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AS TESES SELECIONADAS E DEFENDIDAS NO XI JUTRA , em OLINDA, PE, Brasil. - ACESSEM aqui e no site da JUTRA www.jutra.org.ptTRANSCRIPT
XI Encontro JUTRA - O Direito do Trabalho de mãos dadas - A
indispensável solidariedade, sempre
26 s 27 de março de 2015, Faculdade de Direito, FOCCA, Olinda, PE
GT - 1: A NEO FLEXIBILIZAÇÃO E A VIOLAÇÃO - OU NÃO - AO
PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE
ASSOCIAÇÕES E COOPERATIVAS DE CATADORES DE MATERIAIS
REUTILIZÁVEIS E RECICLÁVEIS: FOMENTO LEGAL A
TERCEIRIZAÇÃO QUE AFRONTA O PRINCÍPIO DA
SOLIDARIEDADE E O DIREITO A UM TRABALHO DIGNO E
DECENTE
Autor: Nathalia T. Chalub Prezotti
Instituição: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD-UFF)
Endereço: Av. Pres. Roosevelt, 1485 (casa) - Golfe, Teresópolis, RJ, CEP 25.966-001
Celular: (21) 98798-0350
E-mail: [email protected]
Niterói, 2015
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RESUMO
A Lei nº 12.305/10, que promulgou a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS),
estabelece o fomento às associações e
cooperativas de catadores de materiais
reutilizáveis e recicláveis como forma de
integrá-los nas ações que envolvam a
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de
vida dos produtos, sob o pretexto de que desta
forma estaria a promover a emancipação
econômica e a integração social desses
trabalhadores, a despeito do fim dos lixões
("prima loco" do trabalho dos catadores),
igualmente estabelecido na referida lei. Esse
trabalho tem por fim demonstrar que essa
política pública é falaciosa, através da revisão
bibliográfica de dados constantes de pesquisas
oficiais que apontam para inviabilidade
financeira dessas entidades; bem como
demonstrar que afronta ao princípio
constitucional da solidariedade e ao direito a um
trabalho digno e decente, configurando uma
terceirização inconstitucional de serviços cuja
responsabilidade única é dos geradores de lixo.
Palavras-chave: Associações e cooperativas de
catadores de materiais reutilizáveis e
recicláveis. Política Nacional de Resíduos
Sólidos. Terceirização inconstitucional.
ABSTRACT
Law No. 12,305/10, which
promulgated the National Solid Waste Policy
(PNRS), establishes the promotion of
associations and cooperatives of reusable and
recyclable materials' collectors as a way to
integrate them in the actions involving shared
responsibility for the life cycle of the products,
under the pretext that this would promote the
economic emancipation and social integration
of these workers, in spite of the end of the
dumps ("cousin loco" the work of garbage
collectors), also established in this law. This
article is to demonstrate that public policy is
fallacious, through the review of information
contained in official surveys pointing to
financial infeasibility of these entities; as well
as demonstrate that this policy affronts
constitutional principle of solidarity and the
right to decent and dignified work, configuring
an unconstitutional outsourcing of services
whose sole responsibility is from the generators
of waste
. Keywords: Associations and cooperatives of
reusable and recyclable material collectors.
National solid waste policy. Outsourcing
unconstitutional.
Nathalia T. Chalub Prezotti1
1. INTRODUÇÃO
Em agosto de 2010 foi promulgada a Lei nº 12.305, a Política Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS). A partir de então, várias leis estaduais foram promulgadas, com o fim de
especificar como seria implementada a política, em esfera estadual.
A PNRS dispõe sobre o ciclo de vida dos produtos, a coleta seletiva, o controle social,
a destinação final ambientalmente adequada dos resíduos (reutilizáveis, recicláveis e
compostagem), a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos (lixo sem qualquer tipo
de aproveitamento), bem como sobre o gerenciamento e a gestão integrada dos resíduos sólidos,
1 Juíza do Trabalho, titular da Vara do Trabalho de Três Rios no estado do Rio de Janeiro; graduada pela
Faculdade Nacional de Direito da UFRJ; com pós-graduação "lato sensu" em Direito e Processo do
Trabalho pela Universidade Estácio de Sá; ex-docente da Universidade Santa Úrsula (RJ-RJ) e Unifeso
(Teresópolis, RJ); em licença para estudo, cursando o mestrado em Sociologia e Direito da UFF, no qual
integra o Núcleo de Estudos do Trabalho e das Organizações (NETO).
