narrativas audiovisuais no piaui: cultura e sociedade...

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ROSA EDITE DA SILVEIRA ROCHA NARRATIVAS AUDIOVISUAIS NO PIAUI: Cultura e Sociedade na Linguagem do Cinema Universidade Metodista de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social São Bernardo do Campo SP, 2011

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ROSA EDITE DA SILVEIRA ROCHA

NARRATIVAS AUDIOVISUAIS NO PIAUI:

Cultura e Sociedade na Linguagem do Cinema

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo – SP, 2011

ROSA EDITE DA SILVEIRA ROCHA

NARRATIVAS AUDIOVISUAIS NO PIAUI:

Cultura e Sociedade na Linguagem do Cinema

Dissertação apresentada em cumprimento parcial

às exigências do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação social, da UMESP – Universidade

Metodista de São Paulo, para obtenção do grau de

Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Moraes

Gonçalves

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo – SP, 2011

FOLHA DE APROVAÇÃO

A dissertação NARRATIVAS AUDIOVISUAIS NO PIAUI: Cultura e Sociedade na

Linguagem do Cinema, elaborada por Rosa Edite da Silveira Rocha, foi defendida no dia ___

de ________ de 2011, tendo sido:

( ) Reprovada

( ) Aprovada, mas deve incorporar nos exemplares definitivos modificações sugeridas pela

banca examinadora, até 60 (sessenta) dias a contar da data da defesa.

( ) Aprovada

( ) Aprovada com louvor

Banca Examinadora:

________________________________________________

________________________________________________

________________________________________________

Área de Concentração: Processos Comunicacionais

Linha de Pesquisa: Ciência e Tecnologia

Projeto Temático: Narrativas Audiovisuais no Piauí: Cultura e Sociedade na Linguagem do

Cinema

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha família, em especial meus irmãos e pais, pelos

ensinamentos que me fizeram sempre uma mulher de força e perseverança, e ao meu marido,

exemplo de postura ética profissional e pessoal. Além da pequena semente que desde já

alimenta meu espírito de fé e coragem. Vocês são meus motivos de viver.

AGRADECIMENTOS

A Deus, que me dava forças para me manter acordada, mesmo quando queria dormir.

À minha mãe, pelo exemplo de vida, e meus irmãos, que suportaram meu (dês)ânimo e

minha (im)paciência para o resto do mundo durante os principais meses da construção da

dissertação. Ao meu pai, que me ensinou a amar a leitura e o cinema.

Ao Robson, meu marido, que aguentou todas as inúmeras conversas (monólogos e

diálogos) sobre o tema; acompanhou-me nas entrevistas, me ajudou indiretamente nas

decupagens, me arrumou livros impossíveis e me segurou sempre que eu ameaçava cair.

Obrigada!

Ao corpo docente da Umesp, em especial Fabio Josgrilberg e Sandra Reimão, pela

amizade e pelos ensinamentos; e com todo carinho um agradecimento especial à minha

cuidadosa e carinhosa orientadora Elizabeth Moraes Gonçalves, que me engrandeceu como

pessoa, me ensinou a ser pesquisadora e, principalmente, pela generosidade.

Agradeço, ainda, aos professores J.S. Faro, da Umesp e Arthur Autran, da UFSCAR,

pela ajuda inestimável na minha qualificação, me dando rumos importantes e maior segurança

na exploração do meu tema.

Aos amigos e colegas do programa de pós–graduação da Umesp: Ranielle Leal, Tyciane

Vaz, Francilene Oliveira, Tatiane Eulálio, Marcos Paulo e Cristiane Portela pelas conversas

noite à dentro, incentivos, livros emprestados, pelo estímulo e interlocuções constantes.

Aos amigos de longas datas que mesmo quando distante continuaram próximos: Patrícia

Vaz, Clarisse Castro, Victor Castelo Branco, George Lima e Carlos Alberto.

Ao amigo e mestre, professor Dr. Paulo Fernando de Carvalho Lopes, pelo espelho

acadêmico e pela amizade.

Para finalizar, esta pesquisa não teria respaldo se não fosse o apoio e a paciência dos

entrevistados para este estudo. Agradeço, portanto, a cada um deles pela ajuda concedida,

pelas dúvidas tiradas e pelo tempo disponível para receber esta pesquisadora. Em especial aos

entrevistados: professor Dr. Luis Carlos Sales, pela disponibilidade de tempo nos vários dias

que ficamos juntos digitalizando documentos e gravando filmes, e o engenheiro Valderi

Duarte, por me abrir as portas de sua casa, por ser franco e verdadeiro e se dispor a me ajudar

com suas documentações guardadas a sete chaves.

A Capes, pelo financiamento.

LISTA DE IMAGENS DOS FILMES

Figura 1 – Cena do filme Adão e Eva, do Paraíso ao Consumo, protagonizado por Torquato

Neto (Adão) e Claudete Dias (Eva). Filme dirigido por Carlos Galvão, em 1972. Fotografia

retirada do livro KRUEL, Kenard. Torquato Neto: ou a carne seca é servida. 2ª Ed. Teresina:

Zodíaco, 2008.

Figura 2 - Cena do filme Adão e Eva, do Paraíso ao Consumo, protagonizado por Torquato

Neto (Adão) e Claudete Dias (Eva). Filme dirigido por Carlos Galvão, em 1972. Fotografia

retirada do livro KRUEL, Kenard. Torquato Neto: ou a carne seca é servida. 2ª Ed. Teresina:

Zodíaco, 2008.

Figura 3 – Cena do filme O Terror na Vermelha, roteirizado, dirigido e produzido por

Torquato Neto. Na cena, o serial killer, protagonizado por Edmar Oliveira, mata mais uma de

suas vítimas. Imagem tirada do filme em Super-8, digitalizado.

Figura 4 – Cena do filme David a Guiar, dirigido por Durvalino Couto e protagonizado por

David Aguiar. Na imagem , o Inspetor Pereira, feito por Francisco Pereira, que perseguia os

jovens cabeludos.

Figura 5 – Cena do filme David a Guiar, onde duas garotas levam uma camiseta com o nome

do bar frequentado pelos jovens marginais da década de 1970. O Bar Gellatti. Uma delas,

usando uma mini-saia, o que não era muito bem visto na época.

Figura 6 – Cena do filme Miss Dora, dirigido por Edmar Oliveira, onde aparecem as frases

“Ordem, seu lugar, sem rir, sem falar”.

Figura 7 – Cena do filme Miss Dora, dirigido por Edmar Oliveira, onde está a imagem da

fábrica que, segundo o próprio diretor e roteirista do filme, remete aos filmes de Einsenstein.

Figura 8 – Cena do filme Por Enquanto, dirigido por Carlos Galvão, onde a garota faz

posições sensuais e, olhando para a câmera, parece chamar o espectador. O filme foi feito em

uma viagem ao Rio de Janeiro.

Figura 9 – Cena do filme Povo Favela, dirigido por Valderi Duarte. Na cena, criança suja

representando a favela e a pobreza que o diretor e roteirista queria apresentar. O filme foi feito

em Super-8, no bairro Poty Velho, em Teresina.

Figura 10 – Cena do filme Pai Herói, primeiro do grupo Mel de Abelha. O filme conta a

historia de família humilde que ganha seu sustento do dia-a-dia tocando dentro de ônibus, nas

ruas da cidade.

Figura 11 – Cena do filme Relógio de Sol, dirigido por Luis Carlos Sales. Ganhador do

premio “Melhor Didático” na VI Jornada de Cinema Super-8 no Maranhão.

Figura 12 – Folheto de divulgação da VI Jornada de Cinema no MA, 1982.

Figura 13 – Cena do filme Espaço Marginal, um dos mais comentados do grupo Mel de

Abelha pelo seu teor crítico, agora não apenas às questões econômicas e sociais, mas políticas

da cidade de Teresina.

Figura 14 - Cena do filme Dia de Passos, filmado na cidade de Oeiras- Piauí. Acompanha a

histórica procissão de Bom Jesus de Passos na primeira capital do Piauí.

Figura 15 – Cena do curta-metragem Pagode de Amarante, dirigido por Dácia Ibiapina, do

Grupo Mel de Abelha. Documenta uma dança folclórica piauiense já em vias de extinção,

sendo, antigamente, uma forma de lazer muito freqüente naquela cidade e que, agora, tende a

acabar por falta de interesse dos próprios organizadores desta tradição popular.

Figura 16 - Cena do filme Da Costa e Silva, documentário que apresenta aspectos da vida e

obra do poeta piauiense Antonio Francisco da Costa e Silva (1885-1950). Dirigido pelo grupo

Mel de Abelha.

Figura 17 - Paulo Emílio na capa de publicação do CNC de 1988.

Figura 18 - Padre Carlos Bresciani, em 1987.

Figura 19 - Publicação da Mostra de Cinema Piauiense de 1986/ Sinopse do filme Pau Torto,

de José Wilson

Figura 20 - Publicação da 9ª Jornada de Cinema e Vídeo no Maranhão, hoje Festival

Guarnicê/ Sinopse do filme Um Jeito Estranho de Amar, de José Wilson

Figura 21 - Jornal da Manhã, Teresina, 25 de outubro de 1986

Figura 22 - Jornal Diário do Povo, Teresina, 10 de fevereiro de 1988

Figura 23 - Edição nº1 do Jornal Flor do Mal

Figura 24 - Edição nº3 do Jornal Flor do Mal e poema escrito por Torquato Neto

Figura 25 - Capa da Revista Navilouca, 1974

Figura 26 - Edição única da Revista Navilouca, 1974, pags. 58 e 67

Figura 27 - Edição única da Revista Navilouca, 1974, pags. 09 e 10

Figura 28 - Capas dos Jornais O Estado Interessante dos meses de março, abril, maio e junho

de 1972

Figura 29 - Capa da segunda edição do jornal alternativo Gramma, 1972

Figura 30 - Jornal alternativo Gramma 1972, pag. 04 e 05

Figura 31 - Publicações de 1986 referentes às mostras de cinema francês e nacional do

Cinema de Arte

Figura 32 - Revista de Cinema, 1984, capa.

Figura 33 - Capa do informativo do 13º Guarnicê de Cine-Vídeo, 1990

Figura 34 - Jornal da Manhã, 11 de Janeiro de 1986.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------ 14

CAPITULO I – Influências marginais: Torquato Neto e a Tropicália ------------- 26

1.1 O Cenário Piauiense --------------------------------------------------------------- 33

1.2 Um Anjo Torto --------------------------------------------------------------------- 40

CAPÍTULO II - O social cinemanovista nas produções locais ---------------------- 59

2.1 Cinema Novo e suas influências ------------------------------------------------- 62

2.2 Mel de Abelha e o social nas produções cineclubistas ------------------------ 69

CAPÍTULO III – Influenciadores e Influenciados --------------------------------------94

3.1 Cineclube Teresinense ------------------------------------------------------------- 96

3.1.1 Um homem chamado José Wilson ----------------------------------------- 105

3.2 Cinema de Arte Herbert Parente (Cineclube José Medeiros) ---------------- 110

3.3 A imprensa alternativa ------------------------------------------------------------ 111

3.2.1 Navilouca --------------------------------------------------------------------- 115

3.4 A imprensa alternativa no Piauí ------------------------------------------------- 117

3.5 Mostras de cinema e publicações específicas --------------------------------- 122

3.6 Encontros culturais e festivais --------------------------------------------------- 124

3.7 O movimento Super-8 e as influências para o cinema piauiense ----------- 129

3.8 A UFPI e o Setor de Cinema ---------------------------------------------------- 131

CAPÍTULO IV – Cinema piauiense e os discursos sociais ------------------------- 133

CONSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------------------------------------------- 145

REFERÊNCIAS ------------------------------------------------------------------------------ 148

ANEXOS -------------------------------------------------------------------------------------- 154

Rosa Edite da Silveira Rocha

Narrativas Audiovisuais no Piauí: Cultura e Sociedade na Linguagem do Cinema

RESUMO

O trabalho propõe uma investigação sobre a produção audiovisual piauiense, buscando

entender como são negociadas as questões culturais e as especificidades das narrativas

apresentadas no desenvolvimento histórico da cultura visual piauiense. Analisa-se, assim, as

questões discursivas, imagéticas e tecnológicas que abordam aquela realidade cultural

influenciada pelas vanguardas cinematográficas brasileiras, no caso o cinema novo e o cinema

marginal. A pesquisa tem como corpus as produções superoitistas feitas a partir de 1972 até

meados 1985, quando se encerra um segundo ciclo cinematográfico. Este estudo, de natureza

qualitativa, emprega pesquisa bibliográfica e documental, com apoio em entrevistas e análise

de documentos da época para o estudo das narrativas apresentadas pelas produções

audiovisuais. Leva-se em consideração a influência das questões social, política, tecnológica e

econômica do Piauí na construção desses filmes. Conclui-se que as práticas culturais e os

recursos tecnológicos constituem uma cultura visual que representa as angústias e críticas

locais e traduzem a tipificação do sujeito no Piauí.

Palavras Chave: Comunicação; Produção Audiovisual; História; Tecnologia; Piauí.

RESUMEN

El estudio propone una investigación sobre la producción audiovisual de Piauí, buscando

comprender como son negociadas las cuestiones culturales y las especificidades de las

narrativas presentadas en el desarrollo histórico de la cultura visual piauiense. Se analizan,

así, las cuestiones discursivas imaginería y tecnológicas que discuten aquella realidad cultural

influenciada por las vanguardias cinematográficas brasileñas, en el caso el cine nuevo y el

cine marginal. La investigación trae como corpus las producciones realizadas en el formato

Súper-8, hechas a partir de 1972 hasta mediados de 1985, cuando se encierra un segundo

ciclo cinematográfico. Este estudio, de naturaleza cualitativa, emplea investigación

bibliográfica y documental, con apoyo en entrevistas y análisis de documento de la época para

estudio de las narrativas presentadas por las producciones audiovisuales. Se considera la

influencia de las cuestiones sociales, políticas, tecnológicas y económicas de Piauí en la

construcción de estos videos. Se concluye que las prácticas culturales y los recursos

tecnológicos constituyen una cultura visual que representa las angustias y críticas locales y

traducen la tipificación del sujeto en Piauí.

Palabras-Clave: Comunicación; Producción Audiovisual; Historia; Tecnología; Piauí

ABSTRACT

This study suggests a research on the audio-visual production from Piauí, aiming to

understand how the cultural matters and the narratives singularities presented during the

historical development of the visual culture from Piauí are dealt. Therefore, the discursive,

imagistic and technological matters addressing cultural realities that influenced the Brazilian

avant-garde cinema, i.e. Cinema Novo and Cinema Marginal, were analyzed. The sources for

this research are Super-8 mm Film productions shot from 1972 to the mid 1985‟s, when a

second cinematographic cycle comes to an end. This qualitative study uses bibliographical

and documental researches, supported by interviews and document analysis from that time to

study the audiovisual productions. Piauí‟s social, political, technological and economic

matters were taken in account when those videos where made. It is concluded that cultural

practices and technological resources are a visual culture that represents the local anxieties

and criticisms and reflects the characterization of the people from Piauí.

