos, os dos povos originrios versus o dos povos da

    mercadoria. Ora ela explica, interpreta e busca justificar, ora ela descreve e se deixa

    emocionar.

    De qualquer maneira, esta dissertao abre a possibilidade para que novas pesquisas,

    de diferentes posturas e abordagens, sejam feitas a respeito dessa luta. um passo, ou muitos

    deles, para que a voz dos povos originrios do Brasil sejam ouvidos e documentados.

  • 16

    O mais importante, ao final, que a leitura e a absoro do contedo desta dissertao

    seja feita sem preconceitos, com a mente aberta para novas interpretaes da realidade que

    vivemos. A pesquisadora ainda no encontrou uma forma eficaz de lutar atravs do texto

    escrito, como j faz performaticamente. Ns, revisores, estudiosos da linguagem, tentamos

    manter a essncia desta contradio em que se encontra Lgia, em detrimento de uma forma

    colonizadora. Ao invs de suprimir suas ideias com palavras que no condizem com suas

    aes, e transformar seu trabalho no que no busca ser, procuramos deixar que o leitor

    descubra quem a verdadeira Lgia Marina de Almeida.

    Ines Saber de Mello & Jos Luis Estrada Araneda

    Florianpolis, julho de 2016

  • 17

    MANIFESTO: PORQUE FECHAMOS A BANDEIRANTES?

    Hoje ns indgenas guarani de todas as aldeias de So Paulo fechamos pacificamente a

    rodovia dos bandeirantes, que passa em cima da nossa aldeia no Pico do Jaragu. Fizemos

    isso para vocs, brancos, saberem que ns existimos e que estamos lutando por nossas

    terras, porque precisamos delas para ter onde dormir e criar nossas crianas. Esse nome,

    bandeirantes, para ns significa a morte dos nossos antepassados. Mas muitos de vocs

    brancos tem orgulho deles e dos seus massacres contra nosso povo.

    Em homenagem a eles vocs batizaram o palcio do governador de So Paulo, e levantaram

    esttuas por toda parte. H muitos que querem repetir o que fizeram os bandeirantes no

    passado, nos exterminando e roubando nossas terras para enriquecer.

    Os polticos ruralistas, aliados do Governo, querem aprovar a PEC 215, para parar todas as

    demarcaes que ainda faltam, e ainda roubar terras que j esto demarcadas. Nossos

    guerreiros vo continuar resistindo, e faremos o que for necessrio para ter uma parte das

    nossas terras de volta. Ns somos os primeiros habitantes desse territrio.

    Ser que h muita terra pra pouco ndio? No essa a nossa realidade.

    Vivemos no que sobrou da mata atlntica, nossas terras so minsculas e somos muitos,

    enquanto alguns poucos polticos e empresrios tem muita terra e ainda querem mais.

    Com esse ato pacfico que fazemos agora exigimos:

    - Que os deputados arquivem a PEC 215, e parem de tentar destruir nossos direitos.

    (...) Convocamos todos os movimentos sociais e todas as pessoas que so contra a devastao

    da natureza e so contra a concentrao da riqueza do pas na mo de poucos

    latifundirios... Vamos s ruas nesse dia para mostrar que nesse pas deve ter espao para

    todos!5 (COMISSO GUARANI YVYPUA, 2013)

    5 Manifesto: Porque fechamos a bandeirantes? parte da ao realizada em 26 de Setembro de

    2013, anunciando a Semana Nacional de Mobilizao Indgena daquele ano. Os Guarani

    Mbya de So Paulo bloqueram a Rodovia dos Bandeirantes que atravessa suas terras

    exigindo o reconhecimento dessas e a suspenso da PEC 215. Imagens da ao e texto do

    manifesto disponveis em: . Acesso

    em 19/07/16.

    https://www.youtube.com/watch?v=eV7WMdvGirM

  • 18

    Tupi or not tupi?

    Quando eu era pequena, em So Paulo (SP), lugar aonde nasci e cresci, filha de nordestino

    com paulista, me diziam que eu parecia uma indiazinha.

    Adulta, morando em Dourados (MS), me perguntavam, desculpando-se pela pergunta, se eu

    era filha de bugre.

    No Mxico, me diziam mestiza.

    Tambm em Dourados (MS), um colega guarani-kaiow de um curso de teatro que eu

    participei, me disse que eu parecia parente dele.

    Uma amiga me chamava de ndia padro Rede Globo.

    Em Florianpolis (SC), quando eu raspava a sobrancelha, cortava a franja curta e colocava

    uma pena para prender o cabelo, me paravam em locais pblicos para perguntar se eu era uma

    ndia.

    Recentemente, em Florianpolis tambm, uma mestranda do curso de Antropologia Social da

    UFSC, pertencente ao povo originrio Xokleng, povo que, por sua vez, foi praticamente

    exterminada pelos chamados bugreiros do sul do pas (os mesmos que exibiam colares com as

    orelhas cortadas dos indgenas assassinados por eles) me perguntou se eu era indgena. Eu

    respondi que no. Gostaria de ter respondido que eu sou e no sou indgena, ao mesmo tempo.

  • 19

    INTRODUO: NO H UM DOCUMENTO DE CULTURA QUE NO SEJA, AO

    MESMO TEMPO, UM DOCUMENTO DA BARBRIE6

    Atualmente, queixou-se o Sr. Keuner, existem

    muitas pessoas que se gabam de poder escrever

    grandes livros inteiramente ss, e isso tem a

    aprovao geral. O filsofo chins Chuang-Ts

    escreveu, na idade madura, um livro de cem mil

    palavras, do qual nove dcimos eram citaes.

    Entre ns, livros assim no podem mais ser

    escritos, pois falta o esprito. Em conseqncia,

    as idias so apenas de cunho prprio,

    parecendo preguioso aquele que no as produz

    em nmero suficiente. certo que assim no h

    idias que sejam tomadas de outros, e tambm

    no h formulao de uma idia que se pudesse

    citar. E como precisam de pouca coisa para sua

    atividade, essas pessoas! Uma pena e algum

    papel tudo o que podem exibir. E sem qualquer

    auxlio, apenas com o msero material que uma

    pessoa levaria nas mos, so capazes de erguer

    suas cabanas. Desconhecem edifcios maiores

    que aqueles que um indivduo capaz de

    construir.7

    Bertolt Brecht

    Antes de comear, gostaria de expor uma espcie de manual de leitura deste trabalho

    cuja construo foi quase que totalmente feita com materiais retirados da internet. Sendo

    assim, pelo intenso contato com a mesma, busquei plasmar aqui uma das caractersticas

    formais possibilitada pela internet: o hipertexto.

    Segundo a Wikipdia8:

    6 Segundo o filsofo alemo Walter Benjamin: No h documento de cultura que no seja,

    ao mesmo tempo, um documento da barbrie. E, assim como ele no est livre da barbrie,

    assim tambm no o est o processo de sua transmisso, transmisso na qual ele passou de um

    vencedor a outro. Por isso, o materialista histrico, na medida do possvel, se afasta dessa

    transmisso. Ele considera como sua tarefa escovar a histria a contrapelo. (BENJAMIN,

    1987, p. 225)

    7 BRECHT, 2006, p. 23

    8 Por determinado tempo no se via com bons olhos a citao de informaes vindas de

    stios eletrnicos de pesquisa como a Wikipdia em trabalhos acadmicos. A Wikipdia se

  • 20

    Hipertexto o termo que remete a um texto ao qual se agregam outros

    conjuntos de informao na forma de blocos de textos, palavras,

    imagens ou sons, cujo acesso se d atravs de referncias especficas,

    no meio digital denominadas hiperlinks, ou simplesmente links. Esses

    links ocorrem na forma de termos destacados no corpo de texto

    principal, cones grficos ou imagens e tm a funo de interconectar

    os diversos conjuntos de informao, oferecendo acesso sob demanda

    s informaes que estendem ou complementam o texto principal. O

    conceito de "linkar" ou de "ligar" textos foi criado por Ted Nelson nos

    anos 1960 e teve como influncia o pensador francs Roland Barthes,

    que concebeu em seu livro S/Z o conceito de "Lexia", que seria a

    ligao de textos com outros textos. Em termos mais simples, o

    hipertexto uma ligao que facilita a navegao dos internautas. Um

    texto pode ter diversas palavras, imagens ou at mesmo sons que, ao

    serem clicados, so remetidos para outra pgina onde se esclarece com

    mais preciso o assunto do link abordado.9

    Esta forma-internet, com seus hiperlinks, hipertextos, abas mltiplas de pesquisa, etc.,

    influenciou a forma de apresentao desta pesquisa, sobretudo no tocante relao entre texto

    e suas notas de rodap e texto e as citaes de outros autores (epgrafes e no corpo do texto).

    Inclusive, acredito, que a melhor forma de ler este trabalho seja no computador.

