no pulsar da clÍnica: a repetiÇÃo e as produÇÕes...

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia NO PULSAR DA CLÍNICA: A REPETIÇÃO E AS PRODUÇÕES CORPORAIS DE UMA CRIANÇA Francisca Lenira Xavier Natal 2008

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

NO PULSAR DA CLÍNICA: A REPETIÇÃO E AS PRODUÇÕES CORPORAIS DE UMA CRIANÇA

Francisca Lenira Xavier

Natal 2008

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Francisca Lenira Xavier

NO PULSAR DA CLÍNICA: A REPETIÇÃO E AS PRODUÇÕES

CORPORAIS DE UMA CRIANÇA.

Dissertação elaborada sob a orientação da Prof.ª. Drª. Cynthia Pereira de Medeiros e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Natal 2007

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

NNBCCHLA

Xavier, Francisca Lenira.

No pulsar da clínica : a repetição e as produções corporais de uma criança / Francisca Lenira Xavier. Natal, RN, 2008. 48 f.

Orientadora: Profª. Drª. Cynthia Pereira de Medeiros. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Psicologia.

1. Psicanálise de crianças – Dissertação. 2. Repetição – Dissertação. 3. Esteriotipias – Dissertação. I. Medeiros, Cynthia Pereira de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 159.964.2-053.2

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“Vim pelo caminho difícil,

A linha que nunca termina.

A linha bate na pedra,

A palavra quebra uma esquina,

Mínima linha vazia,

A linha, uma vida inteira,

Palavra, palavra minha.”

Paulo Leminsky

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Dedicatória

Aos meus pais, José Gomes Xavier (in memorian) e Severina Diva Gomes, por

me transmitirem a coragem e a resistência dos sertanejos. Tenho orgulho dessa herança.

À minha filha, Diana, por sua serenidade e carinho.

Aos meus amigos, por me acompanharem no pulsar da vida.

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Agradecimentos

À minha orientadora, Profa. Dra. Cynthia Pereira de Medeiros, pela

disponibilidade, atenção e cuidado minucioso com a escrita e, especialmente, por

apostar nos movimentos pulsáteis desse percurso acadêmico.

Aos examinadores da banca, Profa. Dra. Jussara Falek Brauer e Profa. Dra.

Andréia Clara Tavares Galvão de Britto pelo carinho com que acompanharam esse

trabalho, desde o inicio da sua fomentação.

À Profa. Ms. Suely Alencar Rocha de Holanda, pela presença amiga, sua leitura

rigorosa e pertinentes interlocuções.

Aos meus irmãos, Jânio Xavier e Eduardo Xavier, pelo apoio firme e

permanente nessa travessia.

Ao Levi Freitas, amigo inestimável que, em momentos cruciais, não permitiu

que o “prumo e o rumo” desse trabalho fossem perdidos.

Aos amigos, Marilia e Laurent Lachè, Tereza Ferreira e Winnifred Knox pelo

incentivo e apoio no universo acadêmico; Didier Lèvêque e Cristina Maria da Silva,

Nilton Rocha e Graça Cavalcante, pelas presenças pontuais nesse percurso.

E, especialmente, a João e a todos os clientes que, com suas insistências, me

ensinam a interrogar e a elaborar a clínica.

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Sumário

Resumo........................................................................................................... vii

Abstract ........................................................................................................ viii

Introdução ..................................................................................................... 09

Capítulo 1: João e as Repetições.................................................................. 13

1.1. O Encontro com João e suas produções corporais .................................. 13

1.2. Fragmentos do Caso Clínico ................................................................... 15

Capitulo 2: O conceito de Repetição na Psicanálise .................................. 19

2.1. Freud e a Repetição .......................................................................... 20

2.1.1. A Repetição, a Resistência e a Transferência ...................................... 20

2.1.2. A Repetição e o “estranhamente familiar” ........................................ 21

2.1.3. A Compulsão à Repetição e a Pulsão de Morte ................................... 25

2.2. Lacan e a Repetição ............................................................................... 30

2.2.1. A Repetição e sua insistência simbólica .............................................. 30

2.2.2. Tiquê e Autômaton ............................................................................... 34

Capitulo 3: O Pulsar da Clínica .................................................................. 39

Considerações Finais .................................................................................... 44

Referências Bibliográficas............................................................................ 47

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Resumo

Este estudo investiga a Repetição nos movimentos estereotipados evidenciados num

caso clínico de uma criança com três anos de idade. Em consonância com o modelo de

pesquisa em psicanálise, esse trabalho apresenta fragmentos da clínica, locus onde se

verificou movimentos repetitivos, ritualizados e movimentos coreografados dessa

criança que não costumava falar. O contraste entre seus movimentos e a emissão de uma

palavra verbalizada no encerramento do tratamento provocou a seguinte questão: as

repetições nas produções dessa criança seriam uma reprodução do mesmo ou seriam

movimentos se direcionando para a diferença? No discurso psiquiátrico, as estereotipias

estão arroladas como critérios diagnósticos de determinados transtornos mentais. Na

psicanálise é incluído um questionamento acerca da natureza psíquica desses gestos

ritualísticos que aparentam não ter sentido nem direção. A leitura teórica percorreu o

conceito de Repetição nas obras psicanalíticas. Em Freud, a Repetição está associada à

transferência e à resistência. E, quando ela se presentifica em ato, constitui-se um modo

particular do recordar. Mas, é a existência de uma força no aparelho psíquico que atua

involuntária e independentemente do principio do prazer (compulsão à repetição) que

produz a descoberta da pulsão de morte, cuja tendência é o retorno ao mesmo. Em

Lacan, a função da Repetição é ampliada, na medida em que ela cumpre duas funções: o

autômaton, que são as insistências repetitivas dos signos e a tique, o encontro do sujeito

com sua falta constituinte. Nesse sentido, a repetição não é meramente uma reprodução,

mas a busca do novo, da diferença, causada pela falta que impele à continuidade do

circuito pulsional. Por fim, a condução do tratamento dos movimentos repetitivos da

criança articulada ao campo teórico permitiu que a leitura da palavra “tchau”,

pronunciada pela criança, ao término do seu tratamento, se revelasse plena de sentido.

Um cenário repetitivo, celeiro de indagações, insistente em permanecer inconcluso.

Palavras-chaves: Repetição ; psicanálise de crianças ; esteriotipias.

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Abstract

This study investigates the Repetition of movements shown in a stereotypical case of a

child three years old. In line with the psychoanalysis model of search, this work

presents fragments of the clinic process, the locus for the observation of repetitive,

ritualized and choreographically movements of this child who used not to speak. The

contrast between their movements and the issuance of a word verbalized at the end of

the treatment caused the following question: repetition in this child production would be

a reproduction of the same or would be directing for the difference? In the psychiatric

speech, the stereotypes are listed as diagnostic criteria for certain mental disorders. In

the psychoanalysis studies a question about the psych nature of ritualistic gestures

apparently without purpose or direction is included. Thus, the route followed was the

reading of the theoretical concept of repetition in the psychoanalytic works of S. Freud

and J. Lacan. With Freud, the repetition is linked to the transfer and resistance. In that

context, when it appears in act, in the place of the talk, it constitutes a particular way of

remembering. But the existence of a force in the psychic apparatus that acts independent

and involuntarily of the Principle of pleasure (the repetition compulsion) subsidizes the

discovery of Freudian pulsion of death that is the tendency to return to itself. In the

Lacan reading, the function of Repetition is magnified, as it fulfils two functions: the

automaton - reminders of repetitive signs, and that the service of tiqué - the meeting of

the subject with his lack constituent. In this sense, repetition is not simply a

reproduction, but the search for new, the difference, caused by the lack of continuity

that pushes the circuit. Finally, the clinic process and the theoretical readings made the

comprehension of the child repetitive and choreographically movements and the

pronouncement of a "good-bye", full of meaning. This repetitive scenario which is full

of questions, by this very nature, insists in remains inconclusive.

Kay-Words: Repetition; psychoanalysis of childrens; stereotypes.

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Introdução

O presente estudo surge a partir de inúmeras indagações decorrentes da minha

prática clínica com crianças - especialmente aquelas que estão emudecidas ou

ecolálicas, que não brincam com outras crianças, utilizam objetos de modo atípico,

possuem “balanceios” e “maneirismos”, dentre outros comportamentos considerados

“estranhos” ou “bizarros”.