Keywords: Communication; Audiovisual Production; History; Technology; Piauí

INTRODUÇÃO

No final da década de 1960 o mundo se via diante de uma explosão de novas lutas

sociais, onde estavam envolvidas questões de gênero, raça, meio ambiente, cultura,

sexualidade. No Brasil, essas lutas sociais refletiram tanto ideológica quanto culturalmente

reverberando em manifestações artísticas das mais diferentes naturezas: concretismo,

tropicalismo, cinema novo, cinema marginal, dentre outros. Essas questões culturais, políticas

e ideológicas vividas nacionalmente percorreram, no Piauí, caminhos paralelos ao

desenvolvimento cultural da região. Teatro, literatura, cinema, festas populares,

transformações na educação; uma série de mudanças ocorria na sociedade daquele estado e

todas elas, enquanto práticas sócio-culturais se cruzavam e promoviam modificações na

cultura piauiense como um todo.

Os principais movimentos cinematográficos do Brasil e do mundo foram influenciadores

da arte em cada região. Eles fizeram história, acompanharam o desenvolvimento de cada

localidade, seguiram caminhos em paralelo com as demais expressões artísticas e, algumas

vezes, se mostraram essenciais para o desenvolvimento da arte. O Cineclubismo, por

exemplo, teve seus primeiros adeptos no Brasil por volta de 1930. No Piauí, ele surgiu apenas

em 1962 onde discussões e práticas cinematográficas puderam ser realizadas - apesar das

discussões existirem desde esse período, as práticas cineclubistas só começaram no final da

década de 1960 quando os coordenadores do Cineclube Teresinense, em sua maioria padres

do Colégio São Francisco de Sales- Diocesano, investiram em melhor estrutura. Em meio às

poucas condições estruturais, grupos de jovens, advindos do Cineclube Teresinense, buscaram

interpretações pessoais e construções que refletissem suas posições políticas e as diferentes

formas de manifestação.

Foi na década de 1970 que o cinema piauiense iniciou seu primeiro ciclo de produção

cinematográfica. Apesar de tardia em relação a boa parte do resto do país, esse primeiro ciclo

de produção cinematográfica no estado do Piauí construiu uma cultura fílmica que influenciou

jovens amantes da sétima arte nos anos que sucederam e, ainda nos dias de hoje, incentivam a

construção de novos filmes dentro do estado. Eles fizeram história e criaram movimentos

cinematográficos independentes, nem sempre acompanhando o cinema nacional.

Em sua primeira década, as primeiras produções cinematográficas piauienses traziam, em

sua construção narrativa, representações sociais e políticas do seu período histórico. Os filmes

eram apresentados em sessões de cinema em cineclubes e nas universidades da capital,

Teresina, de onde saíram muitos dos formadores de opinião da sociedade local. Essas

produções eram feitas em formato Super- 8 e de forma amadora por jovens interessados na

sétima arte. Foram feitos mais de 30 filmes durante as décadas de 1970 e 1980, em sua

maioria curta-metragem.

Nesse meio tempo, duas vertentes cinematográficas chamaram atenção da pesquisadora

pelas suas linhas ideológicas e as posturas de produção dos filmes. Uma vertente, com

características que lembram o Cinema Marginal, chamou-se de Torquateana; a segunda, com

características mais profissionais e traços que remetiam ao Cinema Novo, chamou-se de

Cineclubista. Ambas tinham o propósito de externar os valores e as posturas seguidas pelos

cineastas, expressando a situação política, cultural e social em que viviam. Há ainda um

terceiro grupo de jovens que freqüentava o Cineclube Teresinense que, em suas produções,

não há características que remeta a nenhuma das duas vertentes já citadas. São filmes em

formato ficção que buscavam polemizar em seus temas, suas idéias produtivas e nas imagens

fílmicas. Eram filmes produzidos, roteirizados e ainda protagonizados por José Wilson.

A vertente Torquateana era encabeçada pelos descendentes artísticos do jornalista

piauiense Torquato Neto. O artista saiu do Piauí ainda muito jovem para morar na Bahia e,

posteriormente, no Rio de Janeiro. Em suas andanças conviveu com artistas como Gilberto

Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa, Macalé, dentre outros. Com estes, deu início a um

movimento artístico que pretendia reformar a Música Popular Brasileira: o Tropicalismo.

Escreveu poesias, peças teatrais, compôs músicas; teve uma vida artística movimentada.

Como jornalista, escrevia colunas culturais em jornais como Última Hora, Jornal dos

Esportes e Correio da Manhã. No primeiro, Torquato Neto escrevia a coluna Geléia Geral,

onde defendia com veemência o movimento undigrudi no Brasil, questionando inclusive o

Cinema Novo. O poeta-jornalista era visto pelos artistas como “porta-voz privilegiado de um

movimento que ainda não podia ser chamado como tal” (PIRES, 2004, p.15). No cinema,

Torquato participou de filmes como Barravento (1961, iniciado por Luiz Paulino dos Santos

e, depois de um incidente de filmagem, concluído por Glauber Rocha), Moleques de Rua

(Super-8, com Alvino Guimarães), Canalha em Crise (1962- 1965, do piauiense Miguel

Borges, feito no Rio de Janeiro), Nosferatu no Brasil (1971, Super-8 com Ivan Cardoso), A

Múmia Volta a Atacar (1972, Ivan Cardoso), Adão e Eva, do Paraíso ao Consumo (1972,

Super-8, curta piauiense), Helô e Dirce (1972, no Rio de Janeiro, de Luiz Otávio Pimentel).

A grande paixão do Torquato Neto sempre foi o cinema, mais do que a

poesia, do que as artes plásticas, do que o teatro, do que a música. (...)

Quando Torquato Neto se aventurava por outras linguagens, ele estava

fazendo cinema. As letras dele são, na realidade, roteiros cinematográficos.

Torquato Neto era mais cineasta do que, propriamente, poeta. (KRUEL,

2008, p.63)

Em 1972, Torquato Neto esteve em Teresina onde filmou e produziu seu primeiro e único

filme: Terror na Vermelha. O curta, um dos signos de sua época, traz uma narrativa

fragmentada, nada convencional, como se apresentasse um mundo caótico através da falta de

razão na desordem das cenas. Segundo Edwar Castelo Branco (2006), um dos estudiosos da

produção Torquateana, o artista defendia o cinema em liberdade onde destruía a linguagem

natural e instaurava uma contra- linguagem, uma fuga da captura social de sua subjetividade.

Os traços marginais apresentados em seu curta-metragem influenciaram posteriores

produções de piauienses parceiros do poeta. “Assim como na música, na poesia e no

jornalismo, Torquato faz do cinema um lugar de mistura de todas as suas referências, de vida,

cultura e do tempo em que viveu”. (PIRES, 2004, p.15)

Alguns movimentos cinematográficos de grande impacto no cinema brasileiro, como a

chanchada, por exemplo, não tiveram grande influência no cinema piauiense. No entanto o

Cinema Novo, com suas idéias iniciais de nacionalização da linguagem e um discurso

ideológico próprio, incentivou vários amantes da arte.

Na década de 1980, mais precisamente em 1984, as produções cinematográficas

piauienses se expandiram. Além dos cineclubes regionais, a Universidade Federal do Piauí-

UFPI instalou nesse período o curso de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo,

onde alguns dos cineastas da época chegaram a iniciar o curso de comunicação. Apesar da

pouca estrutura, a Universidade suscitou uma discussão sobre o audiovisual e em 1986 criou o

Setor de Audiovisual da UFPI, que realizou eventos, mostras de filmes e palestras com

cineastas de vários lugares do país.

No desenvolvimento desta pesquisa a seguinte problemática tornou-se importante para

focar o estudo: Como são construídas as questões culturais, econômicas e políticas daquela

sociedade piauiense a partir da negociação entre os elementos históricos e sociológicos e as

especificidades das narrativas apresentadas no desenvolvimento da cultura visual piauiense?

Após o estudo realizado pela pesquisadora seguindo a dúvida em questão, a referida

pesquisa apresenta como hipótese central a idéia de que as questões econômicas, políticas e

sociais são aspectos norteadores do desenvolvimento cinematográfico do Piauí nas duas

décadas estudadas, bem como influenciadores diretos na construção das narrativas

cinematográficas. Para tanto, admite-se que todo discurso é uma construção ideológica e

social, não individual, e que só pode ser analisado considerando seu contexto histórico na

sociedade.

Com base nos estudos e análises realizados ao longo da pesquisa, algumas hipóteses

anteriormente propostas, como a já descrita, se confirmaram e outras não.

Ficou claro que as produções audiovisuais piauienses nos anos analisados resultam de

uma negociação entre práticas culturais e recursos tecnológicos como forma de registrar e

apresentar questões ideológicas e sociais da realidade local, limitando-se às discussões entre

os pares e menos à exibição para a sociedade, em alguns casos. Em outros, os filmes

produzidos aspiravam premiações em festivais e, portanto, foram produzidos focando um

público específico.

As produções audiovisuais surgiram ao longo das duas décadas estudadas, menos para

apresentar as questões sociais da região filmada e mais para registrar e formalizar uma

ideologia naquele momento.

Ao contrário do que se propôs como hipótese anteriormente, a UFPI e o curso de

comunicação não tiveram influência direta na ampliação da quantidade de filmes produzidos

no Piauí na década de 1980. No entanto, suas influências indiretas refletiram na qualificação

das produções posteriores, principalmente após a criação do Setor de Audiovisual da

Universidade, organizador de palestras, discussões, mostras de cinema e publicações de

cineastas da época.

O cinema conquistou seu próprio meio de expressão e linguagem, sua própria

comunicação e signos. Se apropriando disso, muitos cineastas criam também sua linguagem

cinematográfica pessoal e sua forma de expressão com o mundo. Assim o fez Torquato Neto,

poeta tropicalista que encabeçou o que pesquisadores chamam de contra- linguagem

torquateana.

Raciocinando sempre em termos de “lado de dentro” e “lado de fora”, o

poeta parecia perceber a transparência da linguagem como o lugar de

mascaramento do caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.

Ao mesmo tempo, percebia serem as palavras “poliedros de faces infinitas”,

que sempre se permitiriam serem utilizados no sentido da subversão de

significados. Nisto residiria o núcleo da contra-linguagem torquateana

(CASTELO BRANCO, 2006, p.01).

Com uma linguagem própria, em sua maioria inspiradas na idéia marginal representada

por Rogério Sganzerla, Mojica Martins e outros, o vampiro tropicalista1 influenciou uma

juventude piauiense ansiosa por expressar-se audiovisualmente. Parte dessa mesma juventude

já participava de estudos e análises fílmicas realizadas nas tardes de discussão do Cineclube

Teresinense. Eram jovens da capital Teresina que resolveram utilizar a sétima arte como

forma de expressão ideológica e questionamento social. Assim surgiu o cinema culto no

Piauí.

Essa juventude buscava apresentar à sociedade local suas idéias e visões sobre a

realidade que os cercava. “Colocaram suas próprias retinas a serviço da transformação

inspirados no início dos anos setenta, um tempo de produção de filmes em formatos não

comerciais e de propostas estéticas nada convencionais” (BRANCO, 2005, p.183).

Com momentos cíclicos, as produções cinematográficas no Piauí são, ainda hoje, pouco

conhecidas pelo público regional e nacional, bem como pouco exploradas pelos interessados

nos estudos das artes fílmicas. Essa produção cinematográfica acontecida nas décadas de 1970

e 1980, apesar de pouco numerosa em comparação ao restante do país, refletiu em um

patrimônio audiovisual praticamente desconhecido e representa uma empolgação de todos

aqueles que faziam parte do processo, mesmo diante da precariedade de estrutura técnica e da

falta de profissionalismo e estímulo financeiro.

Esse desconhecimento da produção cinematográfica piauiense é, guardadas as devidas

proporções, semelhante ao que acontece com o cinema nordestino como um todo. Isso

acontece devido à centralização da produção cinematográfica nacional que favorece, muitas

vezes, o fortalecimento de estereótipos que se cristalizam ao longo de décadas. A

pesquisadora Karla Holanda (2009), em pesquisa sobre os documentários nordestinos,

afirmou que essa centralização de produção chega a favorecer, em determinado momento, um

desenvolvimento lento da produção nordestina e faz com que detalhes comumente difundidos

sobre o nordeste alimentem um olhar viciado sobre a região.

Se os documentários produzidos “fora do eixo” têm uma distribuição

restrita; se a produção que não é lançada comercialmente raramente recebe

1 Aqui referindo-se ao filme de Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil” (1972), cujo piauiense representava um

vampiro brasileiro nas praias do Rio de Janeiro.

análise crítica; (...) se os principais festivais do gênero são realizados nesses

dois estados; se quase todas as grandes empresas que patrocinam atividades

culturais através de benefícios fiscais, estão sediadas no sudeste; (...) é

natural que se caia num circulo vicioso que alimenta essa centralização,

fazendo com que as produções das demais regiões dificilmente violem os

limites de seus estados, impedindo-lhes ressonância. (HOLANDA, 2009, p.

14)

A referente pesquisa justifica-se por lançar um olhar transversal nas produções

cinematográficas piauienses, a fim de atualizar as discussões do passado por um ângulo

contemporâneo e assim entender como são produzidas as narrativas audiovisuais nessas

produções da história piauiense, buscando também reconhecer as representações sócio-

culturais da época e analisar a presença de instrumentos técnicos na produção de uma cultura

visual. A pesquisa poderá, com isso, atualizar uma discussão sobre os trabalhos audiovisuais

ligados ao cinema do Piauí para além das produções Torquateanas. “O passado só se deixa

fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”

(BENJAMIN, 1985, p.189).

Desta forma, mostrar-se-á a importância desse registro para a memória imagética do

Piauí na perspectiva do audiovisual, já que esses trabalhos contam a história do cinema local e

inauguram, em determinados momentos, uma nova forma de fazer filme no Piauí. Pretende-

se, portanto, apontar que a ousadia e a coragem crítica dos jovens cineastas não são meras

questões saudosistas, mas elos que interligam a história das produções audiovisuais locais.

Concluindo-se assim que “o presente não pode mais ser encarado simplesmente como uma

ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma presença sincrônica”.

(BHABHA, 1998, p.23)

Expandir a compreensão das formas culturais que tiveram lugar no estado do Piauí, bem

como mostrar a amplitude desses trabalhos e suas produções é uma forma de resgatar a

memória do audiovisual piauiense e assim buscar suas representações verificadas através de

um quadro da cultura contemporânea. Segundo Pesavento (2007), o novo não está no que é

dito, mas no acontecimento de sua volta.