    Em trabalhos acadmicos as epgrafes, notas de rodap e citaes so comumente

    apresentados com a fonte menor que o corpo do texto. Entretanto, aqui so apresentados com

    o mesmo tamanho de fonte sem distino por duas razes.

    O dilogo elipsar entre tais notas de rodap e a voz de outros autores, ou seja, entre

    diversas referncias ao serem articuladas e reorganizadas para os fins aqui presentes, so parte

    fundante e determinante da totalidade deste trabalho. como se este no pudesse ser lido sem

    define como uma enciclopdia livre que todos podem editar. Talvez a questo acadmica

    em relao Wikipdia seja justamente com o carter anti-autoral desta, em que as

    informaes so editadas e compartilhadas, quase como saberes populares annimos

    registrados. Acredito que h uma disputa por essa enciclopdia livre, entre as posies

    polticas de esquerda e de direita no Brasil. A exemplo disso, recentemente, a pgina no

    Wikipdia sobre o educador Paulo Freire foi alterada por rgo do governo do nosso atual

    presidente interino golpista Michel Temer (Servio Federal de Processamento de Dados),

    depreciando a obra-ao do educador ao apresent-la como fraca, atrasada e doutrinria,

    dentre outros em favor da poltica educacional conservadora que o governo interino manifesta

    querer implementar. Ento, ao invs de desprezar esta forma de compartilhamento de

    informaes gostaria de incorpor-la e disput-la tambm.

    9 Verbete Hipertexto disponvel em: . Acesso em:

    18 de julho de 2016.

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Hiperlinkhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Hiperlinkhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Linkhttps://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dconehttps://pt.wikipedia.org/wiki/1960http://barthes/https://pt.wikipedia.org/wiki/Hipertexto

  • 21

    as idas e vindas do que est fora do texto (notas de rodap) ou sem a voz dos vrios autores

    presentes aqui10

    .

    Entendo tais elementos no s como fundamentais para esta mostra de processo, mas

    tambm como vozes que cruzam e constituem o trabalho como um todo. Escolhi manter o

    mesmo padro de tamanho de fonte para tentar plasmar, nesse detalhe, a importncia que

    atribuo para a voz do outro na construo das ideias aqui apresentadas.

    Alm disso, proposital a inteno de fazer com que o leitor faa o esforo de

    conectar essas diversas abas de informaes necessrias para a leitura desse material. Este

    exerccio - no plano simblico - justamente uma maneira de conectar o leitor ao resultado de

    um exerccio, tambm fsico, da investigao de como lutam os povos originrios do Brasil

    contra sua total aniquilao.

    Conforme sugesto da banca de qualificao deste trabalho utilizo de um modo

    discursivo mais pessoal, e por isso colocado na primeira pessoa do singular, o qual permite

    tambm que as diversas vozes deste trabalho, inclusive a minha, produzam perceptualmente

    um discurso mais polifnico (forma esta que tambm tem ntima relao com os aprendizados

    deduzidos desta pesquisa: os estudos que empreendi sobre o modo de organizao de diversos

    povos originrios do Brasil apontam para a conservao da biodiversidade e convivncia e

    manuteno da diferena).

    A igualdade dos tamanhos da fonte do corpo do texto e das tais abas faz com que no

    seja dada maior importncia para o corpo do texto, quando comparado ao demais elementos

    (notas de rodap, etc), ou ainda minha voz, quando comparada a citao de outra pessoa.

    importante ressaltar que propor a igualdade de valor no o mesmo que confundir a minha

    voz com a de outrm. Pretendo ento fazer com que o leitor possa identificar no corpo do

    texto a autoria das diferentes vozes, por isso sua notao ser indicada de maneira similar s

    normas da ABNT: o uso das aspas duplas ( ) para a diferenciao autoral nas citaes

    menores que trs linhas, e o recuo do pargrafo com espaamento simples para citaes de

    mais de trs linhas. Vale dizer tambm que mantenho as citaes dos autores tal como elas

    so. Assim, se essas citaes contm uso de aspas duplas dentro da citao eu mantenho bem

    como mantenho grifos, uso de caixa alta, citao a outros autores e demais elementos

    10

    Assim, no nos ser foco, ainda que acontea, comentar tudo o que se mostrar aqui neste

    trabalho, ou fazer as pontes de uma passagem a outra. Como tratarei mais adiante, creio que

    meu trabalho aqui mais parecido com o de uma coletora que expe os frutos de sua coleta:

    os materiais brutos, recm retirados de sua fonte.

  • 22

    constitutivos do texto do autor que convidei para a discusso. Quando eu suprimir alguma

    parte do texto original eu indicarei usando (...) no meio da citao. Caso eu venha a fazer

    algum grifo numa determinada citao, eu avisarei o leitor previamente.

    Para ressaltar alguma palavra ou expresso, e sugerir uma espcie de efeito

    semelhante a fazer ao ato de sinalizar aspas com a mo quando queremos ressaltar algo em

    nosso discurso oral, utilizarei as aspas simples ( ) como o indicador de um gesto. Para

    manter a coerncia, quando conceitos ou termos esto implicados no uso de uma palavra

    destaco-a com o uso de itlico ao invs de aspas simples.

    Quanto s referncias bibliogrficas tambm adoto um padro. Toda referncia

    indicada pela referncia da onde obtive a citao (autor, grupo, etc.) e no pelo autor da

    citao. Para tal eu indico ao leitor previamente, no corpo do texto o autor que escreveu

    determinado texto que cito ou que referenciado em textos de outros como tendo dito ou

    escrito aquele determinado texto (ex: Segundo Cas Angat...) e indico ao final da citao a

    referncia bibliogrfica aonde se pode encontrar este excerto de texto (ex: PARDAL, 2016,

    s/p).

    A formatao deste texto tambm apresenta alguns subttulos nos dois primeiros

    captulos e divises indicadas por (***) neste texto introdutrio e nas consideraes finais a

    fim de concentrar assuntos. O terceiro captulo ser subdividido por datas das aes que

    trataremos l. A inteno dos subttulos nos captulos, seguidas muitas vezes por epgrafes,

    a de tambm trazer imagens poticas, suspiros, para o texto.

    Alm de proposies na forma de apresentao desta pesquisa, creio que outra questo

    importante de abordar logo nessa introduo, uma questo de linguagem sobre qual

    nomenclatura utilizar para definir os chamados indgenas e os no-indgenas.

    Se seguir a conveno social da utilizao dos termos indgena ou ndio (conforme

    nomenclatura utilizada em nossa Constituio11

    para designar esses povos, to diversos entre

    si), estaria utilizando uma terminologia ligada colonizao europeia. O discurso ideolgico

    11

    O captulo oitavo de nossa Constituio chama-se Dos ndios segundo esta edio:

    BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF:

    Senado Federal: Centro Grfico, 1988. Em geral, a maioria das lutas que veremos neste

    trabalho tem a ver com exigir a no alterao dos artigos 231 e 232 da referida Constituio

    que garantiu alguns direitos fundamentais para os povos originrios (PEC 215, por exemplo,

    visa alterar estes artigos). A luta para que, tambm, os governos cumpram o que foi

    prometido em 1988 aos povos originrios, principalmente no que toca demarcao de suas

    terras e que at hoje, 28 anos depois, no foi cumprido.

  • 23

    europeu chama os diversos povos encontrados aqui, na nomeada Amrica, de indgenas em

    aluso aos nativos da regio onde hoje o pas ndia, porque segundo o conto (que atualmente

    bem desacreditado) ndia supostamente era a regio que os navegadores queriam encontrar.

    Apesar de haver vrios documentos que comprovam que nossos descobridores j tinham

    uma ideia do que iriam encontrar antes do chamado descobrimento, o termo indgena e suas

    derivaes foram usados e perpetuados. O escritor Daniel Munduruku12

    apresenta discusso

    sobre esta problemtica:

    Para comear, vou destacar que no sou ndio e que no existem

    ndios no Brasil. O que existem so povos. Eu sou Munduruku e

    pertencer a um povo ter participao dentro de uma tradio

    ancestral brasileira. Quando eu digo que no existem ndios, quero

    dizer que existe uma diversidade muito grande de ancestralidade. So

    pelo menos 250 povos indgenas e so faladas pelo menos 180 lnguas

    no Brasil. A palavra ndio surgiu de maneira equivocada e reduz os

    povos. Est ligada a uma srie de conceitos e pr-conceitos.

    Normalmente ela est vinculada a coisas negativas, embora haja muito

    romantismo na histria, a maioria do pensamento quer dizer que o

    ndio um ser fora de moda, atrasado no tempo e selvagem. Algum

    que est atrapalhando o progresso e continuamos reproduzindo um

    esteretipo que foi sendo passado ao longo da nossa histria.