É na condução do tratamento clínico de uma criança de três anos de idade - aqui

designada por João -, cujas produções corporais, tais como estereotipias motoras

(gestualidade de mãos e braços ritualizada e repetitiva) davam a impressão de não

possuírem sentido nem direção (como “perambular” pela sala de atendimento), que

surgiram as minhas inquietações e impasses no desdobramento do caso.

Essa criança costumava realizar, embora com menor freqüência, movimentos

com o seu corpo como se estivesse envolvida na elaboração de um trabalho meticuloso.

Nesses momentos, ela escolhia o centro da sala e executava movimentos corporais de

forma lenta e gradual. Isto me evocava uma coreografia que tinha como imagem central

a de um pássaro prestes a se lançar no infinito.

O contraste entre esses movimentos – um estereotipado e outro rico em detalhes,

que me parecia enunciar “um trabalho em elaboração - chamou a minha atenção. Desde

o momento em que me vi diante dessas cenas, pensei no que tais produções poderiam

dizer acerca da subjetividade daquele menino.

Se o seu comportamento fosse tomado pelos índices diagnósticos da Psiquiatria,

ele poderia ser classificado como portador de um Transtorno Invasivo do

Desenvolvimento (CID-10), uma vez que as estereotipias estão incluídas aí como um

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dos critérios diagnósticos, conforme a discussão que será desenvolvida adiante na

descrição e análise do caso clínico. Porém, as insistentes e paradoxais produções

corporais de João despertaram em mim o interesse pelo tema da repetição na

Psicanálise, uma vez que, embora ele exibisse intensas estereotipias motoras, também

fazia movimentos com o corpo que, apesar de insistentes, não pareciam repetitivos,

dando antes a impressão de serem resultado de uma cuidadosa e prazerosa elaboração

mental.

Foi partindo, portanto, da hipótese de uma repetição que se manifesta de duas

formas diferentes que, no contexto da clínica, surgiu a questão: “Os movimentos

corporais de João seriam uma reprodução do mesmo ou uma repetição indicando o

novo, a diferença?”

A partir desta questão surgida in locus, retorno ao caso. É importante destacar

que o propósito almejado não é a discussão ou o estabelecimento de um diagnóstico

clínico acerca de um possível quadro psicopatológico dessa criança, mas a apresentação

de uma leitura da clínica a partir do fenômeno da repetição.

É promovendo, portanto, a articulação entre o conceito teórico de repetição na

Psicanálise e fragmentos do caso clínico que este estudo se desenvolve.

Para tanto, o percurso escolhido na investigação acadêmica apresenta, no

primeiro capítulo, o relato do atendimento clínico (ocorrido entre os anos de 1999 e

2001).

No segundo capítulo, tem-se o conceito de repetição, que é desenvolvido no

intuito de subsidiar teoricamente a investigação, tanto na obra de Freud como na de

Lacan.

No pensamento freudiano, o percurso teórico contemplou as seguintes obras:

Recordar, Repetir e Elaborar (1914/1969), O estranho (1919/1976) e Além do

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Princípio do Prazer (1920/1976). Nessas obras, a idéia de repetição associada ao

esquecimento e à transferência na relação analítica evidencia o quanto as recordações

inconscientes são atualizadas no fenômeno do acting out.

Ainda nesse capítulo, é abordado o momento em que Freud suspeita de uma

repetição relacionada a uma pulsão dominadora e independente do princípio de prazer.

O intrigante, para ele, era que certas experiências, anteriormente geradoras de prazer,

quando rememoradas, provocavam desprazer. É no paradoxo prazer/desprazer que a

suspeita da existência de uma força no aparelho psíquico, de caráter involuntário e

independente do Princípio do Prazer, se delineia. A idéia de Freud é a de que o sujeito

estaria submetido a essa força, sem poder fazer o que quer que fosse para impedi-la de

se manifestar. Tal hipótese é fundamentada em Além do Princípio do Prazer

(1920/1976) e serve de bússola para a descoberta do caráter pulsional na compulsão à

repetição, qual seja: a Pulsão de Morte.

No ensino de Lacan, a repetição é destacada como um conceito psicanalítico

independente, tal como Freud o fizera com o inconsciente, com a pulsão e com a

transferência.

Para seguir a trajetória desse conceito, optou-se por observar os resultados da

análise feita por Lacan dos seguintes textos: O seminário sobre “A carta roubada”,

versão de 1956 publicada na coletânea dos Escritos (1998); o Seminário 2: “O eu na

teoria de Freud e na técnica da psicanálise” (1954-1955/1987) e, o Seminário 11: “Os

quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964/1990).

Nesses textos, a noção freudiana do objeto perdido é abordada como a falta

constituinte do sujeito do inconsciente. Em decorrência da função conservadora e, ao

mesmo tempo, repetitiva da pulsão, a repetição não será confundida como retorno ao

mesmo, pois “o objeto se encontra e se estrutura por via de uma repetição – reencontrar

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o objeto, repetir o objeto. Só que, nunca é o mesmo objeto que o sujeito encontra”

(Lacan, 1954-1955/1987, p. 132). Essa falta deixada pela perda do objeto é formalizada

como o objeto a. Tal conceito abre a possibilidade de a repetição ser compreendida não

apenas como a insistência determinista da cadeia significante (autômaton), mas também

na sua dimensão de real – o encontro impossível, o encontro com a falta (tiquê).

O terceiro capítulo se direciona para a análise do caso clínico à luz dos

conceitos teóricos trabalhados. Essa articulação teórico-clínica revela as produções

advindas de tal encontro.

Nas considerações finais, as descobertas desse percurso teórico-clínico são

evidenciadas, incluindo as suas repercussões na condução da clínica psicanalítica com

crianças.

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Capítulo 1: João e as Repetições

1.1. O Encontro com João e suas Produções Corporais.

João foi encaminhado pela psicóloga da pré-escola por não falar e por apresentar

uma forte tendência para isolar-se, não aceitando brincar com as outras crianças e

rejeitando as atividades lúdicas propostas pelas professoras. Quando o vi pela primeira

vez, ele estava sentado no chão da sala de espera, com algumas revistas em seu colo,

folheando uma delas com muita concentração. Eu o convidei a entrar na sala de

atendimento, chamando-o pelo nome, mas ele não esboçou qualquer reação. Sua mãe

foi quem o levou até àquela sala. Ao entrar no recinto, ele emitiu alguns balbucios e

umas palavras ininteligíveis, começando, logo em seguida, a explorar o espaço físico da

sala com movimentos que davam a impressão de não terem sentido ou direção definida.

Durante os seis meses que se seguiram a esse primeiro encontro, as produções

corporais dessa criança passaram a chamar a minha atenção pela sua intensidade,

freqüência e diversidade. Era comum vê-lo elegendo e manuseando determinados

objetos (brinquedos, revistas, lápis de cor), os quais eram lançados ao chão, um por um.

Nesses momentos, ele produzia intensos gestos ritmados e repetitivos com as mãos ou

os braços. Quando impedido de realizar um movimento “vagante” ou solicitado para

alguma brincadeira ou diálogo, algumas vezes se deitava na poltrona e manipulava o

umbigo em movimentos rotativos ou tentava morder o dedo do pé, numa postura de

total relaxamento e deleite.

O que me chamava a atenção, todavia, era a desenvoltura com que ele explorava

o espaço físico da Sala de Atendimento. Se, de uma parte, costumava vagar sem direção

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definida, de outra, apresentava movimentos que se assemelhavam a uma “coreografia”,

a uma dança. Naqueles momentos, os seus movimentos eram realizados pausadamente,

de forma concentrada: ele ficava na ponta dos pés e abria amplamente os braços como

se o fizesse em direção ao infinito. Tal cena cuidadosamente elaborada me fazia

lembrar, em alguns momentos, um pássaro prestes a voar; em outros, um bailarino

clássico utilizando o espaço físico do meu consultório para ensaiar ou apresentar uma

coreografia. O fato é que esses movimentos corporais me evocaram imagens visuais e

mentais que faziam pensar se, em João, o corpo, e não as palavras, era o portador de sua

subjetividade, ou seja, do particular enigma que cada um de nós herda por sermos

humanos.

