no amor e na dor - andrea martinelli e mariana muller

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Andréa Martinelli | Mariana Muller NO AMOR E NA DOR Histórias de Paixão e Violência

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As mulheres e as relações violentas . Por que elas aceitam? Por que elas não aceitam?

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  • Andra Martinelli | Mariana Muller

    NO AMORE NA DORHistrias de Paixo e Violncia

  • Andra Martinelli | Mariana Muller

    NO AMORE NA DORHistrias de Paixo e Violncia

  • Orientao do projetoRenato Essenfelder

    FotografiaMariana MullerArquivo Pessoal

    TextosAndra MartinelliMariana Muller

    Edio e revisoMariana GoulartRenato Essenfelder

    Projeto grfico e diagramaoMarcelo Campos

    Impressoxxxxxxxxx

    Andra Martinelli | Mariana Muller

    NO AMORE NA DORHistrias de Paixo e Violncia

    Orientao:

    Renato Essenfelder

  • Gostaramos de agradecer a Casa Eliane de Grammont; a Mrcia Victoriano e Ftima Marques, da Coordena-doria da Mulher; s psiclogas Eloda Palmira Perdiza e Adriana Mozzambani; Maria da Penha e a todas as mulheres que lutam por seus direitos em sociedade; s filsofas Elizabeth Badinter e Michelle Pierrot, Irman-dade dos Alcolicos Annimos, e a todos os homens que buscam por si mesmos; Secretaria de Seguran-a Pblica, 1 Delegacia dos Direitos da Mulher de So Paulo; Universidade Presbiteriana Mackenzie; ao professor Renato Essenfelder pela pacincia, amizade e profissionalismo; professora Rosana Schwartz, pela ateno e direo na essncia das relaes de gnero; Dora Martinelli, Erminda Cardoso, Mrcia Detoni, Lucas Pires, Lo Cardoso, Marcelo Campos, Mariana Goulart, Sabrina Martinelli, Paula Morales, Vitoria Muller, Flvio Muller; e, principalmente a Antnio, Francisca e Helena, trs pessoas que confiaram suas histrias de vida a ns; e, a tantas outras que, mesmo sem saber, contriburam para que este projeto se concretizasse.

    AgRAdEciMEntos |

  • Maria Auxiliadora, que insiste em me mostrar a mgica que h nas coisas.

    Andra Martinelli

    Dedico este livro a Vitoria Maria, que me ensinou os mais valiosos valores. Minha me.

    Mariana Muller

  • Atroz contradio a da clera; nasce do amor e mata o amor. Simone de Beauvoir

  • A cada 2 minutos, 5 mulheres espancadas (O Esta-do de So Paulo, 21/02/2011); Homem condenado a 23 anos por matar ex-mulher a cadeiradas em Cuiab (O Estado de So Paulo, 27/04/2011); Homem man-tm ex-mulher refm em Aracaju (SE) (Folha de So Paulo, 18/04/2011); Mulher acaba presa depois de dar mordida no lbio do namorado aps discusso (Glo-bo.com, 07/05/2011).

    Diariamente, casos de violncia so denunciados publicamente na imprensa. A violncia contra a mu-lher atinge cerca de 11,5 milhes de brasileiras, segun-do dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). Em 90% dos casos denunciados, as agresses partem do companheiro sob efeito de al-guma droga1 .

    Por conta de espao e tempo limitados, o trabalho jornalstico limita-se superficialidade. Os (as) perso-nagens da histria tornam-se esteretipos e tem suas histrias de vida reduzidas a estatsticas e a vises de mundo particulares quando retratadas apenas pelas vo-zes de fontes oficiais envolvidas indiretamente no fato.

    Eduardo Galeano, famoso socilogo uruguaio, certa vez, afirmou que o mundo deve estar feito de histrias. Porque so as histrias que a gente conta, que a gente escuta, recria, multiplica que permitem transformar o passado em presente e tambm, transformar o distante em prximo em algo possvel e visvel.

    Este livro-reportagem, diferente da cobertura tra-dicional, buscou dar voz aos protagonistas da histria. Personagens como sujeitos e no objetos de sua pr-pria vida; unindo texto e fotografia para retratar sob um

    vis amplo e nico histrias baseadas em amor, paixo, dor e violncia que aparecem todos os dias nos jornais.

    no AMoR E nA doR

    Ele ficou com medo de me perder, e me levou cor-rendo para o hospital; A me dele dizia: bom filho, bom esposo. Bom filho no um bom esposo. mentira!; Ela era folgada e eu batia nela. Eu pensava assim.

    Ser fiel, amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na sade e na doena, por toda a vida, so quebrados em pe-quenos pedaos, para dar lugar a histrias baseadas em violncia. O que deveria ser amor se transforma em dor e destoa, a princpio, dos votos matrimoniais.

    Francisca convive, aps o trmino de um casamen-to problemtico, com trinta e oito marcas de tiros na parede da sala de sua casa que no que apagar. Marcas de vinte e nove anos que no se apagam da memria e nem de seus olhos. Ela, diferente de Helena, conseguiu vencer alguns traumas.

    Era linda, apaixonante. Qualquer um que ela esco-lhesse estaria aos seus ps. Mas, por ironia do destino, Helena optou por aquele que, mais tarde, sem que pudesse premeditar, usaria uma arma de fogo para intimid-la com a desculpa de que s poderia ser sua, e de mais ningum.

    Entre a militncia a favor dos negros, a bebida, e um casamento problemtico Antnio largou sua paixo pelo esporte e os estudos. Aprendeu a descontar suas frustra-es no outro. Dormia bbado, acordava sbrio e ia ler Maquiavel. Sob efeito da cachaa, ele culpava a esposa por todos os seus erros.

    1 Em 2008, o Cebrid (Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas Psicotrpicas) da Unifesp, realizou uma pesquisa mostrando que na maioria das agresses o lcool est presente. Cerca de 90% dos casos de violncia so provocados quando o companheiro est sob o efeito da droga.

    Eu vos dEclARo hoMEM E MulhER |

  • pAixo E violnciA |

    Francisca: 29 anos de casamento, 38 tiros na parede | 18

    Antnio: o casamento, a cachaa e Maquiavel | 38

    Helena: paixo desmedida por um homem | 54

  • Francisca, 65 anos

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    me dele dizia: bom filho, bom esposo. Bom filho no um bom esposo. mentira. Definitivamente,

    Francisca1 pde perceber que o ponto de vista de uma pessoa, nem sempre tido como uma verdade abso-luta. Francisca da Silva natural de Santana, cidade localizada no oeste da Bahia. Foi criada por me dona-de-casa e pai agricultor. Com ela, o nmero de filhos chegou a onze. Um nmero considerado grande para os padres de hoje, porm, na poca, natural.

    O primeiro contato com Francisca foi feito atravs de uma ligao. Aps meia dzia de palavras, ela logo disse: Filha, estou super atrasada. Preciso passar no banco antes de voltar para o trabalho. Voc pode me ligar mais tarde? Devido vida corrida que leva, nem sempre fcil de achar um bom momento para uma conversa telefnica calma.

    Aps a primeira ligao, ficamos cerca de dois a trs dias sem conseguir falar com ela. O celular caa fre-quentemente na caixa postal, independente do horrio. Devido a um golpe de sorte, finalmente Francisca nos atendeu. Me diz, quem passou meu contato para vo-cs?, perguntou um pouco desconfiada. Aps uma srie de explicaes, finalmente ela cedeu. Eu posso dar um depoimento para vocs. Pode ser aqui em casa?

    A voz de Francisca muito aguda, e ela fala muito alto tambm. s vezes de to rpida que , acaba en-rolando as palavras. Fisicamente, percebe-se que ela est muito bem devido a todas as situaes pelas quais passou. De estatura baixa e pouco peso, a mulher do telefone parece gigante quando vista pessoalmente. Os olhos marcantes so a primeira coisa que se pode repa-

    rar. Alm da bela cor azul, o olhar muito intenso e trs junto dele um misto de sentimentos. V-se superao e dor ao mesmo tempo. O nariz entrega a descendncia rabe que carrega em seu sangue. As mos enrugadas e cansadas revelam um passado difcil.

    Francisca mora em uma casa no muito grande no quilmetro 15 da rodovia Raposo Tavares. um local muito simples. Os detalhes expostos, como as reformas interrompidas, relatam que o dinheiro ganho gasto de forma contida. Em dias tranquilos, o trajeto de nibus dura algo em torno de 40 a 50 minutos. Tanto de ida, como de volta. Quando o trnsito est muito carregado, s vezes, ela leva cerca de duas horas para chegar. Insis-te em dizer que no v o tempo passar, afinal, como ela mesma conta, J virou rotina! Nem percebo direito. S ruim quando no tem lugar para sentar.

    A rua onde mora bem tranquila, a sua casa fica perto de uma praa e de um supermercado. A regio silenciosa e por l passam poucos carros. No meio da rua, h uma bandeira do Brasil pintada no asfalto. Percebe-se que em poca de Copa do Mundo a comu-nidade se organiza para enfeitar o local.

    A garagem de Francisca possui um porto de grades brancas grandes e o cho todo feito de azulejo, tornan-do o espao bem fresco. Para entrar na casa, necessrio subir uma escada. Quando se chega ao andar superior, logo se v que o espao muito bom. A casa em si no to grande, mas o local bem arejado.

    A porta de servio que d para a cozinha utilizada como entrada principal. Ali se v um fogo, uma geladei-ra nova, uma mesa com trs lugares e alguns armrios.

    francisca29 anos de casamento, 38 tiros na parede

    Nos azulejos da parede, prximo a mesa, existem vrias marcas pretas bem pequenas e sutis. Isso parece sujei-ra, mas no . tudo marca de tiro. A bala batia da parede e voltava. No troquei porque no vi necessidade, expli-ca. Ainda existem resqucios de uma das brigas que mais traumatizou Francisca. As balas do revlver que foram compradas para acertar o seu corpo ficaram marcadas na parede para lembr-la do passado.

    A casa possui trs cmodos, um banheiro e uma cozi-nha. O quarto onde fica a cama de casal e o guarda-roupa tem uma janela que d para a laje. Eu consegui cons-truir esse lugar pra tomar um solzinho, conta. A sala tem uma televiso e dois sofs. O maior deles coberto por uma roupa de cama, enquanto o outro fica abarrotado de livros e materiais que ela usa na faculdade.

    A

    Eu no consigo dormir no escuro. Preciso de algum barulho, relata Francisca. Devido aos maus tratos que sofreu durante anos, o silncio da noite algo que a in-comoda demais. O sof de trs lugares virou a sua cama. Depois que ele tentou me matar naquele quarto, em cima da cama de casal, com os panos de cho, eu nunca mais dormi em uma cama. Gosto desse sof, explica.

    A recordao de que um dia passou por uma ten-tativa de assassinato na cama em que dormia, hoje a impossibilita de deitar em uma. Encontrou no sof todo o conforto que precisava para descansar seu corpo. Ao mesmo tempo em que se sente mais segura, daquele mvel ela no tem pensamentos negativos.

    O banheiro bem simples. No tem muita coisa, s o essencial. Logo ao lado, o quarto que deveria ser um dormitrio virou uma espcie de depsito, ou ento, ex-ateli de costura. Francisca guarda todas as mquinas, tesouras, ls e agulhas naquele lugar. Percebe-se que ela

    no as manuseia mais devido ao p do lugar, e guarda ali para no ocupar espao.

    Venha ver a minha lavanderia! Eu acabei de fazer ela!, chama Francisca, eufrica. No fundo da casa, ela abre uma porta branca e mostra o novo espao. Tm duas mquinas de lavar roupa. Essa nova, chegou h poucos dias. Preciso achar algum que queria ficar com a velha, explica. O teto ainda est em fase de finaliza-o. Falta o gesso sabe? No repara, no, pede.