    (BALBINO, 2013, s/p)

    Assim, pela utilizao social recorrente dos termos, em algumas circunstncias mesmo

    sabendo do contexto que o forma, eu farei uso destes termos. No entanto, opto por privilegiar

    a expresso povos originrios do Brasil, ou ainda, povos originrios desta terra, por ser a

    forma como se autonomeiam vrios representantes destes povos nos documentos que

    fundamentam essa pesquisa, e por reconhecer a autonomeao de uma pessoa ou um povo

    como um direito social. Um exemplo est na fala da liderana Snia Guajajara13

    , em

    entrevista para o IELA da UFSC:

    12

    Segundo a Wikipdia, Daniel Munduruku (1964-) um escritor e professor brasileiro.

    Pertence etnia indgena mundurucu. graduado em filosofia, histria e psicologia. Tem

    mestrado em antropologia social pela Universidade de So Paulo. doutor em educao pela

    Universidade de So Paulo. Diretor-Presidente do Instituto Uka - Casa dos Saberes

    Ancestrais. Como escritor, se destaca na rea da literatura infantil. J recebeu vrios prmios

    no Brasil e no exterior: Jabuti, da Academia Brasileira de Letras, rico Vanucci Mendes

    (CNPq), Tolerncia (UNESCO). Disponvel em:

    . Acesso em: 18/07/16.

    13 Segundo a Wikipdia, Snia Bone Guajajara (Terra Indgena Araribia, Maranho, 1974)

    uma lder indgena brasileira. Sua militncia em ocupaes e protestos levou-a coordenao

    https://pt.wikipedia.org/wiki/1964https://pt.wikipedia.org/wiki/Escritorhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Professorhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Mundurukuhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3riahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Psicologiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_socialhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_S%C3%A3o_Paulohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Educa%C3%A7%C3%A3ohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_infantilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Mundurukuhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Maranh%C3%A3ohttps://pt.wikipedia.org/wiki/1974

  • 24

    as pessoas acham que a gente t lutando por um privilgio, por um

    direito especial, enquanto que, na verdade, ns, enquanto povos

    originrios, a gente luta apenas por um direito territorial, que um

    direito tambm originrio, um direito que antecede inclusive a

    Constituio federal, um direito que nos foi arrancado. [...] Ento,

    quando a gente luta pela terra, no querendo a terra de outra pessoa,

    lutando pela retomada de um territrio tradicional, um territrio que

    era nosso. (INSTITUTO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANOS,

    2015).

    Tambm utilizo os termos no-indgena ou homem branco14

    , por serem expresses

    culturalmente sedimentadas na linguagem. No entanto tambm utilizarei, em sua maioria, o

    termo povo da mercadoria. De acordo com a liderana David Kopenawa Yanomami15

    :

    executiva da Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (APIB) e da Coordenao das

    Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB). graduada em Letras e ps-

    graduada em Educao Especial pela Universidade Estadual do Maranho . Recebeu

    em 2015 a Ordem do Mrito Cultural. Disponvel em:

    . Acesso em: 18/07/16.

    14 Sobre essa questo, inscrevo aqui a compilao de alguns pontos de vista sobre o homem

    branco de algumas lideranas indgenas de distintos povos realizada pela antroploga

    Graciela Chamorro em seu livro Terra Madura:

    O ressurgimento do outro indgena traz consigo tambm a

    possibilidade de ouvir, da boca dos prprios indgenas, o modo como

    eles construram o branco - o colonizador de ontem e de hoje -

    como seu outro. Assim, o que se pode verificar nas narrativas

    indgenas sobre a origem do mundo, a chegada dos brancos e os 500

    anos do Brasil, publicadas pelo Instituto Scio-Ambiental, que na

    perspectiva dos povos indgenas, os ndios so anteriores aos

    brancos, na ordem do parentesco e na ordem do territrio. Os brancos

    no chegaram aqui, eles saram daqui; no descobriram os ndios, mas

    encobriram a si mesmos, at voltarem para o que pensaram ser um

    encontro com o desconhecido, mas que no foi seno o encontro com

    o olvidado (Viveiros de Castro, 2000, p. 16). Para o Yanomami Davi

    Kopenawa (2000b, p. 19, 2000a, p. 21-23), os brancos foram

    criados na floresta amaznica pelo ser criador Omama, mas este os

    expulsou porque tinha medo da sua falta de sabedoria e porque se

    tornaram perigosos para o grupo. Esse episdio no impede que os

    Yanomami reconheam que os brancos so engenhosos e que tm

    muitas mquinas e mercadorias. Por outro lado, eles so muito

    esquecidos, precisando por isso desenhar suas palavras. Eles fixam

    seu pensamento sem descanso em suas mercadorias, como se elas

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Letrashttps://pt.wikipedia.org/wiki/2015https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_do_M%C3%A9rito_Culturalhttps://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B4nia_Guajajara

  • 25

    os brancos dizem: somos os nicos a nos mostrar to engenhosos!

    Somos realmente o povo da mercadoria! Poderemos ser cada vez mais

    numerosos sem jamais passar necessidades!Abriu-se, assim, um

    mpeto de expanso; seu pensamento se enfumaou e a noite o

    invadiu. Ele se fechou s outras coisas. Foi com estas palavras da

    mercadoria que os brancos comearam a cortar todas as rvores,

    maltratar a terra e a sujar as guas. (TIBLE, 2013, p.432)

    Tendo em vista as diversas contradies, que tratarei de pontuar durante este trabalho

    acerca das conceitualizaes dos termos ndio e no-ndio, indgena e no-indgena, povos

    originrios do Brasil e ainda povo da mercadoria, escolho utiliz-los em conjunto ao invs de

    optar por um nico termo por se tratar, em primeiro lugar de no reduzir (ou doutrinar) a

    pluralidade dos discursos proferidos por representantes-pensadores de diversos povos

    originrios do Brasil.

    Se esta pesquisa se interessa em aprender e divulgar modos de ver o mundo desses

    povos, a linguagem utilizada precisa ser coerente tais pontos de vista que venho aqui defender

    e circular por estas oposies, uma vez que esta questo e o prprio tecido social, imbricam

    de forma complexa esses povos.

    No entanto, gostaria de frisar que dentre a terminologia disponvel, os termos povos

    originrios do Brasil e povo da mercadoria, parecem ser mais adequados ao situar estes

    grupos sociais no tempo e nas foras econmicas: o termo povos originrios porque se

    fossem suas namoradas. Ailton Krenak retoma os relatos dos Tikuna,

    dos Guarani e do seu grupo, os Krenak, e afirma que seus parentes

    sempre reconheceram na chegada do branco o retorno de um irmo

    que foi embora h muito tempo, e que, indo embora, afastou-se do

    tipo de humanidade que os indgenas estavam construindo. Para ele, o

    branco um sujeito que aprendeu muita coisa longe de casa,

    esqueceu muitas vezes de onde ele , e tem dificuldade de saber para

    onde est indo (Krenak, 2000, p. 46-47). (CHAMORRO, 2008,

    p.292-293)

    15Segundo a Wikipdia: David Kopenawa Yanomami (1956-) um escritor e

    lder indgena brasileiro. Ainda criana, viu a populao de sua terra natal ser dizimada por

    duas epidemias, ambas trazidas pelo contato com o homem branco: uma de gripe, em 1959, e

    outra de sarampo, em 1967. Trabalhou na Fundao Nacional do ndio como intrprete. Foi

    um dos responsveis pela demarcao do territrio Yanomami em 1992. Recebeu o prmio

    ambiental Global 500 da ONU. Em 2010, viu sua autobiografia La chute du ciel (A queda do

    cu), escrita em parceria com o antroplogo francs Bruce Albert, ser lanada na Frana.

    Disponvel em: . Acesso em:

    18/07/16.

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Escritorhttp://brasil/https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Epidemiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Gripehttps://pt.wikipedia.org/wiki/1959https://pt.wikipedia.org/wiki/Sarampohttps://pt.wikipedia.org/wiki/1967http://ndio/https://pt.wikipedia.org/wiki/Int%C3%A9rpretehttps://pt.wikipedia.org/wiki/Yanomamihttps://pt.wikipedia.org/wiki/1992https://pt.wikipedia.org/wiki/2010https://pt.wikipedia.org/wiki/Autobiografiahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Antrop%C3%B3logohttps://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Davi_Kopenawa_Yanomami

  • 26

    remetem queles que esto nessas terras antes da chegada dos colonizadores europeus; e da

    mercadoria uma vez que a forma-mercadoria definidora e oposta aos povos originrios.

    Em oposio ao binarismo ndio e no-ndio e tambm como forma de tentar me

    posicionar et(n)icamente nessa discusso, tomo os princpios do manifesto-campanha ndio

    ns (assinada por cerca de 500 pessoas)16

    , que gostaria de compartilhar na ntegra aqui (os

    grifos so meus):

    Frente a esse quadro de quase paralisao dos processos de

    demarcao fundiria, do aumento do poder de influncia do

    agronegcio no Congresso Nacional e do investimento em grandes

    projetos econmicos, a ideia da campanha , no bojo dos processos de

    resistncia dos povos indgenas, compor um ns participante dessa

    luta. Ao ser questionado sobre o porqu da construo gramatical do

    mote da campanha, Pdua Fernandes, poeta e ensasta, reitera a

    importncia de respeitar o protagonismo dos indgenas na luta pelos

    seus direitos e explica quem ns: Somos todos ndios uma

    identidade perfeita, isso a gente no pode dizer. No posso dizer

    que eu sou ndio, mas no posso dizer que eu sou branco. ndio

    ns uma conjugao imperfeita, uma identidade problemtica,

    de interesse, respeito, mas no quer dizer que voc exatamente

    aquilo. No somos ndios, mas ndio ns. como na poesia de

    Rimbaud, Carta ao Vidente, em que ele diz que eu um outro.