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1.2. Fragmentos do Caso Clínico

O atendimento clínico de João foi iniciado em abril de 1999 e, até o mês

seguinte, seus movimentos corporais insistentes e repetitivos pareciam lhe servir de

álibi, como se quisesse manter-se afastado de tudo e de todos. Em uma das sessões do

mês de maio, ele entrou na sala sem apresentar nenhuma recusa. Dirigiu-se para o baú

de brinquedos, em busca de lápis de cor. Ao encontrá-los, apanhou um número

considerável, colocando-os na palma da mão, para, em seguida, lançá-los um por um ao

chão.

Nesse dia, eu decidi introduzir uma ação diferente no seu brincar, recolhendo

cada um desses objetos para embalá-los numa folha de papel. O movimento que então

executei foi de “acalentá-los”, como se faz com um bebê quando está intranqüilo,

colocando-o nos braços para acalmá-lo ou fazê-lo dormir. João olhou pela primeira vez

para mim e para o movimento que eu fazia. A partir daí, convidei-o para participar de

um jogo de lápis. Ele ficou me observando jogar os lápis no chão (procurei imitar como

ele fazia), acompanhando a trajetória dos objetos através do olhar e de gestos ritmados

de mãos e braços. Pedi-lhe os lápis que caíram e ele me entregou alguns deles, retendo

outros. Até então, nas sessões anteriores, ele não esboçara qualquer reação diante de um

pedido meu.

O jogo foi então iniciado com a divisão dos lápis; cada um lançou os “seus

lápis” no chão, em linha reta. A trajetória dos lápis da mão até o chão foi acompanhada

por suas estereotipias e expressões faciais vibrantes. Em um determinado momento, eu

lhe disse: “Esses são os meus lápis e os que estão na sua mão são os seus lápis”. Ele

então pegou os lápis, vibrou, riscou um papel e foi até à mesa do telefone. Acionou os

botões das mensagens gravadas na secretária eletrônica e as escutou atentamente. Riu e

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repetiu a ação. Parecia desejar ouvir alguém falar. Pegou o telefone e fez um gesto de

quem ia ligar.

Durante o tratamento, partindo de uma leitura de seus movimentos corporais e

do seu modo de brincar, como traços de sua particularidade, procurei fazer com que

João realizasse um trabalho subjetivo. Com isto, visava que ele pudesse vir a encontrar

uma nova solução para os impasses relativos à sua posição quanto ao desejo dos pais e à

sua própria história familiar, enfim, quanto ao seu modo de se situar no mundo.

Alguns meses mais tarde, embora continuasse repetindo o jogo dos lápis, ele

apresentava menos estereotipias, dirigindo-se aos brinquedos, tais como carrinhos e

jogos de armar, e buscando ouvir as mensagens gravadas no telefone. Certo dia, gravei

uma mensagem para ele: “João, pode falar, que eu posso ouvi-lo”. Daí por diante, ele

passou a fazer várias gravações de seus balbucios. E saía feliz da sala. Em outros

momentos, começou a emitir sons vocálicos que, embora incompreensíveis, chamavam

a atenção pela intensidade e encadeamento com que eram emitidos. Até então, silêncio e

monossílabos era o que predominava na sessão. O fato é que, nesse período, a palavra

havia se introduzido no tratamento de João, tanto no comparecimento de sua mãe às

entrevistas marcadas - dispositivo clínico que eu estava utilizando para situar o lugar

dessa criança no desejo de seus pais-, quanto no modo como se disponibilizava para

interagir comigo. Ele parecia querer se comunicar ou dar uma resposta ao que eu lhe

perguntava. Certo dia, começou a cantar e a fazer um uso mais adequado dos

brinquedos. Suas estereotipias e seus comportamentos corporais regressivos, como por

exemplo, chupar o dedo do pé ou manipular o umbigo diminuíram em termos de

freqüência e intensidade.

Em 2000, ele retornou das férias apresentando reações negativas para entrar na

Sala de Atendimento. Esse comportamento evidenciou-se por seus gritos, sua atitude

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rebelde em fazer xixi no tapete ou deitar-se no chão para manipular o umbigo,

comportamento que ele já havia abandonado. O comportamento regressivo e a tendência

ao isolamento de João ocorreram concomitantes à diminuição na freqüência dele ou de

seus pais às sessões marcadas previamente durante todo esse ano.

No início de 2001, ocorreu que, numa sessão em que João permaneceu durante

longo tempo numa posição regredida, ou seja, deitado no chão tentando colocar os pés

na boca, como fazem os bebês nos primeiros meses de vida, quando a sessão terminou,

me despedi dele e ele, como de costume, nada me respondeu. No entanto, na Sala de

Espera, quando segurou na mão do seu pai e se dirigiu silenciosamente para a saída do

prédio, voltou o seu corpo na minha direção e me disse “tchau”.

Nas semanas seguintes, nem João nem seus pais compareceram às sessões.

Quando lhes telefonei, a mãe afirmou que resolvera interromper o tratamento da criança

comigo. Em uma das sessões, ela havia me dito que não o matricularia em nenhuma

escola este ano e que, doravante, “cuidaria dele sozinha” (sic). Nessa ocasião, afirmei a

importância de ouvi-los numa sessão para formalizar o encerramento do trabalho,

inclusive para verbalizar o término do trabalho para João. Ela concordou, mas nenhum

deles compareceu à sessão marcada.

Na verdade, eu estivera preocupada com os efeitos da repetição de uma cena que

me fora relatada pelos pais dessa criança nas primeiras entrevistas. A babá que cuidou

de João desde o seu nascimento até os dois anos de idade fora demitida por eles sem

que a mãe permitisse que ela se despedisse da criança. Por sua vez, o pai relacionava o

atraso da fala de João à ocorrência desse fato. Segundo ele, algo semelhante havia

ocorrido com a filha de um amigo e “foi só levá-la para ver a babá que ela se curou”.

O término do tratamento foi marcado, portanto, por uma repetição. Qual o

estatuto dessa repetição?

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Uma cena se repetiu, mas a criança agora se incluía como falante. João anunciou

a sua despedida através da sua palavra, da sua fala, do seu movimento em dizer “tchau”.

Esse detalhe não passou despercebido. O encontro com João, portanto,

possibilitou inúmeros e insistentes questionamentos. Um deles foi escolhido como guia

desta investigação acadêmica: as produções corporais dessa criança seriam uma

reprodução do mesmo ou uma repetição que se movimenta para o novo?

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Capítulo 2. O conceito de Repetição na Psicanálise

2.1. Freud e a Repetição.

A experiência clínica foi celeiro para despertar meu interesse pelo tema da

repetição. Se os movimentos corporais de João eram insistentes e repetitivos, havia

outros que pareciam o resultado de uma cuidadosa e prazerosa elaboração mental. Para

avançar nesta investigação, fui apreender o sentido que a Psicanálise dá ao conceito de

repetição. Como primeiro ancoradouro, encontrei as obras freudianas: Recordar,

Repetir e Elaborar (1914/1969), O Estranho (1919/1976) e Além do Princípio do

Prazer (1920/1976).

De acordo com alguns autores, tais como Lachaud (1994), Kaufmann (1996),

Roudinesco (1998) e Santos (2002), a repetição já havia sido esboçada por Freud em

artigos anteriores àquelas obras. Como afirma Kaufmann (1996), a noção de repetição -

que antes era apenas um esboço na pena de Freud – vai paulatinamente tomando um

delineamento mais preciso à medida que vai sendo articulada a outras conceituações,

como a relação que Freud faz entre a repetição e o conceito de facilitação (Bahung) em

1895. Já Roudinesco (1998) situa historicamente o emprego deste termo na

correspondência de Freud com Wilhelm Fliess, no período de 1896 e 1897. Segundo

esta autora, na carta de 15 de outubro de 1897, por exemplo, ele apresenta a idéia de

uma repetição similar à do destino.

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2.1.1 – A Repetição, a Resistência e a Transferência

Em Recordar, Repetir e Elaborar (1914/1969), a repetição é abordada como um

fenômeno associado à transferência e à resistência. Ela é reconhecida como uma

compulsão. Na obra freudiana, este é um dos textos que compõem os chamados artigos

sobre a técnica. São estudos nos quais o conhecido psicanalista está empenhado não

apenas em transmitir a sua experiência, mas em advertir os jovens psicanalistas para

possíveis desvios da prática analítica.

