negrinha [conto] - monteiro lobato.pdf

37
8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 1/37

Upload: italo-leao

Post on 03-Jun-2018

248 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 1/37

Page 2: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 2/37

Monteiro Lobato

Negrinha

[conto]

São Paulo, 2012

Page 3: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 3/37

© Editora Globo, 2012© Monteiro Lobato sob licença da Monteiro LobatoLicenciamentos, 2012

Todos os direitos reservados.

enhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocadam sistema de banco de dados ou processo s imilar, em

qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia,ravação etc. sem a permissão dos detentores dosopyrights.

Publicado originalmente no livro "Negrinha" (Globo, 2008),de Monteiro Lobato.

dição: Luciane Ortiz de Castrodição de Arte: Adriana Bertolla Silveiradição Digital: Erick Santos Cardoso

Consultoria e pesquisa: Marcia Camargos e Vladimir 

Sacchettareparação de texto: Página Ímpar evisão: Margô Negro e Márcio Guimarães de Araújo

lustração de J. U. Campos: Arquivo Família Monteiro

Lobato

Page 4: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 4/37

Editora Globo S.A.Av. Jaguaré, 1.485 – JaguaréSão Paulo – SP – 05346-902 – Brasil

www.globolivros.com.br 

Page 5: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 5/37

Índice

CapaFolha de RostoCréditosMonteiro Lobato

egrinha 1920

Page 6: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 6/37

Monteiro Lobato

Page 7: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 7/37

Page 8: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 8/37

Monteiro Lobato, por J.U. Campos.

 

Homem de múltiplafacetas, José Bento MonteiroLobato passou a vida engajado

em campanhas para colocar o

Page 9: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 9/37

país no caminho damodernidade. Nascido em

Taubaté, interior paulista, noano de 1882, celebrizou-secomo o criador do Sítio do

Picapau Amarelo, mas suaatuação extrapola o universoda literatura infantojuvenilgênero em que foi pioneiro.

 Apesar da sua inclinação para a

artes plásticas, cursou a Faculdade d

argo São Francisco, em São Pauloor imposição do avô, o Visconde d

Tremembé, mas seguiu carreira por

ouco tempo. Logo trocaria o Direito

Page 10: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 10/37

elo mundo das letras, sem deixar d

ado a pintura nem a fotografia, outr

de suas paixões.

Colaborador da imprensa paulistae carioca, Lobato não demoraria

suscitar polêmica com o artigo “Velha

raga”, publicado em 1914 em  OEstado de S. Paulo. Um protesto

contra as queimadas no Vale do

araíba, o texto seria seguido d

“Urupês”, no mesmo jornal, títul

dado também ao livro que, trazendo o

eca Tatu, seu personagem símbolo

esgotou 30 mil exemplares entre 1918 e1925. Seria, porém, na  Revista doBrasil, adquirida em 1918, que el

ançaria as bases da indústria editoria

Page 11: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 11/37

no país. Aliando qualidade gráfica

uma agressiva rede de distribuição

com vendedores autônomos

consignatários, ele revoluciona omercado livreiro. E não para por aí

ança, em 1920,  A menina do

narizinho arrebitado, a primeirda série de histórias que formariam

erações sucessivas de leitores. A

nfância ganha um sabor tropical

emperado com pitadas de folclore

cultura popular e, principalmente

muita fantasia.

 Em 1926, meses antes de partiara uma estada como adido comercia

unto ao consulado brasileiro em Nova

York, Lobato escreve O   presidente

Page 12: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 12/37

negro.  Neste seu único romanc

revê, através das lentes do

“porviroscópio”, um futuro interligado

ela rede de computadores.

 De regresso dos Estados Unido

após a Revolução de 30, investe n

erro e no petróleo. Funda empresas derospecção, mas contraria poderoso

nteresses multinacionais qu

culminam na sua prisão, em 1941

ndultado por Vargas, continuouerseguido pela ditadura do Estad

ovo, que mandou apreender

queimar seus livros infantis.

 Depois de um período residindo

em Buenos Aires, onde chegou a funda

duas editoras, Monteiro Lobato morreu

em 4 de julho de 1948, na cidade d

Page 13: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 13/37

São Paulo, aos 66 anos de idade

eixou, como legado, o exemplo d

ndependência intelectual

criatividade na obra que continuresente no imaginário de crianças

ovens e adultos.