    O eu no se encerra dentro dele mesmo, ele tem uma identidade com

    o outro, mas uma identidade problemtica, porque ele no

    exatamente o outro, mas tambm no apenas eu. Ns no somos

    exatamente ndios, mas podemos ter uma empatia com o ndio,

    ns podemos tentar nos colocar no lugar dos ndios. ndio ns

    nasceu entre no ndios, no ndios dispostos a comprar essa

    briga. Ento no somos ndios, mas ndio ns. David Karai

    Popygua, na ocasio do lanamento da campanha, lembra que a

    populao brasileira foi treinada para achar que a luta indgena no

    real. Hoje, a liderana vive na menor terra indgena do Brasil, a TI

    Jaragu, e os Guarani Mbya batalham cotidianamente pela efetiva

    reviso do processo de demarcao de suas terras. Muitos, no entanto,

    no sabem que existem ndios na cidade, quem dir que os Guarani

    sofrem violentas consequncias por habitarem um territrio to

    pequeno! ndio Ns uma importante ferramenta para romper

    essa invisibilidade, pois alm de ser uma plataforma de divulgao

    que fura o bloqueio tanto da grande imprensa que ignora essas

    pautas quanto do crculo fechado das organizaes indigenistas,

    uma forma de reeducar a populao brasileira, para usar a frase

    de David, no sentido de se reconhecer enquanto aliados da luta.

    O ns tira o cunho assistencialista que por vezes d a linha em outras

    campanhas de apoio causa indgena, que por mais que possam ter

    16

    A listagem dos que apoiam a campanha pode ser vista atravs do enlace eletrnico

    disponvel em: . Acesso em 26/09/16.

    http://www.indio-eh-nos.eco.br/apresentacao/

  • 27

    boa vontade, olham para indgenas como vtimas que devem ser

    pajeadas. Os ndios no so uns coitados merc das intempries da

    bancada ruralista, tampouco uns desocupados que s querem mais

    terra. Ao assumirmos a luta enquanto ns, a relao vai alm de igual

    pra igual, preserva-se o eu ao mesmo tempo em que transfigura-se

    no outros. Assim como para Pierre Clastres Guarani so homens e ao

    mesmo tempo deuses, somos brancos e ao mesmo tempo ndios

    abre-se uma fissura intra e entre identidades, do eu e do outro, para

    criar uma terceira, na qual no h uma relao de subordinao entre o

    primeiro e o segundo caso, o ns

    Resgatando a necessidade de se criar mecanismos que assegurassem o

    virar ndio em detrimento de ferramentas que delimitem quem

    ndio e que no , pode-se dizer que a campanha uma desses

    dispositivos que destravam a potncia de devir-ndio presentes em

    ns. Pode-se falar no s de ns, como pronome, mas ns como

    plural da palavra n, aponta Andr Vallias, designer grfico,

    poeta e produtor de mdia interativa, que tambm faz parte da

    campanha. N, aquilo que ligao, enlace, enredo, embarao,

    vnculo, articulao das falanges do dedo, que possui a qualidade

    de unir sob um mesmo espectro as mais diversas lutas e

    identidades. (MARGEM, 2015, s/p)

    Me parece que este n imagtico presente no ttulo da campanha ndio ns o ideal

    enquanto imagem-ideia para tratar das complexas interaes entre o ndio e no-ndio num

    pas como o Brasil, por isso defendo a importncia de ter apresentado o manifesto na ntegra.

    tambm importante mencionar que muitas vezes apresento citaes longas quando

    acredito ser necessrio mostrar a completude do material no s enquanto identificao com

    seu pensamento, mas tambm pela crena de que desnecessrio produzir um novo material

    escrito se j existe produo de outro autor que explique o que quero apresentar. Assim, fiz

    nascer um trabalho cujo exerccio comunicar-se em meio a diversas vozes, e

    consequentemente, com as diferentes formas de expresso dos outros autores que chamei para

    essa discusso.

    * * *

    Enquanto pesquisadora posicionada na linha Linguagens Cnicas, Corpo e

    Subjetividade do Programa de Ps-Graduao em Teatro da Universidade do Estado de Santa

    Catarina procurei dialogar com os aspectos que essa linha de pesquisa visa pesquisar . Um dos

    objetivos da ementa da citada linha de pesquisa dar nfase pedagogia do artista cnico.

    Sendo assim, creio que estou em consonncia esta linha porque o objetivo fundante desse

  • 28

    estudo foi, encontrar uma forma de como me posicionar dada pelo modelo de ao corporal

    dos povos originrios do Brasil em situaes de luta pelo seu modo de vida. Um

    posicionamento dado, simbolicamente e/ou representacionalmente com o corpo.

    Tornou-se tambm objetivo dispor um arquivo fotogrfico, composto por imagens de

    aes de corpo presente realizadas pelos povos originrios do Brasil que, segundo minhas

    anlises como pesquisadora e tambm artista cnica, se utilizam de certa representao na

    luta, simblica e real, pela manuteno de seus modos de viver, pelos seus territrios originais

    e pela vida mesma.

    Por que ento um modelo de ao influenciadas ou baseadas em questes indgenas

    no poderiam contribuir tambm a ns, artistas cnicos no-indgenas, no contexto de nossas

    lutas e prticas cnicas?

    Ao apresentar este arquivo fotogrfico penso que suas imagens poderiam funcionar

    como um exemplo pedaggico artistas cnicos interessados na fuso entre arte e poltica.

    ***

    Este trabalho, em linhas gerais se organiza em trs captulos mais as consideraes

    finais.

    Entre a introduo e o primeiro captulo, adiantamos nosso APNDICE j que

    sugerimos o leitor que faa essa quebra na leitura do texto e veja o vdeo proposto j que de

    assistir esse vdeo depende a continuidade da construo de sentidos do trabalho. O vdeo

    parte integrante do processo, por isso apresentado nesse lugar.

    No captulo primeiro intitulado O INCIO: QUAL O REAL DA POESIA?,

    apresentarei os motivos que me levaram a realizar este trabalho e sobretudo a situao que

    gerou a pergunta norteadora deste trabalho: como os povos originrios do Brasil

    refuncionalizam as ferramentas simblicas de agitao e propaganda disponveis? Buscarei

    apresentar tambm um panorama do ativismo virtual em torno da luta dos povos originrios

    do Brasil.

    O segundo captulo possui o ttulo A PONTE: AGITAO E PROPAGANDA.

    Neste buscarei apresentar a inspirao, o modelo de ao, para a construo desse arquivo de

    imagens bem como a metodologia empregada para constru-lo. Buscarei tambm situar o

    leitor sobre a condio dos povos originrios do Brasil na atualidade.

  • 29

    No terceiro captulo, O MEIO: IMAGENS DE LUTA, apresentarei as imagens

    recortadas do jornalismo virtual com as devidas informaes reunidas nesse arquivo, seguidas

    de comentrios tecidos por mim que indicam menos uma conceitualizao acadmica sobre as

    mesmas e mais notas poticas do porque escolhi tais imagens e no outras, do que vi nelas

    como resposta pergunta geradora deste trabalho, do ponto de vista da artista interessada em

    aprender com essa forma de simbolizar e lutar (ao mesmo tempo) dos povos originrios

    (falarei um pouco mais sobre isso no captulo primeiro).

    Para encerrar, nas CONSIDERAES FINAIS: FIM SEM FIM, busquei relatar o

    que eu ainda gostaria de fazer a partir dessa pesquisa, o que seria necessrio, ao meu ver, para

    que esse arquivo pudesse ser tambm ele um novo disparador de aes simblicas para ajudar

    na luta dos povos originrios do Brasil (e de todos ns) contra a colonizao, pasteurizao e

    capitalizao das vidas. Aes-smbolo, aes-sonho, de um outro mundo possvel.

    Jornemos, pois!

  • 30

    APNDICE

    Vdeo da performance A palavra que age medida performATIVA #1.

    Sugerimos que o leitor assista a este vdeo antes de prosseguir com a leitura. De assistir esse

    vdeo depende as consideraes que faremos no prximo captulo. Este vdeo tambm est disponvel

    em: . Acesso em: 21/07/16

    https://www.youtube.com/watch?v=Lar_LtmmVeQ

  • 31

    1. INCIO: QUAL O REAL DA POESIA?

    CARNAVAL

    Sol

    Esta gua um deserto

    O mundo, uma fantasia

    O mar, de olhos abertos

    engolindo-se azul

    Qual o real da poesia?