Freud inicia esse artigo situando as transformações do método psicanalítico. Se,

numa primeira fase, a da catarse de Breuer, o foco do tratamento se concentrava na

formação do sintoma, porque o objetivo era, sob o uso da hipnose, liberar os conteúdos

e afetos inconscientes para se tornarem conscientes (ab-reação), numa segunda, esse

método de tratamento é substituído pela associação livre. Esta, ao exigir do paciente

superar a própria censura para que os processos mentais inconscientes se tornem

conscientes, faz cessar as recordações. Nestes casos, mesmo com a identificação das

resistências, ocorriam os silêncios, “os esquecimentos” ou o abandono do tratamento.

Tais fenômenos fizeram Freud descobrir que os famosos “esquecimentos” eram

lembranças da infância que haviam sido retidas no inconsciente. No entanto, também

existiam casos em que as recordações revelavam “algo que nunca poderia ter sido

‘esquecido’, porque nunca foi, em ocasião alguma, notado — nunca foi consciente”

(Freud, 1914/1969, p. 195).

A repetição evidencia, portanto, a resistência do paciente em recordar alguma

coisa. Além disso, enquanto estiver sob tratamento, Freud alerta para o fato de que esse

fenômeno ocorre à revelia do paciente, pois ele “não pode fugir a esta compulsão à

repetição; e, no final, compreendemos que esta é a sua maneira de recordar.” (Freud,

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1914/1969, p. 197).

As observações do cotidiano da clínica favoreceram a articulação entre o

esquecimento, a compulsão à repetição e a transferência. Neste sentido, algumas

anotações se fazem pertinentes. Na pena de Freud, ele assinalou: 1. a transferência é um

fragmento da repetição; 2. a repetição é uma transferência do passado esquecido

atualizado com o médico; 3. Quanto maior a resistência, maior será a atuação (acting

out). Desta forma, quando, por efeito da resistência, o recordar cessa, abre-se caminho

para a atuação (acting out).

2.1.2. A Repetição e o “estranhamento familiar”

Se Freud reconheceu a dimensão clínica da repetição, ao relacioná-la, como

visto anteriormente, aos fenômenos da resistência e da transferência, posteriormente ele

retornará àquela associando-a ao campo da estética. Em O Estranho (1919/1976), ele

parte da idéia de que aquilo que provoca uma sensação de estranheza sempre esteve

relacionado ao que é assustador, o que é provocador de medo e horror. A tese que ele

pretende sustentar quanto ao “estranhamento” é que esse tipo de sentimento é

decorrente não do desconhecido, mas do que retorna como familiar. A experiência

clínica já demonstrara para Freud que o familiar poderia se transformar em algo de

estranho, de esquisito. Mas ele ainda não havia investigado em que condições o

sentimento de estranheza ocorria.

No início de suas investigações, Freud encontra diversos significados da palavra

Unheimlich (estranho), em diversas línguas: latim, grego, inglês, francês, espanhol,

italiano e português e, em todas elas, a palavra heimlich o leva ao mesmo sentido:

familiar, doméstico. Como resultado desse estudo, a palavra oposta, ligada à primeira,

revela que aquilo que se apresenta estranho é, ao mesmo tempo, familiar. Em seguida,

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ele utiliza o conto “O Homem de Areia”, de H.T.Hoffman, para fundamentar esse

« Unheimlich », o “estranho” que traz em si o que há de mais familiar ao sujeito.

Ao longo da narrativa, Freud vai traçando os deslocamentos e as substituições

que são iniciadas com as recordações de infância de Nataniel. Quando criança, ele ouvia

uma estória contada por sua mãe e sua babá acerca da existência de um homem perverso

– der Sandmann - que jogava “punhados de areia” nos olhos das crianças quando estas

se negavam a dormir cedo. Determinado a saber quem era esse tal homem, ele associa

“O Homem de Areia” ao advogado Coppelius, um homem que freqüentava a sua casa

para visitar seu pai, especialmente à noite. Após a morte misteriosa do pai de Nataniel, o

advogado desaparece do convívio da família.

Quando Nataniel, agora um jovem adulto, morando em outra cidade, recebe um

vendedor de barômetros chamado de Coppola, acredita ser Coppelius disfarçado. Ele

compra desse vendedor um binóculo com o qual passa a observar, da janela do seu

quarto, um vulto de mulher pelo qual se apaixona. Mas a imagem que ele vê, na

verdade, é a de uma boneca construída pelo Professor Spalanzani: Olímpia. Essa paixão

faz com que ele rompa o noivado com a jovem Clara, reatado, porém, logo em seguida.

Durante um dos passeios na companhia da jovem noiva e do cunhado, ele sobe na torre

da cidade e, ao avistar Coppola/Coppelius caminhando na rua, tem um acesso de

loucura. Delirando, tenta lançar a noiva pela balaustrada. O irmão a salva, mas Nataniel

continua a gritar: “Sim! Ótimos olhos, ótimos olhos!”. Em seguida, ele se joga do

parapeito e cai no chão, inerte.

O tema dos olhos é, para Freud, a causa da sensação de estranhamento do conto.

Isso porque “arrancar os olhos” tem uma íntima relação com o tema da castração. Por

conseguinte, se substituirmos o “O Homem de Areia” (aquele que arranca os olhos das

crianças) pelo pai temido (aquele de quem é esperada a castração), o estranho poderá

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ser compreendido como oriundo do complexo de castração da infância – o angustiante

retorno do recalcado.

Mas a relação do “estranho” com a repetição ainda é abordada por Freud a partir

de outra fonte: o estudo sobre o tema do duplo, de Otto Rank. Nesta perspectiva,

“originalmente o ‘duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica

negação do poder da morte’, (...) e, provavelmente, a alma imortal foi o primeiro duplo

do corpo” (Freud, 1919/1976, p. 293).

Em seguida, Freud apresenta o duplo a partir da duplicação, da divisão e da

permutação do Eu. São situações nas quais: (1) os personagens são tomados por seu

idêntico aspecto, de tal forma que são considerados como tais; (2) há processos mentais

em que duas pessoas estão interligadas de tal forma que uma delas conhece o

pensamento, o sentir e o vivenciar da outra (telepatia); ou (3) quando uma pessoa se

identifica com outra a ponto de chegar a duvidar de si mesma porque o seu eu se

confunde com o do estranho. Em outras palavras, a idéia é que a repetição se dá quando

se está confuso entre o que é seu e que é do outro. Daí a impressão de que algo de

mortífero está à espreita do sujeito.

Em primeiro lugar, o duplo foi formado em etapas primordiais do psiquismo

humano. Esse duplo aparece no estranho com um caráter demoníaco e aterrorizador. No

entanto, há também experiências em que a repetição surge de forma inesperada, como o

déjà vu, ocasiões em que o estranhamento não é acompanhado pelo tom de fatalidade,

mas de «casualidade». Em outras palavras, a repetição será produtora de sentimento de

estranhamento se forem satisfeitas certas condições.

Se tomamos outro tipo de coisas, é fácil verificar que também é apenas esse fator de repetição involuntária que cerca o que, de outra forma, seria bastante inocente, de uma atmosfera estranha, e que nos impõe a idéia de algo

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fatídico e inescapável, quando, em caso contrário, teríamos apenas falado de ‘sorte’. (Freud, 1919/1976, p. 296)

Quando algo involuntário ocorre na experiência de vida do sujeito, é comumente

associado a um destino fatídico, que dele se apodera e do qual ele não pode se esquivar.

Uma das hipóteses para a formação de tal fenômeno se baseia na idéia de que o

‘estranho’ satisfaz “a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista

dentro de nós e dar-lhes expressão” (Freud, 1919/1976, p.300), ou seja, são traços

arcaicos que se manifestam inesperadamente e nos surpreendem até nas experiências

mais corriqueiras do nosso cotidiano. É por este motivo que Freud afirma que o

“estranho” revela a possibilidade de:

(...)reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos — uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos. (Freud, 1919/1976, p. 297-298)

No percurso desta análise, fica claro que há fatores que transformam algo

assustador em algo estranho. Isto significa dizer que podemos isolar uma categoria

psíquica em que o amedrontador é o recalcado que retorna sob a sensação de

estranhamento.

Para Freud (1919/1976), uma das definições de estranho é “Esse lugar

unheimlich, no entanto, é a entrada para o antigo Heim [lar] de todos os seres humanos,

para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio”(Freud, 1919/1976, p.

305). Um lugar familiar que fora recalcado e que, quando retorna, aparece como “uma

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estranheza”, satisfazendo a condição de retorno do recalcado. Mas isso não significa

dizer, alerta o autor, que tudo o que esteja recalcado signifique “estranho”.