3
sobre a logística reversa, sobre os padrões sustentáveis de produção e consumo, a reciclagem e
a reutilização e sobre a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos,
estabelecendo o prazo de quatro anos para o fim dos lixões, aterros controlados e espaçados
(sem tratamento do chorume e gases).
Existirão somente aterros sanitários (com tratamento de chorume e aproveitamento
energético dos gases). Em tais aterros só haverá rejeitos, ou seja, não haverá material
reutilizável ou reciclável. Esse material deverá ter destinação correta, coleta seletiva e
beneficiamento e, para tanto cabe a responsabilidade compartilhada de todos os geradores de
resíduos e a logística reversa no ciclo de vida dos produtos. Para tanto, considera-se como
gerador inclusive o consumidor.
O prazo legal, contudo, se esgotou e vários lixões e aterros controlados ou espaçados
permanecem em funcionamento e a catação de lixo em tais locais continua sendo a rotina e o
ganha pão de uma pequena multidão (estimada em 500.000, pelo Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis – MNCR). Tal atividade possui, até mesmo,
CBO (código brasileiro de ocupações).
O que será dessas pessoas com o fim do seu local primeiro de trabalho, que um dia há
de acontecer?
A PNRS para solucionar o problema impõe como condição para o repasse de verbas
públicas federais destinadas ao saneamento a integração dos catadores de lixo nas ações que
envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, elencando essa
integração como um dos objetos para a consecução da Lei (BRASIL, 2010, art. 7º, inciso XII).
Como incentivo, chega a liberar de licitação a contratação de tais entidades pelos municípios
(BRASIL, 2010, art. 36, parágrafos 1º e 2º).
O MNCR adotou como bandeira a coleta seletiva, entretanto, essa prestação de serviço
contratada pelos municípios não atenderá à demanda social de emancipação financeira e
integração social dos catadores, tal como preconizado na PNRS pois, sendo o lixo reciclável e
reutilizável de responsabilidade de seus geradores, sequer deveriam chegar à coleta seletiva dos
municípios.
Como se verá, esse contingente é aproveitado pelos geradores de lixo reciclável e
reutilizável, sem qualquer custo, burlando sua responsabilidade pela correta destinação final de
seus resíduos e contrariando o princípio de solidariedade que norteia a República Federativa do
Brasil (BRASIL, 1988, art. 3º, inciso I), por meio de uma terceirização legalmente permitida,
mas que afronta os princípios do trabalho digno e do trabalho decente, configurando, portanto,
uma neo flexibilização inconstitucional.
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Esse trabalho visa a desenvolver esse raciocínio crítico, apontando, em um primeiro
momento, pelos dados de estudos oficiais, a inviabilidade econômico-financeira dessas
entidades para servirem como meio de emancipação econômica dos catadores e, em um
segundo momento, apontando o seu fadado fracasso como meio de inclusão social desse
contingente, ressaltando, em um terceiro momento, a inconstitucionalidade dessa política
pública, para, ao final, analisar criticamente como essa mão-de-obra deve ser aproveitada,
considerando, especialmente, que a limpeza pública é de responsabilidade dos municípios
(BRASIL, 1988, ar. 241 e BRASIL, 2007, arts. 3º, alínea “c” e 7º) e que cabe ao Estado, diante
de sua responsabilidade constitucional, fiscalizar e punir os infratores, devendo zelar pela
salvaguarda da saúde pública e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo a
educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação
do meio ambiente (BRASIL, 1988, art. 225).
2. DADOS CONSTANTES DE PESQUISAS OFICIAIS
Com efeito, há o registro de estudos levados a efeito pelo governo, que dão subsídios à
conclusão de que o fomento às associações e cooperativas em questão não é justificável ou
recomendável técnica, econômica ou financeiramente.