    Francisco Alvim17

    Do sangue derramado

    Pelos guerreiros do passado massacrados

    Fazendeiros, mercenrios, latifundirios

    Vrios morreram tentando defender sua terra

    Onde vivo

    Aldeia

    J existiu guerra

    msica Terra Vermelha, Br MC's18

    1.1. Margem abandonada - Paisagem com argonautas-brancos-espritos-tatus-gigantes

    19

    Em 28 de novembro de 2008 estreou no Brasil o filme Terra Vermelha20

    , produo

    talo-brasileira baseada em fatos reais, com direo de Marco Bechis e atuaes como a do

    falecido cacique guarani-kaiow Ambrsio Vilhalva e dos integrantes do grupo de rap guarani

    Bro Mcs. O filme trata dos conflitos entre indgenas e fazendeiros pelas terras no Mato

    Grosso do Sul. Em uma das primeiras cenas, que mostra o conflito direto entre o homem

    branco, fazendeiro e dono das terras (interpretado por Leonardo Medeiros) e o grupo de

    17 ALVIM, 2004, p.9

    18 BRO MCs, 2012

    19 Criei estes subttulo em parte inspirado em ttulo de texto do teatrlogo alemo Heiner

    Muller e como David Kopenawa Yanomami nomeia as mineradoras.

    20 O filme Terra Vermelha pode ser assistido na ntegra atravs do enlace eletrnico

    disponvel em: . Acesso em:

    04/03/16.

    https://www.youtube.com/watch?v=nOCFZWF_Wb4

  • 32

    indgenas em processo de retomada de suas terras originrias (em guarani, tekoha), temos o

    seguinte dilogo entre personagens:

    - Fazendeiro Lucas Moreira: Meu pai chegou aqui h mais de 60

    anos, eu planto comida, pras pessoas comerem.

    - Cacique Ndio: Desce ao cho e agarra com uma das mos um

    punhado de terra vermelha seca. Come, vagarosamente, esse punhado

    de terra seca, olhando-o fixamente.

    Segundo a pesquisadora Juliana Grasili Bueno Mota (UNESP/UFGD):

    Na historiografia e etnografia sobre os povos Guarani, a palavra nativa

    tekoha significa o lugar onde possvel reproduzir modos de ser e

    viver. O prefixo teko corresponde s normas, leis, costumes e

    tradies, a singularidade do modo de vida Guarani e Kaiow. O

    sufixo ha d sentido de lugar onde o modo de vida /ou pode ser

    realizado. Assim, pode-se dizer que tekoha o lugar onde possvel a

    reproduo do modo de vida desses povos, de modo que necessrio

    considerar que sem teko no h tekoha, mas tambm, que sem tekoha

    no h teko. (MOTA, 2015, p.423)

    Entre 2012 e 2014, morei no Mato Grosso do Sul, alternando-me entre as cidades de

    Dourados, Campo Grande e Aquidauana, e a conheci o termo tekoha e a luta guarani-kaiow

    pela retomada das terras originrias, onde eles creem que possvel a reproduo de seus

    modos de vida.

    Vinda de So Paulo, pude, durante essa estada, vivenciar o lado rural que

    completaria a operao do agronegcio brasileiro (esta desenvolvida em minha cidade de

    origem, com os engravatados no alto dos arranha-cus)21

    . Segundo as antroplogas Artionka

    Capiberibe e Oiara Bonilla:

    Em suma, o agronegcio um modelo que necessita sempre mais:

    mais terras, mais gua, mais agrotxico, mais transgnicos. Nos

    ltimos trinta anos, o centro-oeste, regio que concentra a produo

    agropastoril, vem sendo consumido pelo desmatamento, que penetra

    agora com fora na regio amaznica, avanando para o Acre e o sul

    do Amazonas, onde o desmatamento j atinge terras indgenas como a

    dos isolados Katauixi (Terra Indgena Katauixi/Jacaruba) e a Terra

    Indgena Caititu, dos ndios Apurin. Consequentemente, os casos de

    conflitos agrrios nessa regio explodiram, registrando dezenas de

    21

    Para maiores informaes sobre esse duplo do agronegcio assistir ao vdeo sombra de

    um delrio verde (29`) com direo de An Baccaert, Cristiano Navarro e Nicola Mu.

    Disponvel em: . Acesso em: 04/03/16.

    https://www.youtube.com/watch?v=c2_JXcD97DI

  • 33

    assassinatos de camponeses, assentados, seringueiros e ndios na

    ltima dcada. (CAPIBERIBE e BONILLA, 2015, p.302-303)

    Em meus longos deslocamentos semanais por essas cidades pude ver a geografia do

    agronegcio (parte rural): confinamento de bois, vegetao devastada, montes de cupinzeiros

    (que se instalam quando a terra est pobre de nutrientes), plantaes monoculturais (cana-de-

    acar, soja, milho, etc.), usinas, casas grandes-fazendas, chuva de agrotxico (pulverizadas

    nas plantaes por pequenos avies) e, tambm, a resistncia a essa paisagem. Essa

    resistncia aparece nos acampamentos na beira da estrada por parte do movimento indgena

    de retomada de suas terras ancestrais (e tambm por parte de movimentos de trabalhadores

    sem-terra) em frente a essas fazendas de um s22

    , apontando para a mudana deste panorama

    poltico-social, deste horizonte histrico-econmico.

    Ainda segundo a pesquisadora Juliana Grasili Bueno Mota:

    Podemos dizer que a luta pelo retorno ao tekoha tem na constituio

    de acampamentos de retomadas uma expresso de resistncia e

    prticas descolonizadoras, pois contesta os processos de

    territorializao imposta nas reservas23

    . E, do mesmo modo um grito 22

    Segundo a jornalista Eliane Brum, eleita a melhor jornalista de mdias sociais na 11 edio

    do Trofu Mulher Imprensa (2016): H muita terra para pouco ndio? No. Como costuma

    dizer o socioambientalista Mrcio Santilli, h muita terra para pouco fazendeiro. Segundo o

    Censo de 2010 do IBGE, h 517 mil ndios aldeados em menos de 107 milhes de hectares

    de terras indgenas, o equivalente a 12,5% do territrio brasileiro. E onde esto essas terras?

    Mais de 98% delas esto na Amaznia Legal e menos de 2% fora de l. J os 46 mil maiores

    proprietrios de terras, segundo o Censo Agropecurio do IBGE, exploram uma rea maior do

    que essa: mais de 144 milhes de hectares. Sobre a realidade da concentrao fundiria no

    pas, que continua a crescer, o Cadastro de Imveis Rurais do Incra (Instituto Nacional de

    Colonizao e Reforma Agrria) mostra que as 130 mil grandes propriedades rurais

    particulares concentram quase 50% de toda a rea privada cadastrada no Incra. J os quase

    quatro milhes de minifndios equivalem, somados, a um quinto disso: 10% da rea total

    registrada. Em entrevista ao jornal O Globo, o pesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira,

    coordenador do Atlas da Terra, afirmou que quase 176 milhes de hectares so improdutivos

    no Brasil. (BRUM, 2015)

    23 Segundo Juliana Grasili Bueno Mota: Em Mato Grosso do Sul, a maior parte dos

    indgenas das etnias Guarani e Kaiow vive em condio de Reserva. Criadas no incio do

    sculo XX (Reserva Indgena de Dourados, Caarap, Aldeia Limo Verde, Taquapery, Aldeia

    Porto Lindo, Sassor, Piraju e Amamba) pelo Servio de Proteo ao ndio (SPI), entre os

    anos de 1915 a 1928, essas Reservas tinham como objetivo abrigar os indgenas que estavam

    sendo expulsos de seus territrios tnicos ancestrais por projetos de colonizao, elas fizeram

    parte de um iderio civilizatrio de ocupao dos espaos vazios do interior brasileiro

    desconsiderando a grande presena indgena nesse estado. (MOTA, 2015, p. 418)

    http://oglobo.globo.com/brasil/concentracao-de-terra-cresce-latifundios-equivalem-quase-tres-estados-de-sergipe-15004053

  • 34

    de resistncia ao Estado colonialista brasileiro, o qual, em linhas

    gerais, foi um dos principais responsveis pela atual situao em que

    vivem os Guarani e Kaiow, ao promover a colonizao no indgena

    em seus tekoha e, atualmente, no cumprir os direitos dos povos

    indgenas sobre seus territrios, garantidos atualmente pela

    Constituio Federativa do Brasil de 1988 e Decreto 1.775 de oito de

    janeiro de 1996, ao entender que os territrios indgenas so de

    propriedade da unio e de posse inalienvel dos povos indgenas.