Diante dessa justificativa a pesquisadora seguiu seu estudo com a intenção de

sistematizar uma parte da produção histórica, artística e cultural do século XX, objetivando

contribuir para inserir o Piauí no amplo contexto filmográfico brasileiro, preencher alguns

espaços vazios, bem como juntar-se aos estudos de grupos que produzem arte e cultura no

país.

A pesquisa centrou como objetivo principal, apresentar as questões culturais,

econômicas e políticas daquela sociedade piauiense, construídas a partir da negociação entre

os elementos históricos e sociológicos e as especificidades das narrativas apresentadas no

desenvolvimento da cultura audiovisual.

Para tanto, viu-se como necessário descrever o processo evolutivo das produções que

fazem parte da história cinematográfica do Piauí nas duas décadas estudadas; fazer uma breve

análise das narrativas audiovisuais empregadas nas produções pesquisadas; identificar quais

elementos representados nas produções audiovisuais dialogam com as vanguardas

cinematográficas nacionais da época; e identificar até que ponto a tecnologia de reprodução

visual facilita a representação das questões sociais e ideológicas em cada momento

apresentado.

A investigação proposta realizou-se, prioritariamente, com um estudo qualitativo das

produções audiovisuais piauienses nas décadas de 1970 e 1980, em formato Super-8, com o

intuito de apresentar as narrativas utilizadas nos filmes e reconhecer as questões históricas e

sociológicas representadas.

O corte temporal inicia-se com as primeiras produções fílmicas em Super-8 realizadas

pelo grupo Torquateano e se encerra com as últimas produções do grupo Mel de Abelha,

principais representantes do ciclo Cineclubista. Com isso, pretende-se apresentar uma visão

do tipo de cinema feito no Piauí, das linguagens utilizadas em suas produções, as influências

diretas e indiretas das vanguardas cinematográficas nacionais bem como suas especificidades,

contornos e variantes.

A pesquisa apontou, portanto, a trajetória das produções cinematográficas no estado do

Piauí e a descrição do contexto social no qual estavam inseridas. Para tanto, o método de

pesquisa qualitativo era o mais coerente. Entendido como o melhor caminho para fazer uma

abordagem sistemática do objeto de pesquisa. Segundo Richardson:

Os estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever a

complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas

variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos

sociais, contribuir no processo de mudança de determinado grupo e

possibilitar, em maior nível de profundidade, o entendimento das

particularidades do comportamento dos indivíduos. (RICHARDSON, 1989,

p. 39)

A presente pesquisa tem caráter qualitativo a partir do momento em que visa descrever a

história e seu contexto, suas variantes, narrativas e caminhos percorridos pelo cinema

piauiense. Bem como explica Godoy:

[a pesquisa qualitativa] parte de questões ou focos de interesse amplos, que

vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve. Envolve a obtenção

de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo

contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando

compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos

participantes da situação em estudo (GODOY, 1995, p.58)

Para proceder à pesquisa qualitativa de investigação tornou-se necessária uma Análise

Descritiva das produções locais realizadas nas décadas estudadas feita através de pesquisa de

campo, pois atualmente há poucos trabalhos que especifiquem essas produções de forma

historiográfica.

Nessa busca foram apresentados dados, números, nomes; informações objetivas dos

filmes produzidos que somente se tornaram possíveis através do contato com diretores,

roteiristas e produtores dos filmes abordados. A filmografia completa das produções nas duas

décadas analisadas segue nos anexos desta pesquisa.

Para esta etapa da pesquisa, a apresentação descritiva da história cinematográfica

piauiense, a técnica qualitativa utilizada foi a entrevista em profundidade que, segundo

Ruótolo (1996), configura-se como uma forma fidedigna de aproximação com o público-alvo.

Neste caso, o grupo entrevistado foi formado pelos principais nomes da produção

cinematográfica estudada, diretores e produtores de filmes piauienses conhecidos através de

estudo exploratório prévio realizado pela pesquisadora2. Nas entrevistas foram focados não só

os pontos que facilitavam a solução direta do problema da pesquisa, mas também questões

técnicas que foram organizadas em uma lista filmográfica. “O pressuposto da entrevista

qualitativa é da empatia. É do envolvimento livre e não-diretivo do pesquisador com o

entrevistado no sentido de conhecer as raízes e significados de suas opiniões, crenças e

comportamentos que surgem as informações.” (RUÓTULO, 1996, p. 04).

As entrevistas foram feitas com diretores e produtores com um histórico de produção

audiovisual no Estado e possíveis influências nas produções subseqüentes às suas. Dentre

2 Este estudo prévio contemplou documentos históricos, jornais impressos oficiais, públicos e alternativos do

período analisado, livros e artigos sobre o tema proposto pela investigação.

estes, um ator (Kleiton Marinho) e um cinegrafista (João Batista) que trabalhou em alguns

filmes junto com José Wilson como produtor.

Essas entrevistas seguiram com perguntas abertas e em profundidade e foram realizadas

informalmente: “(...) entrevistas informais podem auxiliá-lo a conseguir melhor discernimento

do campo de indagação que selecionou. Desprezar essas técnicas é desprezar a possibilidade

de uma compreensão mais profunda e mais verdadeiramente sociológica de uma situação”

(MANN, 1975, p.106).

A fase de entrevistas foi importante para uma melhor contextualização histórica e social

das produções, bem como um aprofundamento mais detalhado nos principais filmes de cada

período e os possíveis diálogos com produções nacionais e internacionais. Assim, pode-se

apresentar de forma mais realística e próxima da idealizada pelos cineastas o propósito

apresentado no filme; já que é comum, e perfeitamente compreensível, as diversas

interpretações de cenas fílmicas. Isso acontece principalmente, segundo o pesquisador Artur

Autran (s.d, on-line), devido ao alto grau de polissemia natural na imagem em movimento que

arregimenta a compreensão do espectador para significados muito diferentes do desejado pelo

realizador.

Algumas entrevistas puderam ser feitas por e-mail, o que facilitou a vida da

pesquisadora já que muitos dos cineastas da época estudada não moram mais no Piauí. Dentre

eles estão: Dácia Ibiapina, Edmar Oliveira, Paulo José Cunha e Carlos Galvão. A maior

surpresa da pesquisa aconteceu com a resposta de um email enviado sem muitas esperanças

pela pesquisadora ao Padre Carlos Bresciani. Um mês depois do email enviado, veio a

resposta. O padre, hoje com 96 anos, respondeu o email solicitando o endereço da

pesquisadora para onde, dias mais tarde, enviou documentos e as respostas das perguntas do

email.

Outras entrevistas foram feitas pessoalmente e resultou em grandes informações, a

maioria delas construindo e desconstruindo as hipóteses apresentadas em projeto

anteriormente apresentado. Outra fonte de pesquisa de grande importância foram os

documentos históricos pesquisados. Jornais da época, imprensa alternativa, revistas de cinema

publicadas, documentos de festivais e certificações importantes para comprovação dos dados

informados pelos entrevistados.

A maior dificuldade encontrada pela pesquisadora decorreu do fato de muitos dos

entrevistados estarem trabalhando no período eleitoral, atrasando, portanto, o cronograma

inicial do estudo.

No total foram entrevistadas 11 pessoas, dentre cineastas, produtores, cinegrafista e

ator. Outros cinco nomes foram procurados e sondados pela pesquisadora, que não obteve

êxito por questões pessoais dos entrevistados pretendidos. No entanto, três dos entrevistados

mantiveram contato com a pesquisadora e se propuseram a ajudar na pesquisa com

documentos e respondendo emails com as dúvidas frequentes no estudo, foram eles: o

professor Dr. Luís Carlos Sales; a professora Dra. Dácia Ibiapina e o Engenheiro e

publicitário Valderi Duarte.

A pesquisadora encontrou documentos para comprovação de dados da pesquisa com

alguns dos entrevistados, além de estudos e pesquisas feitos dentro do Arquivo Público de

Teresina, da Casa da Cultura- onde a prefeitura de Teresina guarda documentos históricos e

publicações antigas e na biblioteca da Universidade Federal do Piauí-UFPI.

No primeiro capítulo da pesquisa, o foco central é a apresentação histórica e técnica dos

filmes representados pelo que chamo de cineastas Torquateanos. Suas expressões, seus

objetivos, a ligação com produções nacionais, suas tendências e suas referências, a

repercussão dentro do estado (midiaticamente), suas pretensões (profissionais ou não), o que

representavam para a sociedade e o que queriam representar para esta, o que queriam

comunicar, para quem eram feitos os filmes e com que desejo esses filmes eram realizados.

Além disso, curiosidades sobre as produções dos filmes, o pensamento de cada diretor sobre

seu filme produzido e as representações sociais e históricas em cada produção.

O segundo capítulo aborda produções de cunho mais social, que deixam de lado

questões contraculturais e disciplinares e focam numa estratégia de apresentação social e

econômica do Piauí. Estes filmes, que lembram muitas vezes produções cinemanovistas (os

próprios diretores, durante entrevistas, confirmaram a influência de Glauber Rocha no

pensamento produtivo) são esteticamente diferentes dos filmes feitos no início de 1970.

Entender suas características, a postura de cada um dos cineastas, a leitura daquela sociedade,

o que queriam dizer com suas reproduções sociais; quem lhes influenciava, quais ligações das

produções locais com as nacionais e internacionais (detalhes técnicos e estéticos), foram as

prioridades discutidas aqui. São abordadas as questões sociais e culturais em que esses filmes

foram realizados com a finalidade de entender suas produções, seus objetivos de realização e

as linguagens utilizadas.

O Cineclubismo no Piauí terá uma exposição mais específica no terceiro capítulo que

buscará apresentar os influenciadores do Audiovisual Piauiense. A proposta é apresentar,

inicialmente, um trabalho historiográfico simples sobre o Cineclube Teresinense e como ele

trabalhou direta e indiretamente na construção da história da cinematografia local.

Além do Cineclube Teresinense, a Universidade Federal do Piauí-UFPI é colocada como

influenciadora de um discurso esquerdista que formou idéias que embasaram muitos dos

discursos sociais (ou socialistas) dos jovens universitários que frequentavam o cineclube

teresinense, ampliando o pensamento intelectual e cultural dos jovens da época utilizando as

artes (em alguns casos). Além disso, o Setor de Audiovisual da UFPI, fundado na década de

1980, é focado como um dos principais divulgadores do pensamento cinematográfico mundial

e nacional no meio cultural do Piauí, com suas mostras de cinema, palestras e publicações

específicas. O Setor de Cinema era coordenado pela professora Dra. Dácia Ibiapina.

Ainda no terceiro capítulo, a pesquisadora trabalhou o Super-8 como instrumento

facilitador na construção imagética dos pensamentos ideológicos daquele momento. A

facilidade na compra e na revelação da película, facilitou a expansão do cinema no Piauí,

assim como em muitas partes do Brasil. E, por conseguinte, a expressão cultural no cinema

com essa película era mais livre, já que a censura não interferia diretamente nessas produções

superoitistas.

A imprensa local, com os jornais tradicionais, bem como a imprensa alternativa, também

foram lembradas neste terceiro capítulo. Influenciaram na expansão das idéias marginais,

contraculturais e superoitistas dos Cineclubistas e dos Torquateanos ao longo das duas

décadas estudadas. A mídia alternativa era fonte de divulgação dos trabalhos artísticos e

culturais na época, e era leitura certa do público que eles buscavam informar.

O Cineclube Herbert Parente, também citado no terceiro capítulo, foi um dos grandes

responsáveis por manter a veia cineclubista em muitos dos amantes da sétima arte na região,

após o encerramento das atividades do Cineclube Teresinense. Apesar de só ter funcionado

por três anos, suas atividades eram intensas e os debates cinematográficos aconteciam

semanalmente. Foi o primeiro cinema de arte legalizado pelo governo do estado do Piauí.

O último capítulo desta dissertação faz uma breve reflexão sobre esses primeiros anos do

cinema piauiense e fala um pouco sobre as ações e reações da sociedade diante dessas

produções culturais. Levando-se em consideração o fato de que não existe um discurso

isolado, sendo este, na verdade, o reflexo de um conjunto de discursos – interdiscursos-,

apresentou-se alguns traços narrativos presentes no conjunto das produções e suas ideologias

expressas. A pesquisadora trabalhou neste quarto capítulo a linguagem cinematográfica (sem

se aprofundar linguisticamente) e os discursos sociais; a influência cultural no cinema;

abordou-se a linguagem como fator de interação social, contextual.

CAPÍTULO I

Influências marginais, Torquato Neto e a tropicália:

A década de 1970 e a contracultura no cinema do Piauí

Quando eu recito ou quando eu escrevo

uma palavra, um mundo poluído explode

comigo e logo os estilhaços desse corpo

arrebentado, retalhado em lascas de corte e

fogo e morte (como napalm), espalham

imprevisíveis significados ao redor de mim.

(...) uma palavra é mais que uma palavra, além

de uma cilada. Agora não se fala nada e tudo é

transparente em cada forma; qualquer palavra

é um gesto e em sua orla os pássaros de

sempre cantam apenas uma espécie de caos no

interior tenebroso da semântica. (...) Escrevo,

leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema.

(Torquato Neto – Os Últimos Dias de

Paupéria)

A produção audiovisual piauiense possui características que foram influenciadas

diretamente pelo envolvimento histórico em que vivia o país e, guardadas as proporções, o

Estado. No Piauí, eram poucos os jovens envolvidos diretamente com a cultura local e

nacional, no entanto, os respingos desse envolvimento influenciaram várias áreas de atuação

cultural no estado e chegaram, inclusive, a questionar a sociedade e suas posturas éticas e

comportamentais.

A década de 1970 começou no Brasil já com traços contraculturais significativos

herdados do final da década anterior que apresentou nacionalmente opiniões, revoluções,

pensamentos, ideologias e expressões refletidas, majoritariamente, pelo momento ditatorial

que vivia os brasileiros. A história brasileira, na intersecção entre as décadas de 1960 e 1970,

é um divisor de águas histórico tanto em questões políticas quanto sociais e culturais. Esse

entrecorte apresenta a inquietude de uma geração de jovens e artistas em um período marcado

pela repressão, por censura e perseguições políticas, espreitado entre um período de utopias e

lutas e outro de ressaca política – anos 1960 e 1980, respectivamente.

É nessa mesma época que a indústria cultural se consolida no Brasil; as novas

tecnologias chegam até o jornal impresso, o mercado editorial, a televisão e o cinema; a classe

média, ao mesmo tempo em que começa a freqüentar as universidades brasileiras, amplia seu

poder de compra e se torna ainda mais consumista. Este é o período das conquistas do regime

militar, que legitimou o autoritarismo com progresso.

As décadas agora mencionadas foram marcadas pela censura, mas também pela criação

de grandes obras do Cinema Novo, pela explosão do Tropicalismo, pelo surgimento de uma

imprensa alternativa e por enfoques políticos em canções, peças teatrais e filmes realizados

em vários cantos do Brasil.