Page 14: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 14/37

egrinha

 Negrinha era uma pobre órfã de

anos. Preta? Não; fusca, mulatinhescura, de cabelos ruços e olhoassustados.

 Nascera na senzala, de mã

escrava, e seus primeiros anos vivera-opelos cantos escuros da cozinha, sobrvelha esteira e trapos imundos. Semprescondida, que a patroa não gostava dcrianças.

Excelente senhora, a patroa. Gordarica, dona do mundo, amimada do

padres, com lugar certo na igreja

Page 15: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 15/37

camarote de luxo reservado no céuEntaladas as banhas no trono (umcadeira de balanço na sala de jantar), al

bordava, recebia as amigas e o vigáriodando audiências, discutindo o tempoUma virtuosa senhora, em suma – “damde grandes virtudes apostólicas, esteida religião e da moral”, dizia reverendo.

Ótima, a Dona Inácia.

Mas não admitia choro de criançaAi! Punha-lhe os nervos em carne vivaViúva sem filhos, não a calejara o choroda carne de sua carne, e por isso nã

suportava o choro da carne alheiaAssim, mal vagia, longe, na cozinha, riste criança, gritava logo nervosa:

 – Quem é a peste que está chorand

Page 16: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 16/37

aí?Quem havia de ser? A pia de lava

pratos? O pilão? O forno? A mãe da

criminosa abafava a boquinha da filha afastava-se com ela para os fundos dquintal, torcendo-lhe em caminhbeliscões de desespero.

 – Cale a boca, diabo! No entanto, aquele choro nunc

vinha sem razão. Fome quase sempre, o

frio, desses que entanguem pés e mãos fazem-nos doer...Assim cresceu Negrinha – magra

atrofiada, com os olhos eternament

assustados. Órfã aos 4 anos, por alficou feito gato sem dono, levada pontapés. Não compreendia a ideia dograndes. Batiam-lhe sempre, por ação o

Page 17: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 17/37

omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, mesma palavra provocava ora risadasora castigos. Aprendeu a andar, ma

quase não andava. Com pretexto de quàs soltas reinaria no quintal, estragandas plantas, a boa senhora punha-a nsala, ao pé de si, num desvão da porta.

 – Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto

horas e horas.

 – Braços cruzados, já, diabo!Cruzava os bracinhos a tremersempre com o susto nos olhos. E empo corria. E o relógio batia uma

duas, três, quatro, cinco horas – um cucão engraçadinho! Era seu divertiment

vê-lo abrir a janela e cantar as horacom a bocarra vermelha, arrufando a

Page 18: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 18/37

asas. Sorria-se então por dentro, felium instante.

Puseram-na depois a fazer crochê

e as horas se lhe iam a espicharancinhas sem fim.

Que ideia faria de si essa criançque nunca ouvira uma palavra dcarinho? Pestinha, diabo, coruja, baratdescascada, bruxa, pata-choca, pintgorado, mosca-morta, sujeira, bisca

rapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo –não tinha conta o número de apelidocom que a mimoseavam. Tempo houvem que foi bubônica. A epidemia andava

na berra, como a grande novidade, egrinha viu-se logo apelidada assim –

por sinal que achou linda a palavraPerceberam-no e suprimiram-na da lista

Page 19: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 19/37

Estava escrito que não teria um gostinhsó na vida – nem esse de personalizar peste...

O corpo de Negrinha era tatuado dsinais, cicatrizes, vergões. Batiam nelos da casa todos os dias, houvesse onão houvesse motivo. Sua pobre carnexercia para os cascudos, cocres beliscões a mesma atração que o ímexerce para o aço. Mão em cujos nós d

dedos comichasse um cocre, era mãque se descarregaria dos fluidos em sucabeça. De passagem. Coisa de rir e vea careta...

A excelente Dona Inácia era mestrna arte de judiar de crianças. Vinha descravidão, fora senhora de escravos – daquelas ferozes, amigas de ouvir canta

Page 20: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 20/37

o bolo e estalar o bacalhau. Nunca safizera ao regime novo – essndecência de negro igual a branco

qualquer coisinha: a polícia! “Qualquecoisinha”: uma mucama assada ao fornporque se engraçou dela o senhor; umnovena de relho[1] porque disse: “Comé ruim a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos azorrague, mas não lhe tirou da alma

gana. Conservava Negrinha em cascomo remédio para os frenesis. Inocentderivativo.

