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XLV CONGRESSO DA SOBER "Conhecimentos para Agricultura do Futuro" Londrina, 22 a 25 de julho de 2007, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural 1 NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM: A REALIDADE ALIMENTAR NO RURAL NORDESTINO ISLANDIA BEZERRA DA COSTA TEIXEIRA (1) ; ALDENOR GOMES SILVA (2) . 1.NUTRICIONISTA. MESTRE EM CIENCIAS SOCIAIS - PPGCS/UFRN, NATAL, RN, BRASIL; 2.ENGº AGRº. DR. ECONOMIA IE/UNICAMP. PROFº PPGCS/ UFRN. PESQUISADOR 2/CNPQ, NATAL, RN, BRASIL. [email protected] APRESENTAÇÃO ORAL REFORMA AGRÁRIA E OUTRAS POLÍTICAS DE REDUÇÃO DA POBREZA “NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM”: a realidade alimentar no rural nordestino Grupo de Trabalho: Reforma Agrária e Outras Políticas de Redução da Pobreza Coordenação: Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante - UNIARA/SP Resumo Esse trabalho buscou salientar as diferentes concepções sobre a agricultura familiar e as práticas de autoconsumo estabelecidas no interior da unidade de produção. Hipótese: devido às condições, cada vez mais restritas de produzir para o autoconsumo, as famílias rurais estão mais propícias a apresentarem situação de insegurança alimentar tão severas quanto às famílias urbanas, ao contrário do que se defende. A pesquisa foi realizada em três Estados do Nordeste: Paraíba; Rio Grande do Norte e Sergipe. Os resultados revelaram que dentre os principais fatores que expõem essas famílias a situações de constante vulnerabilidade alimentar têm-se: a baixa qualidade do consumo alimentar no que diz respeito à disponibilidade, à diversificação e principalmente, à acessibilidade. As análises podem servir para subsidiar uma reflexão acerca do padrão alimentar de famílias rurais frente aos preceitos da política de Segurança Alimentar e Nutricional(SAN). Palavras-chaves: SAN; padrão alimentar; famílias rurais. Abstract

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XLV CONGRESSO DA SOBER "Conhecimentos para Agricultura do Futuro"

Londrina, 22 a 25 de julho de 2007, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural

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NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM: A REALIDADE ALIMENTAR NO RURAL NORDESTINO

ISLANDIA BEZERRA DA COSTA TEIXEIRA (1) ; ALDENOR

GOMES SILVA (2) .

1.NUTRICIONISTA. MESTRE EM CIENCIAS SOCIAIS - PPGCS/UFRN, NATAL, RN, BRASIL; 2.ENGº AGRº. DR. ECONOMIA

IE/UNICAMP. PROFº PPGCS/ UFRN. PESQUISADOR 2/CNPQ, NATAL, RN, BRASIL.

[email protected]

APRESENTAÇÃO ORAL

REFORMA AGRÁRIA E OUTRAS POLÍTICAS DE REDUÇÃO DA

POBREZA

“NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM”: a realidade alimentar no rural nordestino

Grupo de Trabalho: Reforma Agrária e Outras Políticas de Redução da Pobreza

Coordenação: Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante - UNIARA/SP Resumo Esse trabalho buscou salientar as diferentes concepções sobre a agricultura familiar e as práticas de autoconsumo estabelecidas no interior da unidade de produção. Hipótese: devido às condições, cada vez mais restritas de produzir para o autoconsumo, as famílias rurais estão mais propícias a apresentarem situação de insegurança alimentar tão severas quanto às famílias urbanas, ao contrário do que se defende. A pesquisa foi realizada em três Estados do Nordeste: Paraíba; Rio Grande do Norte e Sergipe. Os resultados revelaram que dentre os principais fatores que expõem essas famílias a situações de constante vulnerabilidade alimentar têm-se: a baixa qualidade do consumo alimentar no que diz respeito à disponibilidade, à diversificação e principalmente, à acessibilidade. As análises podem servir para subsidiar uma reflexão acerca do padrão alimentar de famílias rurais frente aos preceitos da política de Segurança Alimentar e Nutricional(SAN). Palavras-chaves: SAN; padrão alimentar; famílias rurais. Abstract

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That work looked for to point out the different conceptions on the family agriculture and the established self-consumption practices inside the unit of production. Hypothesis: due to the conditions, more and more restricted of producing for the self-consumption, the rural families are more favorable present her situation of alimentary insecurity as severe as for the urban families, unlike what he/she defends. The research was accomplished in three States of the Northeast: Paraíba; Rio Grande do Norte and Sergipe. The results revealed that among the main factors that expose those families to situations of constant alimentary vulnerability are had: the low quality of the alimentary consumption in what concerns the readiness, to the diversification and mainly, to the accessibility. The analyses can be to subsidize a reflection concerning the alimentary pattern of families rural front to the precepts of Alimentary Safety's politics and Nutricional(SAN). Key Words: SAN; standard alimentary, rural families

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1. INTRODUÇÃO

A discussão sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) vem ocupando de forma crescente a agenda pública no Brasil sendo que a implementação do programa Fome Zero do governo federal, em 2003, se configurou como um marco nessa agenda. Nesse sentido, há diferentes compreensões sobre o tema da SAN, cada qual com implicações específicas para a construção de políticas públicas neste campo. O conceito de SAN foi construído a partir de várias dimensões: a política, a econômica, a social e a alimentar cujo foco principal é o combate à fome. Dessa forma, torna-se imperativo ampliar, também, o enfoque da SAN, bem como as ações que favorecem mudanças em todos os níveis.