Primeiramente, quanto ao saneamento, com base na Pesquisa Nacional de Saneamento
Básico do IBGE, realizada em 2008 e publicada em 2010, foi verificado que em menos de 10%
dos municípios brasileiros tal atividade é feita através de cooperativas e associações de
catadores de lixo. O poder público terceiriza o dobro do pessoal permanente trabalhando na
coleta de lixo (IBGE, 2010, p. 26 e tabelas 84 e 109).
Em segundo, quanto à gestão dos RSU, no Relatório de Pesquisa sobre o Diagnóstico
dos Resíduos Sólidos Urbanos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (IPEA,
2012), foi constatado que 95% dos municípios brasileiros têm menos de 100 mil habitantes;
que em somente em 15% há coleta seletiva; tendo a conclusão do trabalho apontado, dentre
outros fatos, que a gestão dos RSU é dispendiosa e deficitária (IPEA, 2012, tabelas 1, 2, 13).
Em terceiro, quanto à reciclagem, no 10º Produto do Relatório Final de Avaliação
Técnica, Econômica e Ambiental das Técnicas de Tratamento e Destinação Final dos
Resíduos, da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento (FADE) da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), pesquisa realizada entre 2011 e 2013 e publicada em 2013 (FADE,
2013a), constatou-se que são reciclados apenas 1,4% do total dos resíduos recicláveis; só nas
regiões sudeste e sul a reciclagem é mais estruturada e viável.
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Os valores comercializados com as indústrias da reciclagem são 225% maiores do que
os comercializados com as associações e cooperativas, que estão no início da cadeia da
reciclagem e, pior, chegou-se à conclusão de que os gastos decorrentes da implantação,
operação e manutenção de centrais de triagem ainda são superiores às receitas auferidas com a
venda do material beneficiado.
As centrais de triagem manuais somente são viáveis em municípios onde a geração de
resíduos é pequena, resultando em baixos índices de produtividade e recuperação de materiais.
A utilização de centrais de triagem mecanizadas é indicada para municípios de médio a grande
porte (valendo lembrar que 95% dos municípios brasileiros têm menos de 100 mil habitantes,
sendo, portanto, de pequeno porte), devido à quantidade de resíduos que geram.
Outrossim, verificou-se que os custos unitários de operação das unidades de triagem são
superiores aos de implantação, independentemente do porte; os custos de operação em unidades
de pequeno porte são significativamente superiores aos de unidades de maior porte, devido ao
uso intensivo de mão de obra. A aquisição de terreno, construção de galpões, unidades
administrativas e baias de armazenamento, além da mecanização, conforme seu porte, implicam
em custos superiores aos de implantação, independentemente do porte.
Por fim, constatou-se, ainda, que a mão de obra é o elemento mais significativo na
composição dos custos de operação. Ela varia de 90%, nas unidades que usam catação manual,
a 60%, naquelas mecanizadas, de modo que a viabilidade de implantação de unidades de
triagem em municípios de pequeno porte só é possível ao se excluir os gastos com a mão de
obra e encargos, relacionando-se a remuneração dos catadores exclusivamente à sua
produção.
A implantação dessas unidades de triagem, portanto, só se mostra viável para instalação
de unidades de médio a grande porte, que atendam a municípios com mais de 250 mil habitantes
e que possuam programas efetivos de coleta seletiva e mercado de venda de materiais
recicláveis (FADE, 2013a, p. 31 e 85).
Em quarto, em relação aos países desenvolvidos, com base no 7º Produto do Relatório
Final sobre as Principais Rotas Tecnológicas de Destinação de Resíduos Sólidos Urbanos no
Exterior e no Brasil, da FADE da UFPE (FADE, 2013b), foi apurado que, na Europa, nos
Estados Unidos e no Japão, não há espaço para catação de lixo, justamente devido à coleta
seletiva, à responsabilidade compartilhada e à logística reversa, bem como ao sistema de
tarifação e às parcerias dos setores público e privado, na gestão dos RSU. (FADE, 2013b, p.
27).
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Em centrais de triagem o lixo já chega limpo, segregado e beneficiado, sendo uma
estação intermediária entre a coleta seletiva e a reciclagem propriamente dita. As unidades de
triagem participam da cadeia produtiva, fornecendo às indústrias recicladoras um resíduo já
segregado, limpo e beneficiado (FUNASA, 2006). Essa é a obrigação dos consumidores,
produtores, fabricantes, importadores, distribuidores e de todo e qualquer produtor de lixo: a
correta destinação dos resíduos. Ao governo incumbe a fiscalização do cumprimento da PNRS
e a implementação da coleta seletiva e dos aterros sanitários, sejam públicos, terceirizados ou
fruto de parcerias público-privadas.