    Pela casa, v-se que no existem fotos espalhadas pelas estantes e pelas paredes. Guardei tudo em uma caixa. No sei onde est. Preciso procurar, explica. De-pois de todas as agresses pelas quais passou durante o casamento, enquanto fazia terapia, Francisca decidiu que precisava apagar de alguma forma todas as ms

    lembranas que tomavam conta de sua cabea. Alm das frequentes reformas, as fotos tambm perderam o espao na casa. Todo tipo de recordao no bem vista.

    Todo dcimo terceiro eu deixo destinado para a minha casa, explica. A nica coisa que manteve intac-ta foi a cama. Esse foi a nico mvel que eu preservei. No consigo me desfazer dela. A cada ano que passa ela cuida de alguma parte do seu espao. Ela compra novos mveis, novos aparelhos domsticos, muda a pintura, entre outras coisas.

    A infncia que teve foi tpica de uma criana vinda de uma cidade do interior nordestino, no muito fcil, tambm no muito difcil. Ao conversar com Francisca, pode-se perceber que a criao dada pelos pais foi mui-to simples, tornando-a ao longo dos anos uma pessoa muito humilde. Quando recorda dos familiares, no-tvel o carinho em sua voz. O amor pelo pai, a gratido pela educao que recebeu.1 Foram usados nomes fictcios para preservar a identidade dos personagens envolvidos na histria

    Elas me chamavam de preta. Apontavam minhas diferenas. Eu gosto da minha cor, acho ela bem bonita.

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    Francisca era muito prxima de suas irms. Devi-do miscigenao que tinha em sua famlia, uns eram bem diferentes dos outros. Alguns tinham nascido de olhos claros, pele escura. Enquanto outros possuam olhos escuros e uma tonalidade de pele mais clara. Eu sofri preconceito dentro da minha prpria casa, recorda Francisca, que dizia no saber como se chama-va aquela atitude quando era pequena. As irms eram bem brancas, enquanto a sua pele era mais escura. No chegava a ser negra, mas podia-se notar a diferena quando comparada s outras. Elas me chamavam de preta. Apontavam minhas diferenas. Eu gosto da mi-nha cor, acho ela bem bonita, exclama orgulhosa do tom que carrega em seu corpo.

    Todos foram muito bem educados, porm foram poucos os que tiveram a sorte de estudar. Eu fiz um supletivo quando eu cheguei em So Paulo para tirar o diploma do fundamental. Na Bahia, eu parei de estudar quando era menina. Ficava em casa ajudando minha me, conta. Ela explica que no serto nordestino nem todos conseguiam finalizar os estudos. Os irmos mais velhos ajudavam na lavoura, e as mulheres da famlia faziam o que podiam dentro de casa. Todos ns ti-vemos estudos at certo perodo. Depois disso, foram poucos os que tiraram diploma, diz.

    Com dezessete anos, ela teve o seu casamento ar-ranjado e planejado pela famlia. Escolher no estava entre as suas opes. Ele j era meu parente. Meio distante, mas era. Eu morava na Bahia e ele aqui em So Paulo. A me dele quando me encontrava sempre falava assim: Quando ele vier passear aqui, voc vai se casar com ele! Eu quero que ele se case com uma moa como voc. Inocente, consentiu com a ordem e decidiu que aquele seria o seu destino. Queira ou no queira, tem que casar porque os parentes que-rem, ela pensava. No tardou e Jos ficou sabendo do que se passava na sua cidade natal. Voltou para a Bahia a fim de tornar Francisca, uma jovem menina, em sua esposa.

    Ns no nos conhecamos direito, eu era menina, jovem. Ele chegou todo arrumado, se engraou, e a aconteceu. Tempo insuficiente para conhecer o par-ceiro e decidir se aquela a pessoa ideal para passar o resto da vida. Namorei um ms antes do casamento. Foi uma loucura. Eu tinha dezessete anos! Era nova e no tinha experincia nenhuma. Ele tambm era jo-vem, tinha vinte trs anos, exatamente seis a mais que eu, enfatiza Francisca.

    No comeo do casamento, Jos j demonstrava que era um homem violento. Francisca confessa que: nesse meio tempo de casamento, j existia violncia, mas eu no sabia que era. Logo depois do matrimnio consumado, ela no tardou a juntar os seus pertences e acompanhou o marido de volta a So Paulo. Vie-

    menino. As agresses pararam. Durante nove meses ela teve sossego. O mximo que acontecia era um ou outro xingamento. Jos no encostou o dedo na es-posa at ela parir o segundo filho do casal. Em 1964, nasceu Luiz.

    Francisca pde perceber que no estava sozinha quando conversava com algumas mulheres da regio. Ela se recorda: Muitas mulheres falavam assim: meu ma-rido jogou comida na minha cara, mas no me bateu. A comida jogada na cara j uma forma de violncia, mes-mo quando no associada ao enfrentamento fsico. Ela mal podia contar, e mesmo se lembrar de quantas vezes j havia passado por essa humilhao. Quantas vezes ele j cuspiu a comida na minha cara? Isso algo que eu no consigo esquecer, lamenta.

    A primeira grande briga em que houve grande violn-cia fsica, assombra Francisca at hoje. Ele trabalhava de domingo, e um dia eu resolvi fazer uma boa refeio para quando ele chegasse em casa. Enfeitei uma mesa enorme para ele comer. Fiz doce de abbora, frango, macarro, fiz tudo. No tardou e ele chegou em casa transtornado. Ele comeou a discutir comigo e pegou o revlver que ele guardava no quarto. Fui ameaada de morte. Ele foi toma-do por uma agressividade to grande, que todas as tigelas que eu tinha posto em cima da mesa foram quebradas na minha cabea. A cozinha ficou destruda, com comida para todos os lados. At hoje eu no consigo entender o motivo daquela briga, conta Francisca.

    Quando ele pegou aquela arma, eu a vi disparar na minha frente, recorda. Os filhos que eram bem peque-nos, tinham cinco e seis anos respectivamente, presen-ciaram toda aquela trgica e assustadora situao. Sem entenderem nada, eles viram o pai chegando alucinado dentro de casa, agredindo a esposa, pegando um revl-ver e ameaando-a de morte. Ele me jogou no cho e apontou a arma para mim. De repente eu vi meus filhos se jogando em cima de mim, relata. O medo tomou conta de Francisca, porque os filhos agora estavam tambm na mira.

    um rapaz exemplar e a mulher que se casasse com ele podia ser considerada uma pessoa de sorte. A nica coisa que ela j havia escutado antes de se casar em relao a esse tipo de atitude eram os problemas de seu cunhado Joaquim, irmo de Jos. Todos ns j sabamos do histrico do irmo dele. Sabamos que ele batia na esposa. Mas o Jos no! Ele era to bom com as pessoas, que a prpria me fazia questo de dizer o quo especial ele era, diz.

    Logo no comeo do casamento engravidou do seu primeiro filho. Durante o perodo da gravidez, Jos no encostou nenhum dedo se quer na esposa. Acho que ele tinha medo de acontecer alguma coisa com o beb, conta. Quando soube que estava grvida, pensou que talvez ele fosse mudar. A famlia estava aumentando, aquela criana iria trazer alegria a ambos. Foi s dar a luz a Gabriela, que tudo voltou a ser o que era antes.

    Francisca que ainda no possua a malcia e astcia de uma mulher adulta, sonhava que um dia seu marido fosse mudar. Eu pensava assim, vamos construir uma casa e o casamento vai se ajeitar. No, foi pior. Eu s no apanhei grvida, conta. Todo e qualquer motivo passou a ser desculpa para ferir a esposa. Gritos, xingamentos e tapas passaram a fazer parte da rotina de Francisca. O que no era normal virou comum em pouco de tempo de casamento.

    A tolerncia com o passar dos meses ficou menor, a violncia aumentou e Francisca no conseguia se des-vencilhar desse pesadelo. A violncia foi crescendo cada vez mais. Eu no tinha como sair dali. Quando al-gum sofre esse tipo de problema, a cabea parece que fica bloqueada, explica. O medo no era s com ela, e sim com os filhos tambm. Se um homem daqueles po-dia fazer tantas maldades com a prpria mulher que ele jurou amar e proteger o resto de sua vida, ser que os filhos estariam em perigo tambm?

    Um ano depois de ter dado a luz sua filha, Ga-briela, engravidou novamente. Alm da menina que lhe fazia companhia, agora estava chegando casa um

    ns no nos conhecamos

    direito, eu era menina, jovem. Ele chegou todo arrumado, se engraou,

    e a aconteceu.

    mos para So Paulo, e com o dinheiro que tnhamos mudamos para um bairro mixuruca l na Zona Les-te. Era bairro novo, no tinha nada, nem asfaltado era. Compramos um terreno e construmos uma casa para morar. So Miguel Paulista, na poca, era um bairro industrial com uma populao crescente de nordesti-nos, especificamente baianos e pernambucanos.

    At o momento em que se casou, ela nunca havia convivido com problemas dessa natureza. Seu pai ja-mais fora capaz de encostar a mo em sua me para machuc-la. Ela no entendia como aquilo podia acontecer. Casou-se esperando uma vida descente e feliz. A reputao que Jos tinha em Santana era ti-ma. Bom filho, bom amigo, bom cunhado. Aquele era

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    A comida que havia sido preparada com carinho foi jogada no lixo. As tigelas de que Francisca tinha tanto orgulho foram estilhaadas em poucos minutos. E ela estava cada vez mais destruda como mulher, e prin-cipalmente, como ser humano. Aquele domingo foi muito terrvel. Foi um dia chocante. Eu via a hora da-quele revlver disparar e acertar uma das crianas.

    Naquela poca, a renda de casa era proveniente principalmente do salrio de Jos, que era emprega-do da prefeitura, impossibilitando Francisca de fazer diversas coisas de interesse prprio. Ela passava o dia organizando a casa e cuidando dos filhos para agradar o marido e se proteger de uma possvel agresso. Qual-quer coisa era motivo, uma comida que ficou salgada, um mvel com p, uma camisa mal passada. A ele gritava, xingava, batia, esclarece. Ela diz que perdeu a conta de quantas camisas foram rasgadas e jogadas em sua face por causa de um colarinho marcado.

    Tudo o que Jos fazia deixavam alm das marcas f-sicas, marcas psicolgicas. A vizinhana no conseguia enxergar naquele homem uma pessoa to cruel. A cul-pada disso tudo, era Francisca. Todos pensavam que se ela apanhou foi porque ela mereceu. Jos demonstrava ser uma tima pessoa fora de casa. Todos os vizinhos o viam com olhos diferentes dos filhos e da esposa. Eu tinha uma amiga que dizia no acreditar em mim. Que aquele homem era muito bom para me fazer tanto mal como eu dizia, conta. O pensamento machista com o qual ela convivia diariamente, a fez se sentir a prpria culpada pelos problemas que rodeavam o seu cotidiano.

    Sair na rua era um grande problema, pois ela sabia que seria alvo de comentrios maldosos a seu respeito. Voc v como era a mulher de antigamente: quem tinha que ter vergonha no era eu, era ele. Mas eu tinha, os homens davam risada de mim, eles achavam bonito, explica. Eu era vista como culpada. Apanhava porque merecia, era isso que passava pela cabea dos meus vizinhos. Eu no prestava, no merecia um homem to bom, no era boa esposa, recorda de como era lembrada na vizinhana.