Analisar a situação de segurança alimentar e nutricional de famílias rurais e fazer sua relação com a produção de alimentos no âmbito familiar não é tarefa simples. Essa dificuldade gira em torno da crença de que as famílias classificadas como rurais possuem “condições” de produzir alimentos para o abastecimento familiar pelo ato de terem o acesso a terra e poder contar com a mão de obra familiar. De fato, se essas “condições” se configurassem de forma concreta (o que não ocorre) até seria possível inferir que, no que diz respeito ao acesso aos alimentos básicos de uma dieta (feijão, macaxeira, milho, batata, legumes e frutas), essas famílias estariam em situação, relativamente, confortável para um padrão alimentar que preconiza esses alimentos como sendo a base para uma alimentação adequada.

Porém, mesmo assim, ainda existem outros fatores complicadores que inviabilizam essa afirmação, como as condições de solo, a ausência de água, a falta de acesso a crédito, a falta de infra-estrutura e até mesmo a nova forma de configuração das famílias com menos filhos, ou a ausência desses membros devido ao deslocamento para fora da unidade familiar. Não são poucos os estudos que demonstram o quanto a população rural sofre com o flagelo da fome. Josué de Castro em 1946 já denunciava que “é um tipo de fome, inteiramente diferente” (CASTRO, 1946, p. 157).

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad (IBGE, 2006), revelam que é no meio rural que se encontra a maior prevalência domiciliar de Insegurança Alimentar (IA) da forma moderada ou grave e, também, é nesse espaço que há a maior proporção de população vivendo nessa condição. Enquanto na área urbana 11,4 % dos domicílios se encontra em condição de IA moderada e 6% grave, no meio rural prevalece o percentual de 17% e 9%, respectivamente. Esses percentuais elevados de pessoas relacionadas nessas categorias de IA apenas reafirma a necessidade de se fazer algo, especialmente no âmbito das políticas públicas, não só por considerar o acesso à alimentação uma questão de cidadania, mas, principalmente, por compreender que esse é antes de tudo um direto humano básico e um dever do Estado.

A confirmação do panorama de miséria no meio rural foi recentemente descrito por Gomes da Silva (2006, p. 01) onde esse autor cita que “é no campo que se encontram os maiores índices de mortalidade infantil, de incidência de endemias, de insalubridade, de analfabetismo e, que essa imensa pobreza decorre das restrições de acesso aos bens e serviços indispensáveis à reprodução biológica e social, à fruição dos confortos proporcionados pelo grau de desenvolvimento da sociedade”.

Relata, ainda, o autor nesse trabalho que a situação de pobreza das famílias rurais é exacerbada pela produção agrícola reduzida, especialmente paras as famílias classificadas como produtoras familiares, já que há por parte dessas uma dificuldade de acesso aos chamados instrumentos de políticas agrícolas, especialmente no que diz respeito ao crédito

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de custeio. Conforme esse autor, esse setor produtivo (principalmente o que se encontra no meio rural nordestino) “tem contribuído muito pouco, quando não ausente, para a consecução de níveis de produção que assegurassem, ao menos, o autoconsumo das famílias rurais” (GOMES DA SILVA, 2006, p. 12).

A importância econômica e social do meio rural e, atualmente, objeto de vários estudos. Para Wanderley (1998) a problemática da “ruralidade”, nas novas configurações das sociedades, nada mais é que uma busca de soluções para as crises sociais, associadas principalmente ao emprego e às transformações que vêm ocorrendo na agricultura. Nesse sentido, sobre a perspectiva da SAN, ganham força o cenário do rural, bem como do papel de agricultura familiar.

Contudo, como pensar as famílias rurais detentoras da possibilidade de produzir alimentos – por meio da agricultura familiar - se elas próprias carregam consigo a incerteza de dispor de alimentos?

Esse trabalho retoma, portanto, algumas das principais considerações sobre a questão da segurança alimentar e nutricional com base no padrão de consumo alimentar de famílias rurais. O mesmo buscou salientar as diferentes concepções sobre o papel da agricultura familiar e das práticas de autoconsumo alimentar estabelecidas no interior da unidade de produção.

Os agricultores beneficiados do grupo B do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foram objetos da realização dessa pesquisa1.

Bastos (2006) refere-se aos agricultores familiares classificados no grupo B do Pronaf, como os que possuem as condições de vida mais precárias. Isto é, são basicamente famílias com baixa renda (até 2 mil reais/ano)2, trabalhadores rurais e aqueles que utilizam a terra na forma mais incipiente como os parceiros, pequenos arrendatários e ocupantes, além de pescadores artesanais. Desnutrição? Insegurança Alimentar? Ou fome? Tudo é falta de alimento, mas nem tudo é igual.