    (MOTA, 2015, p. 426)

    Ainda segundo a autora, esses acampamentos beira das tekohas so territrios de

    esperana: esperana de retomar suas culturas e tambm o prprio corpo e a prpria vida

    (individual e coletiva): tekoha o corpo do ndio, sem ele a gente no vive, diz o xam

    Jorge, em entrevista autora (MOTA, 2015, p. 424).

    (1, 2 e 3) Indgenas Guarani Kaiow em acampamentos beira da rodovia que liga as cidades

    sul-mato-grossenses de Amamba e Ponta Por (Rodovia MS-386, 2011).24

    (4) Crianas guarani-kaiow no acampamento Kurusu Amba (Coronel Sapucaia/MS, 2011).25

    24

    Fotografias: Wilson Dias/ Agncia Brasil. Disponveis em:

    http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-12-05/integrantes-da-comissao-de-

    direitos-humanos-da-camara-dos-deputados-visitam-comunidades-indigenas-em-#. Acesso

    em: 19 de julho de 2016.

    25 Idem

    http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-12-05/integrantes-da-comissao-de-direitos-humanos-da-camara-dos-deputados-visitam-comunidades-indigenas-em-http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-12-05/integrantes-da-comissao-de-direitos-humanos-da-camara-dos-deputados-visitam-comunidades-indigenas-em-

  • 35

    (5) Manifestao guarani-kaiow pelo fim da violncia e das mortes na regio. Acampamento

    de Guaiviry (Aral Moreira/MS, 2011).Texto da imagem: Matar pode matar, o corpo acaba,

    mas a terra nunca acabar.26

    Vale dizer que apesar de no nos aprofundarmos nessa pesquisa nesta forma de

    resistncia - o acampamento - cremos que se trata tambm de uma forma instalacional de

    comunicao. O acampamento existe porque os povos originrios parecem no concordar

    com a forma espacial da reserva a qual foram subjugados. No teramos, aqui, nessa ao

    indgena, a ressignificao mais adequada para a experincia da arte contempornea do site-

    specific (em portugus: stio especfico), ou seja, uma aovida determinada e determinante

    para e por um espao especfico?27

    26

    Idem.

    27 Para uma noo mais aprofundada sobre site-specific ver a dissertao de mestrado do

    artista visual Jorge Menna Barreto. Disponvel em:

    . Acesso em 18/07/16.

    ../../../../../110111415/Downloads/4970000.pdf

  • 36

    1.2. Mbarakay medida performativa

    No contexto apresentado no sub-item anterior, propus um projeto de performance28

    para a Seleo pblica de performances e instalao artstica para participar do V Festival

    Internacional de Teatro de Dourados de 2013. O projeto-performance se chamou A palavra

    que age medida performATIVA29

    #1. Tal ao performtica visava a alguns objetivos gerais.

    O primeiro objetivo foi o de se constituir como a primeira ao dentro de uma srie de

    aes que se seguiriam a essa dentro de outro projeto, intitulado Qual o real da poesia?

    medidas performATIVAS, na qual eu era a proponente e que recebeu o Prmio Rubens Corra

    de Teatro da Fundao de Cultura do Estado do Mato Grosso do Sul de 2013 para sua

    realizao. Durante toda sua execuo, que contaria com diversas performances pelo Estado,

    alm da organizao de um encontro pblico sobre gnero, performance e diversidade sexual

    (o primeiro da regio), o objetivo foi investigar a linguagem artstica da performance com

    contedo de fundamental debate no cenrio sul-mato-grossense: a violncia contra a mulher, o

    machismo e a sociedade patriarcal. O Estado, segundo o Mapa da Violncia de 201230

    , o

    quinto estado brasileiro com maior ndice de violncia contra a mulher (alm de conter a

    dcima cidade do Brasil com maior nmero de assassinatos de mulheres, Ponta Por,

    localizada a menos de duas horas de Dourados);

    O segundo objetivo era conseguir verba para as aes de retomada de terras originrias

    dos Guarani-Kaiow (compra de alimentos, roupas e itens de necessidade bsica para os

    acampados, por exemplo).

    28

    A esta poca meus estudos sobre a linguagem performance eram muito iniciais, assim, eu,

    justamente com essa performance, comearia , de forma mais sistemtica, meus estudos na

    rea. No entanto meus conhecimentos preliminares de at ento tinham passado pelo texto

    Por uma potica da performatividade: o teatro performativo da pesquisadora franco-

    canadense Josette Fral e creio que dele deduzi princpios norteadores para a construo desta

    e de outras performances, quando ela condensa os principais elementos constitutivos do

    performativo na exposio do processo de criao e no dilogo com o risco e malogro.

    29 Aqui a palavra medida tem a funo de evocar seu sinnimo atitude e tambm de fazer

    aluso s medidas provisrias parlamentares, assim, para estes fins a palavra teria dois

    sentidos polticos. Cito este fato em relao a uma informao declarada por Snia Guajajara

    de que h, hoje, tramitando no Congresso Nacional 182 medidas provisrias parlamentares

    anti-indgenas.

    30 O Mapa da Violncia 2012 est disponvel em:

    . Acesso em: 18/07/16.

    http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf

  • 37

    Quanto aos objetivos especficos da ao, transcrevo abaixo um trecho do projeto que

    submeti avaliao naquela ocasio31

    . Apesar de eu ter transcrito aqui o projeto quase que na

    ntegra (alm de t-lo complementado com algumas notas de rodap) creio que estas ideias de

    projeto (e a consequente realizao da performance), aqui esboadas de forma longa, so

    fundamentais para compreendermos da onde vem a pergunta fundadora desta presente

    dissertao (que veremos no fim do captulo):

    Este projeto-performance nasceu como um PEDIDO DE AJUDA.

    Assim como Sherazade contava suas histrias ao Sulto como

    estratgia para no ser morta por este, aguando noite a noite sua

    curiosidade pela continuidade da histria, eu tambm quero viver,

    aguando a minha curiosidade e de quem eu me relacionar pela

    transformao da histria da injustia, da histria em que homens

    exploram os corpos uns dos outros.

    Sou nascida e criada na cidade de So Paulo/SP e l fiz parte, por dez

    anos, de um coletivo, que passou de teatral para interlinguagens

    artsticas, chamado II Trupe de Choque e que atuou em diversos

    espaos pblicos e perifricos da cidade, como por exemplo uma

    Usina de Compostagem de Lixo desativada e o Hospital Psiquitrico

    Phillipe Pinel (periferias leste e oeste da cidade respectivamente).

    Em abril de 2012 me mudei para o Mato Grosso do Sul e durante mais

    de um ano resolvi investigar o ato de no atuar como atriz, performer,

    contadora de histria ou danadora, mas como artista-docente

    (condutora de processos cnicos) dos primeiros cursos de Artes

    Cnicas e Dana do Estado que situam-se na Universidade Federal da

    Grande Dourados e na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.

    No entanto as diversas questes sociais que vivenciei na cidades que

    vivi (Dourados, Campo Grande e Aquidauana) como: machismo,

    violncia contra a mulher, agronegcio, matana indgena,

    monocultura, agrotxico, confinamento de boi, confinamento dos

    trabalhadores em grandes canaviais, etc., me despertaram novamente a

    vontade, como estratgia de sobrevivncia (PARA NO MORRER -

    como Sherazade), de sistematizar atravs do meu CORPO essas

    questes na esperana de transform-las ou de ao menos chamar

    ateno para elas.

    Para tal enfrentamento de crise pensei que a performance seria a

    melhor ferramenta de combate artstico-pedaggica, at por ser

    linguagem artstica pouqussimo trabalhada no Mato Grosso do Sul.

    A PALAVRA QUE AGE. um ttulo copiado. Cpia aqui entendida

    como forma de aprender algo pela imitao (corporal) do gesto do

    outro. Ao imitar o adulto a criana encontra a sua prpria

    31

    Escrevi este projeto em julho de 2013, dentro da Cmara dos Deputados de Dourados,

    como participante da ocupao realizada por estudantes, professores e sociedade civil que

    tinha como principal pauta a reduo das passagens de nibus do municpio e melhoras nas

    condies do transporte pblico em geral.

  • 38

    gestualidade, ou deveria ser assim... Uma boa cpia no engessa quem

    copia e sim traz novos modelos de ao a este. Um boa cpia sempre

    transmutada no ato da transposio. Uma boa cpia expe o corpo do

    copiador e do copiado.

    Como a noo de cpia foi criminalizada pelo sistema de patentes e

    de direitos autorais utilizaremos aqui o termo modelo de ao agir

    a partir de um modelo ser aqui tratado como possibilidade de criticar

    o modelo, problematizando-o, conservando e negando o modelo ao

    mesmo tempo.

    Este ttulo inspirado no documentrio32

    homnimo que trata da

    noo de corporalidade (integrada dana, msica, representao,

    ritual, natureza, vida, todas as idades, etc.) na etnia indgena Guarani-

    Kaiow. Boa parte da comunidade Guarani-Kaiow brasileira vive no

    estado do Mato Grosso do Sul.