Como situar a atividade da catação se os materiais reutilizáveis e recicláveis já devem
chegar aos postos de destinação limpos, segregados e beneficiados? Somente a coleta seletiva
não garantirá o sustento dos catadores associados ou cooperativados, pois não haverá venda de
material reciclável e reutilizável nas centrais de triagem.
3. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE, TRABALHO DIGNO E TRABALHO
DECENTE
Sob a ótica jurídica e sociológica, o fomento às associações e cooperativas de catadores
é igualmente injustificável na medida em que o trabalho dos associados e cooperados é, no atual
modelo, levado a efeito sem vínculo de emprego, ou seja, sem qualquer direito trabalhista e de
forma precária. São trabalhadores sem qualificação profissional e com baixo nível educacional,
sem função real na cadeia da responsabilidade compartilhada e da logística reversa,
estabelecidas na PNRS.
O IPEA levou a efeito uma pesquisa que resultou no relatório sobre a Situação Social
das Catadoras e dos Catadores de Material Reutilizável e Reciclável, publicado em 2013, que
utilizou como base, entre outros, o CENSO 2010, publicado pelo IBGE em 2012, e a Pesquisa
Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) de 2012.
Sendo ambas as pesquisas autodeclaratórias, perderam-se dados sobre os catadores sem
domicílio definido, de modo que não engloba a real totalidade da categoria.
Ainda assim, nessa pesquisa foram apurados dados importantes. No estudo Diagnóstico
sobre Catadores de Resíduos Sólidos realizado pelo IPEA em 2011, estimou-se com base em
dados de organizações públicas, empresariais e do próprio MNCR, que havia uma média de
500 mil catadores no país (organizados e não organizados em associações e cooperativas)
(IPEA, 2013, p. 44), ou seja 0.25% da população brasileira.
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A média de idade é de 40 anos e 25% do total encontram-se entre 18 e 29 anos (IPEA,
2013, p. 47); os homens representam 69% do total dos catadores; 66% são negros, sendo que o
maior percentual está na região norte, com 82% dos catadores (IPEA, 2013, p. 49).
A renda média auferida em um mês equivalia a 12% a mais do que o salário mínimo
nacional, sendo que na região sudeste a remuneração era um pouco maior do que essa média e
na região norte, um pouco menor (IPEA, 2013, p. 53). Nada foi mencionado a respeito da carga
horária semanal e jornada de trabalho necessárias para que os catadores alcançassem essa
média remuneratória. As mulheres recebem em média 32% menos do que a média
remuneratória dos homens e os catadores brancos recebem em média 22% mais do que os
catadores negros (pretos e pardos) (IPEA, 2013, p. 54); dos catadores, 4,5% vivem em
condições de extrema pobreza, sendo que na região sudeste o percentual é de 2,2% e na região
nordeste, 8,4% (IPEA, 2013, p. 55).
Quanto aos idosos, embora no país a média de cobertura previdenciária dessa população
chegue a 74,9%, a cobertura dos catadores idosos alcança somente 57,8% (IPEA, 2013, p. 57).
Já em relação aos catadores em atividade, a média nacional de contribuição previdenciária é de
15,4%, apesar de ser uma “atividade sujeita a tantos riscos físicos e psicológicos como esta”,
tendo a região sul o maior percentual, na base de 25,9% e as regiões norte e nordeste os menores,
com 7,5 e 6,2%, respectivamente (IPEA, 2013, p. 59).
Entre os catadores o índice de analfabetismo atingiu 20,5% (mais do que o dobro da
média nacional), despontando a região nordeste com 34% e a sudeste com 13,4% (IPEA, 2013,
p. 60). Já entre os catadores com 25 anos ou mais de idade, somente 24,6% terminaram o ensino
fundamental (menos da metade da média geral da população brasileira), sendo que, quanto à
conclusão do ensino médio, a média cai para 11,4%, contra a média nacional de 35,9% para a
mesma população (acima de 25 anos). As menores médias ficaram com sul e nordeste e as
maiores na região sudeste (IPEA, 2013, p. 61).