Parecia que a história explodia diante dos olhos de cada um. Protagonistas e

espectadores, os brasileiros dos anos 60 viviam uma espécie de aceleração

do tempo. Muita coisa acontecendo, com eventos marcantes e de efeitos

duradouros sobre a vida das pessoas. Era como sonhar acordado, neste país

que mudava tão rápido, como a recuperar um perdido trem da história que

passara e que era preciso alcançar (PESAVENTO, 2005, p.191).

Enquanto os anos de 1960 seguiram caminhos que levaram o país da democracia à

ditadura, a década de 1970 fez o caminho inverso, com os anos autoritários seguidos de

abertura política que se arrastou até a década de 1980. No mundo, explodiam alterações

sociais que mexiam na sensibilidade e identidade dos sujeitos- da guerra do Vietnã ao

feminismo e conflitos sociais e étnicos- gerando uma crise nos paradigmas e levando o

movimento intelectual a pensar, inclusive, em um esfacelamento do sujeito.

O Brasil, no início da década de 1960, ainda em um clima nacional- desenvolvimentista

herdado de uma década de 1950 de sensações pré-revolucionárias, ao mesmo tempo em que

via o novo surgindo, as disparidades sociais foram também se destacando. As reflexões

geradas pelas aflições citadas levaram jovens brasileiros ligados a uma cultura esquerdista

nacional a pensar em uma temática que levasse a uma descolonização cultural do olhar. Na

arte audiovisual, a principal fonte de inspiração seria o neo- realismo italiano, caracterizado,

dentre outras coisas, por retratar as contradições e dificuldades na reconstrução de uma Itália

pós-fascista. As produções neo-realistas tinham técnicas simples, sem glamour e muitas vezes

fora de estúdio, para registrar o cotidiano nas ruas. A idéia era navegar na contra- corrente

industrial. Os filmes foram ficando cada vez mais reais, à imagem e semelhança do povo

brasileiro naquela época.

Com isso, surgiram os precursores do Cinema Novo: Agulha no Palheiro (1952), de Alex

Viany, O Grande Momento (1957), de Roberto Santos, Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte

(1957), de Nelson Pereira dos Santos e Aruanda (1960), de Linduarte Noronha.

Nesse período, a onda eram os debates em torno do engajamento cultural, como afirma

Heloisa Buarque de Hollanda:

(...) a juventude acreditava e se empenhava com o maior entusiasmo, numa

forma peculiar de engajamento cultural diretamente relacionada com as

formas da militância política. A relação direta e imediata estabelecida entre

arte e sociedade era tomada como uma palavra de ordem e definia uma

concepção de arte como serviço e superinvestida do ponto de vista de sua

eficácia mais imediata (2004, p.19).

O Cinema Novo surge no Brasil com o propósito que reinventar sociedade e vida. Os

filmes, de cunho autoral, colocavam o homem comum brasileiro no centro da ação. Deus e o

Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), ambos de Glauber Rocha; Os Fuzis

(1964), de Ruy Guerra; O Desafio (1965), de Paulo Cesar Saraceni, dentre outros estão entre

as produções da época. Pensar o país e suas contradições sociais era a proposta chave do

Cinema Novo. Apesar da ditadura direitista, havia no Brasil ainda uma hegemonia cultural da

esquerda.

Culturalmente, o País fervilhava. Até 1968, intelectuais e movimentos de

esquerda podiam agir livremente, com pequenos problemas com a censura.

A intensa produção ia das peças do Teatro Oficina aos grupos Opinião e

Arena; das canções de protesto às músicas da Jovem Guarda, passando pelos

filmes do Cinema Novo e pelas artes plásticas. Em todas as áreas, a política

fazia-se presente, mantendo acesa no campo das artes uma polêmica que

opunha experimentalismo e engajamento, participação e alienação.

(OLIVEIRA, 2010, on-line)

Com o advento do Ato Institucional nº5 (1968), foi decretado o fim das liberdades civis e

de expressão, o cinema, assim como todas as demais manifestações culturais e artísticas no

país ficou sob a mira da Ditadura Militar. Produzir filmes, nessa época, estava cada vez mais

difícil. No entanto, ainda sob o regime militar o Cinema Marginal apresentou suas primeiras

produções. De cara com O Bandido da Luz Vermelha (1968), os brasileiros passam a ver o

deboche e o escracho substituírem a proposta revolucionária anterior, vista pelos marginais

como inviável e romântica. “Marginal é um nome como outro. Aponta para o estado de

espírito de uma geração que decidiu fazer cinema remoendo por dentro um universo

ideológico novo, sob o choque múltiplo de uma revolução de costumes e de uma revolução

social” (RAMOS, 2004, p.142).

Foi em meio a essa consciência juvenil e às contestações que se seguiram3 que, na década

de 1970, começou a se perceber em todo o mundo, incluindo o Brasil, a contracultura. Setores

da juventude brasileira, os mais envolvidos na questão cultural do país, encontraram, nesse

período, o momento de pôr em questão os valores (políticos, sociais, culturais, econômicos),

rebelando-se contra os costumes e a disciplina ditatorial da sociedade. Com atitudes

diferenciadas, novos comportamentos e moral e a ruptura de modelos pré-concebidos, aqueles

jovens, dentre outras perspectivas, tentavam negar a tradição inaugurando a tradição da

ruptura. Essa contracultura, definida por Herbert Marcuse (1968) como sendo uma

possibilidade de inverter determinados rumos sociais e de progresso e romper com tudo que

liga liberdade e repressão; se caracteriza, tanto na esfera comportamental quanto na artística,

pela sua oposição ao sistema e aos valores tecnocráticos- aqui entendidos como valores

definidos pela sociedade, seja ela capitalista ou socialista, cuja dominação é feita

principalmente na esfera subjetiva e do desejo.

O movimento nacional - conhecido como momento do desbunde4 brasileiro - apresentava

características não só regionais e nacionais, mas ocidentais; como a negação à sociedade

disciplinar e as táticas utilizadas pelos jovens para fugir dos rigores do período.

Na realidade, o que se tem de grande inovação na década de 70 é uma

profusão de linguagens artísticas e de elementos culturais que diluem o

cinema, a poesia, o teatro e a arte de forma geral em inúmeras expressões

artísticas separadas, mas, em grande parte, intercaladas por elementos como

contestação e liberdade de produção (LIMA, p.80, 2006).

Essa agitação histórica refletiu e utilizou as mais diversificadas formas artísticas e de

matéria-prima para sua expressão. A literatura, com o livro de Theodore Roszak5; a música,

3 Dois momentos importantes, por terem tido reflexos globais, e por influenciar um milhão de jovens em todo o

mundo, por sua contestação de valores, rebeldia e uma nova forma de contestar; foram Woodstock e Maio de 68

na França. O primeiro marcou o lado lúdico do movimento e continua nos dias de hoje sendo visto com

saudosismo. O evento na França, porém, teve influência redobrada para a contracultura tupiniquim, pois muitos

intelectuais brasileiros estavam, por vontade própria ou não, exilados na Europa e puderam assistir aos efeitos

demolidores do anarquismo francês. 4 Desbunde é uma gíria, inventada no Brasil durante os anos 60, para designar quem abandonava a luta armada e,

posteriormente, também as pessoas interessadas em contracultura a ponto de viver seus ideais.

apresentando o casamento da guitarra elétrica com a música popular brasileira na Geléia

Geral de Gilberto Gil e Torquato Neto ou na Alegria Alegria de Caetano Veloso; o teatro com

O Rei da Vela, peça escrita em 1933 por Oswald de Andrade e montada pelo diretor paulista

José Celso Martinez Correia; o próprio corpo com a exposição da barriga de sete meses de

gravidez de Leila Diniz na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro; o cinema, com as

mudanças de expressão deslocadas de um criticado Cinema Novo e repaginadas em um

Cinema Marginal de Rogério Sganzerla e Julio Bressane. São as novas expressões artísticas,

de cunho contracultural que, como as mesmas expressões contraculturais em outros lugares do

mundo, tiveram em comum o fato de não necessitarem de muito capital, apenas de um

circuito alternativo. Suas produções, salvo algumas exceções, eram de maneira artesanal.

Desconfiadas de mitos nacionalistas e dos discursos militantes do populismo, percebendo

os impasses do processo cultural brasileiro e recebendo informações de movimentos culturais

e políticos da juventude americana e européia, um grupo passa a fazer um importante papel

para toda a produção cultural brasileira da época.

Recusando o discurso populista, desconfiando dos projetos de tomada de

poder, valorizando a ocupação dos canais de massa, a construção literária

das letras, a técnica, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a crítica de

comportamento, o Tropicalismo é a expressão de uma crise. (...) A

preocupação com a atualização de uma linguagem „do nosso tempo‟ já

presente no concretismo, passa, a partir do Tropicalismo, a ser aprofundada e

relacionada a uma opção existencial. O fragmento, o mundo despedaçado e a

descontinuidade marcam definitivamente a produção cultural e a experiência

de vida tanto dos integrantes do movimento tropicalista, quanto daqueles que

nos anos imediatamente seguintes aprofundam essa tendência, num

momento que, por conveniência expositiva, chamaremos de pós-tropicalismo

(fim dos anos 60, princípios dos anos 70). (HOLLANDA, 2004, p.64)

Os tropicalistas não queriam saber de discussão marxista-leninista ou nacional- popular

ou contra burguesia. Para eles, entender a cultura de massa tinha a mesma importância da

revolução. Sua preocupação era com o atual, com a cabeça e o comportamento da sociedade e

da política daquela época. Para isso, busca uma mudança no corpo e nas atitudes e uma nova

linguagem crítica, principalmente no sentido da subversão de valores e padrões de

comportamento; tudo como forma de demonstrar uma insatisfação ao regime de restrição

5 ROSZAK, Theodore. A Contracultura: Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. 2ed.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1972. Neste livro, o escritor analisa a contracultura e acredita que esse movimento poderia

transformar o mundo profundamente.

sócio-político que promovia a inquietação, a dúvida e a crise na intelectualidade. A idéia era

internacionalizar todos os tipos de cultura. O tropicalismo foi um movimento vertiginoso que

tomou conta do Brasil no final dos anos 1960. Ao unir o popular, o pop e o experimentalismo

estético, as idéias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da música,

mas da própria cultura nacional e, indiretamente, com suas novas linguagens artísticas, foi

uma mola propulsora da contracultura no país.

A idéia tropicalista elevou a cultura integrando várias manifestações culturais à poesia

concretista e outras áreas artísticas que já vinham militando na vanguarda desde os anos 50;

sofisticaram a música popular, instaurando recursos vanguardistas em suas composições e

arranjos. O Brasil transformou-se em um jardim tropical, com cores, com vida, com samba,

jazz, bossa nova, rumba, bolero, baião. O movimento rompeu estratégias e assumiu atitudes

experimentais para a época. Libertário e vanguardista, o tropicalismo durou pouco mais de um

ano e acabou sendo reprimido pelo governo militar. A prisão e o exílio de seus principais

expoentes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, ente outros, iniciou a falência de um

movimento que marcou a história cultural brasileira.

A década de sessenta, portanto, pôs em contato subjetividades do mundo

inteiro, harmonizando os gostos, padronizando os desejos e aniquilando –

pela via da lenta subjetivação da idéia de uma „aldeia global‟ – a noção de

cultura nacional. Este fato, obviamente, como tudo aquilo que altera os

fluxos do cotidiano humano, não deixou de causar conflito, dor e muita

confusão. A mundialização impactaria sobre muitos setores da arte brasileira

no sentido de criar um sentimento reativo ao exterior e a seus símbolos. Um

dos pontos altos desta posição viria a ser a realização em São Paulo, em 17

de julho de 1967, de uma inusitada passeata contra o uso da guitarra na

música popular brasileira, da qual chegaram a participar notáveis como

Gilberto Gil e Elis Regina. (CASTELO BRANCO, 2005, p.59)

Por esse caminho, o Brasil segue observando a contracultura se manifestar junto aos

jovens. Os principais focos de divulgação dessa contracultura são jornais de uma imprensa

alternativa da época, como O Pasquim e Flor do Mal6. No primeiro, que chegou a ter 1.072

publicações – a maior parte de jovens leitores-, a coluna de Luiz Carlos Maciel chamada

Underground era das mais lidas, tanto que o mesmo foi considerado o guru da contracultura

brasileira. Maciel também editou a Flor do mal, aonde o poeta Torquato Neto chegou a

colaborar como jornalista nas cinco únicas edições, junto com Tite de Lemos e Rogério

6 No terceiro capítulo faremos uma exposição maior da imprensa alternativa na época, incluindo O Pasquim e

Flor do Mal.

Duarte. O jornal alternativo tinha como lema “a liberdade da loucura de cada um”, na

definição de seu fundador. O título era inspirado pelo poeta Charles Baudelaire e teria sido

uma idéia do poeta piauiense colaborador do jornal (PIRES, 2004).

Aos poucos, certo desinteresse pela política começa a se delinear em algumas artes. A

liberdade, o fim da repressão, a procura pela autenticidade substitui progressivamente os

temas políticos. E o “povo”, antes tema de diversas produções cinemanovistas, é substituído

pelas minorias: homossexuais, negros, pivetes, população do morro; que viram agora tema

dos filmes marginais – aqueles com maior característica tropicalista no cinema,

principalmente em regiões mais afastadas do eixo Rio de Janeiro - São Paulo.

Dentro desse contexto a estética experimental - entendida como uma

intervenção que era feita com o intuito de provocar uma ampliação

conceitual no campo artístico - podia ser encontrada com freqüência em

letras de músicas, em peças teatrais e, especialmente, em diversos filmes, a

maioria dos quais era enquadrada no chamado Ciclo Marginal (CASTELO

BRANCO, 2007).

A marginalidade nas atitudes desses jovens do desbunde brasileiro não era uma saída

alternativa, mas uma forma de ameaçar o sistema. São as atitudes transgressoras geradas por

eles que buscavam uma significação contestadora, e tudo feito de forma consciente. Os

tóxicos, a bissexualidade, os gestos e comportamentos repudiados pela sociedade tinham,

também, uma postura contestadora de caráter político. Ser marginal naqueles idos era estar

contra a corrente ufanista do momento, era a possibilidade de trazer, com alguns anos de

atraso, o discurso libertário e utópico da contracultura americana para os trópicos tupiniquins.

Aqueles que tentavam enfrentar com arte e cultura a repressão violenta da ditadura

militar, muitas vezes eram denominados desbundados – assim como os jovens que não

aderiram à luta armada como o público universitário que integrou grupos de guerrilha armada

no final dos anos 60 e durante a década de 70.