    Depois da partida dos dois filhos mais velhos, Fran-cisca ficou sozinha em casa com Jos e o caula, Leonar-do. A vida passou a ser atormentada novamente e com mais frequncia pela violncia praticada dentro de casa. Os meninos se casaram e ele aproveitou para recome-ar com a violncia novamente. O meu pequeno presen-ciava todas as brigas, recorda. Nessa poca, Francisca j estava mais forte e ao menos agora pensava em se de-fender, ainda que desistisse de faz-lo. Eu saa correndo pra chamar a polcia quando ele comeava a me bater, mas a eu chegava no porto e algo me brecava. Eu no conseguia passar pro lado de fora. Eu pensava que ele ia mudar, explica. Ela ainda sentia que ele poderia mudar e tornar a vida melhor. Passava por sua cabea que ele ia perceber sozinho que aquilo tudo no valia a pena.

    Como j tinha o ensino fundamental completo, esta-va na hora de tirar o diploma do ensino mdio. Francisca que j trabalhava na Prefeitura desde a poca em que morava em So Miguel, sabia que para boas mudanas acontecerem, ela tinha que se formar. Ela se matriculou em um supletivo perto de sua casa e passou a estudar noite, depois do trabalho.

    Jos no gostava de ver sua mulher estudando noi-te, ento utilizava dos medos do prprio filho para fazer a me desistir do que era importante para ela: Ele abria as janelas, saa de casa e deixava o menino sozinho. Ele ficava com medo e chorava alto. Os vizinhos vinham re-clamar dizendo que no conseguiam dormir por causa do barulho, explica Francisca, que ganhou fama de me

    Buscando novas alternativas, Francisca decidiu que deveria terminar os estudos parados desde sua mudana para So Paulo. Matriculou-se em um supletivo perto de sua casa para tirar o diploma do ensino fundamental. A escola em que estudava era to precria que ela tinha que levar o seu prprio material, incluindo cadeira e apoio para escrever. Sorte que eu morava bem perto. Assim no ficava pesado para mim, explica. Esse perodo que deveria ser lembrado como uma fase boa de seu aprendiza-do, no foi nem um pouco fcil. Como eu captei a mensagem da escola, eu realmente no sei. Quando ele cismava que eu no deveria ir, eu faltava. s vezes, ele ia me buscar com um revlver escondido no casa-co, recorda Francisca.

    Devido a tantas agresses fsicas e psicolgicas, Francisca passou a ficar doente com mais frequncia. As crises asmticas tornaram-se parte do seu cotidiano, e ela mesma conclui que ficava mais doente do que sa-dia. Muita coisa pra fazer, filho pra tomar conta e ainda aguentar o marido.

    Francisca engravidou pela terceira vez aos 34 anos. Mais um menino estava chegando ao mundo. A casa, que antes supria a necessidade do casal e dos filhos, deixou de ser boa e passou a ficar pequena demais. A famlia passou a procurar uma nova moradia para um novo comeo. Em So Miguel no havia luz eltrica, a gua era de poo, e a localizao no era das melhores. O dinheiro era pouco, mas dava para conseguir um lu-gar melhor. Depois de muito procurarem, encontraram uma casa no Butant. A famlia mudou-se e a esperana de alguma coisa boa acontecer, ressurgiu.

    Mas o tempo passou, e os hbitos violentos de Jos continuaram. Os filhos j no aguentavam a relao do-entia dos pais e logo que puderam, deram um jeito de sair de casa. A menina se casou cedo, aos 19 anos, e foi morar em Sorocaba. O filho do meio quando percebeu que tinha chances de sair daquele ambiente foi embora. Alistou-se no Exrcito, arrumou as malas, e partiu.

    irresponsvel, capaz de abandonar o filho sozinho em casa durante a noite.

    Como eu tinha frequentes ataques de asma, eu passei a procurar ajuda mdica mais vezes. Conheci o Dr. Csar, um pneumologista muito bom, recorda. Os dois, devido procura frequente da paciente, acabaram criando um vnculo de amizade. No foi preciso muito tempo para o mdico saber o que se passava na vida de sua paciente. As marcas aparentes no corpo eram a prova viva de que o casamento dela era na realidade, uma tortura. Ele fala-va assim: Francisca, voc no pode ter mais filhos! No bom para uma criana viver em um ambiente desses!, diz, Quando ele sugeriu que eu fizesse uma laqueadura, eu nem sabia o que era isso.

    Com a ajuda do doutor, Francisca marcou uma cirur-gia escondida do marido. Ela sabia que a melhor deciso a ser tomada era amarrar as trompas o mais rpido poss-vel. Uma semana depois daquela visita ao consultrio, ela j tinha horrio e data marcada para a operao. Fiz tudo escondido e super rpido. Eu no podia mais ter filhos com um homem daqueles. Tinha que dar um basta. Com 38 anos, eu decidi colocar um ponto final, conta.

    No demorou a tardar, e aps alguns meses de convi-vncia, os vizinhos passaram a conhecer um pouco mais a histria de Francisca. Os gritos, os barulhos dos objetos sendo estilhaados passaram a fazer parte da rotina da rua. Desistiu de procurar a famlia quando escutou de um parente que casa e comida j era suficiente, brigas faziam parte de uma crise passageira. Nunca tive amigos, ele no permitia, diz lembrando a sua solido durante anos. Ciumento e possessivo, Jos se irritava quando Francisca ficava conversando durante muito tempo com alguma vizinha. Para proibir esse tipo de contato, trancava a pr-pria mulher dentro de casa. Ele me prendia para eu no conversar com ningum. Eu no podia sair na rua, ir ao bar, ao supermercado. Ele trancava o porto e se apode-rava das chaves, recorda Francisca. Na poca, ela no entendia direito o que se passava, mas hoje afirma que sofria crcere privado.

    Ficava mais doente do que sadia. Muita coisa pra fazer, filho pra tomar conta e ainda aguentar o marido.

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    Frequentemente, ele entrava em casa dizendo o quanto a mulher no prestava. Ele olhava na minha cara e comeava a me xingar. Assim, sem motivo nenhum, diz. No demorava muito e ele me ameaava. Dizia que ia arrancar a roupa toda do meu corpo, me dar uma surra e depois me jogar no meio da rua, completa. Francisca nunca soube ao certo quando o marido estava muito b-bado. Nunca o vi cado, falando muito mole. Ele bebia e disfarava. Colocava um cravinho na boca para tirar o cheiro, recorda. O marido sempre estava com a espe-ciaria na boca, no entanto, ela nunca descobriu quais as quantidades que ele bebia quando estava fora de casa.

    Em 1992 ns nos separamos. Ele foi morar no inte-rior e eu fiquei com a casa no Butant, conta. A situao ficou to insustentvel que Francisca, pela primeira vez em anos, assumia a sua posio como mulher. Eu pedi o divrcio, relembra. Para afrontar a esposa e faz-la so-frer, Jos carregou junto com suas coisas o filho caula

    do casal. Ele fez isso para me atingir. O meu menino era meu maior bem, diz.

    Desesperada, Francisca ligou para o seu advogado e pediu ajuda, ela no queria ficar longe do filho. Meu ad-vogado disse assim: Dona Francisca, no se preocupe. Uma hora ou outra ele vai saber que o pai no presta e vai voltar para casa, relembra. At o menino cair em si e descobrir que o pai no era um bom sujeito, muitos fatos marcantes aconteceriam. Com medo do que pudesse acontecer, ela nunca pediu a guarda da criana.

    Quando finalmente pensou que ia ter um pouco de paz, ela enganou-se. Jos no era o tipo de homem que desistia fcil, ele estava disposto a arrancar tudo que pensava ser seu. Ele queria o filho, a casa, o dinheiro e a vida de Francisca.

    Ele me atormentava. Todos os dias, s sete horas da manh o telefone de casa tocava. Ele comprava um monte de fichas telefnicas e colocava um monte de homens para falar comigo, conta. Certo de que tinha outro em seu lugar, Jos estava disposto a descobrir quem era. Ficavam me perguntando se eu conhecia alguns homens. Eles chutavam alguns nomes para ver se eu falava de algum, ri debochadamente.

    Apesar da separao de corpos, os papis ainda no estavam assinados, portanto, perante a lei, eles ainda eram casados. Logo no comeo do ms, o marido j li-gava atrs de seu sustento: Ele me ligava e dizia assim: Pe o dinheiro na minha conta, fala enquanto coloca as mos na cabea. Eu tinha tanto medo, que eu no pensava o contrrio. Logo que eu recebia, eu deposita-va na conta dele, completa.

    A violncia j tinha virado uma rotina na vida de Francisca. Ficou casada por vinte seis anos e meio, e du-

    rante todo esse tempo conviveu com essa situao. No era porque ela estava separada fisicamente do marido que ia deixar de ser. O filho, que na poca tinha treze anos, estava morando com o pai aposentado em outra cidade. O caminho estava livre para Jos. No tinha nin-gum dentro daquela casa que pudesse impedi-lo de cometer alguma atrocidade. Ela estava ciente disso, mas imaginava que ele no fosse chegar a tanto. Eu nunca imaginei passar o que passei naquele ano. No tive sos-sego um nico dia sequer. Eu vivi um ano da minha vida com medo, doente, sem dormir, esperando ele aparecer e me matar, recorda.

    Francisca sentia tanto medo de ser surpreendida por Jos, que na hora que ela levantava para trabalhar, nem caf ela tomava. Queria sair o mais rpido possvel

    de casa. Eu ia trabalhar bem cedinho. Tinha uma cole-ga que trabalhava em outra repartio, e como eu no preparava caf de manh eu deixava para tomar com ela, conta. Um dia, enquanto ela se dirigia copa da repartio em que a colega trabalhava, avistou o ma-rido de longe. Ele que j estava aposentado na poca da separao, tinha tempo para poder vigiar a esposa.

    Quando eu vi ele (sic) por ali, j escutei um monte de xingamentos. Ele gritava se eu estava atrs de algum macho, relembra. A amiga de Francisca ficou assusta-da e logo disse para ela tomar cuidado porque poderia ser morta ali mesmo. No entanto, como tinha muita gente trabalhando naquele local ela sabia que ele no se atreveria a machuc-la em pblico. Passado o caf da manh, Francisca se dirigiu sua repartio. Estava na hora do trabalho. Ela resolveu enfrentar o medo.

    Como de costume, ela foi em direo porta dos fundos e entrou direto na cozinha. Foi surpreendida por um puxo de cabelo. Ele me agarrou os cabelos, s que eu consegui escapar e sa correndo de l. Fui pra fora. O problema, que tinha sido a primeira a chegar. No tinha ningum para me ajudar, e as pes-soas da rua no fizeram nada, recorda.

    Instintivamente, ela pensou em ligar para o 190 e pedir ajuda polcia. Voltou correndo para a reparti-o e pegou o telefone. Jos chegou logo em seguida e lhe acertou um murro no olho. Aquele dia eu sofri muito. Aquele soco foi muito forte. Mas eu sabia que se eu no fizesse alguma coisa, ele ia me matar. Levan-tei e peguei o telefone de novo. Ele saiu correndo logo em seguida, conta Francisca sobre a agresso que lhe rendeu um olho ruim at hoje.

    Ele foi direto para a casa do meu filho dizer que no conseguia conversar comigo porque eu era muito difcil, muito ignorante. A sorte que a minha nora muito inteligente e na hora ela viu que tinha algo de errado na histria, explica Francisca. Sabendo que algo estava errado, a mulher de seu filho ligou para o servio da sogra em busca de mais informaes. Em

    dizia que ia arrancar a roupa toda do meu corpo, me dar uma surra e depois me jogar no meio da rua.

    um telefonema ela ficou sabendo que a polcia tinha levado Francisca para o hospital porque a briga tinha sido violenta.

    A chefe de Francisca, logo na sada do pronto-so-corro disse que ela deveria fazer um exame de corpo de delito. Ela foi encaminhada ao Instituto Mdico Legal localizado no Jaguar. Seu filho do meio, que ao sair do Exrcito conheceu uma mulher e casou-se, foi busc-la para passar a noite em sua casa. Eu no consegui dormir de tanta dor. Eu gritei a noite inteira, relembra ao contar os momentos de dor. Eu quase fi-quei cega, foi por muito pouco. Meu olho di at hoje, e depois da operao que eu fiz, eu descobri que foi por causa daquele soco, completa.