A questão alimentar e, em especial, o combate à fome no mundo vem a cada dia

ganhando repercussões em vários segmentos da sociedade. Esse debate emergiu com toda sua força no período pós-guerra, e foi revigorado em 1996 na Cúpula Mundial de Alimentação, em Roma. Nessa ocasião, chefes de Estado assumiram o compromisso de estudar formas de acabar com a fome e comprometeram-se também em realizar um esforço para erradicar a fome em todos os países. Para isso firmaram um objetivo imediato de reduzir pela metade o número de desnutridos, até o ano de 2015. Instituições internacionais - tal qual a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização Mundial da Saúde e o Banco Mundial - vêm até os dias de hoje, engajando-se nessa busca, sendo que a FAO tornou-se uma das principais referências sobre o tema da segurança alimentar. Nesse sentido, as propostas para a concretização da SAN em relação

1 A escolha do grupo B justifica-se pelo fato desse estudo ter feito parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Impactos do PRONAF B sobre o meio rural do Nordeste” e que foi realizada no âmbito do Núcleo Avançado de Políticas Públicas (NAPP/UFRN) com apoio financeiro do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) e o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural NEAD. A mesma foi realizada no meio rural de três estados do Nordeste: Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe. 2 Segundo o Manual de Crédito Rural – MCR - 10-2, Resolução 3.206, 24/06/2004.

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à produção de alimentos são: que a produção seja suficiente, estável, eqüitativa e sustentável e, principalmente, que tenha autonomia.

A desnutrição, a Insegurança Alimentar (IA), a fome ou qualquer que seja a denominação é, de fato, um fenômeno social. A desnutrição, ou mais corretamente as deficiências nutricionais – porque são várias as modalidades de desnutrição – “são doenças que decorrem do aporte alimentar insuficiente em energia e nutrientes ou, ainda, com freqüência, do inadequado aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos – geralmente motivado pela presença de doenças” (MONTEIRO, 2004, p. 82).

A Insegurança Alimentar (IA) é uma situação na qual o indivíduo não tem acesso regular e permanente a uma alimentação em quantidade e de qualidade ou, melhor, coloca, permanentemente, a ameaça da fome no convívio família e/ou social. Ou ainda, caso o indivíduo apresente alguma dificuldade de alimentar-se adequadamente, mesmo que seja por alguns períodos.

Se considerarmos a explicação reducionista da clínica fome: é a insuficiência ou ausência de calorias no organismo. Nesse sentido, “é definida como uma sensação subjetiva que determina quando o consumo do alimento é iniciado, e pode ser descrita como uma sensação incômoda e irritante que indica que a privação de alimento chegou a um ponto em que a próxima refeição deve ser feita” (GORAN; ASTRUP, 2005, p.29). Contudo, há uma segunda análise denunciada como “flagelo social” que, segundo Freitas (2003) “é produzida pelas condições sociais, econômicas e políticas dadas por um modelo estrutural e/ou conjuntural, correspondente ao poder aquisitivo, a produção de alimentos e os efeitos das crises econômicas sobre a pobreza” (FREITAS, 2003, p. 34).

Para Josué de Castro (1946):

[...] a fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome (CASTRO, 1967, p.67).

Sendo assim, é primordial considerar o que estabelece a definição do que seria (ou

é) uma alimentação adequada, para isso é importante conhecer o que sugerem as principais referenciais conceituais: 1) Documento de Referência da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea, 2004) e, 2) o Guia Alimentar para a População Brasileira: promovendo uma alimentação saudável (Brasil, 2006).

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2. METODOLOGIA O UNIVERSO AMOSTRAL: o mundo rural nordestino

Essa pesquisa teve como cenário a área rural de seis municípios de três Estados do

Nordeste brasileiro, especificamente, na região do semi-árido: 1) Alagoa Grande e Lagoa Seca na Paraíba; 2) Itabaiana e São Cristóvão em Sergipe e; 3) Apodi e Antonio Martins no Rio Grande do Norte. O mapa 01 mostra a localização geográfica dos municípios estudados.

Mapa 01. Localização geográfica dos municípios nos quais a pesquisa foi realizada. Fonte: Base de Pesquisa em Estudos Urbanos e Regionais/DGE/UFRN. Organização e cartografia: BEZERRA, Josué; BARBOSA, Anieres.

Antes da pesquisa de campo, propriamente dita, houve um processo de seleção da

amostra (dos sujeitos), conforme a seqüência abaixo.

1º Contato com funcionários do Banco do Nordeste (BNB), para obtenção de listagem com os nomes dos tomadores de crédito do Pronaf B nos municípios selecionados;

2º Escolha aleatória dos beneficiários pesquisados, utilizando a ferramenta do Windows Explorer – Microsoft Office Excel 2003.