Neste mundo que perdia consistência, que se desterritorializava, um país

geléia geral impunha o surgimento de novas línguas, de outras artes, de

outros artistas capazes de dar a ver e dizer este país dilacerado ente o sentido

despótico buscado pela censura, pelo papai e mamãe de classe média, pelo

militante empedernido do partidão e o estilhaçamento de sentidos expostos

nas vitrines, nas bancas de revistas, passeando nas ruas, explodindo com a

contracultura e com o é proibido proibir. Em todas as cabeças, a mesma

pergunta: existirmos, a que será que se destina? (ALBUQUERQUE

JUNIOR, 2005, p.16)

Uma das grandes armas de expressão artística e conceitual desses jovens contestadores

era o Super-8, principalmente nas regiões mais periféricas do país. Nessa versão

cinematográfica do desbunde há a forte presença da contracultura dos anos 70, incluindo o

diálogo com o corpo, o bissexualismo, a desconstrução da imagem burguesa da mulher,

dentre outras formas de contestação da ordem.

A experimentação superoitista inscreve-se no momento pós-tropicalista,

onde a dimensão política da arte fragmentou-se em experimentos quase

sempre aliados a uma espontaneidade radical e ligados a uma visceralidade

existencial que buscava criar momentos de ruptura com a pesada ordem

política e de mercado do „milagre‟ conduzido pela ditadura militar

(MACHADO Jr, 2005, p.230)

A transição entre as décadas de 1960 e 1970 foi, portanto, um período onde a juventude

viveu o engajamento de diferentes maneiras, seja numa luta onde se colocava em xeque

antigos valores, seja numa busca de mudança institucional dos caminhos formais da política.

Foi um período de múltiplas propostas de rupturas estéticas, de novos signos e ressignificação

de outros. Foi um período de mudanças mundiais refletidas nacionalmente - no Brasil- e,

proporcionalmente, em cada estado brasileiro.

1.1 O cenário piauiense

Em meio aos anos de luta e de combate às ditaduras políticas e sociais, a data lembrada

como o ponto de partida para a principal mudança sócio-cultural do país foi o ano de 1968

(...) momento histórico das grandes mudanças, dos grandes heróis, das

paixões e de muitas e intensas lutas. No entanto, a utilização dessa data

como importante referência da contracultura no mundo, fez-me observar

que, certamente mais significativo que o 68, para o Piauí, e, sobretudo para

Teresina, foi o ano de 1972 (LIMA, 2006, p.31).

A data representou um conjunto de mudanças significativas e desencadeadoras de uma

transformação social, artística e cultural na região piauiense. Os jovens passaram a

ressignificar lugares, a construir e algumas vezes até desconstruir estereótipos sociais, a

inventar e consumir espaços de forma diferenciada, criar normas e um novo estilo de vida.

Tudo isso, influenciado pelas já citadas literatura, artes plásticas, música, cinema, posturas

sociais da contracultura da qual começavam a seguir e, algumas vezes, criticar.

Seguramente faziam isso por que já tinham um contato com a literatura que

divulgava a contracultura ou fazia críticas a ela, seja em jornais ou livros

que, embora fossem silenciados pela repressão e censura imposta pelo

regime militar do Brasil, bem como pelas famílias conservadoras e por parte

considerável das escolas, ainda eram passados de mão em mão e

sigilosamente discutidos para não despertar qualquer suspeita. Da mesma

forma que as revistas e jornais, a televisão, o telefone, a movimentação de

pessoas de outros estados em Teresina, tudo isso permitia um contato mais

direto com as mudanças que aconteciam no Brasil e no mundo no final da

década de sessenta e início dos anos setenta (____, 2006, p.33).

No início da década de 1970, os principais jornais de circulação nacional passam a chegar

de forma periódica no Piauí; dentre eles, um dos mais conhecidos contestadores da política

ditatorial no Brasil, O Pasquim, passa a influenciar estética e jornalisticamente alguns jovens

profissionais no estado. Levando, inclusive, à criação de jornais alternativos espelhados em

seus textos irônicos, grafias cômicas e imagens ambíguas, como os periódicos: Comunicação,

periódico de cultura que era encartado no jornal Opinião; O Estado Interessante, caderno de

cultura do jornal O Estado, em Teresina; e O Gramma, publicação alternativa criada

especificamente para a divulgação da contracultura piauiense. As três publicações foram

criadas e lançadas entre o início de 1971 e o final de 1972 por jovens de classe média de

Teresina. “Formávamos um grupo de intelectuais antenados com a contracultura e

tentávamos, a nosso modo, nos inserir no grande momento contracultural brasileiro,

principalmente através de jornais como o Gramma e a página de Comunicação do jornal

Opinião”. (CUNHA, 2010, [mensagem pessoal] 7)

Com O Gramma - nome relacionado ao local onde os colaboradores se reuniam e

discutiam suas pautas, organizavam os escritos-, os idealizadores do periódico tiveram

problemas com a Polícia Federal que suspeitava haver alguma relação com o jornal cubano,

Granma8, considerado publicação genuinamente socialista. “Não chegamos a apanhar, mas

ficamos um bom tempo sendo interrogados pela polícia federal e fomos intimidados por conta

disso. No outro dia eles nos soltaram” (COUTO FILHO, 2010, [meio digital] 9)

7 Citação feita por email recebido de Paulo José Cunha em novembro de 2010

8 No terceiro capítulo, o jornal Granma será apresentado mais detalhadamente. 9 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Assim, as palavras, através desses novos veículos de comunicação, se tornavam armas

contestadoras da sociedade tida por eles como arcaica e da política ditatorial do período. Para

os jovens envolvidos, a criação desses jornais, bem como a produção de fanzines, poesias e

documentários em super-8, eram suas principais formas de expressão contracultural. As

enxurradas de novas informações através da música, dos filmes, e dos jovens que saiam para

estudar fora e chegavam, geravam expectativas e ansiedade em expressar seus ideais. A esses

jovens era apresentado

a emergência de um mundo cada vez mais mediado pelas maravilhas

tecnológicas, um mundo marcado por novas experiências do tempo e do

espaço, um tempo de corpos sensibilizados e acuados por novas e

intensas experiências e experimentações, tempo da formação de novas

sensibilidades, mundo novo onde os sentidos excitados por outras viagens

e visagens requeriam a elaboração de novos códigos culturais, de novas

linguagens para conseguir apreendê-las, dar a elas significados, dobrá-las

com novas subjetividades (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2005, p.37)

Dentre os jovens da classe média de Teresina que se destacaram cultural e artisticamente

na década de 70 do século XX, os principais tiveram a oportunidade de expandir seus estudos

concluindo curso secundário ou superior em capitais de outros estados. As principais cidades

eram: Salvador, para onde foi o poeta Torquato Neto com o intuito de concluir o ensino

secundário e se preparar para o Instituto Rio Branco; Brasília, para onde foram Paulo José

Cunha e Durvalino Couto estudar na escola de Comunicação recém inaugurada; Belo

Horizonte, para onde seguiu David Aguiar, enviado pela família para término do curso

secundário; e Rio de Janeiro, uma das moradas posteriores de Torquato Neto.

Todos eles, associados a outros nomes, fizeram história na arte piauiense. A comunicação

deixou de ser apenas expressão escrita em jornal local ou rádio para expandir-se como

discurso imagético através dos curtas-metragens criados pelos jovens e até mesmo dos

primeiros meios de comunicação televisivos que chegavam à região.

É nesse cenário de mudanças internas que aquele grupo de jovens sentados

na grama da Praça da Liberdade (daí o nome do jornal Gramma) percebeu

que o „paraíso do consumo‟ maquiava a repressão, a censura e o

impedimento da participação juvenil em manifestações artísticas

consideradas pelo governo como subversivas. É diante dessas mudanças que

emerge a angústia e a busca por novas respostas para as perguntas que eram

constantemente formuladas por esses jovens. Havia chegado a hora do

desbunde em Teresina, o momento de discordar do Estado, da mãe, do pai,

de tudo o que era considerado por essa parcela da juventude do Estado como

careta (LIMA, 2006, p.43).

Período de reconstrução de valores, de questionamento do natural, reapropriação de

espaços, revalorização de idéias, tudo envolta de uma realidade frustrada, como eles mesmos

definiam.

Nós, filhos bastardos do AI-5, diante da agonia/euforia, entre a repressão e o

„milagre‟, confusamente buscávamos uma atualização possível e a revelação

de uma realidade, prenhe de anseios e frustrações, mas com pitadas de

lirismo temperando o peso das metáforas (BEZERRA, 1993, p. 12).

O universo daquela juventude teresinense do início da década de 1970 foi marcado,

portanto, de questionamentos e expressões artísticas. Nas letras de música, nos jornais

alternativos, nas pinturas, nos livros de poesia, nos contos e crônicas; além dos filmes do cine

Rex, do Cine Royal e das produções em Super-8 ambientados na capital piauiense. “Todo

esse material corresponde, hoje, a um inesgotável acervo documental para se acessar a parte

da década de 70 em que esteve imersa essa juventude e, para assim, compreender aspectos

sociais, políticos, econômicos, ideológicos e, sobretudo, artísticos” (LIMA, p. 52, 2006).

As artes marginais e alternativas, fora do sistema comercial, tornavam-se foco de seus

experimentalismos, onde uniam vida e arte, onde externavam suas sensibilidades e criavam

suas linguagens. Os mesmos jovens que buscavam uma mudança na aura e na estrutura social

daquela Teresina que definiam como provinciana, eram os que produziam, dirigiam,

escreviam e interpretavam seus personagens nos filmes em Super-8. Filmes nesse formato se

tornaram em todo o Brasil símbolo de liberdade de expressão e linguagem audiovisual, pela

facilidade de compra e de revelação. Esta bitola, entre outras coisas, barateava o custo da

produção em conseqüência dos preços de seus equipamentos - câmeras, projetores, película -

em relação a outros suportes de cinema (16mm, 35mm). Isto fez com que um número bem

maior de pessoas tivesse acesso à produção cinematográfica.

Foi esse cenário de lutas ideológicas, reestruturação de valores e questionamentos sociais

que inspirou comportamentos e criatividades e fez surgir o cinema de forma produtiva no

Piauí, como fonte de liberdade de expressão. O cinema, arte que fugia às regras

convencionais, se tornou meio de divulgação e expansão da nova visão de mundo daquela

juventude.

Apesar da iniciativa tardia em relação ao resto do país10

, as primeiras produções

cinematográficas no estado do Piauí construíram uma cultura de produção que influenciou

jovens amantes da sétima arte das décadas de 80 e 90 e, ainda nos dias de hoje, são

incentivadoras na construção de novos filmes dentro do estado. Essas produções traziam, em

sua construção narrativa, representações sociais e culturais da época em que viviam os

cineastas, com o desejo implícito – e algumas vezes até de forma explícita- de desafinar o

coro dos contentes, como dizia Torquato Neto.

Na maioria das vezes (...) as atitudes de todos eles geravam desconforto por

que era essa a intenção. Acontecia assim nas cenas dos filmes produzidos em

bitolas de Super-8, que sob o signo da repressão e da censura, além da

tentativa de racionalização do pensamento e do disciplinamento dos corpos,

o que se podia fazer era criar uma linguagem em que nas fissuras fosse

possível encontrar uma mensagem que provocasse desconforto. O resultado

é a produção de filmes curtos, que traziam mensagens contestatórias e, ao

mesmo tempo, anunciavam a chegada de novas idéias em Teresina. Nesse

sentido, a desarmonia – tomando como parâmetro o que era convencional na

arte de filmar – que seria gerador de um desconforto entre os que não

entendiam aquilo, partia desde a idéia da filmagem até a montagem e edição

dos filmes. (LIMA, 2006, p.57)

Os filmes, produzidos em formato Super- 8 e de forma amadora, eram apresentados em

sessões de cinema no Cineclube Teresinense e na Universidade Federal do Piauí, de onde

saíram muitos dos formadores de opinião da sociedade local, além das residências familiares

dos jovens, encontros entre amigos, etc. Os jovens responsáveis pelas produções, apesar de

quantitativamente poucos – uma minoria da juventude teresinense da época - eram

significativos e, devido seus comportamentos, roupas e expressões, tinham grande

visibilidade na cidade. Viviam “desordenando a linguagem simbólica do espaço, caminhando

e transgredindo regras” (LIMA, 2006, p. 60). Como afirma Durvalino Couto Filho:

Na sociedade nós sentíamos um pouco de hostilidade. Nós éramos todos de

classe média, e andávamos sempre desarrumados, os cabelos grandes, todo

mundo sabia que a gente fumava maconha. As mães não queriam os seus

filhos andando com a gente, muito menos suas filhas namorando a gente.

Depois, aos poucos, essa coisa foi mudando (COUTO FILHO, 2010, [meio

digital]11

).

10

A exceção do Piauí e de Sergipe, os demais estados do Nordeste, assim como os do sudeste, iniciaram suas

produções nas primeiras três décadas do século XX. (HOLANDA, 2009). 11 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Ávidos pela comunicação e pelas muitas formas de expressão possíveis, os artistas se

envolveram em uma gama de produções artísticas que iam dos jornais impressos, fanzines,

desenhos e quadrinhos, ao cinema artesanal, através do Super-8. “Naquela época era um

conjunto de mídias que passeavam nos mesmos objetivos culturais. Tinha o cinema, tinham

os jornais alternativos, tinha a música, e todos caminhando juntos” (COUTO FILHO, 2010,

[meio digital]12

).

Mais de 30 produções audiovisuais foram produzidas entre os anos de 1972 e 1985.

Nesse meio tempo, duas vertentes cinematográficas foram desenvolvidas de acordo com as

linhas ideológicas e as posturas de produção dos filmes. Uma, com características marginais,

e traços tropicalistas é conhecida por Torquateana; a segunda, com características mais

profissionais e traços cinemanovistas, segue uma tendência mais Cineclubista13

. Ambas

tinham o propósito de externar os valores e as posturas seguidas pelos cineastas, expressando

a situação cultural e social em que viviam, apresentando sempre questionamentos quanto à

sociedade piauiense, o poder do Estado, o poder econômico, os patrões, a disciplina imposta

por esta mesma sociedade e a família.

Antes de o cinema piauiense apostar numa incursão produtiva, apesar de artesanal,

legítima; um determinado evento histórico, que mobilizou indiretamente ideais

cinematográficos, deve ser aqui levado em consideração. Em 1971 o então governador do

estado, Alberto Silva, patrocinou a criação de um filme no estado do Piauí chamado O Guru

das Sete Cidades. O longa-metragem tinha 90 minutos e foi todo produzido em película

35mm; à frente dele o cineasta carioca Carlos Bínni e toda sua equipe de cineastas, auxiliares

e produtores da região Sudeste do Brasil.

O filme conta a história de um grupo de seguidores de um Guru que existia numa região

afastada dos grandes centros do país. Esse Guru era o líder de uma seita religiosa que existe

até os dias atuais no interior do Rio de Janeiro. O longa teve locações nas cidades de Luís

Correia, no Litoral, na capital, Teresina e em Sete Cidades (uma das cidades arqueológicas do

Piauí).