    Na hora eu no conseguia lembrar que eu tinha plano de sade. Eu ia no hospital pblico mesmo, diz. Alm do esquecimento, Francisca tinha muita vergo-nha de ser atendida por um mdico conhecido e ter de dizer o motivo de suas marcas. Olha como eu ti-nha uma cabea pequena. Eu tinha vergonha de dizer o que estava acontecendo comigo, confessa. A marca ficou em seu rosto durante cinco meses. Mesmo de-pois, nunca mais voltou a ser igual.

    Ele tinha uma birra com essa casa muito grande. Apesar de ter sido eu quem pagou tudo, ele insistia que o espao era dele, conta. Jos queria a casa e faria qualquer coisa para t-la de volta. Ela estava jogada s traas. No tinha absolutamente nada. A nica coi-sa que eu podia chamar de minha, ele tambm queria tomar, recorda. Em pouco tempo, as invases come-aram a acontecer.

    Durante uma noite da semana, quando tudo pare-cia calmo, Jos voltou a So Paulo com o intuito de dar um susto em Francisca. Sorrateiramente, ele conse-guiu entrar em casa e surpreendeu a esposa na sala. Quando eu vi aquele homem na sala, eu pensei que minha hora tinha chegado, conta. Com um plano ar-quitetado cuidadosamente, ele apontou um revlver para ela, dizendo para no fazer nenhum barulho.

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    Ele pegou uma linha, dessas de pesca, e amarou na maaneta e depois na janela. No tinha como eu escapar, diz. Junto do revlver, ele carregava consigo uma sacola cheia de ferramentas para destruir a casa, os mveis e todos os aparelhos que existiam dentro dela. Como Jos sabia que a esposa costurava muito bem e utilizava disso como uma fonte de renda, uma das ideias era destruir cada mquina de costura.

    Durante horas ele ficou batendo o revlver no meu peito me chamando de tudo quanto era nome. Vaga-bunda, biscate, prostituta. Ele queria saber quem era o macho que estava comigo, recorda. Quando o relgio marcou quatro horas da manh, ele pegou alguns pa-nos de cho, jogou a esposa de costas na cama, subiu em cima dela e comeou a sufoc-la repetidamente. Ele gritava assim: Essa noite voc vai morrer, sua filha de puta. Hoje voc no me escapa, conta. Na poca, Francisca estava arrasada fisicamente. Ela no tinha foras para se defender.

    Depois de um tempo torturando a esposa, ele ficou com sono e decidiu dormir um pouco. Deitou na cama que antes pertencia ao caula, abraou o revlver e disse que se Francisca gritasse ela estava morta. Eu fiquei imvel na cama. Minha asma j estava atacada. Eu sabia que se ousasse levantar, aquele revlver ia disparar, relembra.

    Jos no dormiu. Em alguns minutos ele se levantou e recomeou. Ele queria matar a mulher de forma len-ta e dolorosa. Foi naquele dia que eu soube que Deus existia, confessa. Ele subiu em cima de mim e uma hora eu consegui gritar em voz alta: Jesus, me salva! Esse homem vai me matar!, completa. Foi nesse mo-mento que ele parou. A mo dele comeou a formigar. De repente, ele disse que no estava sentindo o brao. Ele levantou, pegou a sacola e foi embora, suspira ao relatar que quase perdeu a vida naquela noite. A casa ao menos, no foi destruda.

    Depois daquela horrvel situao, Francisca tinha plena conscincia de que deveria fazer alguma coi-

    sa o mais rpido possvel. Eu levantei bem cedinho e fui delegacia. Depois de registrar sete boletins de ocorrncia, aquela delegada resolveu escutar a minha histria, diferente dos outros delegados, diz. Preocu-pada com a vida daquela cidad, a delegada ordenou que ela trocasse todas as fechaduras de casa. Aquela era a primeira medida a ser tomada.

    Aquele no tinha sido o primeiro boletim de ocor-rncia que Francisca tinha registrado. Muitos outros j haviam sido feitos, no entanto, nenhum tinha dado re-sultado at o stimo. Eu no sabia que depois de fazer o B.O, tinha que dar andamento no processo. Por isso que nunca acontecia nada, diz. Foi rejeitada nas dele-gacias normais, eles diziam que ali no era lugar para fazer aquele tipo de ao. Eu tinha que procurar um lu-gar especfico. Sem preparao, os delegados da poca no tinham condies de ajudar e amparar as vtimas de violncia domstica. Francisca teve que passar por vrias pessoas at ser ouvida por uma.

    Ao sair da delegacia, Francisca foi direto em dire-o ao chaveiro. Trocou tudo. Nem uma s porta ficou como era antes. No tardou e Jos descobriu. At hoje ela no sabe como. Alguns dias depois do que houve, os meninos da rua comearam a gritar que meu marido estava vindo em direo nossa casa com alguns poli-ciais, relembra. Francisca apanhou seus documentos e desceu as escadas correndo. Ela se posicionou na fren-te da casa e ficou esperando.

    De repente, eu o vi virando a esquina todo arrumado acompanhado de alguns policiais, recorda. Os policiais chegaram at Francisca e disseram que por lei, ela no podia expulsar o marido de casa. Ela tinha que deixar ele entrar. A vizinha que presenciava tudo de perto, interfe-riu. Ela olhou bem nos olhos do policial e disse: Se voc deixar esse homem entrar, amanh ela estar morta, diz contando o que a amiga fez para ajud-la.

    Temendo um novo atentado, ela consentiu em dor-mir na casa da amiga. Jos ficou com a casa para ele aquela noite. Eu no consegui dormir. Eu estava muito

    uma srie de feridas. Acho que quem sentava do meu lado chegava a sentir nojo, complementa. As feridas de fundo emocional no cicatrizavam com remdio algum. Debaixo das unhas de Francisca, as feridas chegavam a criar pus.

    Um dia nasceu um caroo enorme no meu ombro, bem onde eu apoiava a minha bolsa. Eu nem liguei, confessa. As amigas ficaram preocupadas e pediram que ela procurasse ajuda, afinal, aquilo podia ser algo grave. Ela foi encaminhada para uma dermatologista que a acalmou e passou alguns medicamentos. Ain-da bem que eu no pensei em cncer. Acho que se isso tivesse passado pela minha cabea, eu tinha desenvol-vido um, confessa. Cumprindo as ordens da mdica, Francisca passou a passar permanganato de potssio no corpo aps o banho, um pouco antes de deitar. De manh, na hora de levantar, o lenol branco ficava cheio de p. Dava para pegar com a mo, relata.

    Eu tinha uma colega que na poca trabalhava no Palcio do Governo. Em um sbado, durante uma convocao ela reparou no meu olho roxo e veio falar comigo, recorda Francisca. Luza Erundina estava em-penhada em montar alguns programas destinados s mulheres que sofriam com a violncia domstica. A casa Eliane de Grammont tinha sido fundada naquele mesmo ano, e j recebia algumas pessoas que procura-vam mudanas positivas na vida.

    Em maro de 1990, surgiu no pas o primeiro servi-o pblico destinado ao pblico feminino que passava por situaes de violncia domstica. A Casa Eliane de Grammont, criada em maro, leva o nome da famosa cantora assassinada por seu marido devido uma crise de cimes aps a separao dos dois. No ano em que levou o tiro, em 1981, foi um dos principais casos res-ponsveis pela mobilizao das mulheres em combate violncia. O centro d mulher um atendimento espe-cial para os diversos casos de violncia. Oferece servios como orientao psicolgica, atividades, assistncia so-cial, e outros.

    durante horas ele ficou

    batendo o revlver no meu peito me chamando de tudo

    quanto era nome. vagabunda, biscate, prostituta.

    nervosa. Durante aquela noite eu escutei o tempo in-teiro algumas marteladas, eu pensei que fosse a minha imaginao, conta. No dia seguinte, ela percebeu que no era. De fato, ele passou a noite inteira pregando pregos pelas portas e telhas da casa. Ficou ainda mais claro que ele queria a casa de qualquer forma. Quando levantou pela manh e viu que no havia nenhum carro na garagem, pde conferir que todas as portas estavam pregadas, e ela no tinha como entrar. Felizmente, o porto abria por dentro. Depois de entrar no prprio terreno, mais uma vez o chaveiro foi chamado para re-solver o problema.

    Passado alguns meses, quando finalmente a vida estava mais calma, Francisca sofreu um novo ataque.

    Uma noite eu sabia que meu menino do meio ia pas-sar aqui em casa. Eu s no imaginava que o pai dele tambm soubesse, diz. meia-noite, algum chamou por ela no porto. A voz era do meu filho. Idntica. Mas na hora eu achei melhor escutar a voz de novo para ter certeza, relembra. Algo estava errado. Aquele no era seu filho. O revlver disparou trs vezes e depois disso, o silncio da noite voltou a reinar. Francisca entendeu que a paz no viria to rpido quanto ansiava desde que Jos saiu daquela casa.

    Francisca asmtica e tm crises mais fortes quan-do est emocionalmente abatida. Durante esse perodo, ela chegou a utilizar de quatro a cinco bombinhas por dia. Eu vivia no pronto-socorro. No conseguia respi-rar de jeito nenhum, explica. No meu corpo apareciam

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    Ela contou que tinham aberto uma casa para tratar de casos como o meu. Na hora eu no tive coragem de li-gar, explica. Francisca no tinha motivao para comer, dormir, relaxar. Ela havia abandonado a sua vida. Uma atitude s foi tomada quando sua chefe deu um basta e mandou-a marcar um horrio. Eu marquei em novem-bro, mas a psicloga s voltava em janeiro. Nesse meio tempo, em dezembro, ele apareceu e desmontou a mi-nha casa, conta.

    O ms de novembro passou e o medo tomou conta de Francisca mais uma vez. Ela j no dormia direito, no comia bem, a sade estava debilitada. Ela no ia aguentar muito tempo. Minha filha me ligou apavora-da e disse que o pai tinha comprado uma arma pesada de calibre 12 e uma marreta. Ela disse que ele queria inaugurar tudo aqui em casa, recorda.

    pediu para que Francisca deixasse a casa em que vivia antes que fosse morta. Conhecendo o homem com quem se casou, Francisca sabia que isso realmente poderia acontecer a qualquer hora.

    Quando caiu a noite, Francisca no podia esperar que aquela seria uma data tenebrosa lembrada por ela e pelos prprios vizinhos. Ele j chegou dando uma pancada bem forte. Fez bastante barulho. Eu levei um susto to grande que pulei da cama. Na hora, eu pensei que ia morrer, recorda com a voz j exaltada. Eu sa correndo e fui direto para o banheiro. Quando eu olhei para a janela, ouvi os tiros. Foi um barulho muito forte, continua, ofegante. Ele conseguiu en-trar quando quebrou os dois portes com a marreta. Ele arrebentou o vitr da sala e ficou atirando muito. Depois ele quebrou o vitr da cozinha. No contente, ele deu uma marretada na fechadura da porta. Eu que-ria fugir e no consegui, a porta enguiou, relembra Francisca os momentos de terror que passou.

    O tempo parecia passar de vagar, e o barulho dos tiros interminvel. Ele atirou tanto, que parecia que aquilo tudo no ia acabar nunca!, conta. Francisca teve sorte porque o marido no sabia atirar direito, portanto, apesar de intencionais, os tiros foram dados de qualquer jeito. A parede da sala ficou marcada por 38 tiros, fora os que pegaram na parede do corredor e da cozinha.