Freud explicita, nesse ensaio, o caráter repetitivo existente na relação do familiar

com o “estranho”. E, embora a compulsão à repetição esteja esboçada, a referência

desta com a pulsão de morte é o que ele desenvolve ao escrever o Além do Princípio do

Prazer.

2.1.3. A Compulsão à Repetição e a Pulsão de Morte

Em Além do Princípio do Prazer (1920/1976), a idéia da compulsão à repetição

é melhor fundamentada. Se Freud descobriu no “estranho” a existência do “familiar”

que deveria permanecer encoberto mas retornou, sua investigação se dirigiu para

descobrir o que escaparia ao domínio do princípio do prazer que a repetição insistia em

atualizar.

De acordo com a metapsicologia freudiana, a relação entre prazer e desprazer

consiste em estabelecer um status quo para a quantidade de excitação na mente. No

caso, o desprazer corresponderia a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a

uma diminuição. Por conseguinte, a regulação do aparelho psíquico vai ocorrer através

da dominância do princípio do prazer, que, para ser obtido, exigiria a tarefa de se evitar

ou reduzir todo o excesso de energia registrada como desprazer. Foi a experiência

analítica que levou Freud a desconfiar da governabilidade desse princípio. Se houvesse

tal dominância, questiona o autor, como se explicariam os processos mentais que são

acompanhados pelo prazer, mas que, ao mesmo tempo, são geradores de desprazer?

Freud apresenta então uma correção a essa teorização acerca do funcionamento

do aparelho psíquico, apontando que:

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(...) estritamente falando, é incorreto falar na dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. Se tal dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer. (Freud, 1920/1976, p 20)

As circunstâncias que o autor cita como favoráveis para impedir o acesso ao

prazer ou à sua inibição são: (1) os conflitos nas neuroses comuns, ou seja, quando há

incompatibilidade entre os impulsos da consciência e do inconsciente em termos de

objetivos ou exigências. Nesses casos, o neurótico sente como desprazer algo que,

embora seja um prazer, não pode ser sentido como tal. Essa ambigüidade é

compreensível porque o que é prazer para um sistema é considerado como desprazer

para outro; e, (2) o fator surpresa nas neuroses traumáticas, à medida que o sujeito

nunca está preparado para vivenciar uma experiência perigosa e repentina, da qual ele

não pode se esquivar. Nesse tipo de neurose, acontece um fenômeno curioso no que diz

respeito aos sonhos. Estes têm a característica de trazer o paciente de volta à situação de

seu acidente e nesse momento em que a cena se repete acorda assustado.

Tanto no sonho da neurose traumática como nas brincadeiras das crianças é

possível identificar elementos que contradizem o Princípio do Prazer, tal como na

descrição que Freud fornece quando se refere à brincadeira de seu neto de 18 meses: o

jogo do fort/da. Ele observou que, quando o menino se encontrava sem a sua mãe,

costumava brincar com um carretel, movimentando-o em “vai-e-vem”. Nessa ocasião,

ele emitia dois vocábulos: “óóó” (fort), que significa “ir embora” e “dá” (ali). Essas

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palavras eram repetidas quando sua mãe partia, embora o menino não esboçasse

qualquer revolta visível no momento da separação.

O que Freud apresenta como interpretação é que o desaparecimento/retorno do

carretel é o modo como seu neto vivencia a experiência desagradável da ausência da

mãe, sendo o brincar uma elaboração psíquica diante da perda. Por conseguinte, o

repetir incessante corresponde a uma obtenção direta de prazer diante do sofrimento. O

brincar permite uma mudança de posição – da passividade (ser abandonado) para a

atividade (controle da situação), ou seja, entre o “Fort” e o “Da”, ele se insere nesse

jogo do sair e do retornar.

A manifestação das repetições também ocorre na esfera da transferência, quando

o material reprimido não consegue ser rememorado e é “atuado” na relação do paciente

com o médico. São experiências que provocam desprazer e que fazem Freud questionar

a relação do recalcado com o princípio de prazer. A compulsão à repetição é um tipo de

rememoração que não inclui o registro do prazer, mas conduz ao desprazer. O que o

fenômeno da repetição deixa claro, porém, é o seu caráter insistente. A cena se repete,

há recorrência da mesma coisa – a repetição cumpre a tarefa de expressar algo que

implica as mesmas experiências.

Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar. (Freud, 1920/1976, p. 36)

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A hipótese de uma compulsão à repetição conduz Freud a suspeitar da existência

de um elemento mais primário do que o princípio de prazer, que parece exercer um

poder de dominância sobre este.

Mas o que faria os neuróticos retornarem à situação em que o trauma ocorreu?

Freud persegue esta questão, estabelecendo a relação entre a compulsão à repetição e as

pulsões, a partir do que ele formaliza o conceito de pulsão de morte.

Inicialmente, por pertencerem aos processos livremente móveis (os que

pressionam à descarga), as pulsões têm como ponto de impacto os sistemas

inconscientes. Além disso, se o processo psíquico primário for identificado à catexia

livremente móvel de Breuer, e o processo secundário identificado à catexia vinculada ou

tônica, então a tarefa dos níveis mais elevados ou conscientes do aparelho mental seria a

de fazer a catexia sujeitar-se ao pulsional que atinge o processo primário.

É em conformidade com este raciocínio que a hipótese de uma tarefa do

aparelho psíquico, anterior ao domínio/sujeição das excitações, pode ser estabelecida a

partir da relação da pulsão com a repetição. Mesmo a função da pulsão consistindo em

não se opor ao princípio de prazer, sendo, inclusive, independente deste, na repetição,

observam-se dois movimentos quanto àquele princípio: o primeiro, visível nos jogos

repetitivos das crianças, não contradiz o princípio de prazer porque, nesse caso, a

repetição é uma reedição do que é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer; já o

segundo diz respeito aos acontecimentos da infância, revividos na relação transferencial

do tratamento analítico na forma de “atuações” (acting out). Essas repetições provocam

sentimentos desagradáveis, desprezando, portanto, o princípio do prazer.

A hipótese de uma compulsão à repetição estava associada àquelas experiências

desagradáveis às quais se vinculava a impressão de que havia um destino maligno

guiando o sujeito ou que este estava possuído por algum poder ‘demoníaco’. Em outras

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palavras, havia algo de inexplicado nas atitudes humanas que não sucumbiam ao

princípio do prazer e, além disso, insistiam em retornar às experiências traumáticas.

Neste sentido, quando Freud estabelece a relação entre o pulsional e a

compulsão à repetição, advém a idéia de um atributo universal da pulsão. Como

decorrência, o Pai da Psicanálise define a pulsão de morte como sendo:

(...) um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas (...), a expressão da inércia inerente à vida orgânica. (Freud, 1920/1976, p. 53-54)

Nessa ótica, a repetição, ao longo da obra freudiana, é considerada um achado

clínico que implica o reconhecimento de um fenômeno denominado compulsão à

repetição, culminando com a formalização do conceito de pulsão de morte.

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2.2. Lacan e a Repetição

2.2.1 A Repetição e sua Insistência Simbólica

No ensino de Lacan, a repetição assume grande importância no resgate que este

autor empreende, com a releitura dos textos freudianos, da dimensão simbólica do

inconsciente, ou seja, a relação do sujeito com a linguagem. Esse é um posicionamento

teórico contrário à psicologia do ego, cuja interpretação dos últimos textos

metapsicológicos se dirige para indicar a supremacia do eu sobre o isso.

Lacan se apropria de alguns conceitos lingüísticos na sua proposta de releitura

dos textos freudianos para desenvolver o axioma de que o inconsciente é estruturado

como linguagem. A teoria saussureana do signo fornece elementos a partir dos quais

aquele psicanalista introduz a noção de cadeia significante.

Ferdinand de Saussure, fundador da Lingüística, define e trabalha os conceitos

de significação, significante e significado. A teoria do signo lingüístico estabelece que o

signo é uma unidade composta de duas partes indissociáveis: s/S - significante (imagem

acústica) e o significado (conceito). As alterações propostas por Lacan têm como foco a

ênfase no inconsciente em sua dimensão simbólica. Para tanto, ele inverte o algoritmo

proposto por Saussure “s /S”, para “S / s”. Com essa mudança, ele inclui o sujeito na

produção do sentido.