3º Estratificação da amostra utilizando-se como intervalos de entrada todos os nomes dos beneficiários. Na definição da amostra utilizou-se como margem de segurança, para cada

município, 20(vinte) beneficiários a mais. Assim, foi possível inferir em definitivo a amostra, salvaguardando de possíveis repetições, ou mesmo, de algum imprevisto que pudesse ocorrer

durante a pesquisa de campo (Quadro 1).

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No total foram aplicados 299 questionários semi-estruturados. Segundo Minayo;

Cruz Neto; Deslandes (1999), este instrumento caracteriza-se por facilitar a obtenção de informações consideradas objetivas e subjetivas, sendo, portanto, uma ferramenta importante já que a busca das mesmas, via o acesso às fontes secundárias, impossibilita o pesquisador de relacionar no procedimento de análise valores referentes às atitudes e às opiniões dos sujeitos entrevistados.

Foram utilizadas questões da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)3, instrumento adaptado e, previamente validado por Corrêa et. alli (2004), além de outras informações como: forma de aquisição ou a origem dos alimentos (produção para o autoconsumo, compra via mercado), condições de moradia, a participação em programas de transferência de renda, ou beneficiários da previdência social, acesso a outros serviços/programas sociais e, ainda a aplicação de um Questionário de Freqüência Alimentar (QFA).

Quanto ao QFA4 utilizado, seu objetivo foi avaliar o quanto certos alimentos ou grupos de alimentos são consumidos durante um determinados período de tempo. Desse modo, foi possível obter dados sobre o consumo habitual da família. O QFA é um instrumento de análise qualitativa de consumo e organiza os alimentos em grupos que têm nutrientes em comum, uma vez que há uma preocupação em saber qual a freqüência de uso dos grupos de alimentos, ao invés de nutrientes específicos (GIBSON, 1990; MAHAM, 1998).

O padrão alimentar tornou-se então o principal foco de análise como uma tentativa de problematizar sobre a situação das condições alimentares das famílias rurais e como estas se distanciam do que estabelece o conceito de SAN, não, apenas, numa única dimensão, mas sim em relação a todas as outras como: dispor de uma alimentação em quantidade e qualidade suficientes e adequadas no seu teor nutricional, conforme a sua cultura e que seja ambientalmente sustentável, pois segundo Valente (2002, p. 103):

3 A estrutura da escala é constituída por 15 questões possui agrupamentos conceituais e uma forma de classificação descrita cujas condições que permitem estimar as prevalências de segurança alimentar das unidades domiciliares.

4 O QFA foi aplicado junto ao entrevistado a fim de avaliar o consumo dos grupos de alimentos: cereais e massas, leguminosas, frutas, ovos, hortaliças, raízes e tubérculos, carnes, doces e gorduras e leite e derivados. As freqüências de consumo foram classificadas como: não come, consumo raro (dificilmente), de uma a três vezes por semana, e de quatro a seis vezes por semana e diário. Como consumo raro, foram considerados os consumos quinzenal, mensal e ocasional.

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[...] o ato de alimentar-se, e de alimentar seus familiares e aos outros é um dos que mais profundamente reflete a riqueza e a complexidade da vida humana na sociedade. Os hábitos e práticas alimentares de um ser humano, de sua família e de sua comunidade são produtos da história e da vida de seus antepassados, um reflexo da disponibilidade de alimentos e de água na localidade onde residem, e de sua capacidade econômica e física de ter acesso aos mesmos.

Nesse sentido, Poulain (2004) lembra que por detrás dos debates em torno da

alimentação e sobre ela, são as questões da sociedade que estão em jogo, pois a alimentação é uma prática comum a todos os indivíduos e ela diz respeito à sociedade em seu conjunto.

Em relação a SAN o Consea (2004) coloca que se trata:

da realização do direito humano a uma alimentação saudável, acessível, de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, respeitando as diversidades culturais e sendo sustentável do ponto de vista socioeconômico e agroecológico (CONSEA, 2004, p 06).

Já o Guia alimentar para a população brasileira: promovendo uma alimentação saudável 5 estabelece o que vem a ser uma alimentação saudável, portanto, adequada:

[...] deve ter como enfoque prioritário o resgate de hábitos regionais inerentes ao consumo de alimentos in natura, produzidos em nível local, culturalmente referenciados e de elevado valor nutritivo, como frutas, legumes e verduras, grãos integrais leguminosas, sementes e castanhas [...] (BRASIL, 2006).

De certa forma, a análise desses dois conceitos frente à realidade encontrada nas famílias rurais pesquisadas sugere uma crítica a partir do que Max Weber (1991) denominou de tipos ideais. Na verdade, esses ‘tipos ideais’ são usados como padrão de comparação, e permite uma observação do mundo real de uma forma mais clara e sistemática. Sendo assim esses podem ser utilizados como recursos metodológicos de análise. Contudo, Johnson (1997) ressalta que tipos ideais não o são, apenas, no sentido em que são puros e abstratos, não no sentido mais comum de serem desejáveis ou bons.