    A vizinha, que presenciava toda aquela cena, decidiu que estava na hora de dar um basta. Ela gritou e disse que ia chamar a polcia. Jos escutou e foi atrs da senhora. Nesse momento eu subi na janela e comecei a pedir por socorro. Eu gritava muito, dizendo que eu ia morrer, conta. Infelizmente, o marido foi mais rpido e alcanou a senhora antes dela pedir ajuda. Ele colocou o revlver na nuca dela e disse que se ela ousasse chamar algum, ele matava ela e a filha, explica Francisca.

    Eu precisava me defender e me coloquei entre a pia e a geladeira. Nesse meio tempo eu o escutei na rua gritando que era Lampio e ia matar todo mundo.

    Fiquei muito assustada, lembra. A vizinhana ficou to revoltada com tudo que estava acontecendo, que decidiram tomar uma atitude. Juntaram pedaos de madeira, pedras e tijolos e comearam a jogar no carro de Jos. Ele estava prestes a ser linchado.

    A polcia chegou e ele conseguiu escapar. At hoje os vizinhos no entendem como ele no se machucou. Eu s estou viva porque os vizinhos me ajudaram. Caso contrrio, acho que tinha morrido naquela noite, recorda. Toda aquela situao foi to estressante, que Francisca no aguentou. Sua sade j estava debilitada, sua estrutura emocional fraca. Aquilo foi a gota dgua.

    Eu j estava vendo tudo amarelo, laranja. Eu via umas bolas na minha frente. Os vizinhos chegaram para me ajudar e eu no reconhecia nenhum deles, conta. Alguns homens conseguiram abrir a porta dan-do alguns chutes. Francisca que j tinha se arrastado pelo cho estava toda cortada. Devido ao choque, ela no conseguia sentir nada alm do corao pulsan-do fortemente em seu peito. Eles me puxaram pelos braos e me arrancaram de dentro de casa. Eu s me dei conta do que estava acontecendo quando entrei na casa de uma moa aqui da rua, diz.

    Chamaram uma ambulncia e Francisca foi in-ternada s pressas. O choque tinha sido forte demais. Passou alguns dias no hospital. Fiquei jogada ali, sem ningum. Meus filhos no foram me visitar, recorda. Quando recebeu alta, ela voltou para a sua rotina, deci-dida a colocar um ponto final naquela histria. Aquela tinha sido a ltima vez que tinha passado por uma ex-perincia to chocante.

    De volta sua casa e aps retomar a sua rotina, logo procurou o advogado e pediu para que ele agilizasse os papis do divrcio. No tardou e o filho caula bateu porta da me para a sua alegria. Ele voltou pra mim! Ele percebeu que o pai no prestava e voltou para a casa, diz contente. Jos no ficava com o filho. O me-nino passava o tempo sozinho enquanto o pai saa para se divertir. Ele se deu conta de que precisava da me.

    Quando as coisas estavam melhorando e a sade de Francisca, um pouco mais estvel, ela passou a correr atrs do que era seu. Eu j estava fora do hospital e meu filho j estava comigo. Fui ao banco ver quanto dinhei-ro eu tinha, conta. Com tantos problemas, a poupana que tinha guardada era uma incgnita. Ela no sabia o qu e quanto tinha. Conheceu o gerente do banco e pe-diu sua ajuda. Ele tirou todas as suas dvidas, e passou a orient-la.

    Apesar dos problemas pelos quais passava, Francis-ca sempre foi responsvel o suficiente para nunca faltar ao trabalho. Eu perdi trabalho por causa da violncia que eu sofria. No gostava de faltar, conta. Os colegas j sabiam das brigas que tinha com o marido. As mar-cas na pele delatavam o abuso fsico pelo qual passava constantemente.

    Quando eu vi o tanto de dinheiro que tinha na mi-nha conta, mandei Jnior negociar com o pai o preo da casa. Eu queria comprar a parte dele, recorda orgulho-sa. Jos pediu R$ 42 mil pela sua metade. Ela aceitou. Foi decidido que ela pagaria uma entrada, e em dois anos a compra seria fechada. Como o salrio que re-cebia era para cobrir as despesas da casa e da famlia, Francisca teve que procurar outras solues.

    Tirou o p das mquinas de costura e foi falar com os amigos. Cheguei falando que precisava de ajuda. No queria que me dessem dinheiro, queria trabalho. Passei a oferecer meus servios de costureira, diz. Alm disso, a cozinha de Francisca havia virado um comrcio. Ela fa-zia diariamente po de minuto e saa para vender. Meu menino no pode ouvir falar em po de minuto de tanto que comemos, conta, s gargalhadas.

    Como esse tipo de negociao precisa de um me-diador, ambas as partes contrataram um advogado. No comeo da negociao, tudo aparentava estar certo. Por incrvel que parea, os dois advogados se uniram e tentaram me dar um golpe, recorda. Felizmente, a cunhada descobriu e a alertou do que estava aconte-cendo. Quando eu descobri que eles queriam me dar

    no meu corpo apareciam

    uma srie de feridas. Acho que quem sentava do meu lado chegava a

    sentir nojo.

    O ano estava acabando, e ela s queria recomear. Quem sabe desta vez ela no teria mais sossego? A es-cola do filho mais novo, que na poca terminava a oitava srie, ofereceu a todos os alunos uma colao de grau seguida de uma festa para os parentes. Meu marido no queria que eu fosse. Ele disse que eu era uma prostituta e no podia me apresentar como me, conta.

    Meu filho ficou muito preocupado com as amea-as e pediu para que eu no fosse. O pai ficava falando assim: Se ela aparecer, eu acabo com ela aqui mesmo. Eu fiquei em casa. Francisca comentou com a vizinha as ameaas que o marido estava fazendo. A amiga no podia assistir quela situao toda sem tentar algo. Ela

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    um golpe, eu mandei o Jnior falar com o pai e fazer uma nova negociao, diz.

    Eu estava chegando perto de terminar o pagamen-to, ele me ligou e fez uma proposta, conta. Jos precisava de dinheiro para fazer uma compra pessoal, mas ele no tinha. Pediu para Francisca pagar tudo de uma vez que ele daria um desconto. Ela aceitou. Quando eu paguei a ltima prestao eu tive paz. Minhas feridas comearam a fechar, recorda, feliz. Depois disso eu tirei a docu-mentao da casa, e finalmente me senti livre, diz.

    Devido sua histria de vida, Francisca passou a ser referncia no s na casa onde fez terapia durante nove anos, a Casa Eliane de Grammont, como tambm na Co-ordenadoria da Mulher. Sua luta e sua fora de vontade para recuperar sua vida, auto-estima e posicionar-se no-vamente na sociedade como mulher, foram fatores que influenciaram outras mulheres.

    Jos nunca deixou de falar de fato com a ex-mulher. Ele me liga s vezes. Para ele nada aconteceu. Ele diz que foi s uma fase, explica. Para o ex-marido foi mui-to fcil de esquecer tudo o que fez, no entanto para ela alguns fatos a assombram at hoje. Fui eu quem viu tudo amarelo. Eu que passei medo. Eu que pensei que ia morrer, no ele, relata.

    Em 2002, chegou a hora de deixar a psicloga e cami-nhar sozinha. Justamente naquele ano, a ento prefeita da cidade, Marta Suplicy, e a Coordenadoria Especial da Mulher estavam entregando casa Eliane de Grammont novas acomodaes. A reforma aconteceu graas a uma parceria que o governo conseguiu com o Consulado do Japo em So Paulo.

    As autoridades precisavam de uma personagem para apresentar no dia da inaugurao. O primeiro nome que veio a cabea foi o de Francisca. Eles me convidaram para aparecer no dia. No me disseram nada. Apenas me informaram que minha presena era fundamental. Eu aceitei, recorda. No dia, o nervoso apareceu e ela pensou em desistir. Se escondeu no ba-nheiro durante algum tempo.

    Quando a cerimnia comeou, ela ficou no fun-do porque sabia que seria difcil de ser vista. No demorou e comearam a me chamar para subir. Eu no queria ir, mas no teve mais jeito, eu fui, conta, s gargalhadas. Subi no palco e apertei a mo da Marta. Ela perguntou o que eu estava sentindo. Eu disse que apesar de todo o sofrimento que passei, eu estava me recompondo. Eu disse que estava me sentindo pode-rosa, completa. Os fortes aplausos foram seguidos de gritos que ecoavam: Poderosa.

    Hoje ela ainda recebe algumas ligaes do ex-mari-do. Parece que para ele nada aconteceu. Ele ainda me liga para conversar, diz. Para ele foi fcil de esquecer, agora, para mim, foi bem difcil. Fui eu quem sofreu com a violncia durante anos, no ele, constata. A faculdade de Letras ajuda Francisca a ocupar a cabea. Livros, tra-balhos, provas. s vezes, eu penso em desistir, mas no final eu sempre resolvo ficar. J est acabando, s mais trs anos, conta. Eu ainda quero fazer ingls, mas s de-pois que eu terminar a faculdade. Os cursos so muito caros!, exclama.

    Francisca continuou prestando seus servios para a prefeitura. Hoje ela trabalha na Secretaria de Participa-o e Parceria. Deixou a costura de lado, e dedica parte de seu tempo aos estudos. De manh eu acordo bem cedo e vou direto para a faculdade. Minha aula acaba meio-dia, de l, vou correndo para o trabalho, explica.

    Como projeto de vida, Francisca pretende escrever um livro contando a prpria histria. Eu sei que vrias mulheres passaram ou ainda passam pelo que eu passei, acho muito importante falar sobre esse assunto, diz. Eu at j sei qual vai ser a capa do livro. Esses 38 tiros que ficaram marcados na parede no dia em que Jos tentou me matar, finaliza, cheia de planos para o futuro.

    A vontade em aprender permanece at hoje, mesmo aps tantos conflitos dolorosos e pessoais

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    Ela abriu mo da costura, mas nunca da culinria. Quando recebe alguma visita, sente um enorme prazer em preparar algum prato tpico de sua terraUm passatempo que aps tanto sofrimento foi transformado aos poucos em uma grande fobia

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    A sade delicada obriga a ter sempre por perto algo que lhe ajude em seus momentos de criseO nico mvel da casa que foi conservado em seu devido lugar. A nica lembrana que foi deixada

  • Antnio, 54 anos

  • | ANtNiO

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    E la era folgada e eu batia nela. Eu pensava assim. De cala jeans, camisa azul com pequenas listras e culos pendurados no pescoo; de pele morena, cabe-los curtos, voz firme e grave, olhos cor de jabuticaba, salientada pela vermelhido do cansao, Antnio1, aos 54 anos, sente orgulho de dizer que est sbrio h mais de 15, graas ao programa dos Alcolicos Annimos.

    Ele se denomina um doente em recuperao eterna. Casou duas vezes. O primeiro casamento lembrado pelo fracasso, pelos momentos de raiva e mgoa. Um perodo obscuro e regado de tristeza e violncia. O vcio pelo lcool acabou com a sua vida, a relao de amor com a primeira mulher, os filhos e a sua sade.

    Filho de pais alcolatras, Antnio nasceu em Parana-va, cidadezinha pacata, calma e familiar do interior do Paran. Quando jovem, no podia imaginar que um dia travaria um combate com o mesmo problema dos seus pais e pensava: No quero ser como eles. Abandonou seus sonhos pelas doses dirias de cachaa, sua melhor amiga. Cerveja, Campari, conhaque tambm, mas, para ele, nada se comparava a uma dose da branquinha.

    Dentro de si, uma nsia por viver. Mas, como mui-tos, Antnio chegou at o limite entre a sobrevivncia e o lcool. Trocou os filhos, mulher, carros, trabalho, dinheiro, por violncia, desafeto, desamor, carncia, brigas, gritos, frustraes e cobranas. Mas, quando pensou que no houvesse mais sada, tentou achar for-as onde tudo era fracasso e lutou para se restabelecer.