Em seu texto A instância da letra no inconsciente (1957/1998), Lacan destaca a

inversão – “S / s”, para afirmar que significante e significado não estão no mesmo

plano, porque o primeiro não representa o segundo. O significante tem autonomia em

relação ao significado. A barra entre ambos serve para indicar a resistência do

significante à significação, ou seja, ela separa o significante de seu efeito de significado.

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Ele considera como mera ilusão acreditar que o significante atende à função de

representar o significado ou, melhor dizendo: de “que o significante tem que responder

por sua existência a titulo de uma significação qualquer” (Lacan, 1957/1998, p. 501).

Nesse sentido, o postulado do “significante não significa nada sozinho” fica

esclarecido, à medida que a cadeia significante é a responsável pela produção da

significação, produção de sentido que é decorrente da diferença entre os significantes.

No Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-

1955/1987), Lacan afirma que um de seus objetivos é resgatar a originalidade da

descoberta do Inconsciente – a irredutibilidade do Inconsciente ao eu. Para tanto, faz

uma releitura da pulsão de morte, exposta no Além do Princípio do prazer, artigo de

Freud, publicado em 1920. Neste, a repetição é a expressão desse tipo de pulsão.

Nesse seminário, Lacan afirma que a repetição – ou insistência significante,

insistência repetitiva - encontra um mundo submetido à linguagem “na medida em que

esta última traz uma dimensão nova” (Lacan, 1954-1955/1987, p. 259). Esta é uma

afirmação que inclui uma questão acerca da razão que conduz o sujeito a insistir em

suas repetições.

Assim, a descoberta da existência no inconsciente de uma tendência a repetir, ou

seja, de uma compulsão à repetição, é traduzida por Lacan como a insistência da cadeia

significante.

Em O seminário sobre “A carta roubada” (1956/1988), revisão de algumas das

lições do Seminário 2, a natureza da natureza da repetição é investigada através do

conto de Edgard A. Poe.

A narrativa de A carta roubada deixa clara a trama intersubjetiva entre os

personagens, de tal modo que é possível demonstrar que a repetição se traduz como

determinismo simbólico do inconsciente. Ali é apresentado um pacto intersubjetivo no

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qual estão envolvidos o rei, a rainha, o ministro, o policial e Dupin (personagem com

talento especial para resolver enigmas), de tal forma que a carta roubada influencia suas

posições subjetivas, alterando-as e deslocando-as.

A repetição nesse conto ocorre em duas cenas. Na primeira, a rainha recebe uma

carta cujo conteúdo coloca em risco sua honra e sua segurança. Contando com a

desatenção do rei, decide deixa-la sobre a mesa “virada para baixo, com o sobrescrito

para cima” (Lacan, 1956/1998, p. 15), de modo que ele não a veja. Mas o ministro

percebe a manobra da rainha e, à sua vista troca a carta por outra. Na segunda cena,

Dupin visita o ministro em seu gabinete com o objetivo de encontrar a carta, a qual já

havia sido procurada de forma minuciosa pela polícia, sem êxito. No entanto, assim que

entra nos aposentos do ministro, Dupin consegue ver a carta roubada, que não estava tão

escondida assim. No dia seguinte, utilizando-se de um acidente na rua, forjado para

desviar a atenção do ministro, Dupin aproveita a desatenção deste e rouba a carta,

substituindo-a por outra. O desfecho final ocorre com a entrega da carta à policia e

Dupin sendo pago por esta tarefa.

A análise desse conto, realizada por Lacan (1956/1998), focaliza o automatismo

de repetição nos deslocamentos que se operam entre os participantes. Afinal, a posição

da rainha, ou seja, aquela que possui a carta em primeiro lugar, vai ser ocupada logo em

seguida pelo ministro e, finalmente, por Dupin. Nesse percurso, é perceptível que

nenhum dos sujeitos é dono da carta, porque quem a detém pode deixar de tê-la, no

momento seguinte. A trama da Carta Roubada revela que existe uma ação que se repete

e é oriunda de um objeto que está e, ao mesmo tempo, não está em lugar nenhum. É

essa particularidade que faz com que se perceba, nesses deslocamentos, o automatismo

de repetição. Lacan afirma:

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se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado, tem algum sentido, é que o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o caráter ou o sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, com armas e bagagens, e tudo que é da ordem do dado psicológico. (Lacan, 1956/1998, p. 33-34)

Como a Carta Roubada tem por efeito capturar quem quer que a detenha, em

seu jogo, ela pode ser considerada um significante. Isto porque, quando os personagens

se apoderam da carta, algo os ultrapassa em suas particularidades individuais e os

arrasta para a dinâmica própria do movimento desse objeto. É por este motivo que ela se

torna, para cada um, seu inconsciente.

Eis a natureza do automatismo de repetição: expor o que está em jogo na ordem

simbólica, ou seja, o sujeito é determinado pelo percurso do significante. A repetição,

portanto, revela que a determinação simbólica é constituinte do próprio sujeito. É por

esta razão que Lacan inicia o Seminário afirmando:

nossa investigação levou-nos ao ponto de reconhecer que o automatismo de repetição (Wiederholungszwang) extrai seu princípio do que havíamos chamado de insistência da cadeia significante. (...) O ensino deste seminário serve para sustentar que essas incidências imaginárias, longe de representarem o essencial de nossa experiência, nada fornecem que não seja inconsistente, a menos que sejam relacionadas à cadeia simbólica que as liga e as orienta. (Lacan, 1956/1998, p. 13)

Se o conto A Carta Roubada é bastante ilustrativo do determinismo simbólico

que acompanha a história do sujeito e, por mais que este tente apreendê-la, ela lhe

escapa, no Seminário 2, a repetição é abordada para explicitar a dimensão simbólica do

sujeito. Se algo retorna, o que retorna e a função desse retorno se justificam porque esse

algo se situa além da significação, tal como a carta roubada, que, velada, possibilita

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insistentemente deslocamentos e mudança de posições entre os personagens para que o

seu conteúdo continue em segredo.

Mais adiante, no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,

Lacan utilizará as noções de Tiquê e de Autômaton de Aristóteles, para sustentar que a

repetição, no movimento de retorno ao mesmo, cumpre a função de evidenciar o

circuito da pulsão no encontro com o real. Para além do Autômaton, da “insistência dos

signos”, a repetição denuncia uma Tiquê, ou seja, o encontro do sujeito com a sua falta

constituinte, em seu movimento pulsátil.

2.2.2. Tiquê e Autômaton.

No Seminário 11, Os quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise

(1964/1990), Lacan aborda os conceitos – inconsciente, repetição, transferência e

pulsão, considerados fundamentais para a Psicanálise, uma vez que o campo teórico e a

experiência analítica são indissociáveis. No resumo apresentado sobre esse Seminário,

em 1965, no Annuaire de l’École pratique des Hautes Études, ele afirma que a escolha

dos quatro conceitos recai na contribuição que cada um aponta para o nó da estrutura

inconsciente: a falta, o vazio e a ausência de significação.

Ainda nesse Seminário, o autor avança no enfoque da dimensão pulsional do

inconsciente, quando formaliza o conceito de objeto a para demarcar a falta deixada

pela perda do objeto.

Para Lacan (1964/1990), a dimensão pulsional é precisamente essa montagem

pela qual “a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve

conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente” (p. 167). Neste sentido, a

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pulsão não se representa em sua totalidade, sendo considerada parcial. Isto significa

dizer que ela não obtém um objeto apropriado para uma satisfação total.

A repetição, com efeito, costuma revelar esse movimento, que inclui uma

satisfação que, por sua vez, envolve a presença de uma falta. Enquanto função, ela não

pode ser entendida como uma reprodução porque, alerta Lacan, implica um ato e, por

isso, “terá sempre uma parte de estrutura que diz respeito ao real que não é evidente.”

(Lacan, 1964/1990, p. 52)

Em contrapartida, a repetição indica à Psicanálise um direcionamento teórico-

clínico como contraponto ao que, para um sujeito, se apresenta como sendo um destino

irremediável, demoníaco.

A brincadeira do fort/da, relatada por Freud, no Além do Princípio do Prazer

(1920/1976), é bastante ilustrativa para o que Lacan quer expressar como “o sujeito se

constitui pela hiância que se introduz entre dois significantes (S1-S2)”. Freud se refere

ao jogo - o de fazer desaparecer e retornar o carretel, alternando com os vocábulos fort e

da, pronunciados pela criança - como a primeira experiência cultural desta, à medida

que lhe é exigida uma renúncia pulsional. Afinal, o jogo transforma a experiência

dolorosa da partida da mãe em uma experiência prazerosa, ou seja, o que foi vivenciado

passivamente passa a sê-lo de forma ativa.