Ao se apoiar nesses conceitos, diz-se que esses não são menos ideais que a insegurança alimentar ou fome. Porquanto ambos são elaborados ou sintetizados com base em dados simples e abstratos, com os quais podemos comparar e contrastar as duas situações, com o objetivo de observar com mais clareza. Com esse propósito, essa pesquisa dispôs a problematizar e analisar esses aspectos nas famílias rurais, partindo da hipótese que essas apresentam situação de insegurança alimentar ou fome, tão severas quanto à população urbana, mesmo diante da “possibilidade” de plantar e colher para o seu próprio sustento.

5 Segundo as informações contidas nesse guia esse contém as primeiras diretrizes alimentares oficiais para o Brasil e para os brasileiros. O mesmo foi elaborado conforme a base dos alimentos do Brasil e fundamentado em sua cultura alimentar.

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3. “NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM”: a realidade alimen tar no meio rural nordestino

O que é uma alimentação aceitável? Ou melhor, o que é uma alimentação adequada? Ou ainda, o que é uma alimentação suficiente? Suficiente em que sentido? Em quantidade? Em qualidade? Aliás, que quantidade e qualidade estamos falando? São muitas as questões acerca desse assunto e que segundo Poulain (2004, p. 180) “encontram suas respostas apenas num espaço social dado”. Desde os tempos antigos, o homem sabe que a saúde e o bem-estar físico dependem da sua alimentação. Nos dias de hoje convencionamos essa premissa ao que chamamos de “alimentação adequada”.

De fato, o valor da alimentação não se restringe, apenas, ao aspecto nutricional, isto é, a um ou outro nutriente. Entre outros fatores igualmente significativos está à cultura alimentar. Cada sociedade estabelece um conjunto de práticas alimentares, consolidadas ao longo do tempo.

Assim sendo, a alimentação pode ser analisada sob várias perspectivas, ao mesmo tempo independentes e complementares: uma perspectiva econômica, na qual a relação entre a oferta e a demanda, o abastecimento, os preços dos alimentos e a renda das famílias são os principais componentes; uma perspectiva nutricional, com enfoque nos constituintes dos alimentos, indispensáveis à saúde e ao bem-estar do indivíduo (proteínas, lipídeos, carboidratos, vitaminas, minerais e fibra), nas carências e nas relações entre dieta e doença; uma perspectiva social, voltada para as associações entre a alimentação e a organização social do trabalho, a diferenciação social do consumo, os ritmos e estilos de vida; e, uma perspectiva cultural, interessada nos gostos, hábitos, tradições culinárias, representações, práticas, preferências, repulsões, ritos e tabus, isto é, no aspecto simbólico da alimentação (OLIVEIRA; THÉBAUD-MONY, 1997).

Em outras palavras, pode-se dizer que os alimentos ou o tema da alimentação não são territórios exclusivos de uma única área (econômica, nutricional, social e/ou cultural). E, pensando dessa forma, é possível analisar a complexidade das dimensões da SAN quando se trabalha essas perspectivas de forma conjunta e revelando, portanto, a importância de cada uma.

Em relação aos resultados da pesquisa (tabela 01), registrou-se quanto ao extrato do número de pessoas nas famílias dos entrevistados, aquelas compostas por 3 a 4 membros (44%) foi o percentual mais significativo seguido daquelas compostas com 5 a 6 membros (29%).

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Os dados apresentados corroboram outros resultados já demonstrados por Campanhola e Graziano da Silva (2000), nas fases I e II do projeto Rurbano 6 sobre as novas configurações do meio rural, sendo que dentre as mudanças mais significativas estão; na composição da família e, nas novas formas de trabalho.

Quanto à renda líquida anual da unidade familiar (tabela 02), demonstra que em média, 44% das famílias pesquisadas dos três Estados recebem até meio salário mínimo. Sendo que o estado do RN apresentou um percentual superior de 54%, enquanto SE apresentou menor percentual (33%) de famílias que sobrevivem nessa faixa de renda.

É importante ressaltar que todos os entrevistados, beneficiados do grupo B do

Pronaf, se caracterizam, predominantemente, como agricultores de baixíssima renda. Mesmo assim, os dados apresentados na tabela 2 demonstram que existe uma desigualdade acentuada na distribuição da renda dos entrevistados, ou seja, mais da metade possuem renda de até 5 salários mínimos (47% possui renda inferior a 2 salários mínimos ou não possuem renda), enquanto 37% ganham acima de 10 salários mínimos esse percentual expressivo sugere que o crédito do Pronaf B tem sido “desviado” para beneficiar um outro público que não se encaixa nas características impostas pelo programa.

Sabe-se que a questão da renda é preponderante para garantir a SAN já que esta detém uma relação direta com a acessibilidade. De acordo com a tabela 02, percebe-se que o RN apresenta o maior percentual de famílias que possui menor renda. Essa condição tende a inviabilizar qualquer tentativa de adquirir uma alimentação segura, no que diz respeito á qualidade e quantidade para todos os membros da família. Outro agravante, é que muitas vezes esse recurso é o único disponível para se ter acesso a outros bens e serviços, como medicamentos, vestimentas, moradia, educação, transporte entre outros. Isso acentua ainda mais a inacessibilidade a uma alimentação adequada, portanto, saudável.