    Esta grande comunidade, conforme amplamente divulgada nas redes

    sociais internticas, vem sendo assassinada (h muitos e muitos anos)

    e espoliada de suas terras.

    Ns, brancos, ao vermos os pedidos de ajuda dos guaranis-kaiows na

    internet, prontamente anexamos aos nossos nomes VIRTUAIS, ou

    seja, ao nosso corpo virtual, ao nosso AVATAR, o ttulo Fulano de

    Tal Guarani-Kaiow. Mas de fato queremos imitar (copiar) o modo

    de vida corporal de um Guarani-Kaiow? Ao querermos ser parentes

    de um Guarani-Kaiow (alterando nosso sobrenome virtual) estamos

    de fato dispostos a compreender, aprender e tentar viver a partir do

    modelo de ao fornecido pela prtica de existncia Guarani-Kaiow?

    Ou mais, ao querermos ajudar os Guarani-Kaiow no nos

    esquecemos e transferimos o problema como sendo exclusivamente

    indgena ao passo que quem est tambm sem terra, sem natureza,

    sem articulao coletiva e sem voz no somos tambm ns prprios,

    os no-Guarani-Kaiow?

    Neste projeto-performance continuamos a investigao, que j

    estamos desenvolvendo, do sentido da ao corporal Guarani-Kaiow.

    J pudemos observar, nas bibliografias e vivncias empricas com os

    Guarani-Kaiows, que no h separao entre dana, corpo, msica,

    crena, coletividade, no h separao entre vida e arte. Este parece

    ser um dos princpios que permeiam tambm a linguagem da

    performance. Ento, neste projeto, a noo de PERFORMANCE

    ligou-se ao modelos de ao fornecidos pelos Guarani-Kaiows. Alm

    disso, ligada noo de performance est a de tomar o corpo alguns

    RISCOS NECESSRIOS (conforme teorizao do performer

    mexicano Guillermo Gomz-Pea do coletivo La Pocha Nostra)33

    .

    Para a investigao de tais RISCOS tomamos como modelo de ao s

    32

    CUNHA, Edgar Teodoro da; PIMENTEL, Spency; PUZZO, Gianni. Mbaraka A palavra

    que age. Vdeo disponvel em: . Acesso em 02/09/13.

    33 GOMEZ-PEA, Guillermo. A muerte (segundo duelo). Vdeo-performance disponvel em:

    . Acesso em 02/09/13.

    http://vimeo.com/34768557http://www.youtube.com/watch?v=TZMlbpoYnGI

  • 39

    prticas (corporais-integradas) exercidas pelo povo Pyelito Kue

    34 ao

    divulgarem sua carta35

    enviada ao Governo Federal e tambm da

    liderana indgena Valdelice Vern da Aldeia Taquara (que tambm

    usa a internet como espao de luta, mas aqui, pela sobrevivncia de

    seu CORPO REAL que j sofreu dezenas de ameaas de morte)36

    .

    34

    Segundo comunicado do Conselho Aty Guasu: O acampamento da comunidade guarani e

    kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay comeou no dia 08 de agosto de 2011. (...) importante

    ressaltar que os membros (crianas, mulheres e idosos) dessa comunidade proveniente de uma

    reocupao, no dia 23 de agosto de 2011, s 20h, foram atacados de modo violentos e cruis

    pelos pistoleiros das fazendas. A mando dos fazendeiros, os homens armados passaram

    permanentemente a ameaar e cercar a rea minscula reocupada pela comunidade Guarani-

    Kaiow na margem do rio que este fato perdura at hoje. Em um ano, os pistoleiros que

    cercam o acampamento das famlias guarani-kaiow, j cortaram/derrubaram 10 vezes a ponte

    mvel feito de arame/cip que utilizada pelas comunidades para atravessar um rio com a

    largura de 30 metros largura e mais de 3 metros de fundura. Apesar desse isolamento

    pistoleiros armados ameaam constantemente os indgenas, porm 170 comunidades

    indgenas reocupante do territrio antigo Pyelito kue continuam resistindo e sobrevivendo na

    margem do rio Hovy na pequena rea reocupada at os dias de hoje, esto aguardando a

    demarcao definitiva do territrio antigo Pyelito Kue/Mbarakay. No dia 8 dezembro de

    2009, este grupo j foi espancado, ameaado com armas de fogo, vendado e jogado beira da

    estrada em uma desocupao extra-judicial, promovida por um grupo de pistoleiros a mando

    de fazendeiros da regio de Iguatemi-MS. (CONSELHO ATY GUASU, 2012, s/p)

    35 Segundo carta do povo guarani-kaiow de Pyelito Kue/Mbarakay: Ns (50 homens, 50

    mulheres e 70 crianas) comunidades Guarani-Kaiow originrias de tekoha Pyelito

    kue/Mbrakay, viemos atravs desta carta apresentar a nossa situao histrica e deciso

    definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justia Federal de Navira/MS,

    conforme o processo n 000003287.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012.

    Recebemos a informao de que nossa comunidade logo ser atacada, violentada e expulsa da

    margem do rio pela prpria Justia Federal, de Navira/MS. Moramos na margem do rio Hovy

    h mais de um ano e estamos sem nenhuma assistncia, isolados, cercado de pistoleiros e

    resistimos at hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o

    nosso territrio antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro

    desse nosso territrio antigo esto enterrados vrios os nossos avs, avs, bisavs e bisavs,

    ali esto os cemitrios de todos nossos antepassados. (...) Cientes desse fato histrico, ns j

    vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde

    estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justia Federal para no decretar a ordem de

    despejo/expulso, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar ns

    todos aqui. (GUARANI-KAIOW DE PYELITO KUE/MBARAKAY, 2012, s/p)

    36 Podemos ver algumas aes-falas de Valdelice Vern atravs destes enlaces eletrnicos:

    Palavras de Valdelice Vern Prmio Culturas Indgenas (2013), disponvel em:

    https://www.youtube.com/watch?v=C6r3RYhrrjY e Liderana Guarani-Kaiow denuncia

    ameaa de deputado federal na Cmara dos Deputados (2015), disponvel em:

    https://www.youtube.com/watch?v=uVWtMWbUIhg. Ambos acessados em: 24 de maro de

    2016.

    https://www.youtube.com/watch?v=C6r3RYhrrjYhttps://www.youtube.com/watch?v=uVWtMWbUIhg

  • 40

    Outra relao que buscaremos investigar a relAO e sentido dos

    Guarani-Kaiows para a PALAVRA. Em um texto, intitulado e' a

    palavra alma, a antroploga Graciela Chamorro, professora da

    Universidade Federal da Grande Dourados, nos revela algumas pistas

    dessa relao:

    A palavra a unidade mais densa que explica como se trama a vida

    para os povos chamados guarani e como eles imaginam o

    transcendente. As experincias da vida so experincias de palavra.

    Deus palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra

    se senta ou prov para si um lugar no corpo da criana. A palavra

    circula pelo esqueleto humano. Ela justamente o que nos mantm em

    p, que nos humaniza. (...) Na cerimnia de nominao, o xam

    revelar o nome da criana, marcando com isso a recepo oficial da

    nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida doenas,

    tristezas, inimizades etc. so explicadas como um afastamento da

    pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as

    rezadoras se esforam para trazer de volta, voltar a sentar a palavra

    na pessoa, devolvendo-lhe a sade.(...) Quando a palavra no tem

    mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um no-

    ser, uma palavra-que-no--mais. (...) e' e ayvu podem ser

    traduzidos tanto como palavra como por alma, com o mesmo

    significado de minha palavra sou eu ou minha alma sou eu. (...)

    Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se

    falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma no uma parte,

    mas a vida como um todo. (BRUM, 2012, s/p).

    Buscaremos assim pesquisar a intrnseca relao entre PALAVRA e

    AO CORPORAL (performativa, danada, ritual, etc.) baseada no

    modelo Guarani-Kaiow.

    Para isso ser necessrio tambm pesquisar-mostrar a corporalidade

    ocidental (ou determinada corporalidade ocidental). Para tal

    continuamos a pesquisa em relao ao CORPO CIBORGUE.

    Em 1963, pesquisando as maneiras de adaptar o ser humano para o

    vo espacial tripulado, a NASA publicou um relatrio no qual cunhou

    o termo cyborg a partir das slabas iniciais de cybernetic organism. A

    filsofa norte-americana Donna Haraway (2009) aproveitou para

    conferir uma dimenso poltica e conceitual ao ciborgue, definindo-o

    como um hbrido de mquina e organismo, como uma criatura to

    socialmente real quanto ficcional, a quem cabe habitar um mundo

    contraditoriamente natural e construdo. Para a filsofa, a medicina

    moderna est repleta de ciborgues, a replicao no mundo ciborgue

    est desvinculada da reproduo orgnica, e a guerra moderna uma

    orgia ciborgue.