Apenas 49,8% das residências de catadores possui esgotamento sanitário adequado,
contra 66,7% da média brasileira em geral (IPEA, 2013, p. 61); sendo que dessa média relativa
aos catadores, 75,4% diz respeito a residências de catadores na região sudeste, sendo
baixíssimo o índice para as demais regiões, dentre as quais a pior é a região norte, com apenas
12,3% (IPEA, 2013, p. 62).
Somente 38,6% possuem relação contratual, seja com carteira de trabalho assinada, seja
pelo Regime Jurídico Único, concentrados na região sudeste, com 45%. Apenas 10% são
associados ou cooperados (IPEA, 2013, p. 51). E para tal fato há um registro interessante:
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[...] dadas as especificidades que caracterizam a cadeia de valor da reciclagem,
dificilmente os catadores conseguirão auferir melhores remunerações e maior
poder de negociação, seja com outras empresas na comercialização, seja com
o poder público na formação de parcerias, sem que antes consigam alcançar
um maior grau de organização interna de sua força de trabalho. (IPEA, 2013,
p. 52).
Mas o mapeamento mostra que “essa categoria profissional, além de ser fortemente
heterogênea em termos de inserção no mundo do trabalho, constitui o elo mais vulnerável na
cadeia de valor da reciclagem”. A maioria é constituída de homens, negros, “com baixa
escolaridade, baixa cobertura previdenciária e residentes em áreas urbanas com deficiências de
infraestrutura domiciliar graves”, ou seja, sem esgotamento sanitário adequado (IPEA, 2013, p.
65).
A PNRS impôs a extinção dos lixões, aterros controlados ou espaçados; deveria,
portanto, dar “destinação” a esse extranumerário e a solução apresentada é a tentativa de sua
proletarização, mas sem vínculo empregatício ou estatutário, em benefício de um poder público
e de uma sociedade irresponsáveis ambientalmente.
Os catadores, ainda que associados ou cooperados, nos atuais moldes continuarão a ser
os únicos responsáveis pelos seus destinos, sem terem a quem e de quem reclamar, pelas suas
doenças ocupacionais, pelos acidentes de trabalho, pela exaustiva jornada, pelo ambiente
insalubre; alijados de seu direito de ação, constitucionalmente garantido no artigo 5º, inciso
XXXV, da Constituição Federal e suportando um ônus que deveria ser de toda a sociedade
geradora de lixo, não só conforme a PNRS, mas por força do princípio da solidariedade
constitucionalmente previsto no artigo 3º, inciso I da Constituição Federal Brasileira (CFB).
Desnecessário demonstrar que os trabalhos escravo e degradante afrontam princípios,
valores, fundamentos e objetivos previstos e disciplinados na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), que em seu artigo XXIII estabelece que “toda pessoa tem direito ao
trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção
contra o desemprego” e que “toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e
satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a
dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social”;
que no seu artigo XXIV estabelece que “toda pessoa tem direito ao repouso e lazer, inclusive à
limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas”; e em seu artigo
XXV, que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez,
9
velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”. Nosso país é
um dos Estados signatários da DUDH.
Quem representa, quem vela, quem implementa os direitos fundamentais a um trabalho
digno e decente dos catadores “associados ou cooperados”?
O trabalho decente é o eixo central para o qual convergem os quatro objetivos
estratégicos da Organização Internacional do Trabalho (OIT): (1) respeito às normas
internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho; (2)
promoção do emprego de qualidade; (3) extensão da proteção social; e (4) fortalecimento do
diálogo social.
E a nossa Constituição Federal, incorporando as diretrizes da DUDH e da OIT em seus
artigos 1º, 3º e 4º, que tratam dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil,
assegura o respeito à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho (CFB, art.
1º, incisos III e IV), sendo que para a concretização dos objetivos fundamentais da nossa
república, aponta a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, a erradicação da
pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (CFB, art. 3º,
incisos I e III); enaltecendo a prevalência dos direitos humanos (CFB, art. 4º, inciso II).