Contudo, quando questionados sobre a quantidade de comida disponível no domicílio e se essa era suficiente para todos os membros da família, 83% do total dos entrevistados respondeu que sim. Entretanto, na sua resposta acrescentaram uma ressalva:

6 O projeto Rurbano tem como principal objetivo pesquisar sobre as mudanças que vem ocorrendo ao longo dos anos no meio rural brasileiro. Nessas fases, o projeto contou com a participação de 25 pesquisadores envolvidos em 11 Estados diferentes. http://www.eco.unicamp.br/projetos/rurbano.html

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“tem que dar”. Esse fato demonstra a limitação imposta, principalmente, por parte de quem porciona a comida, evidenciando que mesmo que ela não seja suficiente, todos os membros se alimentam. Esse fato reforça a constatação de que, mesmo diante da resposta afirmativa por parte dos entrevistados em relação à quantidade, ainda assim, pode-se sugerir que as necessidades nutricionais de cada indivíduo não são supridas.

Apenas, os dois municípios do Estado da PB apresentaram um percentual significativo (27%) de famílias que afirmaram não disporem de alimentos em quantidade suficiente, seguido por SE, com 17% (Tabela 03). Indagados sobre as razões da insuficiência de alimentos algumas respostas são elucidativas: na Paraíba, “porque a família cresceu muito”, enquanto que em Sergipe o principal razão foi “falta dinheiro para comprar alimento”.

Em relação à variedade e alimentos uma pesquisa realizada por Sampaio; Kepple e Segall-Corrêa (2006) com grupos focais e em comunidades rurais chegou a seguinte constatação: a concepção da comunidade rural sobre o conceito de uma “Alimentação variada” é bem próxima àquela mencionada no meio urbano, ou seja, é a “necessidade de consumir vários tipos de alimentos”. A maior diferença, no entanto, está relacionada à maneira de preparar os alimentos “para não enjoar”. Vale ressaltar que, além das variedades de preparo de um mesmo alimento, foi exposta a importância da combinação de cores para obtenção, na medida do possível, de maior diversificação do consumo.

Sob esses aspectos, as questões da quantidade e variedade da alimentação também foi foco de análise desse estudo (Tabela 03).

A percepção sobre a variedade da alimentação foi semelhante à encontrada pelas

autoras supracitadas. Nesse sentido, percebe-se que houve um percentual significativo (41%) do total dos entrevistados que afirmou a não variedade da alimentação, ou seja, reconhecem que há uma repetição diária do mesmo tipo de alimento oferecido nas refeições, refletindo o que tecnicamente é nomeado como monotonia alimentar. O principal motivo pelo qual os entrevistados alegaram não variar a alimentação da família foi “a falta dinheiro para comprar outros alimentos” sendo este relacionado por 100% dos entrevistados.

Dos três Estados pesquisados, a Paraíba foi o que apresentou um percentual mais elevado (61%) de famílias que não dispõe de uma alimentação variada, superando, até o estado do RN que, por sua vez, apresentou o maior percentual de famílias que sobrevivem com uma faixa de renda menor, já que a renda é preponderante para atingir esse preceito da SAN.

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Quanto às manifestações de IA ou os seus sintomas do ponto de vista nutricional, considera-se que estes podem ser percebidos de duas formas: aquelas que persistem, especialmente em países em desenvolvimento (desnutrição/subnutrição – materna e fetal, retardo no crescimento, carência específica de alguns nutrientes – ferro, vitamina A, iodo, zinco), e as que vêm emergindo ao longo desses últimos anos (obesidade – infantil/adulta, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, resistência à insulina e alguns tipos de câncer). Contudo, a Faculdade de Ciências Médicas/Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em conjunto com Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), além de outras instituições, adaptaram e validaram uma outra forma de avaliar e ainda de classificar, em diferentes níveis, o grau de IA, que categoriza a família em: segura, em insegurança leve (em que existe a preocupação com a falta de alimento, mas não necessariamente a privação), em insegurança moderada (em que já existe algum tipo de privação, principalmente do adulto) e insegurança grave (em que a criança já tem redução de alimentos ou fome).

A tabela 04 demonstra os percentuais das famílias que apresentaram algum sentimento em relação à falta de alimentos.

Segundo os dados apresentados nessa tabela, percebe-se que entre os entrevistados

houve um percentual significativo (60%), que responderam “não sentir nenhuma preocupação com a possibilidade de faltar comida e não ter condições financeiras para repor” . Contudo, é imperativo considerar que 40% afirmou sentir medo, e esse percentual, por sua vez, representa um elevado contingente de pessoas que sofre com a privação alimentar.

Freitas (2003) lembra que a percepção individual, quanto ao “passar fome”, é um fenômeno que pode assumir distintos significados para aqueles que vivem sob constante ameaça de não ter o que comer, bem como o “tabu” para expressar verbalmente essa agonia. Nesse sentido, é possível inferir que tal questionamento se mostrou, de fato, adequado para aferir a vivência da fome entre as famílias pesquisadas dada a representatividade da freqüência.