Apesar de parte deste filme ter sido gravado no Piauí, bem como parte seus custos

advindos do governo deste estado, o mesmo não é considerado piauiense por alguns dos

12

Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010. 13 Tais vertentes foram definidas e descritas pelo historiador Edwar Castelo Branco em Todos os dias de

Paupéria.

cineastas locais, já que grande parte da produção, edição e a direção do filme, e até mesmo

algumas locações, terem sido feitas em outros estados. De qualquer forma, sua produção foi

importante para a história cultural do Piauí, pois influenciou, direta ou indiretamente, alguns

cineastas da época gerando qualificação profissional para algumas pessoas, além de novas

produções e discussões. A prova disso foi a produção do curta O Guru das Sexys Cidades

(Antonio de Noronha Filho- 1974) que satirizava a película de Carlos Bínni.

A década de 70 foi um período marcante para as produções piauienses em formato

Super-8. A mesma juventude inquieta que buscava mudanças no âmbito disciplinar da

sociedade teresinense foi responsável por muitas dessas produções cinematográficas no Piauí.

Inseridos nela estavam os amigos Edmar Oliveira, Arnaldo Albuquerque, David Aguiar,

Paulo José Cunha, Antonio Noronha Filho, Carlos Galvão e Durvalino Couto Filho. O

objetivo era experimentar aquela nova onda, era fazer um movimento com expressão artística

contracultural. “Era mais uma possibilidade de produção artística para a época. Fazíamos

jornais, artes plásticas, histórias de quadrinhos, teatro, porque não cinema? O super-8 foi nos

apresentados por Torquato como uma revolução estética. Então, embarcamos.” (OLIVEIRA,

2010, [mensagem pessoal] 14

).

O contato com o poeta e jornalista Torquato Neto veio através do primo, e também

jornalista, Paulo José Cunha, que apresentou o tropicalista aos jovens piauienses para uma

entrevista a um caderno de cultura local.

Fomos eu, Paulo José e umas três amigas que queriam conhecer aquele cara

que tava tendo repercussão nacional, que era famoso no Brasil todo e tal.

Então eu lembro que nós levamos nosso gravador de fita k-7, sentamos no

chão da sala dele, e fizemos uma longa entrevista com Torquato. E, depois da entrevista, quando estávamos lá corrigindo alguns dados, ele se mostrou

interessado e começou a se envolver com a gente nessas questões

jornalísticas. Porque o Torquato era assim, um agitt propi, um agitador nato; logo ele era muito inquieto. E quando a gente menos percebeu, ele já estava

lá com a gente escrevendo no Estado Interessante. Então ele passou a fazer

as entrevistas com os caras junto com a gente. O tempo que ele ficou aqui

em Teresina ele estava envolvido com o jornal também (COUTO FILHO, 2010, [meio digital]

15).

Durvalino Couto Filho (2010) conta que nesse período, várias pessoas se juntaram a eles

em prol de uma expressão cultural, jornalística e artística no Estado.

14 Citação feita por email recebido de Edmar Oliveira em outubro de 2010. 15 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Arnaldo Albuquerque, que era ilustrador e artista gráfico; o Carlos Galvão,

que depois se tornou parceiro do Torquato; o Haroldo Barradas, um cara

inteligentíssimo, que depois se formou em física, mas infelizmente morreu de uma forma muito prematura; Marcos Igreja; o Etinho, que é hoje um

médico sanitarista, mora no Rio de Janeiro; Pierre Baiano, que apareceu lá

pelo primeiro período do governo Alberto Silva; e também os músicos, por

que nós começávamos a nos engajar no lado musical também; e aí veio o Edvaldo Nascimento, essencialmente (COUTO FILHO, 2010, [meio

digital]16

).

A última vinda de Torquato Neto ao Piauí foi crucial para o início de uma cultura de

produção audiovisual local. Em sua mala, o poeta trazia uma câmera de Super-8, as idéias

pós- tropicalistas e pós-concretistas como as que foram expressas em uma Navilouca, a

admiração pelo cinema marginal de Sganzerla e José Mojica Marins e o desejo de, junto com

os piauienses, produzir o filme que ficou conhecido como seu docu(testa)mento (KRUEL,

2008, p.445).

1.2 Um anjo torto

Torquato Pereira de Araújo Neto saiu ainda muito jovem para morar na Bahia e,

posteriormente, no Rio de Janeiro. Em Salvador, se envolveu com produções culturais e ações

políticas do CPC (Centro Popular de Cultura). O objetivo nas terras baianas era a conclusão

dos estudos e tentar entrar no Instituto Rio Branco- para a família ele seria Diplomata. No

entanto, antes disso, mudou-se para o Rio onde terminou o científico e prestou vestibular para

jornalismo na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Apesar de ter cursado a

faculdade, nunca concluiu.

No estado do Rio, Torquato fez parcerias musicais, teatrais, cinematográficas. Com Edu

Lobo fez Veleiro, Lua Cheia e Pra Dizer Adeus. Com Gilberto Gil, dentre muitas músicas

Todo Dia é Dia D e Geléia Geral; com Gal Costa fez Três da Madrugada. Com Caetano

Veloso fez parcerias musicais como Mamãe, Coragem; Ai de mim Copacabana e Nenhuma

Dor, além de roteiros de shows: Pois é; Maria Betânia; Ensaio Geral; Frente Única – Noite

da Música Popular Brasileira. O artista ainda teve como intérpretes de suas músicas nomes

importantes da MPB, como: Nelson Gonçalves, Angela Maria, Elizeth Cardoso, Elis Regina,

16 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Gal Costa, Maria Betânia, Jair Rodrigues, Jards Macalé, Nana Caymmi, Fagner, dentre muitos

outros.

Torquato Neto trabalhou como redator da CIPAL (Carlos Imperial Produções Artísticas

Ltda) e foi diretor de relações públicas da gravadora Philips (depois Polygram). No Piauí,

escreveu nos jornais Opinião, Gramma e A Hora. Além de ter trabalhado na TV Rádio Clube

e na Rádio Pioneira. Participou e incentivou impressos nacionais como Rolling Stones (RJ),

Presença (RJ), Flor do Mal (RJ) e Verbo Encantado (BA), além de ter participado da

coordenação editorial e organização da principal publicação pós-tropicalista, a Naviloca.

Atuou nos suplementos Plug do Correio da Manhã e O Sol do Jornal dos Spots e no diário

carioca Última Hora com a coluna Geléia Geral. Nesta, abriu fogo contra o Cinema Novo

que, segundo ele, estava se academizando e se tornando cada vez mais comercial, deixando de

lado suas propostas iniciais cinemanovistas (CASTELO BRANCO, 2005). Ao mesmo tempo,

Torquato apoiava e elogiava o cinema marginal de Rogério Sganzerla, Julio Bressane e Ivan

Cardoso, além da arte do amigo Helio Oiticica.

Em suas andanças conviveu com artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé,

Capinam, Rogério Duarte, dentre outros. Com estes, deu início a um movimento artístico que

se pretendia uma reforma da MPB; o Tropicalismo. O poeta-jornalista era visto pelos artistas,

devido suas colunas em jornais, como “porta-voz privilegiado de um movimento que ainda

não podia ser chamado como tal” (PIRES, p.15, 2004). No cinema, Torquato participou de

filmes como Barravento (1961, iniciado por Luiz Paulino dos Santos e, depois de um

incidente de filmagem, concluído por Glauber Rocha), Moleques de Rua (Super-8, com

Alvino Guimarães), Canalha em Crise (1962- 1965, do piauiense Miguel Borges, feito no Rio

de Janeiro), Nosferatu no Brasil17

(1971, Ivan Cardoso), A Múmia Volta a Atacar (1972, Ivan

Cardoso), Helô e Dirce18

(1972, no Rio de Janeiro, de Luiz Otávio Pimentel).

A grande paixão do Torquato Neto sempre foi o cinema, mais do que a

poesia, do que as artes plásticas, do que o teatro, do que a música. (...)

Quando Torquato Neto se aventurava por outras linguagens, ele estava

fazendo cinema. As letras dele são, na realidade, roteiros cinematográficos.

Torquato Neto era mais cineasta do que, propriamente, poeta. (KRUEL,

p.63. 2008)

17 Anexo 02. 18 Anexo 01.

Em 1967 Torquato Neto recebe bolsa de estudos e segue em viagem para a Europa para

estudar As Influências Africanas na Música Popular Brasileira. Em Paris se torna

freqüentador assíduo da cinemateca onde vê com freqüência filmes de Godard, cineasta da

Nouvelle Vague francesa. Segundo Torquato, um dos símbolos mais fortes da contracultura

cinematográfica mundial, muito cultuado pelo poeta pela ousadia de explodir com a lógica

ilusionista da linguagem cinematográfica linear (KRUEL, 2008, p.43).

Depois de suas incursões européias e atuações cinematográficas no Rio de Janeiro,

Torquato chega ao Piauí e reúne amigos para iniciar as gravações locais. Sua primeira

participação em produções piauienses foi com o curta-metragem Adão e Eva – Do Paraíso ao

Consumo (1972), com a direção de Carlos Galvão. O filme tinha menos de dez minutos e

trazia Claudete Dias e Torquato como os protagonistas da história. Filmado em super-8

milímetros, o curta levanta a bandeira contra o consumo e questionava a história bíblica de

que Eva foi gerada de uma costela de Adão.

Adão e Eva, juntos, caminhando pelo centro de

Teresina

Adão arrancando sua costela

O filme se passa no paraíso, onde Adão (Torquato Neto) se vê solitário e, em um

momento de fúria, arranca sua costela e joga no rio. Da costela surge Eva (Claudete Dias),

como a preencher todos os seus vazios.

Depois de conquistar o coração de Adão, Eva convence-o a seguir para o outro lado do

rio, onde percebe movimentação. Após seguir Eva, Adão se vê tentado ao mundo consumista

que conhece e, de um estilo hippie, passa a usar roupas que o transformam em um yupie. O

casal facilmente é conquistado pelo mundo do consumo e acaba se transformando de um casal

apaixonado para duas pessoas entediantes, casadas e vivendo em uma casa, com contas para

pagar, tarefas domésticas, trabalho para terminar e filho para sustentar. Transformam-se em

um casal comum.

Edmar Oliveira, roteirista do filme, explica que uma das cenas mais fortes e

interessantes do filme, quando o protagonista arranca a própria costela e joga no rio, foi feita

esteticamente pensando no filme de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisséia no Espaço, na

lendária cena do osso no espaço. O roteirista conta também que a produção teve cuidado

durante a gravação e com o roteiro, ensaiando cada uma das imagens que seriam gravadas,

por conta da carência de película no momento.

Participei em Adão e Eva como roteirista e assistente de direção. Foi uma

direção de Carlos Galvão, com produção de Antonio Noronha e elencado por

Torquato Neto e Claudete Dias. Esse foi o primeiro super-8 de ficção

filmado em Teresina. Lembro que fizemos o letreiro em um vidro que se

interpunha entre a câmara e a cena. Acho que é de 1971. São três rolinhos de

3 minutos cada com emenda em seqüência, tão estruturado estavam as cenas

do roteiro. (OLIVEIRA, 2010, on-line)

A película do filme Adão e Eva – Do paraíso ao consumo se perdeu. O que se tem hoje

são fotografias da produção e da gravação, além de depoimentos e entrevistas dos envolvidos

no processo.

O filme de Carlos Galvão incentiva, no Piauí, a onda do Super- 8. “Depois desse curta,

todo mundo queria fazer seu próprio filme e o mais interessante é que todas as expressões

artísticas começaram a se juntar ao cinema e criar uma união entre as artes: música, literatura,

cinema, artes plásticas.” (COUTO FILHO, 2005, [mensagem digital]19

). E completava:

Todos os filmes piauienses dessa época eram mudos, alguns ainda tinham ao fundo das imagens uma sonorização com uma música qualquer, mas não

eram feitos como os filmes brasileiros da época, onde a imagem e o som

eram gravados na mesma película. Isso porque esse tipo de tecnologia era bastante cara e nós não tínhamos acesso por aqui; para fazer isso teríamos

que mandar nossos filmes para serem sonorizados fora. (COUTO FILHO,

2005, [mensagem digital])

Em 1972, Torquato Neto ainda em Teresina filmou e produziu seu primeiro e único

filme: Terror na Vermelha (ou Faroesteiro da Cidade Verde), definido por ele próprio como

“matéria de memória de uma só pessoa em equipe”. O filme, um curta metragem de quase

trinta minutos, tornou-se um signo de sua época; traz uma narrativa fragmentada, nada

convencional, como se apresentasse um mundo caótico através da falta de razão na desordem

das cenas. Segundo Edwar Castelo Branco (2006), um dos estudiosos da produção

Torquateana, o artista defendia o “cinema em liberdade” onde destruía a linguagem natural e

instaurava uma contra- linguagem, uma fuga da captura social de sua subjetividade; isso,

ligado às características linguísticas da película, fazem de Terror da Vermelha uma espécie de

síntese sensitiva da Marginália de 1970.

Entre o final de 1971 e o início de 1972 Torquato efetivamente tocou fogo e

foi ao cinema: a experiência com o cinema marginal, até então restrita à sua

atuação como ator em alguns filmes de Ivan Cardoso (...) e de Luiz Otávio

Pimentel (...), passou a ser complementada com um projeto ambicioso

através do qual Torquato roteirizava, dirigia e atuava como ator em filmes

rodados em super oito. O cinema, então, parecia ser a nova trincheira que

escolhera para hospedar sua inquietação artística (CASTELO BRANCO, p.

05, 2006)

O personagem principal de Terror da Vermelha, na verdade um alter-ego do diretor, foi

protagonizado por Edmar Oliveira. No filme, ele se apresenta desorientado e caminhante

pelas ruas da cidade de Teresina. O rapaz é um serial killer que sai pelas ruas estrangulando

seus amigos e amigas e só encerra as mortes depois de um duelo na Estação Ferroviária de

Teresina, hoje desativada, onde logo depois ele segue rumo à estrada e deixa seu rastro de

morte. Esta última cena, feita entre Edmar Oliveira, o assassino, e Etim, a vítima, foi

propositalmente filmada nos moldes de Matar ou Morrer (1952, direção de Fred Zinnemann, 19 Citação feita em entrevista realizada em março de 2005.

com Gary Cooper e Grace Kelly), mais especificamente a cena em que os bandidos esperam a

chegada do trem na estação, o qual trará o chefe do bando. Segundo Edwar Castelo Branco

(2005, p.207), outra semelhança cinematográfica com produções internacionais vem do

protagonista do filme, que apresenta uma

atuação que em alguns aspectos lembra

Jean Paul Belmondo em Acossado (1959,

direção de Jean-Luc Godard).

O filme, repleto de imagens da

infância de Torquato Neto, inclusive de

seus pais, foi montado apenas depois de

sua morte, seguindo o roteiro que havia

deixado. Segundo o jornalista Paulo José

Cunha, primo do poeta e também intérprete de um dos personagens mortos no filme de

Torquato, a produção era mais autoral do que a teoria se propõe. “Era um filme confessional,

com os dramas e angústias do poeta, e onde já se vislumbravam os sinais do comportamento

depressivo que o levaria ao suicídio.” (CUNHA, 2010, [mensagem pessoal] 20

).