Em maio de 2006, o governo brasileiro lançou oficialmente a Agenda Nacional de
Trabalho Decente (ANTD). Desde então, as áreas de atuação da OIT no Brasil têm se articulado
em torno das três prioridades da agenda: (1) gerar mais e melhores empregos, com igualdade
de oportunidades e de tratamento; (2) erradicar o trabalho escravo e eliminar o trabalho
infantil, em especial em suas piores formas; e (3) fortalecer os atores tripartites e o diálogo
social como um instrumento de governabilidade democrática.
A partir da ANTD foi elaborado o Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente
(PNETD) (2006), que representa uma referência fundamental para a continuidade do debate
sobre os desafios de fazer avançar as políticas públicas de emprego e proteção social:
O seu objetivo é o fortalecimento da capacidade do Estado brasileiro para
avançar no enfrentamento dos principais problemas estruturais da sociedade e
do mercado de trabalho, entre os quais se destacam: a pobreza e a
desigualdade social; o desemprego e a informalidade; a extensão da
cobertura da proteção social; a parcela de trabalhadoras e trabalhadores
sujeitos a baixos níveis de rendimentos e produtividade; os elevados índices
de rotatividade no emprego; as desigualdades de gênero e raça/etnia; as
condições de segurança e saúde nos locais de trabalho, sobretudo na zona
rural.
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O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC),
incorporado à nossa legislação pátria pelo Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992, em seu artigo
6º reconhece o direito de toda pessoa ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho
livremente escolhido ou aceito, cabendo aos Estados-partes tomar todas as medidas apropriadas
para salvaguardar esse direito, reconhecendo o direito de toda pessoa de gozar de condições de
trabalho justas e favoráveis (BRASIL, 1992).
A indústria do lixo (da reciclagem) possui um próspero mercado, no qual os catadores
de lixo de países subdesenvolvidos são os “cabeça de bagre”. São a mão de obra gratuita para
o trabalho sujo. Ou seja, análogo ao da escravidão. São os escravos modernos. Inseridos em
uma logística perversa no ciclo de vida dos produtos e da irresponsabilidade compartilhada
dos geradores de lixo.
O incentivo às associações e cooperativas de catadores de lixo pode, portanto, ser
comparado ao incentivo às sweatshops, nas quais o explorador do trabalho degradante é o
próprio poder público, que sabe das precárias condições de trabalho dos catadores e do
insucesso a que estão fadadas suas associações, mas que fomenta tal trabalho, por custo zero,
sem quaisquer garantias trabalhistas e ao relento da seguridade social.
Sabido é que o sweat system2 vem sendo combatido duramente pelas autoridades
nacionais e internacionais, por tratar-se de trabalho em condições análogas às de escravidão no
meio urbano, isto é, trabalho degradante.
E tal fato fica muito claro no depoimento de Sebastião Carlos dos Santos, no
emblemático I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado na Universidade
Federal Fluminense (UFF) em 2005:
Mais uma: “a valorização e o reconhecimento da autogestão”. Valorização por
quê? Pelo trabalho que prestamos à sociedade, ao poder público, ao meio
ambiente, às empresas geradoras, porque todo detrito, todo o lixo gerado, as
empresas recebem para coletar. E o catador que faz o trabalho certo, que dá
destino aos resíduos, que move esse grande ciclo econômico que é a
reciclagem dentro do país, não recebe pelo serviço prestado. As empresas
recebem. Nós que fazemos o trabalho correto, que destinamos corretamente,
não recebemos. (HERCULANO; PACHECO, 2006, p. 223).
2 Exploração de mão de obra em lugares (sweatshops) e condições socialmente inaceitáveis para os
trabalhadores, sujeitos a trabalhos extenuantes, em condições precárias de salubridade e segurança, mediante
pagamentos irrisórios que os obrigam a se manterem vinculados aos contratantes em troca de abrigo e comida,
sem qualquer proteção trabalhista e previdenciária. Normalmente acontece com estrangeiros ilegais em grandes
fábricas e indústrias. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Sweatshop
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O direito pátrio reconhece a centralidade do trabalho e sua qualificação como espaço da
integração do ser humano com o meio em que vive, como forma de dar concretude à cidadania,
à dignidade do cidadão, basilar à soberania interna.