Não foi pretensão dessa pesquisa caracterizar as famílias entrevistadas segundo a classificação de IA (leve, moderada e grave), já que esta se trata de uma recomendação metodológica. Porém, a partir dos dados foi possível inferir a situação de IA, dado o contexto alimentar das famílias rurais. A IA no meio rural pode ser crônica, sazonal ou transitória, sendo diversas as razões para que ocorram. Dentre essas destacam-se: a falta de alimentos; o insuficiente poder de compra; e a distribuição inadequada de alimentos em âmbito domiciliar. De acordo com os dados da pesquisa pode-se inferir que estas três razões se fazem presentes na vida dos beneficiários

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O “Guia alimentar para a população brasileira: promovendo uma alimentação saudável” orienta sobre a necessidade de um indivíduo realizar pelo menos, “três refeições diárias, intercaladas com lanches saudáveis” 7 (Brasil, 2006, p. 41). Já no documento do Consea, com referencia ao seu conceito de segurança alimentar, é lembrado que a dimensão do acesso permanente em quantidade e qualidade é primordial. Ao dispor desses parâmetros de análise, foi investigada como se configura a “jornada” 8 alimentar das famílias rurais.

Dentre as famílias que possuem uma jornada alimentar, isto é que cumpre o ritual de ter e fazer ao menos três refeições por dia (café da manhã, almoço e janta), verificou-se que são elevados os percentuais daquelas que afirmaram ter as três refeições diárias, o que se constitui, portanto, em uma característica bastante satisfatória. Nos municípios do Estado de Sergipe, o percentual das famílias que assim procede foi de 100% em Itabaiana e 97% em São Cristóvão. A freqüência das refeições entre todas as famílias rurais pesquisadas é apresentada na Figura 2.

Figura 02. Freqüência das refeições entre as famílias rurais dos seis municípios estudados. Fonte: Pesquisa de campo, 2006. N = 299

Já para os municípios do Estado do RN (Antonio Martins e Apodi), foram os que

apresentaram os menores percentuais (91% e 87%), respectivamente. Esses resultados corroboram com os dados da Pnad (IBGE, 2006) quando demonstrou que, da região Nordeste, este Estado possui os maiores níveis de IA.

A freqüência da jornada alimentar desmistifica o pensamento de que as famílias rurais não tem o hábito de fazer o desjejum, ou seja, de tomar o café da manhã. A pesquisa mostrou que 94% dos entrevistados afirmaram tomar essa refeição diariamente, enquanto 18% responderam que o faz, apenas, alguns dias na semana. Ao serem questionados o porquê de não o fazê-lo todos os dias os entrevistados respondiam: “que nem sempre tem o

7 Como orientação para a escolha de alimentos mais saudáveis, o guia orienta sobre a importância de consultar e interpretar a informação nutricional e a lista de ingredientes, contida nos rótulos de alimentos. 8 Essa terminologia foi empregada com o intuito de estabelecer um parâmetro de analise da quantidade de refeições ao dia que são tomadas pelas famílias rurais.

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que comer pela manhã”. Já em relação as outras duas importantes refeições (almoço e jantar) os percentuais se mostraram mais satisfatórios (Tabela 05).

É quase impossível falar sobre segurança ou insegurança alimentar e não

referenciar as questões sobre o padrão alimentar. Quando escreveu “Geografia da fome”, Castro (1946) traçou o primeiro mapa da fome no Brasil retratando, esse autor brilhantemente como se constituía o padrão da alimentação do sertanejo naquela época. Para ele, foi na região do nordeste que encontrou o ‘regime’ de alimentação mais adequada do Brasil. Isso porque o sertanejo não pecava por falta nem por excesso. Contudo, mesmo apresentando tais características, era exatamente o sertão nordestino que se deparava com a fome epidêmica, já que em períodos de seca esse flagelo surgia com uma força insuperável, exceto, apenas, pela coragem do sertanejo.

Castro (1946, p. 176) também se utilizou da ferramenta do inquérito para traçar o que ele chamou de “mapa alimentar do sertão, dos hábitos tradicionais da alimentação sertaneja”. Atualmente, quem nos proporciona uma caracterização do consumo alimentar dos brasileiros é a Pesquisa Orçamentária Familiar (POF)9.