Lacan interpreta, por sua vez, o ato de jogar o carretel como um primeiro par de

oposições significantes: presença e ausência fort e da, cuja intenção é alcançar “aquilo

que essencialmente não está lá enquanto representado” (Lacan, 1964/1990, p. 63). O

brincar com o carretel evidencia, portanto, o jogo de oposições, presentificando-as em

ato.

Se é verdade que a primeira articulação entre dois significantes (S1 - S2) é

condição de constituição da cadeia significante, também o é que essa articulação não é

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suficiente para definir tal cadeia como tal. Lacan afirma que é necessário que ocorra

uma perda, ou seja, que o objeto “vá embora” para que a hiância se instale. É a partir do

intervalo introduzido por esta que uma simbolização se torna capaz de fazer com que o

significante represente o sujeito para outro significante.

Para Lacan, o jogo do carretel traduz:

(...) a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto. (...) É com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantação (Lacan, 1964/1987, p. 63)

O objeto ao qual o autor se refere na brincadeira do fort/da é o que ele definiu

como o objeto a. Lacan (1964/190) conceitua esse objeto como sendo:

algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão. Isso vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo falta. É então preciso que isso seja um objeto – primeiramente, separável – e depois, tendo alguma relação com a falta (p. 101)

Desta forma, aplicando essa teorização ao brincar do neto de Freud, pode-se

interpretar que se o menino “esquecia” o desagrado e o desamparo diante da ausência

materna, através do jogo do carretel, isso significa que ocorriam descargas em

concordância com o princípio do prazer. No entanto, a natureza faltosa do que o

instigava a escolher essa brincadeira permanecia oculta. Esta é a dimensão indicada por

Lacan, acentuando a falha estruturante, em torno da qual gira a cadeia significante em

sua insistência.

O real não pode ser confundido com o real da realidade concreta, pois ele é um

registro estrutural estabelecido por Lacan na conferência RSI – Real, Imaginário e

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Simbólico, pronunciada na abertura das atividades da Société Française de

Psychanalyse, em julho de 1953.

De acordo com Jorge (2000), a ênfase dada para cada um desses registros, ao

longo do ensino de Lacan, vai se modificando: do imaginário para o simbólico e do

simbólico para o real. O que fica em evidência em relação ao real é que Lacan o define

de dois modos distintos: como impossível de ser simbolizado e como o real que retorna

sempre ao mesmo lugar.

A descoberta original da Psicanálise – a pulsão de morte - aponta para esse

encontro com o real. A estruturação do sujeito implica um encontro paradoxal, uma vez

que o sujeito é chamado a dar sentido a um real que sempre lhe escapa. Mas qual a

relação da repetição com a constituição do sujeito?

A repetição não se confunde com reprodução. Lacan fundamentou esta

afirmação se utilizando das noções de tiquê e autômaton, tomadas de empréstimo da

obra de Aristóteles, conforme foi já mencionado. Na perspectiva psicanalítica, a tiquê é

definida como o encontro com o real e está situada para além do autômaton, que se

refere ao retorno em si, à insistência dos signos. Em suma, é o real que rege a tiquê e o

autômaton.

Na experiência analítica, a natureza da repetição é, tal como em A Carta

Roubada, velada, determinando simbolicamente as posições do sujeito. No entanto, a

transferência pode traduzir o que surge “como por acaso”, o que “não cola”, o que se

produz e escapa à revelia do analisante como sendo o inassimilável do real, ou seja, o

encontro com a falta. A repetição se articula, portanto, com a transferência através do

ato, porque este revela a ocorrência de uma passagem de poderes do sujeito a um Outro

a quem ele destina um lugar de saber sobre a sua verdade, sobre o seu sofrimento.

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Os conceitos fundamentais – inconsciente, repetição, transferência e pulsão -

estão articulados entre si porque existe “um quê” que retorna sempre. O que cabe ao

psicanalista, portanto, é buscar compreender “do quê” ele retorna. A repetição surge na

trama dos conceitos, na trajetória do sujeito em relação ao desejo como um recurso

psíquico que revela a ambigüidade do sujeito: a busca do encontro, mas um encontro

paradoxal, porque implica uma falta, uma incompletude.

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Capítulo 3: O Pulsar da Clínica

João, como já disse, é uma criança de três anos de idade que esteve em

tratamento por dois anos consecutivos. No início, ele não esboçava qualquer movimento

em minha direção, quer seja através da fala ou do olhar. Em termos de linguagem,

emitia alguns balbucios e poucas palavras ininteligíveis. Além disso, ele explorava o

espaço físico da Sala de Atendimento com movimentos que davam a impressão de não

terem sentido ou direção definida. Além do mais, apresentava intensas estereotipias,

elegia e manuseava brinquedos, revistas, lápis de cor, de forma repetitiva e ritualizada,

revelando comportamentos regressivos (manipulação do umbigo em movimentos

rotativos ou tentativa de morder o dedo do pé, numa postura de total relaxamento e

deleite).

Se essa criança não fala, não brinca costumeiramente como as outras, não dirige

o olhar aos adultos, produz inúmeras estereotipias e nem ao menos pega em um lápis

para desenhar, ela é costumeiramente classificada nos manuais diagnósticos das doenças

mentais (DSM-IV ou CID.10) como portadora de um transtorno invasivo do

desenvolvimento (F.84). No discurso psiquiátrico, quando uma criança apresenta seis

(ou mais) atrasos significativos nas áreas da interação social, comunicação e padrões de

comportamentos, com um rol de sintomas compatível com os critérios estabelecidos por

estes manuais, ela é incluída nesse tipo de diagnóstico.

Se é verdade que o diagnóstico precoce de um quadro autístico, por exemplo, é

um meio pelo qual inúmeras crianças são encaminhadas para tratamentos e, nesse

momento, inclusive, alguma delas se encontram com um psicanalista, também é verdade

que o caráter eminentemente objetivante e descritivo do diagnóstico psiquiátrico anula

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as particularidades de cada caso. É por este motivo que muitos autores advertem sobre a

prudência no uso das escalas diagnósticas quando aplicadas no campo das doenças

mentais especialmente, em crianças, quando o cuidado se torna ainda mais necessário.

A característica polimorfa que a criança assume é um dos fatores que faz com

que os psicanalistas continuem se interrogando sobre o estabelecimento de um

diagnóstico baseado em critérios objetivos.

Na Psicanálise, é diante de um analista que o diagnóstico se evidenciará. É por

isso que ele ocorre no a posteriori e é feito sob transferência. Dessa forma, as

manifestações comportamentais apresentadas por crianças, tais como a ausência de

linguagem, problemas na aprendizagem, autopunições, atos agressivos ou até mesmo as

estereotipias motoras (movimentos ritmados, aparentemente sem sentido e sem direção)

não deverão ser compreendidas apenas como um traço patognomônico. Antes devem ser

questionadas pelo psicanalista na particularidade de cada caso.

Tomando o que há de singular nas produções de João, observei que ele produzia

com o seu corpo movimentos que se assemelhavam a uma coreografia. Eram

movimentos pausados, realizados com concentração. Como produto, ele exibia o corpo

equilibrando-se na ponta dos pés e abrindo os braços amplamente. Tal cena evocava a

imagem de “um pássaro prestes a voar”, como já foi dito. O espaço físico do

consultório, nesses momentos, se transformava em palco para seus ensaios. Foi,

inclusive, a partir daí, que ele iniciou os seus movimentos em direção ao brincar, ao

jogo, ao rabisco e à palavra.

São comuns, na experiência analítica, situações em que o paciente, não

conseguindo trazer à tona os conteúdos inconscientes, os atualiza na relação com o

médico. Em decorrência da relação entre transferência e repetição, quanto maior a

resistência, maior é a atuação (acting out). No entanto, Freud adverte que, embora essas

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manifestações sejam incômodas, as resistências, as “atuações”e as repetições não são

indesejáveis para a análise, porque a “atuação” é o modo pelo qual a repetição é

veiculada na transferência, embora o seja em ato. Em outras palavras, é a transferência

que favorece a criação de determinadas condições para o sujeito agir e até mesmo

produzir um destino diferente para seus sintomas.