Traz para o direito interno a concepção de trabalho digno de que tratam os direitos
humanos, através do reconhecimento do direito ao trabalho decente e a todos os direitos sociais
estatuídos nos artigos 6º ao 11º da CFB, nos quais resta consubstanciado o primado do trabalho
como fundamento da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988, art. 1º, inciso IV),
conclusão a que chegamos utilizando como fonte para o desenvolvimento do raciocínio o artigo
de Rosenfield e Pauli (2012).
A Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012, por sua vez, dispõe sobre a organização e o
funcionamento das cooperativas de trabalho e estabelece como princípios e valores a adesão
voluntária e livre; a educação, formação e informação; a preservação dos direitos sociais, do
valor social do trabalho e da livre iniciativa; e a não precarização do trabalho (BRASIL, 2012,
incisos I, V, VIII e IX).
Sem educação e saúde não há coalizão, não há informação, não há profissionalismo
bastante. E, falando em profissão, a “categoria” só pode ser assim considerada, por possuir um
CBO (IPEA, 2013, p.42). Sociologicamente, contudo, não se pode falar em profissão, pois não
há aptidão especial, ofício específico, credencial, especialização ou regulamentação que
justifique a classificação da atividade de catação de lixo como “profissão”.
A PNRS é exemplar ao dispor com maestria sobre os meios e modos para o
gerenciamento de resíduos sólidos, sobre as responsabilidades dos geradores e do poder público
e sobre os instrumentos econômicos oferecidos para a consecução de tal fim.
Dispõe sobre todos esses aspectos, impondo aos geradores de lixo reutilizável ou
reciclável suas responsabilidades e prevendo sanções para sua inobservância. Das definições
constantes da PNRS depreende-se que nos aterros, sejam controlados ou sanitários, não deverá
haver resíduos, mas tão somente rejeitos e, portanto, nada reutilizável ou reciclável.
A coleta seletiva, a logística reversa e a responsabilidade compartilhada implicam em
que o material reciclável e reutilizável deva ser segregado pelos consumidores e sua destinação
final passa a ser de responsabilidade não só dos consumidores, como dos empreendedores,
fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes.
O ciclo de vida do produto inclui o consumo e a disposição final e os consumidores são
considerados “geradores de resíduos sólidos” (PNRS, art. 3º, incisos IV e IX).
Entende-se por responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos:
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[...] conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes,
importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares
dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para
minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para
reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental,
decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei. (PNRS, art. 3º,
inciso XVII).
Entende-se por logística reversa:
[...] instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um
conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a
restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento,
em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos ou outra destinação final
ambientalmente adequada. (PNRS, art. 3º, inciso XII).
Por fim, entende-se por destinação final ambientalmente adequada a “destinação de
resíduos que inclui a reutilização, a reciclagem, a compostagem, a recuperação e o
aproveitamento energético ou outras destinações admitidas pelos órgãos competentes” (PNRS,
art. 3º, inciso VII).
As associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis são,
em última análise, fadadas ao insucesso, supérfluas ao ciclo de vida dos produtos recicláveis e
reutilizáveis, além de acobertam o trabalho precário, em afronta, no que tange a princípios
constitucionais elementares e à própria lei das cooperativas.
Sob esse aspecto, a PNRS faz crer que está a fornecer meios e modos de os catadores
reforçarem sua identidade, como agentes ambientais, e que esta seja firmada socialmente;
contudo, na inviabilidade econômico-financeira das associações e cooperativas cujo incentivo
fomenta, legará a tais indivíduos nada mais do que a própria sorte, para continuarem suas
trajetórias de vida, suportando o ônus que incumbe a todo gerador de lixo, à sociedade como
um todo e ao Estado, portanto.