Com características estéticas e poéticas coerentes com seu estilo, parte do roteiro é

apresentado já no início da montagem do filme.

VIR

VER

OU

VIR

A coroa do Rio Poty em Teresina

lá no Piauí. areia palmeiras de

babaçu e céu e água e muito longe,

depois, um caso de amor um casal uns e outros.

Procuro para todos os lados – localizo e reconheço,

meu chicote na mão e os outros:

a hora da novela, o terror da vermelha

o problema sem solução a quadratura do círculo

o demônio a águia o número do mistério dos elementos

os quintais da minha terra é a minha vida;

o faroesteiro da cidade verde

estás doido então (Sousândrade)

ela me vê e corre

Praça João Luís Ferreira

20 Citação feita por email recebido de Paulo José Cunha em novembro de 2010

Cena de O Terror na Vermelha

esfaqueada num jardim

estudante encontrado morto

ando pelas ruas

tudo de repente é novo para mim

a grama, o meu caso de amor,

que persigo, esses meninos

me matam na praça do liceu,

conversa com Gilberto Gil

e recomeço a

vir ver ou

aqui onde herondina faz o show

na estação da estrada de ferro

Teresina- São Luís

um dia de amanhã

ali

onde etin é sagrado

Tristeresina

uma porta aberta, semi-aberta

penumbra retratos e retoques

eis tudo, observei longamente

entrei saí e novamente eu volto

enquanto saio, uma vez ferido de morte

e me salvei.

o primeiro filme- todos canta sua terra

também vou cantar a minha.

viagem/língua/vialinguagem

um documento secreto

enquanto a feiticeira não me vê

e eu pareço um louco pela rua e

um dia eu encontrei um cara muito legal

que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos

eu o via o dia inteiro e aos poucos

conheci tão bem

VER

e deu-se que um dia

o matei por merecimento

sou um homem desesperado

andando às margens do rio Parnaíba

Boi Jardim da Noite

esse jardim é guardado pelo barão

um comercial da pitu

homenagem à saúde de Luís Otávio

o médico e o monstro. hospital Getulio vergas

morte no jardim, Paulo José, meu primo

estudante de comunicação em Brasília

morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol à pino e conceição

VIR

correndo sol à pino pela avenida

Teresina

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme – calças amarelas

quarto número, seis sete cidades

(O Terror da Vermelha, 1972, super-8)

A escrita de Torquato Neto no roteiro, assim como em muitas de suas poesias, segue uma

estrutura que remete ao concretismo de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari,

movimento artístico que influenciou indiretamente a Tropicália. A poesia concreta, que teve

como precursores no Brasil, dentre outros, João Cabral de Melo Neto e Oswald de Andrade,

se caracteriza pelo encerramento do verso em sua forma comum e passa a tomar

conhecimento do espaço gráfico da poesia como agente estrutural (HOLLANDA, 2004,

p.174). Durante o filme, percebem-se outros traços dessa poesia, como no caso do termo

colocado durante o filme: “Tristeresina”.

Os traços marginais apresentados em seu média-metragem influenciaram posteriores

produções de piauienses parceiros do poeta. A narrativa desorganizada apresenta cenas

independentes e faz com que o filme não tenha continuidade. Os planos fixos seguidos de

sangue e torturas também lembram alguns filmes marginais feitos por Sganzerla ou José

Mojica Marins, além de traços contraculturais e do clima de agonia e desespero existente no

filme.

A cidade não ficou alheia ao que acontecia em todo o país, e esses poetas

proliferaram pelos bairros, nas faculdades, colégios, praças e em todos os

locais onde houvesse uma atividade cultural. Esse corpo-a-corpo era a sua

principal característica e dava o tom romântico àquele trabalho quase sempre

artesanal. Era, sim, a produção, marginal. De principio algo festivo, mas

logo tornar-se-ia um parâmetro, algo como um comportamento, e mais: um

índice contextual. (VILHENA FILHO, 1999, p.24)

Assim como na música, na poesia e no jornalismo, o poeta piauiense faz do cinema um

lugar de mistura de todas as suas referências, de vida, cultura e do tempo em que viveu. “O

filme faz uma desconcertante mistura de referências, que inclui Godard, Western e

experiências do chamado „cinema em pânico‟, cujos expoentes são Ivan Cardoso e José

Mojica Marins” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 207)

Além do protagonista - Edmar Oliveira, hoje médico psicanalista com atuação no Rio de

Janeiro - participaram como atores nessa única experiência de Torquato como diretor as

colegas Conceição Galvão, Claudete Dias e Herondina Mendes e os amigos Durvalino Couto

Filho, Paulo José Cunha, Carlos Galvão, Etim, Xico Ferreira e Arnaldo Albuquerque, além do

próprio Torquato, que aparece rapidamente em uma cena em que é assassinado em frente à

escola pública Liceu Piauiense, uma das principais marcas identitárias de Teresina. Arnaldo

Albuquerque e Carlos Galvão atuaram também como câmeras. O filme tem duração de 28

minutos, o que representa quase dez rolos de filme super-8.

O pesquisador Silvio Ricardo Demétrio (2004), deixa claro em estudo sobre o poeta

piauiense que O Terror da Vermelha é o registro incontestável da verve e do domínio, por

Torquato Neto, dos fundamentos da linguagem cinematográfica, um de seus lados ocultos que

ficou adormecido na virtualidade do seu mito marginal.

O anjo torto da tropicália percorreu um itinerário que passa pelos momentos

essenciais da produção cinematográfica: ator, diretor, produtor e crítico. Se

uma das características essenciais da poética de Torquato Neto é seu caráter

fragmentário, com relação ao cinema se dá algo no sentido inverso.

Organicidade e totalidade são atributos que podem ser percebidos de

maneira direta tanto no seu envolvimento com o „fazer cinema‟ (...) quanto

no rigor construtivo dos planos de O Terror da Vermelha. O formato Super-8

é encarado por Torquato como uma possibilidade de se atingir a

espontaneidade do impulso ao se fazer cinema no que ele define como

„coração selvagem‟, uma atitude aberta para a descoberta e a invenção. Isto

não significa, no entanto, um descuido com o aspecto formal quanto ao

resultado (DEMÉTRIO, 2004, pag.04).

O jeito debochado de apresentar as idéias questionadoras (como a morte de uma das

vítimas segurando uma revista Rolling Stone, uma das principais leituras de tropicalistas e

jovens que pregavam a contracultura em todo o país; ou ainda a dança da jovem ao ritmo do

iê-iê-iê americano, ainda criticado na época, mas já difundido dentro das idéias tropicalistas),

as ironias, a desconstrução da narrativa cinematográfica e a estética suja presente em algumas

cenas de morte no filme de Torquato Neto, em determinado momento se assemelha a

trabalhos marginais, como o de Rogério Sganzerla em O Bandido da Luz Vermelha (1968).

O pesquisador João Luiz Vieira (2007) afirmou que o Cinema Marginal, filho de um

Cinema Novo, trazia consigo, também, traços tropicalistas não só pelo período em que ambos

surgiram – Marginalismo e Tropicalismo- mas pela proposta de inovação através da

circulação de idéias nacionais e transnacionais. Esse mesmo tropicalismo que Torquato Neto

foi um dos organizadores.

O momento é o do Tropicalismo, antropofágico, e não há como não deixar

de relacionar o contexto nacional com a circulação de idéias também

transnacionais e estratégias de criação e apropriação (guardadas as devidas

proporções) encontradas naquele momento em uma arte internacional onde,

só para citar um exemplo de impacto, testemunhamos as releituras da cultura

pop efetuadas por um Andy Warhol e presentes na pintura pop tropicalista

de um Rubens Gershman ou na incorporação de guitarras elétricas na música

de um Gilberto Gil (VIEIRA, 2007, p.14).

Sobre as influências indiretas dos movimentos e momentos culturais citados, Durvalino

Couto afirma que os filmes piauienses acabavam, indiretamente, sofrendo influências que,

obviamente, estavam ligadas aos gostos pessoais de produtor.

Claro que no fundo existia algo ideológico, mas não no sentido de politizar

um público; era mais no sentido de contravenção, de desobedecer, a sociedade e também as convenções do cinema, já que nós tínhamos essa

limitação do mudo. Então procurávamos fazer o possível no que tínhamos,

por isso que nossos filmes às vezes lembram um Bandido da Luz Vermelha ou um Godard, uma coisa de câmera na mão. Não era uma coisa bem escolar

tipo: „primeiro plano, plano geral, plano de meio conjunto,...‟. Embora

tivéssemos conhecimento técnico disso, não usávamos porque tudo era a

favor do momento, da hora de filmar. (COUTO FILHO, 2010, [meio digital] 21

)

De acordo com o ator e cineasta Kleyton Marinho, Torquato influenciou bastante os

amantes do cinema e produtores piauienses. “Quando voltava aqui participava de filmes,

mostrava suas idéias, todo mundo ficava ligado. O Torquato estourava, porque ele tinha

artigo no jornal, era criador de opinião. Ele influenciou todo o cinema do Piauí. Eu vi muita

gente fazendo cinema aqui no Piauí por causa dele.” (MARINHO, 2006).

21 Citação feita em entrevista realizada em novembro de 2010.

Após Terror da Vermelha vieram as produções piauienses: Miss Dora (1972), de Edmar

Oliveira; Durvalino Couto fez o curta David vai Guiar (1972), um dos primeiros curtas a ter a

média de 15 minutos de duração; Francisco Pereira da Silva filmou TupiNiquim (1972),

bastante elogiada na época por ter características diferentes das demais que estavam sendo

feitas, com diferentes enquadramentos, utilização de sombras e edição em melhor qualidade;

Arnaldo Albuquerque fez a animação Carcará Pega Mata e Come (1975), primeira animação

piauiense, com cinco minutos de duração; Carlos Galvão fez Por Enquanto (1973); Arnaldo

Albuquerque e David Aguiar fizeram Gilete com Banana (1974), Edmar Oliveira fez Coração

Materno (1972) e Noronha Filho fez o já citado O Guro das Sexys Cidades (1974). Filmes

experimentais que compartilham de muitos ideais do Cinema Marginal, nascido como um

contraponto ao movimento cinemanovista no final dos anos sessenta.

Baixo custo das produções, personagens descaracterizados, inexistência de rigor técnico,

são alguns dos elementos encontrados nos filmes do Cinema Marginal e também da geração

Torquato Neto.

Aqui no Piauí nós tivemos uma grande vantagem porque tivemos o Torquato Neto que trouxe para nós uma visão tropicalista de cinema. A partir disso

pudemos ver na prática características do cinema novo, do cinema marginal.

Podemos ver aqui, por exemplo, filmes com luz estourada, com montagem

truncada. Torquato era mais audacioso e investia em ritmos diferentes de áudio e imagem – como a cena da Claudete Dias dançando ieieiê em um

ritmo diferente do que ele pretendia colocar no áudio original; porque ele

faleceu antes de finalizar o filme, então foi feito após sua morte segundo uns escritos que ele deixou. (MARINHO, 2010, digital)

No caso das películas produzidas no Piauí, as mesmas poderiam ser vistas como sendo

responsáveis pela apresentação dos únicos registros visuais de muitas partes de uma Teresina

que deixou de existir. Da mesma forma que poderia ser utilizada para apresentar outras

técnicas de produções fílmicas – diferentes das atuais –, os costumes de uma época, o

processo de remodelamento do espaço urbano na década de 70.

Devido à limitação da película, da técnica e ainda certa censura – social e política-, os

filmes traziam produções criativas, com mensagens de cunho metafórico. E essa limitação

tornou a produção emblemática. “Aqui em Teresina existia uma juventude muito pequena que

tinha a consciência que estávamos vivendo em uma ditadura, e o Super- 8 era uma das poucas

formas de expressão artística que a juventude tinha condições de fazer; além da poesia”

(DIAS, 2006).

Contudo, era fazer os filmes que chamava mais a atenção daqueles cineastas.

Os filmes tinham uma espécie de linguagem contraventora, tinham as idéias

sociais, algumas vezes, tinha certo deboche em algumas cenas. Mas não

eram nem marginais, nem cinemanovistas, nem tropicalistas. Nem experimentais nós éramos, porque até o experimental ele vislumbra um fim.

Nós não. Nós queríamos era filmar; inclusive eu afirmo sempre que o ato de

filmar era mais importante do que o resultado que era obtido. (COUTO

FILHO, 2010, digital)

Para a maioria deles, tão interessante quanto ver o filme pronto e toda sua estrutura

imagética discursiva, era o ato de filmar. Eles discutiam uma idéia, improvisavam atores e

pequenos roteiros e arriscavam fazer cinema, mesmo com vários fatores contra.

A cidade de Teresina era cheia de problemas. Não tinha telefone em todos os lugares; a eletricidade às vezes funcionava, às vezes não e eu acredito, até,

que foram vários desses movimentos que ajudaram a modernizar a cidade,

junto com os projetos do então governador Alberto Silva, a chegada da Ufpi

(...)Muitas coisas aconteciam simultaneamente em Teresina, apesar de ser uma época muito difícil no ponto de vista político, mas uma época de

ebulição cultural (MARINHO, 2005, [meio digital]22

).

Cinema, grupos teatrais, festas populares, novos talentos literários, a chegada da

televisão em Teresina; enfim, uma série de mudanças ocorria na sociedade piauiense e todas

elas, enquanto práticas socioculturais, se cruzavam e promoviam modificações na cultura

piauiense.

Além de expressões artísticas significativas do período e de grande relevância para a

compreensão do movimento marginal do Piauí, os filmes em bitola de Super-8 da década de

70, pelo caráter menos comercial, acabam sendo uma importante amostra histórica da cidade

de Teresina. Aqueles cineastas experimentais apresentavam a sua visão de Teresina, com suas

transformações urbanas, as contestações juvenis e as questões ideológicas que transcendiam o

cinema e passeava pela literatura, música, artes, fotografia, jornalismo.

Teresina era muito efervescente a nível cultural naquele período e todo mundo que estava ligado às muitas manifestações da cultura estava também

ligado a questões sociais, econômicas e políticas da época, no sentido

engajado da coisa. Lembro-me bem de uma mobilização do pessoal do

Teatro sobre questões relacionadas à habitação, quando umas casas do governo não foram entregues no período prometido, outras casas eram muito

pequenas e tal, e todos nós nos unimos e seguimos em manifestação

(MARINHO, 2010, [meio digital] 23

).