Aproveitando a brincadeira aparentemente repetitiva de apertar o botão da

secretária eletrônica e ouvir as mensagens gravadas, decidi, em uma das sessões,

verbalizar e gravar a seguinte mensagem: “João, pode falar, que eu posso ouvi-lo”. À

aposta, sustentada pela teoria, de que a repetição não é apenas sinônimo de reprodução,

mas é pulsional em seus movimentos insistentes, revelando o trabalho do sujeito em

construção, João responde gravando vários dos seus balbucios. A palavra se introduz na

relação com essa criança e sua mãe comparece mais sistematicamente às entrevistas

marcadas. Como efeito, João apresenta uma maior disponibilidade em interagir comigo,

pois começa a cantar e fazer usos mais adequados dos brinquedos; suas estereotipias,

bem como os comportamentos corporais regressivos (chupar o dedo do pé ou manipular

o umbigo), vão diminuindo gradativamente.

Após as férias, ele retorna apresentando comportamentos regredidos, e

permanece nesse estado até o início do terceiro ano de tratamento, quando os pais

cancelam o atendimento, como visto anteriormente, sem qualquer comunicação.

Conforme já foi mencionado, em uma das sessões, ao me despedir de João, ele me

responde “tchau”.

Na ausência às sessões subseqüentes, mantenho contato telefônico com seus pais

e a mãe me comunica que havia decidido encerrar o tratamento. Convido-a para vir me

falar sobre essa decisão, mas ela não comparece. Faço outras ligações telefônicas

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expondo a importância da formalização do encerramento do tratamento, igualmente sem

sucesso.

Nesse cenário, eu me preocupava com os efeitos da repetição na subjetividade de

João. Vejam as repetições:

A primeira cena ocorre quando João tem dois anos de idade e sua babá é

despedida por razões não muito bem esclarecidas por seus pais. A mãe me diz que não

havia permitido que ela se despedisse do filho e, um ano mais tarde, o pai associa o

atraso no desenvolvimento do filho à ausência da babá.

Na segunda cena, os pais encerram o tratamento, mas não me dizem diretamente

sobre tal decisão. Faltam às sessões destinadas para a escuta deles mesmos e nem

comparecem com o filho para a sessão de encerramento com a terapeuta.

Na terceira cena, João acena e pronuncia, pela primeira vez, um “tchau” para a

analista. E, embora não tenha ocorrido uma despedida formal entre ele e a analista, tal

como ocorrera com a babá, nessa ocasião, ele se utiliza de uma palavra usada

socialmente para sinalizar que vai embora.

Essas cenas podem evocar uma leitura que induz à repetição do mesmo. No

entanto, pode-se refletir a partir da teoria lacaniana, se a posição de João ao dizer

“tchau” à analista no último encontro poderia ser compreendida como uma repetição em

direção à diferença. A descoberta feita por Freud da existência no inconsciente de uma

tendência a repetir, ou seja, de uma compulsão à repetição, é traduzida por Lacan com a

insistência da cadeia significante.

Considerando a análise empreendida por este no conto “A Carta Roubada”, de

Edgard A. Poe, que demonstrara claramente que o automatismo de repetição pode ser

traduzido como o determinismo simbólico do inconsciente, questiono se as cenas

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repetitivas em João indicariam a existência de uma ordem psíquica que influenciou a

sua posição subjetiva, alterando-a e deslocando-a no percurso do tratamento.

No caso clínico apresentado, surge o novo entre as inúmeras repetições: a

palavra de João. Ele registra a despedida com uma palavra que é possuidora de um

sentido de separação. Ao dizer “tchau”, portanto, ele se inclui na cena repetitiva, só que,

agora, como falante.

Afinal, no primeiro momento, a babá foi demitida e impedida de se despedir de

João. Posteriormente, é a analista que não é notificada do cancelamento do tratamento

dele e sua mãe que não o trouxe para a sessão que formalizaria o encerramento do

trabalho clínico ora desenvolvido com a criança.

Quando uma trama subjetiva envolve deslocamentos entre os personagens,

Lacan considera claramente o automatismo de repetição como sendo algo que ocorre à

revelia das particularidades individuais dos personagens. No caso exposto, mãe, babá,

analista e criança são capturados por algo que os arrasta para a dinâmica própria do

movimento de repetição. Em outras palavras, diante da impossibilidade de se despedir

anteriormente da babá, João responde na relação com a analista com um “tchau”.

Nesse momento, o sujeito assume a sua palavra. Pode-se então interrogar: Seria

o sujeito que aí se inclui no discurso, mesmo em afânise?

Se na condução do tratamento se manifestaram repetições que incluíram

reproduções do mesmo, pergunto se foi o fato de a analista ter suposto nos movimentos

dessa criança um sentido coreografado que possibilitou a João ensaiar movimentos em

direção a uma emissão da palavra e, quem sabe, em direção ao desejo?

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Considerações Finais:

Iniciei este trabalho acadêmico com as indagações decorrentes da minha prática

clínica com crianças, especialmente aquelas que têm comportamentos considerados

“estranhos” ou “bizarros”, através de fragmentos de um caso clínico de uma criança de

três anos de idade. As suas produções corporais, tais como estereotipias motoras, davam

a impressão de não possuírem nenhum sentido ou direção, embora ela possuísse

também um repertório de movimentos que sugeria uma cena coreográfica. Seus passos

eram meticulosos e atentos e contrastavam com os padrões repetitivos de

comportamento, tais como os descritos nos Manuais Psiquiátricos de Transtornos

Mentais.

A este respeito, considero oportuno o posicionamento da Psicanálise, que inclui

um questionamento acerca das atividades repetitivas, ou seja, se são comumente

consideradas pela Psiquiatria como sinais patognomônicos correspondentes a uma

determinada doença, os comportamentos insistentes e repetitivos poderiam ser uma

representação do sujeito em sua posição subjetiva. Nesse sentido, pergunto se os

movimentos de João seriam uma reprodução do mesmo ou uma repetição indicativa do

novo, da diferença.

Nas obras freudianas, verifico que a repetição é considerada um fenômeno que

comparece na transferência como sendo responsável por atualizar, através do acting out,

as recordações inconscientes. É a experiência clínica que o faz suspeitar, a partir do

paradoxo prazer/desprazer, da existência de uma força involuntária e independente do

Princípio do Prazer: a Pulsão de Morte.

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Lacan, no resgate da sua leitura freudiana, explicita a importância do registro

simbólico na experiência analítica. Para tanto, ele põe em relevo a noção freudiana de

objeto perdido. Essa noção é central para a leitura proposta por este autor acerca da

repetição. Ele a concebe não apenas como retorno do mesmo, uma vez que a repetição

está relacionada com a pulsão. Na medida em que o movimento pulsional apresenta-se

conservador, cuja tendência é o retorno ao inanimado, há um outro movimento que é

repetitivo e insiste em encontrar o objeto. Ocorre que a pulsão é parcial, o que significa

dizer que ela nunca se satisfaz completamente porque o objeto é desde sempre perdido.

Eis o movimento pulsátil. Ele traz em seu cerne um circuito repetitivo.

É no suporte teórico fornecido pelo conceito de pulsão que Lacan compreende

que a repetição não é responsável apenas pelo caráter determinista e insistente da cadeia

significante (autômaton), mas por expor também a falta deixada pela perda do objeto,

denominada por Lacan de objeto a. A repetição atualiza, portanto, o que ele definiu no

Seminário 11, escrito em 1964, como sendo a dimensão do real.

O encontro com o real é definido como o encontro impossível, o encontro com a

falta (tiquê). Falta provocada pela hiância entre os significantes (S1 e S2), formulações

teóricas propostas pelo autor sobre a Constituição do Sujeito.

Os fragmentos do caso aqui apresentado demonstraram que a interrogação da

analista acerca das produções repetitivas da criança - cujo repertório limitado em suas

aquisições de linguagem e interações sociais eram indicativas de uma doença mental –

produziu efeitos. A abertura para apostar em um portador de desejo, em detrimento do

portador de uma patologia, possibilitou talvez a João ensaiar passos coreográficos na

direção do sujeito e do seu desejo, de tal forma que, num breve instante, ele se inseriu

de forma autônoma e atualizou sua despedida com uma palavra plena de sentido.

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As inúmeras repetições fizeram surgir não apenas questionamentos, mas um

movimento de escrita acadêmica que, embora concluso, por sua própria natureza, insiste

em ser incompleto.

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