    A histria dele comea aqui. Logo aps o divrcio de seus pais, a vida tomou um rumo inesperado. Sua me se desligou da famlia e assumiu uma postura comple-

    antnioA cachaa, o casamento e Maquiavel

    1 Foram usados nomes fictcios para preservar a identidade dos personagens envolvidos na histria

    tamente diferente da que vivera at ento. Minha me foi pra zona, virou prostituta, recorda Antnio com ar de tristeza e conformismo na voz. O pai no aguentou a humilhao. Primeiro fracassara como marido, e agora deveria suportar todas as fofocas de uma cidade com 81.595 habitantes. A separao dos meus pais foi feia, eu penei muito quando criana, conta.

    Todos na cidade comentavam. Antnio ainda era um beb e as lembranas ficaram vagas, mas a percep-o da vergonha na cidade veio logo depois, quando seu pai achou melhor sair de l e recomear a vida em outro lugar. Largou o filho. Meu av assumiu a mi-nha guarda, lamenta ele, que, na poca, ainda estava aprendendo a andar.

    Cresceu em um ambiente pesado. E o sentimento de rejeio se fez presente diversas vezes. Todos na ci-dade sabiam de sua histria e, quando nada poderia ficar pior, j um pouco mais velho, teve que enfrentar uma tentativa de suicdio daquela que se encaixara no papel de me, na falta de uma. Minha av tambm era alcolatra. Tentou suicdio colocando lcool no corpo e ateando fogo logo depois. Era uma famlia e tanto, constata Antnio com a voz sria, amarga, enquanto desvia os olhos da reprter que o faz entrar em contato com o passado novamente.

    A av j bebia muito, porm, na poca, o alcoolis-mo, como ainda hoje, no era considerado uma doena e sim falta de fora de vontade para parar. No final das contas, sua criao foi por conta do av que assumiu o papel de pai e de me para o rapaz, que logo cedo de-monstrou interesse pelos esportes.

    Antnio lembra que no tinha nem doze anos quando entrou para o time de atletismo de sua esco-la. O garoto, que apresentava timos resultados nas competies realizadas na regio, no tardou e foi para a seleo colegial do Paran de atletismo. Era o meu sonho, a minha paixo, diz. Ainda era um menino sem grandes experincias e conhecimento de vida quando decidiu que queria ser professor de educao fsica. Para isso, tinha que sair de Paranava.

    Ambicioso, sabia que para crescer precisava sair da sua zona de conforto. Aos quinze anos tomou a deciso de morar e trabalhar com o pai, que fez carreira como mestre de obras em So Paulo. Quando eu cheguei a So Paulo eu j ganhava muito mais do que os meus amigos que trabalhavam em escritrio, diz. A falsa impresso de que daquela forma ele enriqueceria mais rpido e facil-mente, teve grandes consequncias e pesou no futuro. Eu me iludi e abandonei a escola.

    suado de to gelada, doce, naqueles copos bonitos com aquelas coisas que colocam para enfeitar, sabe? Eu to-mei e gostei.

    Com o efeito da desinibio que o lcool causa, aquele tmido rapaz de dezoito anos teve coragem para conversar com uma menina em que estava de olho h muito tempo, e que estava tambm no pesqueiro s de paqueirinha, trocando olhares. A timidez foi deixada de lado. Desinibido, ele foi at ela, e conseguiu encon-trar carinho. A, para ele, a bebida foi um facilitador para demonstrar seus sentimentos, e ento pensou que aquela poderia ser a sada para muitos outros proble-mas. Eu vi que aquela era a chave para o sucesso, diz.

    Depois da batida doce e gelada de maracuj, com o tempo Antnio foi apresentado dourada cerveja, ao doce e vermelho Campari, sedutora caipirinha e depois, pinga pura da melhor qualidade. Come-cei como todo mundo comea. No achei que tivesse problema com o alcoolismo, embora meus familiares tivessem. Eu achava que eu ia beber diferente deles. Afinal de contas, eu tinha uma concepo em relao bebida que eles no tinham.

    Ele se enganou. Aos poucos entrou em um mundo do qual demoraria a sair. Na poca, como ainda prati-cava esportes e a prtica requer uma disciplina maior com o corpo ainda havia certo controle sobre as suas vontades. Quando chegou aos dezenove anos, Antnio j bebia muito mais do que qualquer pessoa saudvel de sua faixa etria. Uma festa, um jantar, uma alegria, uma tristeza, uma boa ou m notcia, no trabalho, em casa: para ele, tudo era motivo para beber.

    A coisa foi se desenvolvendo e o esporte ficou de lado. Eu troquei uma coisa pela outra. Troquei o que eu mais gostava pela bebida. Os pais, que antes eram um grande exemplo vivo do que no gostaria de se tornar, passaram a se parecer mais e mais com a vida que es-tava levando.

    Em meio a tudo isso, Antnio conheceu uma moa dois anos mais nova que ele. Ela era linda. Negra como

    Eu achava que eu ia beber diferente deles. Afinal de contas, eu tinha uma concepo em relao bebida que eles no tinham.Os estudos ficaram em segundo plano, e o traba-

    lho ocupou a cabea do rapaz em tempo integral. A nica coisa que ainda tinha espao nas horas vagas era o atletismo.

    Durante um final de semana, Antnio foi convidado por amigos a almoar em um pesqueiro perto da cida-de. Devido ao calor que fazia no dia, ofereceram a ele uma batida de maracuj. Sem d, nem lamentao, e at em tom brincalho, ele diz que foi ali que tudo co-meou. Ah, foi paixo primeira vista! Me ofereceram uma batida de maracuj, geladinha, com o copo ainda

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    Eu achava que eu no era um cara violento. Eu bebia e por qualquer coisa eu agredia.

    comeava sempre com a agresso em forma de palavras.

    ele, de pele escura, olhos pretos da cor da noite. Para ele, encantadora. Apaixonaram-se. Com menos de um ano de relacionamento, os dois tiveram uma surpre-sa. Acidentalmente ela engravidou e, com dezenove anos, sem nenhuma preparao psicolgica, o garoto foi informado de que seria pai. O namorico de porto se transformou em casamento. Eu fui criado em uma famlia sem pai nem me, eu no queria que o meu filho passasse pelo que eu passei.

    Antnio assumiu o filho e decidiu que era com aquela mulher que ele ia construir sua famlia. No auge da juventude, nenhum dos dois tinha maturidade su-ficiente para criar um filho. Mas tiveram que faz-lo. A situao financeira dos dois no era nada estvel. A moa ainda dependia da famlia, e Antnio ganhava o suficiente para o seu prprio sustento, mas no para o de uma famlia.

    A criao e os valores passados pelo av tiveram grande influncia na hora de tomar uma deciso. Eu venho de uma gerao em que se voc engravidasse uma mulher, voc tinha que casar. Tudo isso pesou quando eu tive que tomar uma atitude, ressalta. A obri-gao definitivamente era maior do que o amor de um pelo outro, embora estivessem apaixonados.

    Descontrolado, Antnio passou a gastar dinheiro com idas e vindas nos bares perto de casa, na Vila Bra-silndia, bairro da zona noroeste na capital paulista. O trabalho com meu pai j no dava muito dinheiro. Depois que eu passei a beber diariamente a que no deu mesmo. Alm da famlia, eu tinha que sustentar um vcio. Ele estava na fase das doses. Uma antes do trabalho, outra depois. Sua mulher sentiu que as con-tas ficaram mais apertadas, e a renda do casal estava cada vez mais baixa. O dinheiro de um ms, que servia para sustentar as necessidades daquela famlia, pas-sou a ser pouco.

    Ele ainda trabalhava com o pai na construo. Os dois se davam bem e algumas vezes chegaram at a be-ber juntos, mas, na poca, esconder o vcio era fcil. As

    pessoas ainda no tinham percebido que Antnio es-tava desenvolvendo um mal que faria grandes estragos em sua vida. No eram apenas doses de bebidas toma-das socialmente. Eram outras doses.

    Nove meses passaram rpido, e o primognito nasceu. Esperava-se que aquele filho trouxesse paz e felicidade ao novo casal, mas eles estavam enganados. Cada vez mais os sinais mostravam o fracasso. A pres-so tomou conta de Antnio, e ele no soube lidar com ela. O nenm nasceu, e por incrvel que parea foi uma confuso. Os problemas se acumularam de tal maneira que eu preferia ficar no bar a ficar em casa com eles. Eu no sentia a mnima vontade de ficar com a minha famlia, lamenta.

    o peso. Ele teve que tomar uma deciso, abandonar o es-porte ou a famlia. Ele escolheu deixar de lado o que mais amava, e permitiu que a bebida conquistasse seu lugar.

    Eu achava que eu no era um cara violento, confessa. No seu papel de mulher, me e esposa, sua companheira se sentia no direito de cobrar explicaes. O marido, que pela manh saa para trabalhar, voltava no final da noite exalando lcool. Algo estava errado, e ela sabia disso. Cada cobrana resultava em uma agresso verbal diferente. Eu bebia e por qualquer coisa eu agredia. Comeava sempre com a agresso em forma de palavras.

    Eu pensava assim: no vou beber no bairro por-que gente que bebe em boteco fica conhecido, e est no fundo do poo. A sada foi beber na Lapa, bairro onde ele trabalhava na poca. Eu bebia l perto do trabalho, onde ningum me conhecia. No tinha amigos, nem co-nhecidos, explica.

    Um dia, por incrvel que parea, eu acabei numa barraquinha caindo aos pedaos perto da nossa casa, admite. Antes ele se sujeitava a beber longe dos olhos de todos, depois de um tempo, aquilo no era mais uma desculpa. Quanto mais perto, melhor, assim no tinha muito esforo ou demora. A questo era a disponibilida-de e as facilidades.

    Eu costumo dizer que aquela mulher que me co-nheceu legal, bonito, cheiroso... de repente, aos poucos, isso foi mudando e fui me tornando um bbado, conta. Foram quinze anos de casamento e quinze de alcoolismo. Os dois caminharam juntos o tempo inteiro. Enquanto o vcio crescia, o casamento ia se desgastando.

    Antnio no tinha estrutura para levar a famlia em frente. Ele mal podia tomar conta de si prprio, imagine ento de outras pessoas. Eu tinha uma mulher que me cobrava diariamente, eu precisava ter mais responsabi-lidade. Mas eu no conseguia!, recorda. Eu encontrava na bebida um anestsico emocional.

    Eu bebia por causa dela. Ela no era uma pessoa bacana, assimila Antnio, levando em conta as co-branas que recebia da ex-esposa. Ela pedia por um

    casamento de verdade, por uma vida melhor e menos apertada, e ele no conseguia entend-la. Ela me chamava de dondoca quando eu dormia at tarde. Ela sabia me provocar e provocava demais. No era legal, recorda, com mgoa. A famlia dele demorou a enten-der o que acontecia na casa dos dois. Meu pai virou um ex-alcolatra. Ele decidiu largar o vcio, casou de novo e virou pastor evanglico. Eu evitava muito con-tato com ele quando estava em uma fase muito tensa.

    Cinco anos aps os dois juntarem seus pertences para construir uma vida juntos, os dois decidiram que o melhor a fazer era oficializar aquela situao no papel. Eles decidiram casar formalmente. Eu atribua as mi-nhas desavenas familiares ao casamento. Eu pensava que se eu no tivesse casado, assinado os papis, talvez as coisas fossem melhores entre ns, explica. O motivo pela frequncia das brigas foi potencializado aps se tornarem marido e mulher aos olhos da lei.