 – Ai! Como alivia a gente uma bo

roda de cocres bem fincados!...Tinha de contentar-se com isso

udiaria miúda, os níqueis da crueldadeCocres: mão fechada com raiva e nós d

Page 21: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 21/37

dedos que cantam no coco do pacientePuxões de orelha: o torcido, de despegaa concha (bom! bom! bom! gostoso d

dar!) e o a duas mãos, o sacudido. Agama inteira dos beliscões: dmiudinho, com a ponta da unha, à torciddo umbigo, equivalente ao puxão dorelha. A esfregadela: roda de tapascascudos, pontapés e safanões à uma divertidíssimo! A vara de marmelo

flexível, cortante: para “doer fino” nadmelhor!Era pouco, mas antes isso do qu

nada. Lá de quando em quando vinha u

castigo maior para desobstruir o fígade matar as saudades do bom tempo. Foassim com aquela história do ovquente.

Page 22: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 22/37

 Não sabem? Ora! Uma criada novfurtara do prato de Negrinha – coisa drir – um pedacinho de carne que el

vinha guardando para o fim. A criançanão sofreou a revolta – atirou-lhe udos nomes com que a mimoseavaodos os dias.

 – “Peste?” Espere aí! Você vai vequem é peste – e foi contar o caso patroa.

Dona Inácia estava azedanecessitadíssima de derivativos. Sucara iluminou-se.

 – Eu curo ela! – disse –

desentalando do trono as banhas foi para cozinha, qual perua choca, a rufar asaias.

 – Traga um ovo.

Page 23: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 23/37

Veio o ovo. Dona Inácia mesmpô-lo na água a ferver; e de mãos cinta, gozando-se na prelibação d

ortura, ficou de pé uns minutos, espera. Seus olhos contentes envolviaa mísera criança que, encolhidinha a ucanto, aguardava trêmula alguma coisde nunca visto. Quando o ovo chegou ponto, a boa senhora chamou:

 – Venha cá!

 Negrinha aproximou-se. – Abra a boca! Negrinha abriu a boca, como

cuco, e fechou os olhos. A patroa, então

com uma colher, tirou da água “pulandoo ovo e  zás! na boca da pequena. E anteque o urro de dor saísse, suas mãoamordaçaram-na até que o ov

Page 24: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 24/37

arrefecesse. Negrinha urrou surdamentepelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem ovizinhos chegaram a perceber aquilo

Depois: – Diga nomes feios aos mais velho

outra vez, ouviu, peste?E a virtuosa dama voltou content

da vida para o trono, a fim de receber vigário que chegava.

 – Ah, monsenhor! Não se pode se

boa nesta vida... Estou criando aquelpobre órfã, filha da Cesária – mas qurabalheira me dá!

 – A caridade é a mais bela da

virtudes cristãs, minha senhora murmurou o padre.

 – Sim, mas cansa... – Quem dá aos pobres empresta

Page 25: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 25/37

Deus.A boa senhora suspiro

resignadamente.

 – Inda é o que vale... Certo dezembro vieram passar a

férias com Santa Inácia duas sobrinhasuas, pequenotas, lindas meninas lourasricas, nascidas e criadas em ninho dplumas.

Do seu canto na sala do tronegrinha viu-as irromperem pela cascomo dois anjos do céu – alegrespulando e rindo com a vivacidade d

cachorrinhos novos. Negrinha olhomediatamente para a senhora, certa d

vê-la armada para desferir contra oanjos invasores o raio dum castig

Page 26: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 26/37

Page 27: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 27/37

 – Quem é, titia? – perguntou umdas meninas, curiosa.

 – Quem há de ser? – disse a tia nu

suspiro de vítima. – Uma caridadminha. Não me corrijo, vivo criandessas pobres de Deus... Uma órfã. Mabrinquem, filhinhas, a casa é grandebrinquem por aí afora.

“Brinquem!” Brincar! Como seribom brincar! – refletiu com sua

ágrimas, no canto, a dolorosmartirzinha, que até ali só brincara emaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

 – Meus brinquedos! – reclamaraas duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou obrinquedos.