Com base nessas referências e relacionando os principais resultados quanto ao perfil de consumo diário de alimentos ou grupos de alimentos obteve-se, o seguinte:

� Alimentos dos grupo de cereais (arroz, biscoitos, pão, milho): 64% dos entrevistados no estado da PB, 69% no estado do RN e, 45% no estado de SE responderam que os consome diariamente;

� Alimentos do grupo de raízes (mandioca, farinha de mandioca): 63% na PB, 25% no RN e 82% em SE;

� Frutas e suco de frutas natural: 41% na PB, 38% no RN e 45% em SE; � Verduras e legumes: 52% na PB, 43% no RN e 56% em SE; � Leite: 52% na PB, 68% no RN e 37% em SE; � Derivados do leite (queijo, iogurte, colhada, requeijão, nata): 3% na PB, 6%

no RN e 1% em SE; � Carne(bovina, frango, porco, miúdos): 50% na PB, 33% no RN e 50% em

SE; � Peixe: 10% na PB, 2% no RN e 14% em SE; � Feijão: 92% na PB, 93% no RN e 91% em SE;

9 IBGE vem, ao longo dos anos, sistematizando a POF. A mais recente: 2002-2003

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� Açúcar: 89% na PB, 88% no RN e 69% em SE; � Óleos e gorduras: 81% na PB, 85% no RN e 61% em SE;

Percebe-se, assim, que o perfil do consumo de alimentos das famílias pesquisadas

se constitui numa dieta monótona, isto é, sem a devida variedade de alimentos como sugerem os documentos de referência classificados como “tipos ideais” de análise. Basicamente, as principais refeições (almoço e jantar) baseiam-se em alimentos como feijão, presente quase em sua totalidade nos três estados pesquisados, e em outros dois alimentos predominantes como arroz e farinha de mandioca. O consumo diário para o leite, foi significativo, especialmente para os estados da PB e do RN. Ressalta-se que todos os entrevistados são beneficiados do Pronaf B e, na sua maioria, aplicou o crédito para aquisição de uma ou mais vacas, o que explica o percentual significativo. Contudo, percebe-se que o beneficiamento desse produto alimentício (para seus derivados) no âmbito familiar para o seu consumo foi quase inexistente, fato esse que, também, inviabiliza a possibilidade de variar e melhorar em termos qualitativos a alimentação. O consumo diário de carne foi maior nos estados da PB e SE e bem menor no RN. É sabido que esse produto se constitui como um dos mais caros da cesta básica e, como foi demonstrado anteriormente, os entrevistados desse estado se caracterizam como aqueles que detêm a menor renda na unidade de produção.

Por fim, apesar de não demonstrar de forma mais detalhada o perfil alimentar das famílias pesquisadas, convém ressaltar que a sua freqüência de consumo de alimentos coincide com outras pesquisas já realizadas, ou seja, a baixa disponibilidade de acesso a outros alimentos tendo em vista a melhoria da sua qualidade, dificulta, sobretudo a quantidade disponível para todos os membros da família. Muitas das comunidades rurais visitadas localizam-se em áreas de difícil acesso, especialmente, nos estados da PB e do RN se configurando, portanto, numa descontinuidade na oferta de alimentos para o abastecimento dessas famílias. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não foi pretensão dessa pesquisa ditar regras sobre o que é, de fato, uma

alimentação saudável, contudo, a mesma teve o intento de enfatizar a progressiva deterioração do nosso padrão alimentar, por não mais valorizarmos o que os agricultores familiares plantam, já que cada vez mais os números da produção de alimentos básicos declinam. Bem como de enfatizar, também, que esses agricultores encontram-se à margem da discussão que gira em torno da segurança alimentar e nutricional.

Nesse sentido, ressalta-se que as mudanças que vem ocorrendo no padrão do consumo alimentar dos brasileiros vêm ao longo dos anos influenciando nos meios de produção desses agricultores. Isso porque, se o agricultor não tem o estimulo para vender, mesmo que minimante, parte da sua produção, invariavelmente, ele também busca outras alternativas para produzir e, consequentemente, seu ‘padrão alimentar’, também é afetado.

Dentro dessa mesma perspectiva, ao se pensar no processo da “superalimentação”, ‘super’ no sentido negativo da palavra, no qual as pessoas estão cada vez mais tendo acesso a uma alimentação excessiva em proteínas animal, rica em alimentos industrializados com menos valor nutritivo, mais contribuem para expropriação do agricultor familiar. O que é, indiscutivelmente, fato:

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1) sem uma reforma agrária não temos como pensar numa agricultura familiar exeqüível, já que não é a grande propriedade que nos alimenta, e sim a pequena via agricultura familiar. A primeira ‘apenas’ exporta, e contribui para uma diminuição do abastecimento interno, gera por si só, lucro e especulação e, ainda, cotizar-se para a destruição de hábitos e culturas alimentares;

2) sem agricultura familiar não temos como pensar em segurança alimentar e nutricional, já que os alimentos básicos de uma alimentação ‘adequada’ provêm desse segmento;

3) sem segurança alimentar e nutricional não temos como pensar em suprir necessidades básicas de uma população, não temos como pensar em amenizar os números da desnutrição e o pior, não temos como pensar, nem muito menos, como extinguir a fome.

Pode-se dizer que às famílias rurais pesquisadas apresentaram sinais de subalimentação. A maioria dessas famílias encontra-se em situação perene de fome, apenas “subalimentam-se”, na maioria das vezes, com alimentos pobres – no que diz respeito ao seu teor nutricional – e em quantidades insuficientes para o despêndio de energia ao qual são submetidos diariamente.

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