A realidade discrepa dos conceitos criados pelos legisladores e estudiosos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Zigmunt Bauman, em Em Busca da Política (2000, p. 36) coloca que a defesa ao
neoliberalismo é o “reinado absoluto da flexibilidade”, que visa a “precarizar” e assim
incapacitar as pessoas que possam encabeçar qualquer fonte de resistência; tornar precária a
posição daqueles que são afetados e mantê-la precária. Medidas como a substituição de
contratos permanentes e legalmente protegidos por empregos ou serviços temporários que
permitem demissão incondicionada, rotatividade, terceirização e o tipo de emprego onde a
13
política de promoção e aumento salarial priorizam não a competência, mas os resultados obtidos
por cada um no momento, assim como a indução à competição entre setores e departamentos
da mesma empresa, pulveriza os movimentos de união dos empregados, produzindo uma
situação de incerteza endêmica e permanente. Tal estratégia alcança mesmo os mais elevados
níveis da hierarquia empresarial – o que significa a perda do meio de subsistência, dos títulos
sociais, do lugar na sociedade e da dignidade humana que os acompanha.
Se a precarização das condições de trabalho é um tema urgente e universal para os que
possuem e almejam manter seus postos de trabalho primeirizado, muito mais grave é a
imposição da precarização para aqueles que já vivem em condições precárias de humanidade.
A flexibilização das relações de trabalho implica em flexibilização da própria
identidade. A estrada que parte do bem-estar para o trabalho leva da segurança à insegurança
ou de uma menor para uma maior insegurança. Sendo essa estrada o que é, estimular o maior
número possível de pessoas a tomá-la combina bem os princípios da “economia política da
insegurança”, tornando em tese aceitável e até louvável o fomento às associações e cooperativas
de catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis. Mas tão somente de acordo com esses
princípios “econômicos”, inserindo os catadores na cadeia da logística perversa ambiental e da
irresponsabilidade social compartilhada.
Com efeito, o atual Wellfare State não comporta mais a função que originariamente lhe
foi aclamada. A privatização do que vem a ser o “interesse público”, a fragmentação dos
problemas sociais, não poderia redundar, para os catadores, em outra saída que não uma saída
legalista e utilitarista.
Flagrantemente inconstitucional, portanto, o artigo 7º, inciso XII da PNRS, por afrontar
não só o princípio da solidariedade mas, igualmente, direitos fundamentais do catador, inclusive
ao da livre associação e o direito ao trabalho decente. O referido artigo não passa de uma norma-
álibi, segundo a classificação de Kindermann adotada por Marcelo Neves (apud, NEVES, 2011,
p. 31), pois, diante da necessidade ambiental da extinção dos lixões, criou-se um “clamor”
quanto à sorte dos catadores que dali tiram sua subsistência, o que merecia atenção e uma
solução política, pelo legislador.
Também pode-se dizer que tal dispositivo possua um efeito dilatório, seguindo o
raciocínio do referido autor, no que tange à classificação da legislação simbólica, se pensarmos
que a indústria geradora de lixo não é cobrada a investir na logística reversa e que o próprio
governo ainda não foi capaz de implementar concretamente a Política Nacional de Educação
Ambiental (BRASIL, 2008) (MENEGUZZO; MENEGUZZO, 2013) e a coleta seletiva, de
modo que a responsabilidade compartilhada resta prejudicada.
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Por outro lado, para a indústria da reciclagem entrar no mercado, barganha os menores
custos possíveis para sua atuação, valendo-se, igualmente, da mão-de-obra dos catadores, a
preços irrisórios.
Fato é que, com a educação ambiental, a coleta seletiva (uma das bandeiras do MNCR,
conforme nos informa a Herculano e Pacheco) (2006, p. 224), assim como com a logística
reversa e a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, não haverá material
reutilizável e reciclável nos aterros sanitários, que só recebem rejeitos, uma vez que a
destinação final de materiais reutilizáveis e recicláveis inclui a reutilização, a reciclagem, a
compostagem, a recuperação e o aproveitamento energético ou outras destinações admitidas
pelos órgãos competentes. As centrais de triagem não necessitarão de “catação” pois o lixo lá
chegará, limpo, segregado e beneficiado.
Assim sendo, o contingente dos catadores deverá ser dignamente contratado, mediante
contratos regulares de trabalho, seja pelos responsáveis pela logística reversa de seus produtos,
seja pela indústria da reciclagem, seja pelo Poder Público, a quem incumbe a limpeza urbana,
pois são serviços essenciais à efetivação e consecução das demais disposições da PNRS e que
podem, estes sim, absorver o contingente dos catadores de lixo existentes, até que a categoria
seja extinta, juntamente com os lixões e o trabalho degradante.
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