    Esta ciso entre as prticas corporais da cidade (ciborgue-passiva) e

    das prticas corporais Guarani-Kaiow (orgnico-ativa) que geram

    determinadas formas de viver juntos ser o mote de investigao

    ATIVA junto ao pblico convidado a compor esta experincia.

    (ALMEIDA, 2013, s/p)

  • 41

    Tal projeto de performance foi contemplado no Festival Internacional de Teatro de

    Dourados da UFGD e recebeu um prmio pblico de R$1.500,00 para sua encenao. Ela se

    realizou no dia 22 de setembro de 201337

    , no Parque dos Ips, regio central da cidade de

    Dourados. Como o vdeo da performance encontra-se como apndice-abertura dessa

    dissertao (e cremos que para que continuemos essa discusso seria importante que o leitor o

    assistisse antes de seguir), no a descreverei integralmente. No entanto, apresentarei algumas

    questes que surgiram de sua realizao. Ao refletir sobre ela trs anos depois, me parece que

    fundamentam ou introduzem o presente trabalho.

    Comearei expondo e analisando alguns dos expedientes temticos que queria abordar

    na performance (descritos brevemente no projeto) para depois voltar a refletir sobre a

    realizao da mesma.

    1.3. Teatro da resistncia novas ferramentas de luta

    O primeiro aspecto que gostaria de abordar sobre o uso da internet, a rede virtual38

    ,

    para sobrevivncia dos corpos reais dos povos originrios do Brasil. No texto Ciberativismo

    indgena: uma anlise da pgina do Aty Guasy no Facebook so apresentadas os seguintes

    dados que interessam para esta argumentao na medida em que posicionam a luta virtual dos

    povos originrios do Brasil:

    As redes sociais so os meios mais acessados na internet pelos

    brasileiros conectados, 92% acessam alguma rede. O Facebook o

    primeiro da lista com 83% da preferncia dos pesquisados, seguido

    pelo Whatsapp (58%), e Youtube (17%). O Facebook funciona por

    meio de perfis e comunidades onde os usurios compartilham notcias,

    fotos, vdeos, links e diversos tipos de contedo; um sistema criado

    pelo americano Mark Zuckerberg enquanto era estudante de Harvard.

    (...) Os movimentos indgenas, iniciados na dcada 70 com intuito de

    reaverem os direitos s terras originrias tomadas pelos no-ndios,

    37

    A performance A palavra que age medida performativa #1, em vdeo, captado e editado

    por Wilson Baroucki, encontra-se como apndice-abertura desta dissertao. O enlace

    eletrnico desse mesmo vdeo est disponvel em:

    . Acesso em: 04/03/16.

    38 Vale apontar para o fato de que a internet teve sua origem como arma militar e que se

    encontra ainda sob domnio do capital global. No entanto, creio que aqui, h a tentativa de

    reposicionar esse meio tecnolgico, essa arma de guerra, a favor da luta indgena.

    https://www.youtube.com/watch?v=Lar_LtmmVeQ

  • 42

    tem se apropriado das ferramentas das novas mdias para fortalecerem

    e difundirem suas lutas e cultura. Devido ao fato de seus membros s

    se tornarem pautas de notcias quando algum fator negativo ocorre ou

    quando suas reivindicaes entram em conflito com os interesses da

    cultura hegemnica dominante, as comunidades indgenas

    encontraram na internet uma maneira de expor seus posicionamentos,

    seja por meio de escritores indgenas, internautas ou organizaes e

    entidades indigenistas ou indgenas. Por isso, a criao de pginas em

    redes sociais e blogs, mesmo em quantidades ainda tmidas, tornaram-

    se uma ferramenta importante para contrapor e desconstruir as

    informaes tendenciosas realizadas pelas mdias dominantes, ou seja,

    demonstrar a viso do outro lado envolvido. (MARTINS,

    MONTEIRO E NAKAZATO, 2015, p. 4-5)

    (6) Mobilizao Nacional Indgena (Braslia, outubro de 2013)

    39

    A utilizao de ferramentas miditicas para a sobrevivncia da luta no nova dentro

    do movimento indgena40

    . Talvez possamos afirmar que ele tenha comeado com o Exrcito

    39

    Fotografia: Bel Harari

    40 Um exemplo da mudana das estratgias de sobrevivncia dos povos originrios atravs da

    tecnologia virtual pode ser vista atravs da arrecadao do Mbareat Resistncia: Festival

    Povos da Terra realizado em So Paulo/SP em 11 de novembro de 2015, em apoio luta

    indgena, organizado de forma auto-gestiva por organizaes indgenas e artistas e ativistas

    no-indgenas. Alm da arrecadao de dinheiro e bens de primeira necessidade a ser

    totalmente doado para as aldeias dos Guarani-Mbya em So Paulo e as aldeias Guarani-

    Kaiowa do Mato Grosso do Sul, um dos chamados pblicos do festival foi pela doao de

  • 43

    Zapatista de Libertao Nacional (EZLN) da regio maia da atual Chiapas, no Mxico, em

    1994. De acordo com pesquisadora feminista norte-americana Sarah Grussing, l, este

    deslocamento dos corpos e vozes indgenas para uma zona incorprea representava uma

    chamada solidariedade da sociedade civil mexicana e do pblico internacional (ABDEL-

    MONEIM, 2002). Ainda segundo Sarah Grussing, o teatro da resistncia neozapatista, na

    forma desse ciborgue:

    capaz de nos des-locar ao nos convidar a atravessar fronteiras

    geogrficas, tnicas e de classe, e a participar, na qualidade de

    leitores(as)/escritores(as)/ espectadores(as)/atores(atrizes) de

    textos/performances de uma guerrilha multimdia, de esforos de

    resistncia virtual contra projetos globais neoliberais. (...) O slogan da

    Conveno Democrtica Nacional do EZLN Para nosotros nada,

    para todos, todo - suplicou-nos que acabssemos com aquela fadiga

    de compaixo atravs do argumento de que todas as causas so

    somente uma causa, e que, de algum modo desconcertante, os ndios

    mascarados carregando AK-47, foices, ou apenas usando suas vozes,

    esto lutando por ns, seres desesperanados/as, e no o contrrio, ns

    por eles/elas. (...) A ideia lanada em comunicado aps comunicado,

    testemunho aps testemunho, que sem o ciberzapatismo as

    comunidades neozapatistas desaparecero, como tantos outros/as

    rebeldes invisveis ao longo da histria - mas que, tambm, sem essas

    comunidades indgenas muitos de ns jamais teramos visto aquele

    lugar com o qual sonhamos diante do arco-ris ciberntico, aquele

    espao utpico hipertextual reservado para compartilharmos histrias

    espaciais e construir modelos virtuais de interao humana. A ligao

    efetiva do material e do virtual um modelo que reconhecemos

    atravs da fico (cientfica) e com o qual sonhamos em nossa vida

    real. (ABDEL-MONEIM, 2002, p. 55-60)

    Esta autora tambm alude ao fato de que vrios ativistas que protestaram contra a

    Organizao Mundial do Comrcio e seu projeto neoliberal global em Seattle (E.U.A.), em

    1999, na chamada resistncia pacfica, se dizem inspirados justamente pelo ativismo

    neozapatista. Aqui no Brasil no foi diferente. O Movimento Passe Livre, conhecido por ser

    disparador das Jornadas de Junho de 2013 - onda de protestos contra o aumento da passagem

    do transporte pblico e a favor de sua gratuidade, declaram inspirao nas aes dos povos

    originrios quando ocuparam a Cmara dos Deputados em Braslia em abril de 2013 e por

    celulares com cmeras para a distribuio para esses povos para que os abusos contra eles

    pudessem ser registrados e divulgados em tempo real na rede virtual.

  • 44

    todo o processo de ocupao e luta da Aldeia Maracan no Rio de Janeiro (sero dados a ver

    melhor essas duas aes ao longo deste trabalho).41

    Talvez a primeira ao vitoriosa indgena, no Brasil, se utilizando das ferramentas

    cibernticas, mais especificamente da rede social Facebook, tenha sido a divulgao em

    massa da carta elaborada pelo povo guarani-kaiow de Pyelito-Kue/Mbarakay. Assinada em 8

    de outubro de 2012, este povo sugere

    ao Governo e Justia Federal para no decretar a ordem de

    despejo/expulso, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar ns

    todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa

    extino/dizimao total, alm de enviar vrios tratores para cavar um

    grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este o nosso

    pedido aos juzes federais. J aguardamos esta deciso da Justia

    Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiow de

    Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos

    integralmente a no sairmos daqui com vida e nem mortos.

    (GUARANI-KAIOW DE PYELITO KUE/MBARAKAY, 2012,

    s/p)

    Esta carta acabou sendo viralizada e conhecida como o anncio de um suicdio

    coletivo indgena ou como ameaa de morte coletiva. Mas em nenhum momento este povo

    ameaou se suicidar. Tal engano talvez seja mesmo pela nossa incapacidade, como

    militantes/ativistas de Facebook de elaborar, com outras palavras os atos