    Ele diz que j aguentava muitos desaforos vindo da mulher. Com o tempo, cada cobrana, cada pedido pas-sou a ficar insuportvel. A situao estava insustentvel. Quando Antnio se sentia muito pressionado, ia passar uns dias na casa do pai. Quando ns brigvamos feio, eu ia correndo ver a minha famlia e aproveitava para me lamentar. Como eles no tinham conscincia do meu vcio, acreditavam quando eu dizia ser um homem tra-balhador. Sempre acabavam acreditando que ela era a louca da histria. A culpada pelo casamento ruim, diz, confessando o drama que fazia para os que estavam de fora da situao. Ela no podia ficar com a imagem de so-fredora, ela no merecia. Eles ficavam com raiva dela.

    Como deixava grande parte do seu salrio nos cai-xas dos bares que frequentava, sua esposa teve que buscar alternativas para bancar as necessidades da famlia. Quem trabalhava de verdade era ela. Ela assu-miu o posto e resolveu que o sustento viria do suor dela, e no do meu. Eu no dava conta, recorda. Eu ia pro trabalho no mximo trs vezes por semana, os outros dias eu no conseguia levantar cedo.

    Com pouco tempo de casamento, as brigas se torna-ram rotina. A primeira briga aconteceu um ano depois que ns juntamos. Ela sentia algumas necessidades e eu no tinha condies de dar, conta. Como esposa, passou a cobrar a postura de homem, de um marido, de um chefe de famlia, na cama, nas contas, com o filho. Ele fugiu das responsabilidades e se escondeu atrs de um vcio que tomava cada vez mais conta do seu corpo e de sua mente.

    O atletismo foi abandonado. Eu trabalhava l na Lapa e treinava no Ibirapuera. Eu at tentei manter os treinos, mas no dava. Eu tinha que voltar para casa, para a mi-nha mulher. Fora que eu ficava muito cansado, era muita coisa. Trabalho, treino e famlia. Complicado. O menino, que ainda estava aprendendo a ser homem, no aguentou

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    No comeo da dcada de 80, surgiu um movimento poltico chamado Movimento Negro Unificado com uma proposta inovadora e necessria para a poca. Ele existe at hoje, e luta para combater as manifestaes preconceituosas e discriminatrias praticadas contra negros no Brasil e no mundo. Antnio, que tinha orgu-lho de sua cor, juntou-se ao grupo em busca dos seus direitos e maior igualdade. Ele queria lutar pela causa. Era uma contradio muito grande, porque eu par-ticipava do movimento e batia na minha mulher. Eu defendia os direitos da mulher negra e em casa era to-talmente diferente, conta. Uma das causas pela qual ele lutava no era cumprida debaixo do prprio teto.

    O grupo recomendava uma srie de leituras para os integrantes e, entre um porre e outro, no meio da ma-drugada, Antnio acordava, levantava do sof em que ficou jogado, e mergulhava nas teorias de Nietzche, Marx, Maquiavel, entre outros. De madrugada, quan-do eu acordava sbrio, eu pegava todo aquele material para ler. Passava o resto da noite lendo. S quando o sol raiava que eu sentia necessidade de dormir. Pela ma-nh, quando eu tinha que levantar para trabalhar, no conseguia. Ela ficava furiosa, recorda.

    Ela saa para trabalhar e via que eu estava dor-mindo. Ela fazia questo de me acordar e dizer que eu no era homem. Ela me provocava, conta. A bebida s abriu a porteira para eu colocar meus instintos para fora, diz, em tom de consentimento. s vezes ela me cutucava e comeava a me chamar de dondoca. Ela era folgada e eu batia nela, revela um pouco constrangido.

    Quando namorados, os dois sempre estavam presen-tes nas festas de amigos e familiares. Quando casados, Antnio bebia o suficiente para aprontar alguma coisa. Ento, sua esposa passou a evitar a presena do marido em certos ambientes. O casal j no era mais um casal, no sentido puro da palavra. Ela tinha vergonha de acom-panh-lo em certas ocasies porque sabia qual seria o resultado final. Teve um perodo que eu fiquei to mal que ela tinha vergonha de ficar comigo. Eu no conse-

    guia beber socialmente, era muito difcil. Eram duas garrafas de pinga de uma s vez.

    A cada dia a casa ficava mais precria. A loua se transformava em cacos em questo de segundos. Comprar mveis novos no adiantava em nada; logo estariam todos quebrados. Na minha casa a confuso era to grande que no tinha cama, era s colcho. As brigas eram to violentas que eu quebrava tudo o que eu encontrava pela frente, conta. Antnio perdia o con-trole e destrua absolutamente tudo, no importava se era novo ou velho. A fria tomava conta de seu corpo no auge da bebedeira e tudo virava p.

    Alm das brigas por causa do trabalho ou do esta-do em que Antnio se encontrava, o cime tambm era um dos fortes motivos para uma discusso. Ela trabalhava na copa da presidncia da TV Cultura. Du-rante uma poca eu achei que ela estava me traindo com algum de l. Eu passei a sondar tudo o que ela fazia dentro da empresa. Eu a segui diversas vezes, confidencia. Sua ex-esposa no sabe disso at hoje. Eu nunca contei das perseguies, acho que no vale a pena ela saber disso, diz.

    A relao sexual entre os dois definitivamente ti-nha mudado bastante quando comparada ao comeo do relacionamento. Jovens e apaixonados, sempre es-tavam dispostos um para o outro. A cena mudou aos poucos em decorrncia das brigas e da situao em que o alcoolismo fez Antnio chegar como homem e amante. Eu chegava embriagado em casa quando ela estava me esperando. Ns ramos novos, ela se arru-mava toda para fazer amor, namorar. S que eu no tinha condies, eu mal conseguia ficar em p. Ali j estava armada toda uma situao para brigarmos. E foi assim que muitas noites terminaram entre eles.

    Ruim mesmo era quando eu queria e ela no queria. Nossa, eu ficava louco de vontade!, conta. Ele chegava embriagado e sua esposa o rejeitava. Fedido, sujo, completamente alcoolizado. Os momentos de lucidez vinham pela madrugada. Eu acordava de ma-

    drugada e queria sexo, mas a difcil de aceitar. A no tinha jeito, eu namorava fora, explica. Tudo isso gerou uma situao de desamor, confessa. Sua esposa nunca chegou a denunci-lo. Mas, diferente de outras mulheres que vivem este tipo de relao doentia, ela o desafiava. Cobrava melhoras e uma postura diferen-te. Pedia ajuda para familiares e vizinhos com quem tinha intimidade. E perdoava Antnio diversas vezes por causa dos filhos, e no mais por amor.

    Os filhos de Antnio no foram planejados. As crianas nasceram no meio de tudo isso. Teve um fi-lho que foi concebido praticamente em um perodo de resguardo da parte dela. Ela no queria mais filhos, ela estava vivendo uma fase comigo muito ruim onde no existia mais amor. Quando sua esposa ficava muito ir-ritada devido a algum comportamento inadequado do

    marido, ela acusava os prprios filhos como o motivo de sua infelicidade. Ela rejeitava as crianas. Ela dizia assim: Vocs esto atrapalhando a minha vida. Eu es-tou com esse cara por causa de vocs!, conta Antnio.

    Ela fazia como se no houvesse alternativa. Eu no ligava. A mulher, ao mesmo tempo que rejeitava as crianas, as poupava de certas situaes. Ao invs de sair gritando pela casa por causa das investidas do companheiro, ela apenas consentia com o que estava acontecendo. Eu criava fantasias enquanto eu bebia. Eu chegava em casa e s pensava em sexo. Nem liga-va para as condies em que eu me encontrava. Era s aquilo que eu queria, conta.

    Cada momento ficou gravado no relacionamento dos dois, apesar de diversas vezes, alcoolizado, Antnio

    no lembrar nem de como tinha chegado em casa. Eu fazia por fazer. Tinha vez que eu nem lembrava como eu tinha chegado em casa e feito alguma coisa, diz. A mes-ma cena aconteceu repetidas vezes, durante os longos quinze anos de casamento. Depois de um tempo, ela no aguentava mais. O nosso casamento ficou insupor-tvel. Ela ameaou diversas vezes ir embora, mas, da primeira vez, quem juntou as tralhas foi ele.

    Antnio se mudou para a casa de parentes. Foi ali, durante aquele momento, que a famlia dele enfim percebeu que ele tinha um srio problema de depen-dncia alcolica. Em uma conversa que teve com o pai, tomou a deciso: aquela era a hora certa para parar de beber. Comprei uma garrafa de pinga e fui para a casa do meu filho. Eu disse que aquela seria a ltima vez que eu colocava bebida na boca. Honestamente, nem meu

    2 Alcolicos Annimos uma irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experincias, a fim de resolver seu problema comum com o lcool.

    tinha vez que eu nem lembrava como eu tinha chegado em casa e feito alguma coisa.menino acreditou. Ele deu risada. O que ningum sa-bia, que de fato aquela seria a ltima vez.Ele no tinha crenas, no acreditava em Deus e no gostava de nada relacionado Igreja. Quando soube dos Alcolicos Annimos2, achou que a instituio fos-se ligada a alguma religio. Primeiro eu procurei um ambulatrio, conta. Entrei no lugar muito relutante. Eu tinha claro na minha cabea que eu estava bom, que no tinha problema algum, completa.

    Minha arrogncia era to grande, que quando eu vi aquela fila de bbados, logo eu pensei: O que foi que eu vim fazer aqui?, recorda em tom de riso. O prprio al-coolista no aceitava a sua dependncia. Estava com a sade debilitada; conviveu quinze anos com uma mu-lher em meio a brigas e agresses fsicas, psicolgicas,

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    morais e no tinha emprego fixo porque no dava conta de cumprir com o seu dever.

    Passou anos culpando, por todos os seus problemas, frustraes, medos e inseguranas, uma mulher que s queria ser feliz. Os problemas criados por ele mesmo, na sua cabea, vinham todos da esposa. Ele nunca ti-nha culpa de nada. Tentava achar os culpados para o problema, mas no a responsabilidade. Perdeu-se em si mesmo. Durante anos, a infelicidade, a m sorte, as brigas, tudo era culpa de uma nica pessoa: a mulher. Pelo menos na opinio dele. As coisas s comeariam a mudar ali, diante da fila de bbados.

    No ambulatrio eu j percebi que ela no era cul-pada dos meus problemas, conta. Quando foi atendi-do, logo perceberam qual era o seu caso e o encami-nharam para uma psicloga. Ele precisava de uma avaliao, mesmo achando que era besteira. Como ele mesmo diz, achei que era uma perda de tempo, uma besteira das grandes. O que ela sabia da minha vida? Nada. Ela no poderia me ajudar.

    Como j estava acostumado, Antnio tentou enrolar a profissional. Jogou a culpa na esposa e tentou sair ileso. No deu certo. Ela disse uma coisa de uma forma bem direta. No mediu as palavras. Olhou fundo nos meus olhos e disse que eu era o culpado dos meus problemas. S eu poderia fazer alguma coisa, diz. No ambulatrio recebeu todas as instrues necessrias. Novo destino: Alcolicos Annimos. Foi um alvio quando eu soube que no tinha nada a ver com a igreja. Fiquei curioso para conhecer, ressalta.

    Foi muito bem recebido. Todos ali partilhavam do mesmo problema, ele no se sentiu como um estranho. Os companheiros me acolheram logo que eu che-guei. Eles sabiam o que acontecia comigo, recorda. Foi instrudo, e percebeu que, de fato, a maior arma para aquele difcil combate seria a prpria fora de vontade

    que vinha dele. Ningum poderia fazer por ele. Eu era o responsvel, ningum mais. Se eu sasse da linha, o maior prejudicado seria eu!