22 Citação feita em entrevista realizada em abril de 2005. 23 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Mesmo sentindo as questões sociais e políticas da época influenciando direta ou

indiretamente todas as posturas culturais e o desenvolvimento artístico, foram os fatores

morais disciplinares que, na maioria das vezes, viravam tema das produções nesse primeiro

ciclo produtivo do audiovisual piauiense. A contracultura nacional havia feito fiéis no Piauí e

alguns seguiam à risca suas idéias. “Nossos filmes refletiam uma oposição da contracultura à

cultura oficial. Apenas isso e tudo isso!” (OLIVEIRA, 2010, [mensagem pessoal] 24

)

A postura dos jovens da marginália teresinense chamava a atenção da sociedade e dos

representantes da censura no país que, apesar de não ter a mesma intensidade que teve em

outras regiões do Brasil, intimidava, ameaçava e censurava obras artísticas da época.

É complicado falarmos de liberdade de expressão quando vivíamos em meio

a uma ditadura na época. Tá certo que não tivemos aquela mão pesada da

ditadura como em estados do Sul e Sudeste do país, mas nós sentíamos isso

de alguma forma na cultura. Nós tínhamos na verdade era audácia de fazer

as coisas, de fazer e correr. (...) pra eles bastava subir em um palco ou estar

com uma câmera na mão que eles já fichavam. E nós não fazíamos nada de

errado. Tínhamos reuniões, lógico, mas eram reuniões a portas fechadas e

mais pra ensaiar mesmo. Quando estávamos perto de estrear alguma peça, a

gente já tinha que manter contato com o censor para antes da estréia fazer

uma sessão só para ele assistir, e se ele liberasse a gente fazia a peça; se não,

não fazia. Quando não, cortava várias cenas e a gente fazia a peça toda

cortada (MARINHO, 2010, [meio digital] 25

).

24 Citação feita em email enviado em outubro de 2010 25 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Inspetor Pereira - Filme David a Guiar

Apresentar uma postura contracultural em um meio político conturbado e censor, e uma

sociedade disciplinadora não era tarefa fácil. Os jovens da geração Torquato Neto seguiam

todos essa receita e, por conseguinte, suas produções audiovisuais levavam essa questão à

discussão. David a Guiar (ou As Feras- 1973) é um exemplo disso. Com um trocadilho com o

nome do protagonista, o curta apresenta um personagem representativo da juventude daquela

época. Um filme metaforicamente questionador da Teresina daquele período. O personagem

de David Aguiar segue, hora em um Jipe, hora em uma moto, pelas ruas da cidade

apresentando pontos estratégicos, onde é possível fazer uma ligação entre os nomes dos

lugares, as pichações nos muros e as pessoas caminhando nas ruas. Em meio a isso, um

personagem surge para liquidar com os contraventores da época, era o Inspetor Pereira.

O jeito hippie do personagem representado por David Aguiar é contrastado – e muitas

vezes apresentando como afronta – ao conservadorismo da pacata capital na década de 1970.

As cenas que mostram um homem urinando em frente ao Palácio de Karnak – palácio do

Governo do Estado do Piauí – e depois aparece fumando maconha pelas ruas da cidade é um

claro deboche à situação moralista a que eles eram impostos. Soma-se a isso, a pouca roupa

das jovens na película, o que era uma vergonha para a sociedade da época, onde mulher de

respeito não usava mini-saia. “A idéia era negar o sistema, era ser contra tudo o que estava

acontecendo” (COUTO FILHO, 2010, [meio digital] 26

).

De acordo com o diretor do filme, das locações escolhidas ao ator protagonista, o filme

mostrava as feras com quem ele convivia, os malucos da cidade.

26 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Cena do filme David a Guiar

O David ele foi o primeiro grande cabeludo de Teresina. Ele, e o seu cabelo

grande, que trouxe para Teresina todo o ideal da contracultura da época, do

sexo livre, do paz e amor, das drogas, do consumo de maconha sem

preocupação, etc. E onde o David andava era um escândalo. (...) E o David

era muito bonito, ele fazia muito sucesso, onde ele andava as mulheres

ficavam loucas por ele. Então, eu resolvi fazer meu filme com ele, era ele

desde o começo, dirigindo um Jippie por Teresina e eu do lado, filmando.

(COUTO FILHO, 2010, [meio digital] 27

)

O marginal do filme, interpretado por David Aguiar, era semelhante ao próprio ator, em

idéias e atitudes e, porque não, semelhantes aos marginais do cinema nacional da época,

personagens que não aceitam a opressão social nem o papel que a sociedade lhe impõe e reage

pela ação. Junto a isso, vem a heroização do marginal, lembrada por Jean Claude Bernardet,

que está ligada muitas vezes à erotização do mesmo. “Nesse caso, o marginal mesmo sendo

oprimido socialmente é visto, simultaneamente, como indivíduo corajoso, honrado, generoso

e modelo de masculinidade” (BERNARDET, 2007, p.66).

Outra relação do filme com a cultura nacional se encontra no título da produção: David a

Guiar, um trocadilho feito com o nome do protagonista, David Aguiar.

O nome era proposital. Nós, nessa época, já tínhamos conhecimento da

exclusão da palavra, do concretismo, da poesia concreta; das palavras

deslocadas de seu conteúdo formal, tradicional. A palavra como um signo

que fala por si mesmo. E isso era uma coisa inevitável de acontecer por

causa dos meios de comunicação. Mas os poetas concretos, paulistas, eles

romperam com essa coisa da palavra e seu significado; essa questão

conteudística e gramatical com início meio e fim. Então se começou a

misturar luxo e lixo; felicidade e feliz cidade. Ora, se podia fazer isso na

música, então fiz no cinema também (COUTO FILHO, 2010, [meio digital] 28

).

O filme de Edmar Oliveira, Miss Dora (1974), foi dos mais falados entre os superoitistas

da época já que expressava o desejo de libertação feminina e de ressignificação de lugares. No

filme, as mulheres usam minissaias, provocam, embora timidamente, os homens, e andam

pelos bares freqüentados pela juventude contestadora da época, entre bebidas e cigarros. O

filme tem duração de 13 minutos, o equivalente a pouco mais de quatro rolos de filme Super-

8.

27 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010. 28 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010.

Em cada trecho do filme, percebe-se um pouco do que é apresentado já nas primeiras

cenas. “Lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação”, a frase é colocada no momento

em que crianças estão brincando de escolinha. Uma delas apresenta a primeira lei de Newton

para as demais. Logo em seguida, a cena de uma jovem aparentemente desnorteada, aceita

uma arma das mãos de um homem que aparece para ela fantasmagoricamente; é mostrando

exatamente uma previsão do que poderá acontecer, já que toda ação tem uma reação

correspondente. Mais tarde, a mesma jovem aparecerá matando alguns rapazes que ela

seduziu no bar e que, com eles, saiu para dar uma volta.

“Ordem. Em seu lugar, sem rir, sem falar” e logo abaixo uma arma desenhada enquanto

uma criança brinca com uma bola. A

arma desenhada é focada diretamente

e, em seguida, a frase é novamente

apresentada, mas agora há uma

mancha vermelha em cima. A frase é

usada por crianças em uma

brincadeira de rua, no entanto,

indiretamente, percebe-se no filme

uma crítica à violência social e

política da época.

Miss Dora é também o único filme que remete a uma questão marxista de classes, de

operariado. Em meio às críticas sobre violência e à posição feminina naquela sociedade, cenas

de uma fábrica e de operários saindo do trabalho. Esses funcionários, no filme, saem do

interior de uma fábrica por uma passagem na parte inferior da parede, representando uma fuga

ao poder da burguesia. O percurso feito pelos operários e o fato deles estarem todos com a

mesma roupa, é levado a pensar em uma questão de massas, em um operariado como a massa

da sociedade, uma crítica ao pensamento homogêneo dessa classe trabalhadora e isso é

percebido, pela imagem anterior onde todos caminham exatamente iguais (desde a roupa até o

jeito de caminhar). Outro ponto que chama atenção são as cenas que mostram a fábrica, de

onde saem os operários. Os planos filmados e a apresentação da fábrica, com cena

percorrendo toda a estrutura da chaminé, foi uma forma, segundo o diretor, de lembrar

Eisenstein. “Na época, víamos de tudo, de Kubrick a Mojica; de Glauber a Goddart; e sem

Cena de Miss Dora: „Ordem, em seu lugar, sem rir, sem falar‟

dúvida está tudo misturado nos filmes. A fábrica de Miss Dora tem referências de Eisenstein.

Claro que mais alegoria que referências.” (OLIVEIRA, 2010, [mensagem pessoal] 29

)

De acordo com o historiador Edwar Castelo Branco (2006), o filme Coração Materno

(1974), é um dos principais representantes da estética tropicalista herdada pelos cineastas da

„geração Torquateana‟. Na produção, feita sob o prisma da música de mesmo nome gravada

no disco Panis et Circensis, de 1968, do compositor Vicente Celestino e cantada por Caetano

Veloso; um jovem mata, rasga o peito e tira o coração da sua mãe para dar à jovem amada,

que lhe pede o sacrifício como prova de amor. Ao final, o casal come o coração cru da vítima,

em frente à imagem da Santa Ceia em quadro na parede. “O filme problematiza as relações

entre pais e filhos e revisita as sociabilidades juvenis, procurando desconstruir a noção de

amor romântico” (CASTELO BRANCO, 2006, on-line). O filme tem duração de 14 minutos -

o equivalente a pouco menos de cinco rolos de filme super-8.

Em Coração Materno, assim como nos outros filmes, as situações inusitadas ou pouco

freqüentes no cotidiano da maioria da

sociedade teresinense, são abordadas no filme

como tentativa de gerar desconforto e produzir

certa desarmonia onde, antes, só havia ordem.

Assim eram as estratégias daqueles jovens que

apresentavam seus ideais contraculturais da

época de forma indireta nos filmes. Seus

objetivos não eram políticos, eram sociais, mas

29 Citação escrita em email enviado em outubro de 2010.

Cenas da fábrica em Miss Dora

Cena da morte, em que filho pega o coração da

mãe, em Coração Materno

sempre travestidos na idéia de fazer filme, que na maioria das vezes era maior que a de

expressar ideais. “Nosso cinema não era um cinema político, era um cinema de arte-

entretenimento, com alguma crítica social. No fundo, no fundo, a gente filmava era pra se

divertir, e não pra fazer a cabeça de alguém” (CUNHA, 2010, [mensagem pessoal]30

).

O cineasta e publicitário Durvalino Couto Filho confirma:

Todos nós concordávamos na época, inclusive o Torquato. O momento

fílmico é que era interessante, você estar em um canto de uma praça com a

câmera e a pessoa do outro lado e os gritos dos produtores pra poder o Pierre

Baiano vir correndo com o coração de boi na mão [cenas descritas do curta-

metragem Coração Materno], então, isso provocava um choque naquelas

pessoas na rua, e dava aquela sensação ótima de aventura, sabe? (2010,

[meio digital] 31

)

O filme dirigido por Edmar Oliveira foi dos mais comentados pelo grupo tanto pela

criatividade de todos os que estavam envolvidos na produção quanto pela tragédia que

sucedeu a produção fílmica. Após as gravações, os produtores, diretor, atores e amigos que

ajudavam na concepção do filme saíram para comemorar o dia de filmagem. No retorno,

encontraram todas as películas, câmera e demais artefatos envolvidos no projeto aos pedaços.

Depois que nós gravamos tudo, projetamos na parede da minha casa logo em

seguida e vimos que ele ficou bacana demais. Aí nós saímos para comemorar

e quando voltamos o cachorro do meu pai tinha comido o filme. Foi uma

confusão. Os caras queriam me matar, depois matar o cachorro, foi uma

bagunça! (COUTO FILHO, 2010, [meio digital] 32

)

As películas foram recuperadas no ano seguinte e reeditadas sob outra história. Haroldo

Barradas reconstruiu o filme fazendo uma espécie de metafilme; onde eles filmaram a

tentativa de resgate desse material.

E deu certo, ficou muito interessante, porque mistura essas duas situações.

Então, às vezes o filme mostra uma cena deles com a moviola, vendo as

películas e tal, e depois as cenas do filme inicial, do cara correndo com o

coração de boi na mão, o cara matando a mãe, levando o coração para

namorada. Ficou bem interessante! (idem, 2010, digital).

No metafilme de Haroldo Barradas, a cena trágica se repete, mas é o processo de

gravação da cena que, propositalmente, chama mais atenção.

30

Citação escrita em email enviado em novembro de 2010. 31 Citação feita em entrevista realizada em outubro de 2010. 32 Idem.

Porenquanto (1973) e Tupiniquim (1974) são dois filmes feitos pelo grupo de jovens da

geração torquateana na cidade do Rio de Janeiro. Ambos expressam indiretamente a diáspora

vivida pelos jovens piauienses nas cidades do sudeste e centro-oeste do Brasil, apresentando o

multiculturalismo brasileiro e as diversas formas de subjetividades que pode existir através de

uma mídia expressiva como o cinema.

O diretor Carlos Galvão apresenta em Porenquanto uma visão ambígua da cidade do Rio

de Janeiro e seus morros, a bela cidade com seus altos e baixos. Apresenta também um serial

killer – como em muitas obras dessa época - que sai decepando cabeças pelos morros

cariocas. Determinados momentos do filme, algumas cenas sensuais envolvendo mulheres

chamam atenção. É mais uma forma de apresentar a posição da mulher sem as rédeas sociais,

ideologicamente envolvida com a contracultura da época.

Xico Pereira mostra em Tupiniquim a visão daqueles recém-chegados na “cidade

maravilhosa”. Há cenas onde são apresentados piauienses caminhando pelos principais pontos

do Rio de Janeiro e mostrando a diferença entre eles e os cariocas.

A remessa a uma matéria expressional nativa e minoritária - conforme

expresso no título Tupi Niquim - é reforçada pela constante reafirmação das

diferenças entre o outsider, vestido à moda hippie, e os insiders, sempre com

paletós e gravatas. A absorção do estrangeiro na cidade dá-se através de sua

cooptação pelas drogas. Num final tragicômico o Tupi Niquim é enforcado

com os cordões da vestimenta do Frei Caneca, como se fosse tragado pela

fascinante paisagem da Baía da Guanabara. (CASTELO BRANCO, 2006,

on-line)

Todos esses filmes ganham significado

exatamente no esforço de um grupo de

investirem em uma linguagem própria, ou em

uma contra- linguagem, como dizia Torquato

Neto, de forma a criar novos significados

urbana, social e cultural. É um conjunto de

filmes que dialogam entre si, que trabalham

discursivamente em um sequência de

pensamentos coerentes com suas posturas ideológicas e culturais. Ou seja, não há apenas uma

coerência estética na produção desses filmes, há sim uma sequência discursiva (ou

interdiscursiva) entre as produções.

Cena de Por Enquanto

As discussões Torquateanas, que estavam ligadas a questões comportamentais e

disciplinares, em sua maioria, continuaram por toda a década de 1970 nos filmes, na poesia,

nos impressos alternativos, nos fanzines, na música. No final dessa década, outras produções

foram surgindo; com outras características, outra visão de sociedade e de técnica

cinematográfica.