Page 28: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 28/37

Que maravilha! Um cavalo dpau!... Negrinha arregalava os olhos

unca imaginara coisa assim tã

galante. Um cavalinho! E mais... Que aquilo? Uma criancinha de cabeloamarelos... que falava “mamã”... qudormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinhaunca vira uma boneca e nem seque

sabia o nome desse brinquedo. Ma

compreendeu que era uma criançartificial. – É feita?... – perguntou extasiada.E, dominada pelo enlevo, nu

momento em que a senhora saiu da sala providenciar sobre a arrumação dameninas, Negrinha esqueceu o beliscãoo ovo quente, tudo, e aproximou-se d

Page 29: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 29/37

criaturinha de louça. Olhou-a coassombrado encanto, sem jeito, seânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo. – Nunca viu boneca? – Boneca? – repetiu Negrinha.

Chama-se Boneca?Riram-se as fidalgas de tant

ngenuidade. – Como é boba! – disseram. – E

você, como se chama? – Negrinha.As meninas novamente torceram-s

de riso; mas, vendo que o êxtase d

bobinha perdurava, disseramapresentando-lhe a boneca:

 – Pegue! Negrinha olhou para os lados

Page 30: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 30/37

ressabiada, com o coração aos pinotesQue aventura, santo Deus! Seripossível? Depois, pegou a boneca. E

muito sem jeito, como quem pega Senhor Menino, sorria para ela e para ameninas, com assustados relanços dolhos para a porta. Fora de siteralmente... Era como se penetrara n

céu e os anjos a rodeassem, e ufilhinho de anjo lhe tivesse vind

adormecer ao colo. Tamanho foi o seenlevo que não viu chegar a patroa, jde volta. Dona Inácia entreparou, feroze esteve uns instantes assim

presenciando a cena.Mas era tal a alegria das hóspeda

ante a surpresa estática de Negrinha, ão grande a força irradiante d

Page 31: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 31/37

Page 32: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 32/37

Page 33: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 33/37

flor de luz. Sentiu-se elevada à altura dente humano. Cessara de ser coisa – doravante ser-lhe-ia impossível viver

vida de coisa. Se não era coisa! Ssentia! Se vibrava!

 Assim foi – e essa consciência

matou. Terminadas as férias, partiram a

meninas levando consigo a boneca, e casa voltou ao ramerrão habitual. Só nãvoltou a si Negrinha. Sentia-se outranteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a nãatenazava tanto, e na cozinha uma criadnova, boa de coração, amenizava-lhe vida.

Page 34: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 34/37

 Negrinha, não obstante, caíra numristeza infinita. Mal comia e perdera

expressão de susto que tinha nos olhos

Trazia-os agora nostálgicoscismarentos.

Aquele dezembro de fériasuminosa rajada de céu trevas adentr

do seu doloroso inferno, envenenara-a.Brincara ao sol, no jardim

Brincara!... Acalentara, dias seguidos,

inda boneca loura, tão boa, tão quieta, dizer “mamã”, a cerrar os olhos pardormir. Vivera realizando sonhos dmaginação. Desabrochara-se de alma.

 Morreu na esteirinha rota

abandonada de todos, como um gato sedono. Jamais, entretanto, ningué

Page 35: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 35/37

morreu com maior beleza. O delírirodeou-a de bonecas, todas louras, dolhos azuis. E de anjos... E bonecas

anjos remoinhavam-lhe em torno, numfarândola do céu. Sentia-se agarrada poaquelas mãozinhas de louça – abraçadarodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveuudo. E tudo regirou em seguida

confusamente, num disco. Ressoara

vozes apagadas, longe, e pela última veo cuco lhe apareceu de boca aberta.Mas, imóvel, sem rufar as asas.Foi-se apagando. O vermelho d

goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.Depois, vala comum. A terra papou

Page 36: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 36/37

com indiferença aquela carnezinha derceira – uma miséria, trinta quilos ma

pesados...

E de Negrinha ficaram no mundapenas duas impressões. Uma cômicana memória das meninas ricas.

 – “Lembras-te daquela bobinha ditia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedode Dona Inácia.

“– Como era boa para um cocre!...

Page 37: Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

8/12/2019 Negrinha [conto] - Monteiro Lobato.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/negrinha-conto-monteiro-lobatopdf 37/37

1] Surra de chicote durante nove dias. Nota da edição d

946.