    Quando eu entrei para o A.A., melhorei. Eu assu-mi a vida depois de anos, explica, orgulhoso. Os Doze Passos 3 criados para a recuperao no foram fceis de serem seguidos, mas valeram o sacrifcio. Eu percebi que tinha tempo! Eu tinha que correr atrs das minhas conquistas, conta. Antnio se sentiu muito bem ao descobrir que no era o nico que precisava de ajuda. Deixou o preconceito de lado e resolveu lutar por uma vida melhor, consciente, sem lcool. Ele devia isso sua famlia, e principalmente, a ele mesmo.

    Com o apoio da famlia, Antnio conseguiu a mu-lher de volta. Aps eu parar de beber, ns voltamos. Mas ela no aguentou. Ela no conseguiu me per-doar completamente, conta. O casamento j tinha passado por perodos muito tristes, ela no estava to disposta a esquecer tudo e recomear como ele estava. Eu fiz muitas promessas, mas no final, no deu certo, recorda.

    Por mais que o A.A. estivesse ajudando muito, o passado ainda era mais forte. Antnio resolveu esque-cer tudo o que havia passado e tentar novamente. Desta vez ele tinha certeza que seria diferente. Para sua espo-sa, esquecer quinze anos de maus-tratos no parecia ser uma tarefa fcil. Querendo ou no, promessas ha-viam sido feitas vrias vezes, por que daquela vez seria diferente? O sentimento at podia ser forte, mas a des-confiana ganhou mais espao. Ns nos gostvamos, mas a coisa foi deteriorando com o tempo, diz. Perdoar nem sempre fcil. Hoje, Antnio tem certeza disso.

    Ela sempre foi a coitada da histria. As pessoas sempre questionavam como ela me aguentava. S que quando eu mudei, tambm repararam. Ela no teve condies de aceitar isso, conta. Durante tantos anos

    assumindo o papel de me, pai, dona-de-casa e chefe de famlia, no foi fcil para sua esposa aceitar as novas condies. Ela, que durante todo esse tempo tinha as-sumido as rdeas da famlia, no podia simplesmente largar tudo.

    Antnio estava pronto para vestir as calas no-vamente. Um posto que tinha perdido para a mulher logo no comeo de seu casamento. O pai, o marido, o chefe de famlia, literalmente, ressurgiu das cinzas. O que ningum esperava que um dia acontecesse, aconteceu. Eu comecei a controlar as coisas, a falar grosso com os filhos. Isso gerou desavenas. Ela errou em tambm no procurar ajuda, ressalva. Ele estava em processo de tratamento. Ela, no. Procurar ajuda no estava entre os seus planos. Foi difcil ver o marido vestindo as calas novamente.

    Eu estava bom, cheio de amor para dar, e ela no deu valor, conta. Os companheiros iniciaram a reunio, e ele se acalmou aos poucos. Foi naquele dia que ele entendeu porque o casamento no tinha dado certo. Os caras disseram: Voc passou quinze anos mas-sacrando a sua mulher. Voc quer que ela faa o que? Te d uma medalha de ouro?.

    Ela foi embora e eu tive que continuar a vida. Se eu voltasse a beber, eu sabia que ia ser pior, conta. Graas ao tratamento, ele diz que passou a entender tambm o lado dela. Finalmente, depois de muito tempo passando longe do posto de culpado, ele ha-via compreendido que os problemas no eram culpa dela. Aps muitos anos sem ser honesto consigo mes-mo, Antnio passou a se perguntar se ele realmente a amava tanto assim. Eu fui olhando para mim e eu vi que no existia mais amor. Definitivamente, no era mesma coisa h anos.

    Depois, comeou todo o processo burocrtico de separao. Como no tinha o que dividir, ns dividi-mos os filhos. Quem queria ficar comigo, ficou. Quem escolheu ir embora com ela, foi. Ela ficou com a casa e os trs meninos, Antnio levou com ele as duas meni-nas. Com a ajuda da famlia, das filhas, do AA, ele teve fora de vontade suficiente para recomear a vida. Dessa vez, a bebida alcolica no teria lugar em sua nova vida.

    Nos primeiro tempos do divrcio, tinha muita raiva, muito dio, muito ressentimento de ambas as partes. S nos falvamos por causa dos filhos, explica. Cada um seguiu com a sua vida sem olhar para trs. O melhor que eles podiam fazer era recomear e tentar esquecer, na medida do possvel.

    Cinco anos mais tarde, quando Antnio j nem chegava perto de uma dose de cachaa, ele teve uma notcia nada agradvel. Comecei a sentir dificuldade em evacuar. As fezes no saiam, conta. Ele percebeu que alguma coisa estava errada. Durante uma consul-ta, o mdico pediu uma colonoscopia. O resultado no

    3 Os Doze Passos um programa sugerido para a recuperao de alcolicos em potencial, com doze tpicos que preparam o alcolatra para o tratamento e aceitao da sua condio e melhora. A ntegra est disponvel ao final do texto.

    cheguei chamando-a de desgraada, vagabunda. Eu estava bom, cheio de amor para dar, e elano deu valorMal tinha completado um ano de A.A., Antnio teve

    outra surpresa. Foi abandonado. O casamento naufra-gou de vez. As promessas foram em vo, o ltimo resqu-cio de felicidade desaparecera, e o amor j no existia h muito tempo. Eu cheguei em casa depois de uma reu-nio e no encontrei mais nada. S tinha uma mala com as minhas roupas, lembra. Sua esposa pegou as crian-as, as roupas, e foi embora para no voltar nunca mais.

    Logo, ele pensou, Como assim? Eu estava pro-curando ajuda!. Na reunio seguinte ao dia em que foi abandonado, Antnio chegou enlouquecido no A.A. Estava incrdulo com toda aquela situao. Cheguei chamando-a de desgraada, vagabunda.

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    foi positivo. O problema era srio o suficiente para pre-ocup-lo. Ele estava com um cncer. O tumor estava impedindo a sada, eu tinha que operar urgente!, diz.

    Se eu estivesse bebendo, eu tinha morrido. O meu cncer foi uma decorrncia do abuso da bebida, con-ta Antnio, hoje um homem curado. O tratamento foi mais pesado do que o esperado, considerando que o seu corpo j era mais fraco devido a tudo que tinha passado. Eu fiquei com medo de morrer. Aquela no podia ser a minha hora. Eu estava lutando por uma vida melhor, no era justo, explica. Com o apoio da famlia e do A.A., ele conseguiu se recuperar.

    Na reta final de seu tratamento, uma notcia veio para devastar ainda mais o que parecia no ter jeito. O filho mais velho de Antnio, na poca com dezeno-ve anos, tinha se envolvido com uma das drogas mais perigosas de todas. O crack passou a fazer parte de sua histria de vida. Primeiro, a bebida, depois um cncer, e finalmente um filho sucumbindo s drogas. Sua famlia estava fadada ao sofrimento.

    Alm do filho mais velho, o segundo tambm foi sedu-zido pela droga. Isso tudo resultado de filhos criados em meio a tantas brigas. Tudo isso foi consequncia de uma separao turbulenta, um casamento problemtico e um lar desestruturado. O meu alcoolismo que desencadeou tudo isso, diz. O mais velho ficou internado quatro meses, mas logo depois que saiu da clnica voltou a se drogar. O segundo foi morar em Vitria, no Esprito Santo e nunca mais deu notcias. No sei dos meus filhos. Esto por a, jogados na rua. No posso nem dizer que esto vivos, por-que nem isso eu sei, conta.

    Eu voltei a falar com a minha ex-mulher. Ns t-nhamos dois filhos mergulhados nas drogas. Tnhamos que encarar isso juntos, diz. Claramente os meninos precisavam de ajuda, mas eles no conseguiam enxer-gar isso. A presso foi tanta que, para no voltar a beber,

    Antnio passou a frequentar o Al-Anon4, um centro de ajuda a familiares e amigos de alcolatras e depen-dentes qumicos. Eu precisava aprender a lidar com aquilo, seno eu podia ter uma recada feia, explica.

    Alm dos encontros com os colegas que lutavam contra o alcoolismo, Antnio passou a frequentar tam-bm outra reunio semanalmente. No tardou e ele fez novas amizades. O apoio de todos era muito bem-vin-do. Conheceu Eleonora em uma dessas semanas.

    diz, muito orgulhoso de sua conquista. A gente no briga, no existe agresso fsica e nem verbal. Ns sabe-mos lidar com o problema quando ele aparece, conta.

    Eleonora sabe do passado de Antnio e decidiu que aquilo no seria um impedimento para a sua felicidade. Depois de tantos anos suportando um irmo alcola-tra, ela sabia que precisava ser feliz. Temos um filho. Logo que nos casamos, ela j engravidou!, ressalta. Fi-lho este, que por sinal, nunca viu o pai colocar uma gota de lcool na boca.

    No entanto, as duas meninas que escolheram ficar com ele tiveram uma vida bem diferente. Consegui fa-zer duas filhas tirarem o diploma. Uma formada em contabilidade, e a outra, em enfermagem, conta, todo orgulhoso. Eu fiz questo que elas estudassem. Eu sei a falta que o estudo faz. Paguei faculdade, ajudei no que foi preciso. Ele provou que nem tudo estava perdido. As coisas ainda podiam dar certo.

    Hoje, ele diz claramente que assume as responsa-bilidades. No sinto culpa alguma e tambm no me culpo. No me fao de coitadinho de jeito nenhum. O que aconteceu j foi. Hoje eu sei que tenho condies de fazer diferente. Antnio chegou concluso que para acontecer alguma mudana positiva, quem precisava mudar primeiro era ele. Era um processo que devia vir de dentro para fora. Eu procurei atravs dos anos uma mu-dana, no para agradar aos outros, e sim a mim mesmo. Eu vi que se eu me sentisse melhor, quem estava conviven-do minha volta, tambm sentiria a mesma sensao.

    Em relao escolha que fez com dezenove anos de idade, ele afirma que as coisas poderiam ter sido mui-to diferentes. Hoje eu tenho certeza que eu no me casaria com ela. Naquele momento foi um erro. Tudo aconteceu no impulso. No pensei em nada. Calor do momento, sabe?. Ao desabafar sobre o primeiro casa-mento, ele conclui, com muita convico, que se no tivesse bebida, eu no conseguiria levar aquele casa-mento por quinze anos. A bebida s adiou o fato de ter que tomar uma deciso.

    4 Al-Alon uma associao de parentes e amigos de alcolicos que, assim como o A.A. fazem reunies semanais e compartilham experincias a fim de solucionar os problemas em comum com o lcool e outras drogas.

    no sinto culpa alguma e tambm no me culpo. no

    me fao de coitadinho de jeito nenhum. o que

    aconteceu j foi. hoje eu sei que tenho condies

    de fazer diferente.

    os doze passos

    Ela tinha um irmo alcolatra e viu que precisa-va aprender a lidar com esse problema, antes que a afetasse demais, conta. Os dois passaram a dividir an-gstias e alegrias. Eles encontraram um no outro algo que faltava. Debilitados no campo emocional, um serviu de apoio ao outro. Eles se envolveram e desco-briram muitas afinidades. Antnio teve a prova de que seria novamente capaz de amar, dar amor a algum, e principalmente, ser amado.

    Hoje, ele conta orgulhoso que j tem quinze anos de casamento feliz, e muito bem estruturado, com a nova esposa. Eu casei com uma pessoa completamente di-ferente. Outro tipo de comportamento, uma mulher mais esclarecida. Hoje eu tenho prazer em ir para casa,

    1. Admitimos que ramos impotentes perante o lcool - que tnhamos perdido o domnio sobre nossas vidas.

    2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a ns mesmos poderia devolver-nos sanidade.

    3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de um Poder Superior, na forma em que O concebamos.

    4. Fizemos minucioso e destemido inventrio moral de ns mesmos.

    5. Admitimos perante o Poder Superior, perante ns mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.

    6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de carter.

    7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeies.

    8. Fizemos uma relao de todas as pessoas a quem